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"Como se tivesse ganho na loteria": o significado da reabilitação vocal na visão de um paciente laringectomizado

"As if i had won in the lottery": the meaning of voice rehabilitation in the view of a laryngectomized patient

"Como si hubiese ganado la lotería": el significado de la rehabilitación de la voz, bajo la visión de un paciente laringectomizado

Resumos

Esse trabalho consistiu no estudo de caso de um paciente laringectomizado, com o objetivo de "descrever o significado da reabilitação vocal por um paciente laringectomizado". A análise dos dados foi realizada pela identificação de categorias de significado. O significado que emergiu foi "Como se tivesse ganho na loteria". Com essa frase o paciente desvelou a complexidade do processo, fornecendo-nos a apreensão dessa etapa da sua reabilitação.

reabilitação da voz; paciente laringectomizado; comunicação


This is a case study of a laryngectomized patient with the objective of "describing the meaning of voice rehabilitation". Data analysis was based on the search for categories of meaning. The central theme that emerged from the present study was "As if I had won in the lottery". With these words the patient revealed the complexity of this process.

voice rehabilitation; laryngectomized patient


Esta investigación consiste en un estudio de caso de un paciente con traqueostomía cuyo objetivo fue "describir el significado del retorno de la capacidad de emisión de la voz". El análisis de los datos fue realizado por la identificación de categorías. El significado emergente que se verificó fue: "como si hubiera ganado la lotería". A través de esa frase, manifestada por el paciente, pudimos comprender la complejidad del proceso.

reabilitatión de la voz; paciente con traqueostomía


ARTIGOS ORIGINAIS

"Como se tivesse ganho na loteria": o significado da reabilitação vocal na visão de um paciente laringectomizado1 1 Trabalho apresentado no 5º Simpósio Brasileiro de Comunicação em Enfermagem (SIBRACEN) em 1996

"As if i had won in the lottery": the meaning of voice rehabilitation in the view of a laryngectomized patient

"Como si hubiese ganado la lotería": el significado de la rehabilitación de la voz, bajo la visión de un paciente laringectomizado

Patrícia Gonçalvez Custódio FlávioI; Márcia Maria Fontão ZagoII

IAluna do 5º Semestre de Graduação da Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo e bolsista do Programa Especial de Treinamento PET/CAPES

IIEnfermeira. Professora Doutora do Departamento de Enfermagem Geral e Especializada da Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo. Coordenadora do GARPO - Laringectomizados. Orientadora do Estudo

RESUMO

Esse trabalho consistiu no estudo de caso de um paciente laringectomizado, com o objetivo de "descrever o significado da reabilitação vocal por um paciente laringectomizado". A análise dos dados foi realizada pela identificação de categorias de significado. O significado que emergiu foi "Como se tivesse ganho na loteria". Com essa frase o paciente desvelou a complexidade do processo, fornecendo-nos a apreensão dessa etapa da sua reabilitação.

Unitermos: reabilitação da voz, paciente laringectomizado, comunicação

ABSTRACT

This is a case study of a laryngectomized patient with the objective of "describing the meaning of voice rehabilitation". Data analysis was based on the search for categories of meaning. The central theme that emerged from the present study was "As if I had won in the lottery". With these words the patient revealed the complexity of this process.

Key words: voice rehabilitation , laryngectomized patient

RESUMEN

Esta investigación consiste en un estudio de caso de un paciente con traqueostomía cuyo objetivo fue "describir el significado del retorno de la capacidad de emisión de la voz". El análisis de los datos fue realizado por la identificación de categorías. El significado emergente que se verificó fue: "como si hubiera ganado la lotería". A través de esa frase, manifestada por el paciente, pudimos comprender la complejidad del proceso.

Términos claves: reabilitatión de la voz, paciente con traqueostomía

INTRODUÇÃO

O interesse pelo tema surgiu da nossa participação no GARPO-Laringectomizados, onde pudemos observar as diferenças da comunicação e do comportamento entre as pessoas submetidas à cirurgia laringectomia total, em fase de reabilitação.

O GARPO - Laringectomizados (Grupo de Apoio e Reabilitação do Paciente Ostomizado) foi criado em 1990 com os objetivos de: a) promover a socialização entre os pacientes ostomizados e seus familiares ; b) desenvolver as capacidades necessárias dos pacientes para o autocuidado; c) encorajar a participação dos pacientes e seus familiares no processo de reabilitação.

As atividades dos profissionais (enfermeiros, assistente social e fonoaudióloga) do grupo junto aos laringectomizados objetivam alternativas solucionadoras quanto à convivência com a imagem corporal alterada, reações secundárias à radioterapia, treinamento da voz esofágica, atividade profissional e sexual, e outras. As atividades realizadas são fundamentadas em: ensino/aprendizagem, depoimentos de experiências dos pacientes, discussões em grupo, jogos, atividades físicas e outras. Essa atuação permite que os profissionais adquiram conhecimento do processo de reabilitação dos pacientes, dentro do contexto sócio-econômico e cultural, possibilitando planejar novas estratégias de intervenção, além de servir de campo de assistência, ensino e pesquisa. O grupo desenvolve suas atividades na unidade de internação do Hospital das Clínicas de Ribeirão Preto e na Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto - USP. Os pacientes laringectomizados participantes são na maioria atendidos pela instituição hospitalar citada.

Durante as participações nas reuniões com os pacientes, chamou-nos a atenção que a maioria deles não falava. Entretanto, os que recuperaram a capacidade de emissão da voz apresentavam atitudes mais positivas em relação à reabilitação, como o retorno às atividades profissionais e sociais.

Surgiu, então, o interesse em descrever e apreender o processo de treinamento da voz esofágica e, portanto, da reabilitação vocal. A literatura de enfermagem é pouco específica em relatar as características da reabilitação dos laringectomizados. Acreditamos que o esforço dos pacientes para o retorno da capacidade da emissão da voz está intimamente relacionado com a cultura que privilegia a "fala" como recurso fundamental da comunicação entre as pessoas9.

Frente ao exposto este trabalho teve como objetivo "descrever o significado da reabilitação vocal, na visão de um paciente laringectomizado".

A PESSOA LARINGECTOMIZADA E SUA COMUNICAÇÃO

Para uma melhor compreensão do trabalho, será necessário fornecer as respostas para as seguintes perguntas: Quem é a pessoa laringectomizada? O que é uma laringectomia total e quais são suas conseqüências? O que é laringe? O que é voz esofágica?

A laringe ou órgão nasal é uma estrutura cartilaginosa revestida de epitélio que liga a faringe à traquéia. Está localizada no pescoço e tem aproximadamente 5 cm de comprimento. Em sua luz estão localizadas as cordas ou pregas vocais, controladas por ligamentos musculares. A principal função da laringe é permitir a vocalização, além de proteger as vias aéreas inferiores de substâncias estranhas e facilitar a tosse. Freqüentemente é referida como a "caixa da voz"1,4,8,11.

A cirurgia laringectomia total está indicada para o tratamento da pessoa com câncer de laringe. Na laringectomia total há a remoção total da laringe incluindo a cartilagem tireóide, cordas vocais e epiglote. Em geral, a ressecção ganglionar cervical radical está associado à cirurgia, e a radioterapia é realizada no pós-operatório11.

A cirurgia é indicada para a erradicação do câncer que ocorre aproximadamente seis vezes mais em homens do que em mulheres, na faixa etária entre 50 e 60 anos de idade1,8,11.

Como conseqüências da laringectomia total podem-se citar: ansiedade, depressão, alteração fisiológica da respiração com a traqueostomia permanente (que leva à diminuição do paladar, limitações em atividades físicas que requerem esforço respiratório), dificuldade motora do ombro e pescoço se houver ressecção ganglionar, impacto da imagem corporal alterada (que leva ao comprometimento da auto-estima e do auto-conceito) e incapacidade de comunicar-se através da voz laríngea. Todos esses fatores alteram o modo de vida da pessoa, causando problemas psicológicos e sociais que poderão fazer com que o indivíduo sinta-se desmotivado para reagir às situações, retardando sua adaptação tanto no contexto social como profissional1,8,11.

Embora haja o comprometimento da fala, e isto seja um dos aspectos mais importantes senão o mais importante do pós-operatório da laringectomia, há métodos que permitem o retorno à comunicação verbal-oral, ou seja, a reabilitação vocal. Refiro-me à voz esofágica, à laringe eletrônica e à punção traqueoesofágica7.

O desenvolvimento da emissão da voz esofágica depende do acompanhamento de um fonoaudiólogo e motivação do indivíduo. Essa técnica requer que o paciente seja capaz de comprimir o ar no esôfago e expulsá-lo, provocando uma vibração no segmento esôfago-faringe. Primeiramente, o indivíduo desenvolve a capacidade de eructar. Posteriormente, a ação é transformada em simples explosões de ar, a partir do esôfago, para fins de emissão da voz. Quando o indivíduo não consegue aprender a voz esofágica, há ainda a possibilidade de se usar a laringe eletrônica ou de se fazer uma punção traqueoesofágica, embora estes recursos sejam menos freqüentes, tendo em vista o alto custo do aparelho e da necessidade de uma nova cirurgia7.

A FALA NA CULTURA OCIDENTAL

Comunicação é um meio para os membros de uma organização partilhar significados e compreensão com os outros. A comunicação é um processo pelo qual uma pessoa transmite seus pensamentos, sentimentos e idéias aos outros, permitindo entender e aceitar a outra pessoa, receber ou enviar informações, dar e receber ordens, ensinar e aprender2,3. Esse processo pode ser influenciado por vários fatores entre os quais: idade, papel social, momento, territorialidade, sexo, credibilidade, atitude defensiva, afeto, atitudes e cultura2,3. Segundo BERLO3 a comunicação pode ser classificada em comunicação verbal (oral e escrita) e não-verbal.

Para ZAGO12, cultura é um sistema compartilhado de significados que é aprendido, revisado, mantido e defendido no contexto em que as pessoas interagem. HELMAN5 conceitua cultura como um conjunto de princípios (explícitos e implícitos) adquiridos pelos indivíduos enquanto membros de uma sociedade em particular. Tais princípios mostram a eles a forma de ver o mundo, vivenciá-lo emocionalmente e de comportar-se dentro dele, em relação às outras pessoas e ao meio ambiente natural. A cultura também fornece a forma de transmitir estes princípios para a geração seguinte através de símbolos, linguagem, ritual e artes. Sem essa percepção compartilhada do mundo, a coesão, a continuidade de qualquer grupo humano seria impossível.

A cultura valoriza e determina que a "fala" ou voz laríngea, é o meio natural dos indivíduos comunicarem-se oralmente. Evidentemente, a cultura também influencia a comunicação não-verbal3,7,9.

A fim de que o intercâmbio de mensagens pela comunicação seja efetivo, é necessário que as palavras utilizadas tenham significado comum; a cultura é um dos determinantes do repertório do indivíduo, ou seja, seu conhecimento, linguagem, vocabulário, expectativas, valores e crenças. Assim, a cultura determina a linguagem das palavras, o tom, o significado a serem utilizados numa situação de comunicação e os seus efeitos. A linguagem das palavras é primariamente um sistema fonético de símbolos para a expressão de um pensamento ou sentimento. O termo símbolo refere-se às realidades físicas ou sensoriais aos quais os indivíduos que o utiliza atribuem valores ou significado específico3,5,12. Por outro lado, o termo significado refere-se à interpretação das experiências com base no conhecimento adquirido que as pessoas utilizam para gerar um comportamento social12.

STEFFEN9 destaca que a capacidade de raciocínio e a exteriorização do pensamento através da voz, são as duas grandes propriedades que possui o ser humano. Sendo a voz a expressão da fala, ela carrega no seu bojo a emoção, a maturidade, a personalidade e a individualidade do indivíduo. Portanto, a fala é um componente essencial para uma integração harmônica no convívio social e consequentemente, valorizada na nossa cultura como um meio para a comunicação.

A pessoa laringectomizada, que tem a experiência de viver em uma cultura que valoriza a fala, ao se tornar afônico pela cirurgia vivencia uma nova e extraordinária situação: a de não poder comunicar-se segundo o padrão cultural da sociedade em que vive1,7,9,11. Dependendo do modo como o significado cultural da pessoa laringectomizada se mantêm ou altera, pode influenciar a sua motivação para a aprendizagem da voz esofágica. Desse modo, é importante apreender-se o significado da reabilitação vocal do paciente laringectomizado, através da sua descrição, para que o enfermeiro possa considerá-lo no planejamento da sua assistência.

METODOLOGIA

Entre os métodos de pesquisa qualitativa, optamos pelo estudo de caso. Segundo TRIVIÑOS10 o estudo de caso é "uma categoria de pesquisa cujo objeto é uma unidade que se analisa aprofundadamente"(p. 133). O pesquisador que realiza um estudo de caso tenta analisar e compreender os diferentes aspectos que permeiam uma situação ou condição. No estudo de caso, o pesquisador é um observador passivo, reunindo informações sobre os comportamentos, sentimentos, valores e características da pessoa, à medida que eles são verificados. Quando o estudo de caso envolve apenas uma pessoa, o método é considerado temporal, com o qual são coletados dados, durante um período de tempo específico6. Neste trabalho, o estudo de caso refere-se a um paciente laringectomizado vivenciando a situação de reabilitação vocal.

Dentre os pacientes que participam do GARPO - Laringectomizados, apenas um residia em Ribeirão Preto. Entramos em contato com ele e após o seu consentimento em participar do estudo, agendamos uma entrevista no seu domicílio.

A entrevista foi dirigida pela questão: "Conte-me como foi o seu treinamento para aprender a voz esofágica". A entrevista teve duração de sessenta minutos, contou com a participação da esposa do paciente e foi permitido a sua gravação. A medida que o paciente e a sua esposa relatavam sobre o treinamento, solicitávamos a confirmação das frases, com o objetivo de validação. Complementamos a coleta de dados relendo o prontuário hospitalar do paciente e os registros de participação do paciente nas reuniões do GARPO - Laringectomizados.

Na coleta de dados foram considerados os aspectos éticos na pesquisa: aceitação dos informantes em participar do estudo, permissão para gravar a entrevista, manutenção do anonimato dos informantes.

A entrevista foi transcrita na integralidade, utilizando-se as próprias palavras dos informantes.

Os dados foram organizados através do soft-ware "The ethnograph", segundo aplicação de ZAGO12.

Seguindo as recomendações de LÜDKE & ANDRÉ6, inicialmente realizamos leituras seguidas de todo os dados obtidos pela entrevista. A seguir, a análise dos dados foi realizada procurando por termos e expressões comuns ou relacionadas, gerando as codificações dos tópicos. Essas codificações foram reagrupadas em categorias temáticas. Das categorias emergiu o tema ou significado da reabilitação vocal, na visão do paciente.

Os dados obtidos e organizados serão apresentados sob o título de "estudo de caso"1,6,10.

ESTUDO DE CASO

O Sr. Sérgio (pseudônimo) natural de Ribeirão Preto, tem 48 anos, trabalha como despachante policial, possui o segundo grau completo. Segue a religião espírita, sem ser atuante. É casado com D. Maria (pseudônimo), tem duas filhas sendo uma de 21 e outra de 14 anos, sendo a última adotiva.

Foi tabagista de um maço de cigarro por dia durante 33 anos e consumia 6 garrafas de cerveja diariamente, durante 30 anos.

O Sr. Sérgio procurou o ambulatório de um hospital de ensino da sua cidade no dia 13/07/1994, com queixa de sensação de corpo estranho na garganta, há mais ou menos cinco meses, com evolução de disfonia. A equipe médica diagnosticou neoplasia de seio periforme esquerdo e foi comunicado ao paciente a necessidade de realização da cirurgia, a laringectomia total.

Segundo o paciente, a equipe médica expôs a conseqüência da perda da capacidade de emissão da voz, o que o deixou muito chocado e o emociona ainda hoje, conforme verifica-se em suas palavras "...sinto até hoje", que foram acompanhadas de lágrimas. A família e os amigos ofereceram apoio: "...a família, eles diziam que apesar de não falar, ia ver, podia escrever..., ...surgiu muitos amigos, parentes que me acompanham até hoje...". A observação de que havia pessoas em situações mais difíceis serviu muitas vezes de consolo "...seria mais triste se eu não soubesse escrever!", "...é triste, mas a gente olha para muitos que estão pior que nós, .... não tão triste quanto a gente...então, a gente fica até assim, sabe..."

Inicialmente o paciente recusou-se a fazer a cirurgia "...no dia marcado eu disse que não ia...". A cirurgia foi finalmente realizada em 11/08/1994. No dia anterior, foi realizado uma pré-consulta pela fonoaudióloga do hospital que lhe expôs sobre a reabilitação vocal através da voz esofágica. Segundo o Sr. Sérgio, após a explicação ele sentiu-se mais animado.

No pós-operatório, o paciente apresentou duas fístulas faringo-cutâneas, comuns neste tipo de procedimento cirúrgico. Recebeu alta no dia 21/08/1994, e em 09/12/1994 iniciou o tratamento radioterápico.

Sr. Sérgio iniciou o treinamento da voz esofágica em janeiro/95, com uma fonoaudióloga particular. Contou que achava que o treinamento realizado a nível privado poderia ser mais efetivo visto que era realizado semanalmente, durante uma hora e individualmente. Também estava sabendo que o treinamento apresentaria dificuldades devido às seqüelas da radioterapia recente.

O paciente abandonou o treinamento antes de seu término, alegando motivos financeiros e desmotivação por não apresentar uma voz com boa qualidade. Procurou resolver o problema utilizando a laringe eletrônica. Atualmente, o Sr Sérgio consegue produzir razoavelmente a voz esofágica e exprime o desejo de voltar a realizar o treinamento. O seu tom de voz continua baixo e as palavras são expressadas com dificuldade, demonstrando que não consegue controlar a respiração enquanto fala. Relata que não usa a laringe eletrônica devido ao seu som robótico. Quando fala, o Sr Sérgio não utiliza a comunicação não- verbal, como os gestos e a expressão facial.

Mantém-se em sua atividade profissional, porém afastou-se do convívio de outras pessoas no escritório. Refere ter pouca atividade de lazer e social. Participa mensalmente do GARPO, porém, não é muito ativo, conversando pouco, apenas quando lhe é dirigido alguma pergunta. Durante a entrevista mostrou-se emotivo, chorando várias vezes.

RESULTADOS E DISCUSSÃO

a. As Categorias de Significado

As informações obtidas na entrevista deram origem a três categorias referentes ao processo de retornar a falar. Essas categorias serão apresentadas a seguir:

tendo expectativas, buscando alternativas e convivendo com a situação.

1. Tendo expectativas

Os dados revelaram algumas características inerentes ao processo de treinamento da voz esofágica. A motivação do paciente para a realização do treinamento nasceu do desejo de voltar a expressar-se verbalmente, da inconformação diante do fato e das conseqüências sócio-culturais. Essa valorização foi expressada como sendo algo interno e não pelo derivado da influência do meio, da sociedade:

"...Vontade de falar, pensava que não ia mais falar."

"Eu não me conformava de não falar, foi uma coisa interna minha."

Por um outro lado, somente a vontade de falar não faz ignorar algumas dificuldades do treinamento:

"Foi muito cansativo."

"...É muito difícil!"

O retornar a falar, ou mesmo a simples emissão de um som, de uma letra, ou de uma sílaba, parece ser a parte mais esperada para aquele que se dispõe a fazer o treinamento e é recebido com verdadeira exaltação:

"É como se tivesse ganho na loteria esportiva!"

A ansiedade e o nervosismo são dois fatores que agem desfavoravelmente durante o processo de treinamento, pois uma vez dominados por esses comportamentos a emissão da voz fica prejudicada ou mesmo impossível:

"Quando eu fico nervoso eu não consigo..."

Frente às dificuldades, o paciente interrompeu o treinamento. Justificou essa interrupção pela vontade de realizá-lo no hospital e pelo sentimento de que o treinamento era precoce (devido a radioterapia).

Apesar desse fato, o informante exprime o desejo de voltar a fazer o treinamento:

"Já conversei com a fonoaudióloga".

Resumindo, os principais aspectos relacionados na categoria tendo expectativas foram: a motivação e as dificuldades do retornar a falar.

Pelas colocações do informante compreendemos que inicialmente havia uma crença de que não haveria maiores dificuldades para retornar a emitir a voz. Iniciado o treinamento, mesmo sendo orientado quanto às dificuldades, a crença entrou em choque com os resultados obtidos, promovendo a desmotivação para a sua continuidade, acrescido do problema financeiro. Assim, o paciente procura por outras possibilidades.

2. Buscando alternativas

Diante das dificuldades surgidas, o informante buscou novas saídas para o desejo de viver melhor. É até esperado que se busquem alternativas que melhorem a condição de vida, de integração ou até mesmo de comodidade. Nessa tentativa, o paciente optou pela laringe eletrônica como um meio de facilitar a sua comunicação. Porém, conforme suas palavras, a adaptação não foi positiva e seu uso agora é raro:

"É muito difícil eu usar a laringe". "Eu não me adaptei bem".

Outra forma encontrada para lidar com as dificuldades foi a procura de um terapeuta:

"Estou me sentindo muito bem, estava com o corpo todo assim, cheio de manchas que o terapeuta disse que era muita emoção, que coloquei para fora e que agora melhoraram".

Nesta categoria, apreendemos que a adaptação às situações que surgem são complexas, envolvem uma gama diferente de sentimentos, valores e expectativas. Como salienta ZAGO11, a condição de ser laringectomizado é um processo cíclico de busca de alternativas, é um processo de aprender a "conviver com a situação".

3. Convivendo com a situação

Nesta categoria foram agrupados os aspectos relacionados: ao apoio, às reações das pessoas à sua condição, à perspectiva de ajudar outros laringectomizados e de conviver com as dificuldades.

O apoio, o consolo surgiu da observação do paciente de casos mais complicados com pessoas com menos possibilidades financeiras e também das reuniões com outros laringectomizados no GARPO:

"A gente fica pensando que nós não somos ricos, mas temos alguma condição ,de terapeuta, com carro na porta para levar pro médico a hora que precisar. Mas e aqueles que não tem, moram longe, precisam chamar a ambulância? É nisso que eu penso."

"...aquele que perdeu o maxilar. Um consola o outro..."

As reações das pessoas ao modo de falar diferente parece estar ligada ao fato de conhecimento prévio do problema. Aquelas que já sabem o porquê agem naturalmente, enquanto as outras pessoas, agem com espanto e surpresa:

"Eles não falam nada , já sabem, somente um se assustou , levou um choque, aí a Maria explicou que eu tinha tirado a laringe".

"Já ficou conhecido, todo mundo conhece o problema."

Embora o paciente consiga expressar-se com a voz esofágica, há dificuldades: de falar ao telefone e a de conversar dentro de um grupo social:

"É muito difícil falar no telefone."

"Quando ele quer falar comigo peço silêncio para as outras pessoas para poder ouvir" (fala da dona Maria).

Apesar das dificuldades, há a perspectiva de ajudar outros pacientes:

"Eu já prontifiquei de ir lá (no hospital) falar com eles antes e depois da cirurgia, é só me chamar".

b. O Significado: "Como se tivesse ganho na loteria"

A interpretação dos dados leva-nos a compreender que o significado que emergiu, em relação à reabilitação vocal, é "Como se tivesse ganho na loteria". Com essa expressão o paciente laringectomizado expõe toda a sua valorização cultural na comunicação verbal-oral. Percebe-se que a não utilização da voz, para o paciente, fere o padrão cultural vigente na sociedade. Retornar a falar, como "ganhar na loteria", é sentir-se prestigiado, rico, poderoso e retornar a ser aceito na sociedade.

Entretanto, o retornar a falar não está sendo um processo fácil. Ele é permeado por dificuldades que muitas vezes geraram situações de desmotivação e depressão. Durante esses episódios, o paciente procurou utilizar outros recursos que nem sempre responderam às suas expectativas. A busca por essas alternativas foi uma tentativa para "ganhar na loteria".

O apoio familiar foi referido pelo paciente como sendo um dos aspectos mais importantes para o treinamento da voz esofágica, em todos os momentos.

Assim, o "retornar a falar", para o paciente laringectomizado, é um processo complexo, que requer compreensão e apoio da família e dos profissionais de saúde. Por outro lado, apreendemos que a reconquista da capacidade de emissão da voz, por qualquer meio, é um dos objetivos da reabilitação pelo paciente. Assim, a valorização cultural da voz é um aspecto predominante no processo do paciente conviver com a sua situação.

Os resultados obtidos corroboram os de outros pesquisadores do tema da reabilitação de pacientes laringectomizados. AGUILLAR1 relata que o treinamento é demorado, exige persistência e os estímulos contextuais representados pelo apoio dos familiares, poderá determinar uma adaptação positiva. Entretanto, o processo de readaptação social também apresenta dificuldades, principalmente no que tange ao trabalho, ao lazer e ao relacionamento sexual.

É importante ressaltar que a perda da voz pela laringectomia total representa ao ser humano não somente a agressão ao órgão fonatório, mas, a invasão e destruição do eu esquema de integridade e de integração biopsicossocial. Assim, não podemos tratar a reabilitação vocal isoladamente. É necessário que a projetemos num contexto mais amplo de reabilitação psicológica, social, profissional, estética e funcional1,7,9,11.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Descrever o significado do retornar a falar entre os pacientes laringectomizados é um aspecto fundamental para a assistência de enfermagem. O enfermeiro precisa apreender não apenas do significado de não falar, mas também, da reabilitação vocal e a sua valorização pelo paciente.

É através deste conhecimento que o enfermeiro poderá utilizar diferentes estratégias para orientar e encorajar o treinamento desde o período preparatório para a cirurgia. Não basta saber utilizá-los, mas é necessário compreender como o processo pode acontecer. Deste modo, o enfermeiro poderá assistir o paciente e os familiares efetivamente.

Por se tratar do estudo de um paciente, a generalização do significado que emergiu neste estudo é inadequada. Entretanto, o resultado obtido motiva-nos a continuar o estudo, estendendo-o a todos os pacientes que participam do GARPO - Laringectomizados e que estão vivenciando o mesmo processo.

  • 01. AGUILLAR, O.M. Contribuição ao estudo do processo de adaptação da pessoa laringectomizada Ribeirão Preto, 1984. 110 p. Dissertação (Mestrado) - Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo.
  • 02. ATKINSON, D.L.; MURRAY, E.M. Fundamentos de enfermagem Rio de Janeiro: Guanabara, 1985. p. 59-9.
  • 03. BERLO, D.K. O processo de comunicação: introdução à teoria e à prática. São Paulo: Martins Fontes, 1979.
  • 04. DANGELO, J.G.; FATTINI, C.A. Anatomia humana básica Rio de Janeiro: Atheneu,1988. p.112.
  • 05. HELMAN, C.G. Cultura, saúde e doença Trad. Eliane Mussnich. Porto Alegre: Artes Médicas, 1994.
  • 06. LÜDKE, M.; ANDRÉ, M.E.D.A. Pesquisa em educação: abordagens qualitativas. São Paulo: EPU, 1986.
  • 07. OLIVEIRA, B.V.; OLIVEIRA, M.B.M. Reabilitação vocal. In: BRANDÃO, L.G.; FERRAZ, A.R. Cirurgia de cabeça e pescoço: princípios básicos. São Paulo: Roca, 1989. v. 1, p.413-20.
  • 08. SMELTZER, S. C.; BARE, B.G. Brunner & Suddarth: tratado de enfermagem médico- cirúrgica. 7 ed. Rio de Janeiro: Koogan, 1993.
  • 09. STEFFEN, N. Reabilitação vocal após laringectomia: experiência pessoal. In: BRANDÃO, L.G.; FERRAZ, A.R. Cirurgia de cabeça e pescoço: princípios técnicos e terapêuticos. São Paulo: Roca, 1989. v. 2, p.355-69.
  • 10. TRIVIÑOS, A.N.S. Introdução à pesquisa em ciências sociais: a pesquisa qualitativa em educação. São Paulo: Atlas, 1990.
  • 11. ZAGO, M.M.F. Plano de ensino para o preparo da alta médica do paciente laringectomizado Ribeirão Preto, 1990. 145p. Dissertação (Mestrado) - Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo
  • 12
    _______. O ritual de orientação de pacientes pelos enfermeiros cirúrgicos: um estudo etnográfico. Ribeirão Preto, 1994. 154 p. Tese (Doutorado) - Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo.
  • 1
    Trabalho apresentado no 5º Simpósio Brasileiro de Comunicação em Enfermagem (SIBRACEN) em 1996
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      05 Dez 2005
    • Data do Fascículo
      Jul 1997
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