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DISPOSITIVO EDUCAÇÃO EM SAÚDE: REFLEXÕES SOBRE PRÁTICAS EDUCATIVAS NA ATENÇÃO PRIMÁRIA E FORMAÇÃO EM ENFERMAGEM

DISPOSITIVO DE EDUCACIÓN EN SALUD: REFLEXIONES SOBRE PRÁCTICAS EDUCATIVAS EN LA ATENCIÓN PRIMARIA Y FORMACIÓN EN ENFERMERÍA

RESUMO

Objetivo:

construir reflexões sobre o dispositivo educação em saúde, considerando as práticas educativas em saúde desenvolvidas na Atenção Primária à Saúde e a formação em enfermagem.

Método:

trata-se de um ensaio reflexivo que se ancora no conceito de dispositivo proposto por Deleuze.

Resultados:

desenredamos as linhas de visibilidade e de enunciação, as linhas de força e as linhas de subjetividade do dispositivo educação em saúde, destacando as vontades de verdade implicadas nos modos de subjetivação produzidos nesse dispositivo. As linhas de visibilidade e de enunciação do dispositivo educação em saúde instalam-se em campos visíveis, discursivos, híbridos e contraditórios, que em dados momentos se constroem a partir de uma noção específica de saúde e de educação e em momentos diferentes por outra. Nesse dispositivo, sujeito-educador e sujeito-educando são objetos das linhas de força; recompõem e são recompostos por modulações configuradas nas esferas do poder e do saber. Os projetos de cada sujeito podem predispor linhas de fratura e conduzir a produções de subjetividades que saem dos poderes e dos saberes de um dispositivo para se reinventar noutro. Para predispormos linhas de fratura no dispositivo educação em saúde, é necessário concebermos processos formativos que possibilitem que as/os enfermeiras/os assumam posturas criativas em suas práticas educativas em saúde.

Conclusão:

este ensaio permitiu-nos ampliar os territórios conceituais implicados nas práticas educativas em saúde e na formação em enfermagem, abrindo caminhos para compreendermos os processos de subjetivação que se movimentam no campo da educação em saúde.

DESCRITORES:
Educação em saúde; Atenção primária à saúde; Enfermagem; Saúde pública; Educação em enfermagem

RESUMEN

Objetivo:

construir reflexiones sobre el dispositivo de educación en salud, considerando las prácticas educativas en salud desarrolladas en la Atención Primaria y la formación en Enfermería.

Método:

ensayo reflexivo que se ancla en el concepto de dispositivo propuesto por Deleuze.

Resultados:

desenredamos las líneas de visibilidad y de enunciación, las líneas de fuerza y de subjetividad del dispositivo de educación en salud, destacando las voluntades de verdad implicadas en los modos de subjetivación producidos en este dispositivo. Las líneas de visibilidad y de enunciación del dispositivo de educación en salud, se instalan en campos visibles, discursivos, híbridos y contradictorios, que en dados momentos se construyen a partir de una noción especifica de salud y educación en momentos diferentes por otra. En este dispositivo, el sujeto-educador y el sujeto-educando son objetos de las líneas de fuerza; recomponen y son recompuestos por modulaciones configuradas en las esferas del poder y del saber. Los proyectos de cada sujeto pueden predisponer líneas de fractura y conducir a la producción de subjetividades que salen de los poderes y de los saberes de un dispositivo para reinventarse en otro. Para predisponer líneas de fractura en el dispositivo de educación en salud, es necesario concebir procesos formativos que posibiliten que las/los enfermeros asuman posturas creativas en sus prácticas educativas en salud.

Conclusión:

este ensayo nos permitió ampliar los territorios conceptuales implicados en las prácticas educativas en salud y en la formación en enfermería, abriendo caminos para comprender los procesos de subjetivación que se mueven en el campo de la educación en salud.

DESCRIPTORES:
Educación en salud; Atención primaria de salud; Enfermería; Salud pública; Educación en enfermería

ABSTRACT

Objective:

to construct reflections on the health education device, considering the educational health practices developed in the Primary Health Care and in the nursing training.

Method:

this is a reflexive essay based on the concept of a device proposed by Deleuze.

Results:

we unraveled the lines of visibility and enunciation, the lines of force and the lines of subjectivity of the health education device, highlighting the real wills implied in the modes of subjectivation produced in this device. The lines of visibility and enunciation of the health education device are located in visible, discursive, hybrid and contradictory fields, which at times are built from a specific notion of health and education and at different times by another notion. In this device, subject-educator and subject-learner are objects of the lines of force; they recompose and are recomposed by modulations configured in the spheres of power and knowledge. The projects of each subject can predispose lines of fracture and lead to productions of subjectivities that leave the powers and knowledge of a device to reinvent themselves in another device. In order to predispose lines of fracture in the health education device, it is necessary to design training processes that allow nurses to take creative positions in their health education practices.

Conclusion:

this essay allowed us to expand the conceptual territories involved in educational practices in health and nursing education, opening the way to understand the subjectivation processes in health education.

DESCRIPTORS:
Education in health; Primary health care; Nursing; Public health; Education in nursing

INTRODUÇÃO

As práticas educativas em saúde, fundamentais no processo de trabalho das equipes da Atenção Primária à Saúde (APS), têm sido desenvolvidas, sobretudo, com base na transmissão de informações e na persuasão11 Pinafo E, Nunes EFPA, González AD, Garanhani ML. Relações entre concepções e práticas de educação em saúde na visão de uma equipe de saúde da família. Trab Educ Saúde. 2011 Jul-Out; 9(2):201-21. e com ênfase em adoecimentos.22 Díaz-Cerrillo JL, Rondón-Ramos A. Design of an educational tool for primary care patients with chronic non-specific low back pain. Aten Primaria. 2014 Feb; 47(2):117-23.

3 Braschinsky M, Haldre S, Kals M, Lofik A, Kivisild A, Korjas J, et al. EHMTI-o259. Demonstrational project: to develop, implement and test an educational model for better headache-related primary health care. J Headache Pain. 2014 Sep; 15 Suppl 1:D3.

4 Garcia-Ortega I, Rodriguez J, Escobar-Martinez A, Kutcher S. Implementing an educational program to enhance identification, diagnosis and treatment of adolescent depression into primary care in Guatemala. Fam Med Medical Sci Res. 2013 May; 2(1):1000104.
-55 Chamberlain C, O'Mara-Eves A, Oliver S, Caird J, Perlen S, Eades S, et al. Psychosocial interventions for supporting women to stop smoking in pregnancy. Cochrane Database Syst Rev. 2013 Oct; (10):CD001055. Essas práticas ancoram-se no modelo tradicional de educação em saúde, caracterizado pela ampliação das informações sobre os agravos de saúde das pessoas e pelas recomendações de comportamentos considerados certos ou errados.66 Fernandes MCP, Backes VMS. Educação em saúde: perspectivas de uma equipe da Estratégia Saúde da Família sob a óptica de Paulo Freire. Rev Bras Enferm. 2010 Jul-Ago; 63(4):567-573.

Embora o modelo tradicional predomine, é possível identificar práticas educativas em saúde na APS que buscam superá-lo a partir do uso de diferentes estratégias pedagógicas, como a arte e o teatro.77 Uchôa AC. Experiências inovadoras de cuidado no PSF: potencialidades e limites. Interface (Botucatu). 2009 Abr-Jun; 13(29):299-311. Entre essas práticas há em comum o objetivo de superar a abordagem focada na patologia e na transmissão de informações, considerando o diálogo e a subjetividade dos indivíduos no processo educativo. Entendemos por estratégias pedagógicas as condições que permitem o acesso a processos de ensino e aprendizagem, compreendendo ferramentas que favorecem ampliação de conhecimentos e produção de sentidos.

Ainda que observemos a existência de práticas educativas em saúde que buscam superar o modelo tradicional, muitas vezes elas enfatizam as estratégias pedagógicas e os seus resultados, conferindo menor ou nenhuma visibilidade ao método que as sustenta. Isso significa que, não raro, os pressupostos teóricos que fundamentam as práticas educativas em saúde desenvolvidas na APS se mantêm obscuros.88 Gazzinelli MF, Souza V, Fonseca RMGS, Fernandes MM, Carneiro ACLL, Godinho LK. Educational group practices in primary care: interaction between professionals, users and knowledge. Rev Esc Enferm USP. 2015 Abr; 49(2):284-91. Pela obscuridade do método, entendemos que a utilização de estratégias pedagógicas diferenciadas, como a arte e o teatro, não implica, necessariamente, o comprometimento com o método dialógico e com o desenvolvimento da autonomia dos sujeitos.99 Carneiro ACLL, Souza V, Godinho LK, Faria ICM, Silva KL, Gazzinelli MF. Educação e promoção da saúde no contexto da atenção primária à saúde. Rev Panam Salud Publica. 2012 Fev; 31(2):115-20.

Essas considerações sugerem que as práticas educativas em saúde desenvolvidas na APS, em geral, mantêm-se fundamentadas no modelo tradicional, buscando preconizar a adoção de comportamentos considerados saudáveis, embora muitas vezes se denominem como dialógicas.1010 Oliveira RSG, Wendhausen ALP. (Re)significando a educação em saúde: dificuldades e possibilidades a estratégia saúde da família. Trab Educ Saúde. 2014 Jan-Abr; 12(1):129-47. Perpetuam uma racionalidade hegemônica entre profissional-educador e usuários-educandos que define bons hábitos de vida e contribui para a constituição de uma matriz identitária que, guiada pelo discurso da autonomia, enfatiza o gerenciamento dos corpos e do autocuidado.1111 Renovato RD, Bagnato MHS. Práticas educativas em saúde e a constituição de sujeitos ativos. Texto Contexto Enferm. 2010 Jul-Set; 19(3):554-62.

Nos processos formativos da(o) enfermeira(o), profissional muitas vezes responsável pelas práticas educativas em saúde na APS, o modelo tradicional de educação em saúde também é reproduzido. Entre graduandos de enfermagem predominam concepções com foco no saber biomédico e na transmissão de informações. Não raro, a formação resume-se a experiências curriculares que buscam instrumentalizar os estudantes para práticas educativas em saúde pautadas em saberes científicos e em mudanças individuais de comportamento.1212 Colomé JS, Oliveira DLLC. Educação em saúde: por quem e para quem? A visão de estudantes de enfermagem. Texto Contexto Enferm. 2012 Jan-Mar; 21(1):177-84.

Para além da formação da(o) enfermeira(o) na academia, vigoram discussões sobre a relevância da Educação Permanente em Saúde (EPS) para a consolidação de uma rede de ensino e aprendizagem no trabalho,1313 Silva JAM, Peduzzi M. Educação no trabalho na atenção primária à saúde: interfaces entre a educação permanente em saúde e o agir comunicativo. Saúde Soc. 2011 Out-Dez; 20(4):1018-32. com o desenvolvimento de estratégias pedagógicas que se abram ao exercício da criatividade.1414 Abrahão AL, Merhy EE. Formación en salud y micro-política: sobre conceptos-herramientas en la práctica de enseñar. Interface (Botucatu). 2014 Abr-Jun; 18(49):313-24. Entretanto, em geral, as ações de EPS, quando realizadas e embora assim denominadas, são insuficientes, assistemáticas, também fundamentadas no modelo biomédico e realizadas por meio de estratégias pedagógicas verticais, descontextualizadas da realidade em que se inserem as(os) profissionais.1313 Silva JAM, Peduzzi M. Educação no trabalho na atenção primária à saúde: interfaces entre a educação permanente em saúde e o agir comunicativo. Saúde Soc. 2011 Out-Dez; 20(4):1018-32.-1414 Abrahão AL, Merhy EE. Formación en salud y micro-política: sobre conceptos-herramientas en la práctica de enseñar. Interface (Botucatu). 2014 Abr-Jun; 18(49):313-24.

O que então consideramos é que o processo de formação das(os) enfermeiras(os) na academia e no trabalho orienta-as(os) a uma atuação operada com o pensamento definido como vontade de verdade (vontade de produzir determinados modos de subjetivação a partir de práticas educativas em saúde que controlam os sujeitos com base em comportamentos definidos como saudáveis). Modos de subjetivação são os processos e as práticas heterogêneas por meio dos quais as pessoas relacionam-se consigo mesmas e com os outros de determinado modo.1515 Foucault M. O sujeito e o poder. In: Dreyfus H, Rabinow P. Michel Foucault: uma trajetória filosófica para além do estruturalismo e da hermenêutica. Rio de Janeiro (RJ): Forense; 1995. p. 231-49.

Há, portanto, na educação em saúde, um modo de produção de sujeitos operado por práticas discursivas que são ativadas, produzidas e reiteradas pelas/os enfermeiras/os. Nas práticas educativas em saúde, discursos e sentidos são mobilizados para explicar e detalhar determinadas formas de experienciar hábitos de vida, constituindo aí modos específicos de subjetivação, baseados na normatividade e na homogeneização.1616 Marcello FA. O conceito de dispositivo em Foucault: mídia e produção agonística de sujeitos-maternos. Educ Real. 2004 Jan-Jun; 29(1):199-213. Essa abordagem remete ao conceito de dispositivo, no qual há a constituição de um processo de individuação massivo por meio da oferta de modos de existência homogeneizados.1717 Leonardi EFR, Antoun H. A agonística entre dispositivo de visibilidade e modos de subjetivação no blog da Galera Capricho. Cultura Midiática. 2012 Jul-Dez; 5(9):1-12.

Nesse sentido, podemos dizer que há a produção de determinados modos de subjetivação no Dispositivo Educação em Saúde, aqui compreendido como um conjunto operatório multilinear1818 Deleuze G. O que é um dispositivo? In: Balibar E, Deleuze G, Dreyfus H, Frank M, Glücksmann, et al. Michel Foucault, filósofo. Barcelona (ES): Gedisa; 1999. p. 155-63. a que pertencem enfermeiras(os) da APS e em que elas(es) agem. Na literatura, não encontramos estudo que propõe mapear o conceito de dispositivo no contexto da educação em saúde, o que ratifica o objetivo neste artigo de construir reflexões sobre o Dispositivo Educação em Saúde, considerando as práticas educativas em saúde desenvolvidas na APS e a formação em enfermagem. Trata-se de um ensaio reflexivo que se ancora no conceito de dispositivo proposto por Deleuze1818 Deleuze G. O que é um dispositivo? In: Balibar E, Deleuze G, Dreyfus H, Frank M, Glücksmann, et al. Michel Foucault, filósofo. Barcelona (ES): Gedisa; 1999. p. 155-63. e que intenta mapear o dispositivo educação em saúde, destacando as vontades de verdade implicadas nos modos de subjetivação produzidos nas práticas educativas em saúde e na formação das(os) enfermeiras(os) atualmente.

DISPOSITIVO: APROXIMAÇÃO CONCEITUAL

Desenvolvido por Foucault, o conceito de dispositivo é definido como “[...] um conjunto decididamente heterogêneo que engloba discursos, instituições, organizações arquitetônicas, decisões regulamentares, leis, medidas administrativas, enunciados científicos, proposições filosóficas, morais, filantrópicas. Em suma, o dito e o não dito são os elementos do dispositivo. O dispositivo é a rede que se pode tecer entre esses elementos”.19:24419 Foucault M. Sobre a história da sexualidade. In: Foucault M. Microfísica do poder. Rio de Janeiro (RJ): Graal; 2000. p. 227-43

Em uma análise da obra foucaultiana, Deleuze define o dispositivo como um conjunto operatório multilinear composto por linhas de natureza diferente, quais sejam: as linhas de visibilidade e as linhas de enunciação, que fazem ver e dizer; as linhas de força, invisíveis, que movimentam o ver e o dizer; e as linhas de subjetividade, que agem sobre si mesmas. Essas linhas não possuem coordenadas constantes e, portanto, mapear um dispositivo não garante a existência de uma forma prévia que poderia ser assumida; ao contrário, o dispositivo tem necessidade de se refazer e de fazer produzir incessantemente.1818 Deleuze G. O que é um dispositivo? In: Balibar E, Deleuze G, Dreyfus H, Frank M, Glücksmann, et al. Michel Foucault, filósofo. Barcelona (ES): Gedisa; 1999. p. 155-63.

Dispositivo educação em saúde: desenredando as linhas de visibilidade e de enunciação

As primeiras duas dimensões de um dispositivo são as chamadas linhas ou curvas de visibilidade e linhas ou curvas de enunciação. Isso porque os dispositivos são máquinas de fazer ver e de fazer falar. A visibilidade é feita por linhas de luz e cada dispositivo tem seu regime de luz, ou seja, sua maneira como cai a luz e distribui o visível e o invisível. Os enunciados, por sua vez, remetem a linhas de enunciação, que são curvas que distribuem posições diferenciais dos elementos do dispositivo.1818 Deleuze G. O que é um dispositivo? In: Balibar E, Deleuze G, Dreyfus H, Frank M, Glücksmann, et al. Michel Foucault, filósofo. Barcelona (ES): Gedisa; 1999. p. 155-63.

Essas linhas dizem o que é visível e o que é dizível do dispositivo, o que, por si só, remete à existência de algo invisível e indizível. Produzem objetos discursivos que, no campo da educação em saúde, permitem que sujeito-educador e sujeito-educando entrem na ordem do discurso, adquirindo formas, cores e detalhes diferenciados. As curvas de visibilidade, entretanto, não podem ser confundidas com as imagens e as cenas imediatamente vistas e as linhas de enunciação não se referem imediatamente aos ditos, às falas proferidas ou escritas.1616 Marcello FA. O conceito de dispositivo em Foucault: mídia e produção agonística de sujeitos-maternos. Educ Real. 2004 Jan-Jun; 29(1):199-213. Assim, as curvas de visibilidade não se referem à forma específica de ver um sujeito. Isso porque o sujeito é um lugar na visibilidade e as formas de ver são anteriores à vontade individual de um sujeito, que, aqui, é objeto. Já os regimes de enunciação não são meramente aquilo que se fala, mas aquilo que se toma como possível e justificável falar. São as múltiplas e proliferantes enunciações que encontram condições de entrar na ordem do discurso.1616 Marcello FA. O conceito de dispositivo em Foucault: mídia e produção agonística de sujeitos-maternos. Educ Real. 2004 Jan-Jun; 29(1):199-213. A partir dessas linhas, por exemplo, fixa-se o sujeito-educador e o sujeito-educando neste ou naquele discurso que os tornam objetos. Constituem-se, em torno das formas de visibilidade e de enunciação, práticas contínuas de educação em saúde.

Ao desenredarmos as linhas de visibilidade e de enunciação do dispositivo educação em saúde, percebemos que elas instalam-se em campos visíveis, discursivos, híbridos e contraditórios, que em dados momentos se constroem a partir de uma noção específica de saúde e de educação e em momentos diferentes por outra. São noções que se imbricam nos discursos e nas práticas educativas em saúde. Ao desmembrarmos essas noções, em geral, é possível destacarmos pelo menos dois conceitos de saúde, de educação e de educação em saúde. Embora sejam possíveis distintas conexões entre esses conceitos, podemos inferir duas conexões conceituais saúde-educação-educação-em-saúde observáveis no dispositivo educação em saúde.

Uma primeira conexão conceitual saúde-educação-educação-em-saúde destacável no dispositivo educação em saúde recompõe a lógica cartesiana, que, desenhada a partir do século XVII, contorna as noções de mecanicismo, biologicismo e dualismo e contribui para a orientação epistemológica das práticas educativas em saúde. O conceito de saúde, nessa lógica, é entendido como ausência de doença2020 Pratta EMM, Santos MA. O processo saúde-doença e a dependência química: interfaces e evolução. Psic: Teor e Pesq. 2009 Abr-Jun; 25(2):203-11. e conduz à classificação de estados humanos como saudáveis ou doentes, a partir de uma análise objetiva,2121 Almeida Filho N. O que é saúde? Rio de Janeiro (RJ): Editora Fiocruz; 2011. além de definir um sistema classificatório das doenças de modo ordenado e sistematizado.2020 Pratta EMM, Santos MA. O processo saúde-doença e a dependência química: interfaces e evolução. Psic: Teor e Pesq. 2009 Abr-Jun; 25(2):203-11. Esse sistema é arbitrário em seu ponto de partida porque negligencia de forma reguladora toda diferença que não se incorpora a uma estrutura privilegiada, além de ser relativo, porque pode funcionar conforme a precisão desejada.2222 Foucault M. A palavra e as coisas. São Paulo (SP): Livraria Martins Fontes Editora; 2007. Portanto, o conceito de saúde como ausência de doença orienta-nos a legitimar um modo de atuação em saúde que procura o comum sobre a diferença e que define algo (ou alguém) pelo limite daquilo que o distingue, por aquilo que o outro não é.

Na conexão conceitual articulada a esse conceito de saúde, ressaltamos a noção tradicional de educação, que pressupõe uma prática pedagógica em que o educador coloca-se como sujeito superior, que ensina a um espectador. Os objetivos educacionais são preencher os educandos de conteúdos, realizando depósitos de comunicados e criando mecanismos que os levem a reproduzir o conhecimento passado como verdade absoluta.2323 Freire P. Pedagogia da autonomia. São Paulo (SP): Paz e Terra; 2009. Nessa noção de educação, há uma subordinação da singularidade às formas do mesmo e do semelhante, do análogo e do oposto. Privilegia-se a adequação, em vez da produção, e o formalismo lógico, em vez da condição de possibilidade da produção de verdades. A educação, aqui, supõe uma ontologia moralizante, transcendente, individual. É a negação da vida singular; é o reino dos dualismos, dos modelos, da disciplina e do controle.2424 Kohan WO. Entre Deleuze e a Educação: notas para uma política do pensamento. Educ Real. 2002 Jul-Dez; 27(2):123-30.

Em uma coerência linear com esses dois conceitos, de saúde e de educação, uma perspectiva de educação em saúde destacável é a que se refere a práticas prescritivas de comportamentos. Nela, o educando é compreendido como carente de informações em saúde, ou seja, como alguém que precisa aprender sobre hábitos saudáveis. É uma perspectiva atualmente considerada pouco efetiva e que não promove o desenvolvimento de sujeitos críticos e conscienciosos de sua realidade e de sua saúde, capazes de pensar e de promover mudanças em seu cotidiano e em seus modos de ser e de produzir saúde.2323 Freire P. Pedagogia da autonomia. São Paulo (SP): Paz e Terra; 2009.

Essa primeira conexão conceitual saúde-educação-educação-em-saúde fundamenta as práticas educativas em saúde desenvolvidas sob estreita vinculação com a biomedicina, que possui caráter generalizante e, portanto, não se ocupa das singularidades. O modelo biomédico tem como intuito a objetificação do corpo, das lesões e das doenças, a partir de suas verdades e de sua teoria instrumental. A legitimação de suas verdades e de sua teoria, na sociedade, nas universidades, nos hospitais, conduz à desautorização de outros discursos e de outras práticas inscritos no cotidiano, conferindo ao outro-especialista o controle sobre os corpos. É por isso que o educando é considerado como aquele desprovido de conhecimentos e experiências, com necessidade de ser regulado em seus hábitos de saúde.1111 Renovato RD, Bagnato MHS. Práticas educativas em saúde e a constituição de sujeitos ativos. Texto Contexto Enferm. 2010 Jul-Set; 19(3):554-62.

A educação em saúde, compreendida nessa conexão conceitual como um instrumento de reprodução do discurso científico, tende a delinear meios de individuação massiva, sem considerar as singularidades, os distintos modos de existência e de produção de saúde. Focalizando a análise e a prescrição de comportamentos, prioriza o controle e as configurações estabilizadas que, fundamentadas nos discursos biomédicos, apostam na aprendizagem como uma operação de acúmulo de informações, que nega afetos, atores envolvidos e outros modos de ver e viver o/no mundo.2525 Ceccim RB, Ferla AA. Educação e saúde: ensino e cidadania como travessia de fronteiras. Trab Educ Saúde (Online). 2009 Nov-Fev; 6(3):443-56.

Outra conexão conceitual saúde-educação-educação-em-saúde possível e justificável no dispositivo educação em saúde remonta a uma ruptura epistemológica que desterritorializa a concepção essencialmente biologicista, mecanicista e dual da saúde, da educação e, por conseguinte, da educação em saúde. Nessa conexão, a saúde é considerada um direito de todos e dever do estado, numa proposta conceitual constituída como efeito da reforma sanitária. Resultante das formas de organização social da produção, é considerada para o desenvolvimento de estratégias que busquem a redução da vulnerabilidade e a criação de situações que defendam a equidade e a participação social.2626 Horta NC, Sena RR, Silva ME, Oliveira SR, Rezende VA. A prática das equipes de saúde da família: desafios para a promoção de saúde. Rev Bras Enferm. 2009 Jul-Ago; 62(4):524-9.

Esse conceito de saúde cria abertura para considerar diferentes fatores determinantes do processo saúde-doença como, por exemplo, violência, desemprego, subemprego, desigualdades de gênero, falta de saneamento básico, habitação inadequada e/ou ausente, dificuldade de acesso à educação, fome, urbanização desordenada, qualidade do ar e da água ameaçada, bem como as influências histórico-sociais e geracionais das comunidades. Quando comparado ao conceito de saúde anterior (ausência de doença), podemos perceber que aqui também está presente o binômio saúde-adoecimento, não como submissão de um ao outro, mas com uma íntima relação entre os termos saúde e doença.2727 Costa ML, Bernardes AG. Produção de saúde como afirmação de vida. Saúde Soc. 2012 Out-Dez; 21(4):822-35.

No dispositivo educação em saúde, associada a esse conceito de saúde, também é possível evidenciarmos a noção de educação pautada na construção dialogada do conhecimento. Nessa noção, a educação é considerada como promotora da autonomia do sujeito e da sua consciência como cidadão crítico do mundo. O educador é considerado um mediador do processo de elaboração do conhecimento e o educando um participante ativo do processo de ensino e aprendizagem. Ambos participam, conjuntamente, da produção de conhecimento.2323 Freire P. Pedagogia da autonomia. São Paulo (SP): Paz e Terra; 2009.

Essa perspectiva fundamenta-se na concepção problematizadora e libertadora de educação desenvolvida por Paulo Freire, que concebe o educando como um ser histórico e social, consciente de sua potência transformadora no mundo. Freire acredita que ensinar não se resume à transmissão de conhecimento, mas envolve a criação de possibilidades para o desenvolvimento da criticidade. Esta cresce em um processo dialógico entre educadores e educandos e é capaz de favorecer a ampliação da capacidade analítica e um posicionamento mais ativo, participativo e autônomo dos indivíduos.2323 Freire P. Pedagogia da autonomia. São Paulo (SP): Paz e Terra; 2009.

Nessa conexão conceitual, relacionada aos últimos conceitos de saúde e de educação, ressaltamos a educação em saúde sob o enfoque da participação social, em que se considera a construção compartilhada dos saberes que fundamentam as visões de mundo das pessoas. Utilizam-se estratégias pedagógicas que criam possibilidades de despertar no sujeito o pensamento crítico e reflexivo, de forma a levá-lo a construir conhecimentos sobre sua vida e sua saúde, por meio da articulação entre saberes técnicos e populares.

Atualmente, muitos estudos fundamentam-se nessa perspectiva de educação em saúde. São desenvolvidos para a abordagem de temas específicos, como asma,2828 Cano FG, Dastis BC, Morales BI, Manzanares TML, Fernández GA, Martín RL. A rondomised clinical trial to evaluate the effectiveness of an educational intervention developed for adult asthmatics in a primary care centre. Aten Primaria. 2014 Mar; 46(3):117-39. tuberculose2929 Sá LD, Gomes ALC, Carmo JB, Souza KMJ, Palha PF, Alves RA, et al. Educação em saúde no controle da tuberculose: perspectiva de profissionais da Estratégia Saúde da Família. Rev Eletrônica Enferm. 2013 Jan-Mar; 15(1):103-11. e doenças cardiovasculares,3030 Abreu RNDC, Sousa AM, Dias LM, Almeida GH, Diógenes MAR, Moreira TMM. Educação em saúde para prevenção das doenças cardiovasculares: experiência com usuários de substâncias psicoativas. Espaço Saúde. 2014 Jul-Set; 15(3):13-21. junto a públicos delimitados, como usuários de substâncias psicoativas3030 Abreu RNDC, Sousa AM, Dias LM, Almeida GH, Diógenes MAR, Moreira TMM. Educação em saúde para prevenção das doenças cardiovasculares: experiência com usuários de substâncias psicoativas. Espaço Saúde. 2014 Jul-Set; 15(3):13-21. e profissionais do sexo.3131 Godinho AS, Menezes RAO, Barbosa FHF, Sacramento BP, Silva KA, Slob EMGB. Educação em saúde para profissionais do sexo: impacto na mudança de comportamento. Ciência Equatorial. 2013 Jul-Dez; 3(2):2-9. Esses achados permitem-nos dizer que há uma abordagem, sobretudo, de temas vinculados a doenças, com públicos definidos com base em componentes comuns. Podemos inferir aqui uma referência à ciência moderna, que institui um corte de precisão, uma delicada e metódica operação que se encerra na delimitação de um determinado objeto apreensível e controlável. O corte e a precisão outorgam uma taxonomização aos fenômenos da vida e aos sujeitos, tornando-os ordenáveis.2727 Costa ML, Bernardes AG. Produção de saúde como afirmação de vida. Saúde Soc. 2012 Out-Dez; 21(4):822-35. A abordagem de doenças como temas das práticas educativas em saúde insinua uma centralidade naquilo que se coloca em um legitimado sistema ordenado e classificado de doenças, que, muitas vezes, limita o sujeito que a tem e define os hábitos então considerados corretos. Quanto aos públicos definidos, há um intento em pensá-los a partir de uma noção identitária, que busca o comum sobre a diferença e que identifica pessoas para, depois, agrupá-las, procurando uma uniformização via classificação.

Nesse sentido, consideramos que, embora muitas vezes se pautem em uma perspectiva dialógica, as práticas educativas em saúde, em geral, contribuem para a constituição de determinados modos de subjetivação, considerando grupos específicos e favorecendo uma determinada autonomia. Essa autonomia traduz-se em novos modos de controle da conduta e da subjetividade, com imposição de prescrições e discurso culpabilizador, a partir do qual se concebe que o sujeito adoece porque não realiza escolhas conforme o prescrito.1111 Renovato RD, Bagnato MHS. Práticas educativas em saúde e a constituição de sujeitos ativos. Texto Contexto Enferm. 2010 Jul-Set; 19(3):554-62. A autonomia nas práticas educativas em saúde, nessa perspectiva, sugere a uniformização, sem a abertura aos distintos modos de ser, sentir e conhecer.3232 Ceccim RB. "Um sentido muito próximo ao que propõe a educação permanente em saúde"! O devir da educação e a escuta pedagógica da saúde. Interface (Botucatu). 2007 Mai-Ago; 11(22):345-63. Podemos então considerar que a educação em saúde na APS, guiada pelo discurso da autonomia, constitui um dispositivo normatizador, capturado por uma lógica biomédica, pouco inclinada para a singularidade das pessoas.

Paralelamente às linhas de enunciação, é também importante discorrermos sobre as linhas de visibilidade, aquilo que se inscreve em cenas de educação em saúde. Cenas como cadeiras dispostas linearmente e em círculos, grupos organizados em rodas e em fileiras, cartazes dispostos nas paredes e sendo manipulados pelos participantes, educador ao centro e inserido no círculo, por exemplo, apontam para as noções impuras e híbridas observadas nas linhas de enunciação. Isso porque as diferentes configurações espaciais, ou seja, os diferentes modos de organização dos elementos que compõem o espaço, dizem de espaços circunscritos e abertos, configuração espacial que dociliza ou que se abre aos corpos e que revela os métodos,3333 Gore JM. Foucault e educação: fascinantes desafios. In: Silva TT, organizador. O sujeito da educação: estudos foucaultianos. Rio de Janeiro (RJ): Vozes, 2011. p. 9-20. tradicional e/ou dialógico, e as estratégias pedagógicas ora correspondentes, como, por exemplo, exposição e/ou roda de conversa.

Destacando, por exemplo, a organização de cadeiras dispostas linearmente ou em círculos, arranjos comuns em práticas educativas em saúde, é importante mapearmos sob que condições de luminosidade essas cenas acontecem.1818 Deleuze G. O que é um dispositivo? In: Balibar E, Deleuze G, Dreyfus H, Frank M, Glücksmann, et al. Michel Foucault, filósofo. Barcelona (ES): Gedisa; 1999. p. 155-63. A disposição de cadeiras em fileiras é considerada uma organização tradicional, na qual a posição fixa, linear, constitui um arranjo de pessoas em unidades coletivas acessíveis à vigilância constante. Por meio da disposição em fileiras, todos os olhos voltados para frente, confrontando diretamente a nuca do colega e encontrando apenas o olhar do educador, a disciplina é estabelecida pela ação do olhar (a observação é uma estratégia de dominação). Já a disposição em círculo é frequentemente utilizada em propostas pedagógicas dialógicas para afastar a interação do controle direto do educador. É considerada um contraponto à organização tradicional e abre a possibilidade para que todos emitam sua opinião e sejam ouvidos.3333 Gore JM. Foucault e educação: fascinantes desafios. In: Silva TT, organizador. O sujeito da educação: estudos foucaultianos. Rio de Janeiro (RJ): Vozes, 2011. p. 9-20.

Embora essas disposições espaciais traduzam as respectivas intenções, podemos considerar que não há nada inerentemente libertador nos círculos e nada inerentemente opressivo nas tradicionais fileiras. Por um lado, o círculo pode exigir dos educandos maior autodisciplina, porque assumem a responsabilidade de se comportarem apropriadamente. Por outro lado, a privacidade parcial permitida pelas fileiras, nas quais se está sob vigilância, pode desaparecer à medida que os educandos ficam também sob a supervisão dos demais colegas. Um educando que prefere não se manifestar fica menos evidente quando todas as carteiras estão voltadas para frente, da mesma forma que um educando que é tímido, por exemplo.3333 Gore JM. Foucault e educação: fascinantes desafios. In: Silva TT, organizador. O sujeito da educação: estudos foucaultianos. Rio de Janeiro (RJ): Vozes, 2011. p. 9-20. Esses aspectos, por sua vez, convocam-nos a analisar e a questionar as relações de poder, o que remete ao que é indizível e invisível no dispositivo: as linhas de força.

Dispositivo educação em saúde: desenredando as linhas de força

Em terceiro lugar, um dispositivo comporta linhas de força. Essas linhas ratificam as curvas de visibilidade e os regimes de enunciação, delineiam suas formas e seus trajetos. As linhas de força estabelecem o vaivém entre o ver e o dizer, entrecruzam as coisas e as palavras, passam por todos os lugares do dispositivo. São linhas invisíveis e indizíveis. São linhas intimamente relacionadas com a dimensão do poder, pois fixam os jogos de poder e as configurações de saber que nascem do dispositivo e que o condicionam.1818 Deleuze G. O que é um dispositivo? In: Balibar E, Deleuze G, Dreyfus H, Frank M, Glücksmann, et al. Michel Foucault, filósofo. Barcelona (ES): Gedisa; 1999. p. 155-63.

No dispositivo educação em saúde, sujeito-educador e sujeito-educando são objetos das linhas de força; recompõem e são recompostos por modulações configuradas nas esferas do poder e do saber. Se a educação em saúde constitui um domínio a ser desenvolvido, isso se atribui a relações e ações ardilosas de poder que lançam técnicas de saber e procedimentos discursivos cada vez mais perspicazes.1616 Marcello FA. O conceito de dispositivo em Foucault: mídia e produção agonística de sujeitos-maternos. Educ Real. 2004 Jan-Jun; 29(1):199-213. No processo de produção de sujeito-educador e de sujeito-educando há uma multiplicidade discursiva que joga com estratégias de poder diferenciadas e com finalidades distintas, como o controle e a dependência. Por isso, é pertinente evidenciarmos quais relações de poder a educação em saúde integra em torno de si.

Desenredar as linhas de forças do dispositivo educação em saúde é perguntar o que a ciência/biomedicina diz sobre a educação em saúde, ou seja, quais efeitos de verdade podem ser capturados nos discursos produzidos, mas não é só isso. É também questionar por que a educação em saúde é adotada como uma prática de saúde.1616 Marcello FA. O conceito de dispositivo em Foucault: mídia e produção agonística de sujeitos-maternos. Educ Real. 2004 Jan-Jun; 29(1):199-213. Considerando as linhas de enunciação e visibilidade, ao pensarmos nos efeitos de verdade passíveis de serem capturados, parece haver uma tendência de as práticas educativas em saúde reproduzirem elementos da biomedicina. Prevalece a essência funcionalista de saúde e a educação em saúde como aquela que enfatiza a prescrição de hábitos considerados saudáveis, que não incorporam os aspectos simbólicos e subjetivos e os modos de ser e viver dos indivíduos.

Esses aspectos assinalam para a racionalidade da medicalização, entendida como a ampliação crescente das intervenções biomédicas por meio da (re)definição de experiências e modos de ser humanos como problemas médicos.3434 Tesser CD. Medicalização social (I): o excessivo sucesso do epistemicídio moderno na saúde. Interface (Botucatu). 2006 Jan-Jun; 10(19):61-76. Essa racionalidade revela o poder da medicina como parte integrante do poder disciplinar na sociedade. Na sociedade disciplinar há um conjunto de dispositivos de saber e poder que se fundamentam na vigilância permanente e na normalização de comportamentos. O poder disciplinar materializa-se nos corpos dos sujeitos individualizados por técnicas disciplinares, potencializando sua utilidade, suas habilidades e seus rendimentos. Para que esse poder disciplinar exerça-se, é necessário apenas que as pessoas a ele submetidas saibam que são vigiadas ou potencialmente vigiadas.3535 Foucault M. Microfísica do poder. Rio de Janeiro (RJ): Graal; 2004. Com essa técnica de poder, surge o poder da norma, que conduz à padronização de condutas a partir das disciplinas que evidenciam um regime de verdade.3636 Foucault M. Em defesa da sociedade. São Paulo (SP): Martins Fontes; 2005.

Embora a medicalização predominante revele o poder disciplinar, as práticas educativas em saúde atualmente desenvolvidas são tanto expressão do poder disciplinar, quanto do biopoder. O biopoder constitui uma tecnologia de poder que, diferentemente do poder disciplinar, não intervém no indivíduo, em seu corpo individualizado, mas intervém nos fenômenos coletivos que podem atingir toda a população. Ambas as tecnologias de poder passam a coexistir no mesmo recorte temporal e espacial, tendo, como elemento comum, entre a disciplina e a regulamentação, a norma, que pode aplicar-se a um corpo que se queira disciplinar e/ou a uma população que se queira regulamentar. A coexistência dessas tecnologias origina a sociedade de normalização, na qual se encontram a norma da disciplina e a norma da regulamentação e, então, coexistem indivíduo e população, corpo e vida, individualização e massificação.

Podemos dizer que a atual sociedade biopolítica está inscrita no registro da sociedade de controle. A emergência da sociedade de controle implica amplas modificações, como a substituição da escola pela formação permanente, do exame pelo controle contínuo. Nas expressões de poder mais contemporâneas, conformam-se geometrias variáveis, por vezes invisíveis, que assinalam para novos control(ator)es. A imponente estrutura arquitetônica dos confinamentos pulveriza-se em formas ultra rápidas de controle ao ar livre.3838 Deleuze G. Conversações. Rio de Janeiro (RJ): Editora 34; 1992.

Nessa direção, as práticas educativas em saúde podem tornar-se estratégias de vigilância que limitam as liberdades individuais dependendo de como são desenvolvidas (em um discurso de medicalização da vida), ou podem ser conformadas sob outras estratégias de controle mais silenciosas e invisíveis (que operam à espreita). Simultaneamente, a educação em saúde como prática individual coloca os sujeitos sob vigilância constante e, como prática coletiva, controla, regulamenta e normatiza condutas consideradas saudáveis.3737 Silva KL. Promoção da saúde em espaços sociais da vida cotidiana [tese]. Belo Horizonte (MG): Universidade Federal de Minas Gerais, Programa de Pós-Graduação em Enfermagem; 2009.

É importante distinguirmos, em todo e qualquer dispositivo, aquilo que somos e que não seremos mais (o que é arquivo) daquilo que somos em devir (o que é atual).1818 Deleuze G. O que é um dispositivo? In: Balibar E, Deleuze G, Dreyfus H, Frank M, Glücksmann, et al. Michel Foucault, filósofo. Barcelona (ES): Gedisa; 1999. p. 155-63. Denotamos que a atualização do dispositivo educação em saúde tende a apontar para um controle aberto e contínuo, em que a noção de poder envolva menos a disciplina e mais a ação que se exerce sobre outra ação, embora ainda haja um predomínio de práticas educativas em saúde que limitam as liberdades individuais por meio da disciplina. O exercício de poder não age direta e imediatamente sobre os outros: trata-se de uma ação sobre a conduta. Nesse deslocamento, a atualização do dispositivo tende menos a produzir sujeitos docilizados e passivos, cedendo espaço ao sujeito “ativo”, que é capaz de cuidar de si.1111 Renovato RD, Bagnato MHS. Práticas educativas em saúde e a constituição de sujeitos ativos. Texto Contexto Enferm. 2010 Jul-Set; 19(3):554-62. Assim, as linhas de subjetivação que compõem e atravessam o dispositivo educação em saúde se aproximam.

Dispositivo educação em saúde: desenredando as linhas de subjetividade

Finalmente, têm-se as linhas de subjetividade do dispositivo. São as que atuam sobre si mesmas e afetam a si mesmas. A linha de subjetividade é um processo, uma produção de subjetividade no dispositivo: está para se fazer, na medida em que o dispositivo deixe ou torne possível. É uma linha de fuga, uma linha que escapa às outras linhas. Não é nem um saber nem um poder, mas sim um processo de individuação que diz respeito a grupos ou pessoas, que escapa às forças estabelecidas e aos saberes constituídos.1818 Deleuze G. O que é um dispositivo? In: Balibar E, Deleuze G, Dreyfus H, Frank M, Glücksmann, et al. Michel Foucault, filósofo. Barcelona (ES): Gedisa; 1999. p. 155-63.

Como anteriormente referido, a atualização do dispositivo educação em saúde tende a formações subjetivas ativas. Nessa direção, enfatiza-se o gerenciamento de si, o autogoverno dos corpos e o autocuidado em saúde como elementos da autonomia, contribuindo para a formação de novas matrizes identitárias, como a constituição de sujeitos ativos.1111 Renovato RD, Bagnato MHS. Práticas educativas em saúde e a constituição de sujeitos ativos. Texto Contexto Enferm. 2010 Jul-Set; 19(3):554-62. Na perspectiva do neoliberalismo, a liberdade do sujeito é uma condição para a sua sujeição, porque o exercício pleno da autoridade pressupõe a existência de um sujeito livre. Práticas de liberdade que se materializam em formas ativas são estratégias de autonomização de sociedades (como as mudanças de estilos de vida) norteadas por um conjunto de regras, normas e conselhos de especialistas. Mais liberdade e mais autonomia significam, igualmente, mais governo (controle da conduta) e mais cidadania significa ainda mais regulação.1111 Renovato RD, Bagnato MHS. Práticas educativas em saúde e a constituição de sujeitos ativos. Texto Contexto Enferm. 2010 Jul-Set; 19(3):554-62.

Entretanto, todo esse processo não acontece sem resistência. Resistir dá condição de possibilidade à fuga. É pelas linhas de fuga que se delineiam novas configurações dos regimes e novas formas de produção de subjetividades. Os projetos de cada sujeito podem predispor linhas de fratura e conduzir a produções de subjetividades que saem dos poderes e dos saberes de um dispositivo para se reinventar noutro, sob outras formas que hão de nascer. Pode-se então assistir à atuação de linhas de criatividade, ou de atualização.1818 Deleuze G. O que é um dispositivo? In: Balibar E, Deleuze G, Dreyfus H, Frank M, Glücksmann, et al. Michel Foucault, filósofo. Barcelona (ES): Gedisa; 1999. p. 155-63.

Pensando as linhas de criatividade ou de atualização do dispositivo educação em saúde, é importante salientar que a formação das/os profissionais de saúde, em destaque as/os da enfermagem, tem se configurado como um relevante campo de resistência contra outros modos (criativos ou atualizados) de produzir saúde, incluindo a educação em saúde. Isso porque a formação profissional na área da saúde ainda é orientada por uma concepção pedagógica centralizada nos conteúdos, hierarquizando os adoecimentos em critérios biologicistas e dissociando clínica e política.2525 Ceccim RB, Ferla AA. Educação e saúde: ensino e cidadania como travessia de fronteiras. Trab Educ Saúde (Online). 2009 Nov-Fev; 6(3):443-56.

Para predispormos linhas de fratura no dispositivo educação em saúde, é necessário forjarmos outros modos de fazer educação em saúde que convidem pessoas a traçarem linhas de fuga, inventarem outros modos de existência, produzindo outros modos de subjetivação. Há que concebermos, então, processos formativos que possibilitem às/aos profissionais, especialmente enfermeiras/os, assumirem, em suas práticas educativas em saúde, posturas criativas. Pensemos não o que é ou o que deve, mas o que pode uma educação: buscar a potência levantando questões, investigando realidades e interrogando paisagens na perspectiva de uma aprendizagem de si, dos entornos e das potências profissionais.2525 Ceccim RB, Ferla AA. Educação e saúde: ensino e cidadania como travessia de fronteiras. Trab Educ Saúde (Online). 2009 Nov-Fev; 6(3):443-56.

Para tanto, é preciso compreendermos a aprendizagem como uma atividade inventiva, pertencente ao mundo dos movimentos, que inclui afectos e supõe atividade dos atores envolvidos. O convite é para nos despojarmos dos territórios fixos pré-organizados para apostarmos em uma educação que incite o pensar, o inventar, o experimentar. No caso dos processos formativos destinados a enfermeiras/os, podemos desenvolver projetos pedagógicos que ampliem atos de pensar, aprender e conhecer relativos à atuação. Acreditamos na potencialidade de estratégias pedagógicas que permitam o contato com a alteridade e a produção de diferença-em-nós, que possibilitem o deixar-se afetar e que criem condições para que um conceito e um afeto constituam território em si mesmo e num entorno.2525 Ceccim RB, Ferla AA. Educação e saúde: ensino e cidadania como travessia de fronteiras. Trab Educ Saúde (Online). 2009 Nov-Fev; 6(3):443-56.

CONCLUSÃO

Desenredar o dispositivo educação em saúde permite-nos ampliar os territórios conceituais implicados nas práticas educativas em saúde desenvolvidas na APS e também na formação em enfermagem. Abre-nos caminhos para compreendermos os processos de subjetivação que se movimentam no campo da educação em saúde, mobilizando-nos a perceber os discursos, as cenas visíveis e os jogos de poder aí envolvidos, bem como as possibilidades reprodutivas e inventivas que podem crescer entre profissionais-usuários-docentes-graduandos.

Agradecimentos

Agradecemos à Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais (FAPEMIG) pelo apoio.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    2017

Histórico

  • Recebido
    07 Mar 2016
  • Aceito
    23 Ago 2016
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