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Novas tecnologias reprodutivas: uma oferta de possibilidades contraditórias para as mulheres

Novas tecnologias reprodutivas: uma oferta de possibilidades contraditórias para as mulheres

New Reproductive Technologies, Women's Health and Autonomy: Freedom or Dependency?

GUPTA, Jyostna Agnihotri.

New Delhi: Sage Publications, 2000. 625 p.

O livro de Jyostna Gupta retrata o pensamento de uma pesquisadora desconfiada do processo de medicalização da reprodução humana: é, sobretudo, uma proposta de debate sobre a extensão do impacto das novas tecnologias reprodutivas na sociedade. Aproveitando-se de sua duplicidade cultural – a autora é indiana por acaso e holandesa por opção – , Jyostna Gupta procurou dar vida às suas idéias escolhendo como cenários de levantamento de dados para sua pesquisa a Índia e a Holanda. Ela acredita ser impossível avaliar o impacto das novas tecnologias reprodutivas descontextualizando-as das realidades onde são colocadas em prática. Jyostna Gupta busca desvendar qual é a contribuição efetiva das novas tecnologias reprodutivas ao processo de emancipação e autonomia das mulheres, questionando, ao mesmo tempo, em que medida a persecução de tal objetivo significa abdicar de uma certa dose de liberdade.

As novas tecnologias reprodutivas são um mosaico de desafios visivelmente distintos – o que é, inexoravelmente, sedutor. Ciente do limbo moral e cultural a respeito do assunto, Jyostna Gupta lançou-se na pesquisa valendo-se do princípio da autonomia como ferramenta-base de trabalho. O princípio ético da autonomia é um dos eixos fundamentais das teorias bioéticas e de grande parte das teorias feministas. A escritora, por sua vez, permanece em um dos extremos da linha de oscilação das correntes teóricas de estudos feministas sobre as novas tecnologias reprodutivas, adotando uma postura mais resistente à medicina reprodutiva. Jyostna Gupta declara sua posição de forma enfática: "...as tecnologias reprodutivas significam meios de controle da sexualidade da mulher, na redução do corpo feminino como mera entidade biológica..." (p. 593).

Quando declara sua desconfiança, a pesquisadora se justifica afirmando que, por trás das campanhas de difusão das técnicas de reprodução humana por meio do apoio médico-laboratorial, existe um viés sexista, racista e eugênico – muitas vezes não explícito. Jyostna Gupta não explica o porquê, mas não aceita a eugenia. A pesquisadora limita-se a conceituar o termo, na visão dualista da eugenia positiva e negativa. A obra de Jyostna Gupta é repleta de uma abordagem histórica – favorável ao leitor leigo – , o que revela a crença da autora na idéia de que a proliferação da medicalização da reprodução humana é um processo de retroalimentação em constante expansão.

Jyostna Gupta aponta o intercâmbio entre os três significados da maternidade como o ponto-chave de desconstrução e reconstrução da ideologia da maternidade: para ela, os elementos biológico, social e simbólico interagem, de modo que a mudança de um pode influenciar os demais, levando a uma nova perspectiva acerca da ideologia da maternidade. O próprio desenvolvimento das novas tecnologias reprodutivas levou à "...desconstrução da maternidade como um processo biológico unificado..." (p. 114): a inseminação heteróloga por meio da maternidade de substituição, correlato formal de barriga de aluguel, é exemplo da dissociação entre parentalidade feminina biológica e social. Para a autora, a introdução e a difusão das tecnologias reprodutivas no cotidiano da comunidade mundial significam novos modelos de maternidade 'responsável', reforçando a indivisibilidade da parentalidade, quando à mulher é repassada toda a carga de responsabilidade sobre a prole.

Em conseqüência das novas tecnologias reprodutivas, a pesquisadora Jyostna Gupta propõe um debate sobre a utilização da tecnologia genética na reprodução tanto na Índia quanto na Holanda, explicitando o abismo que separa as duas nações na exploração dos recursos biotecnológicos. De fato, o que parecia ser pura ficção, torna-se acessível ao mundo real: o "Admirável Mundo Novo" de Aldous Huxley é, hoje, uma alternativa bastante palpável. Isso significa, no entender da pesquisadora, que o alvo principal de algumas políticas não se restringirá apenas ao controle geral da qualidade da população, mas ao controle do núcleo genético dos seres humanos, que tão-somente pode ser feito através de controle social da reprodução humana. E, nesse ponto, Jyostna Gupta convence seu/sua leitor/a: inquestionavelmente, essa hipótese de controle tão-somente pode acontecer se houver intensa participação feminina. Isso significa mais uma forma de controle da mulher.

Ao elaborar a interface entre emancipação feminina e meios de controle de fertilidade humana, a escritora revela a outra face das novas tecnologias reprodutivas, quando a mulher, na busca por um instrumento de independência e emancipação, acaba se tornando refém de suas próprias escolhas. Sob esse ângulo, as novas tecnologias reprodutivas são um processo camuflado de renúncia tácita à autonomia: as mulheres estão cada vez mais dependentes das tecnologias reprodutivas para engravidar e reproduzir, mesmo quando inexiste impedimento natural à concepção. Segundo a escritora, isso significa que a política de apresentação das tecnologias reprodutivas como oferta de último caso, como alternativa para contornar situações específicas, é falaciosa: não há opção, pois há um estímulo à compulsão pelo uso das novas tecnologias reprodutivas. Analisando o texto de Jyostna Gupta, fica possível concluir que as tecnologias reprodutivas são o retrato da dependência feminina – uma contradição.

Os contrastes entre a realidade indiana e o mundo holandês são valiosos para se entender um dos propósitos de Jyostna Gupta ao escrever o livro. Quando a escritora aborda a necessidade de aprimoramento das políticas públicas de controle populacional, em uma chamada à importância dos cuidados à saúde feminina e infantil, ela possibilita que o leitor perceba que, embora a Índia esteja atenta ao avanço das tecnologias reprodutivas, o desvio de incentivos financeiros pró-sociedade no país minam as expectativas de sucesso na redução das taxas de natalidade. O objetivo de Jyostna Gupta é mostrar que, como resultado desse tipo de atitude negligente e ilícita na distribuição das arrecadações orçamentárias, a população feminina continua sendo afrontada no exercício de sua autonomia, pois o verdadeiro propósito das campanhas e políticas públicas – de ajudar as mulheres a aprender controlar por si mesmas sua fertilidade, entre outras coisas – foi abandonado. O que se noticia, surpreendentemente, no decorrer da narrativa, é o estabelecimento de uma política de interesses, em que a esterilização masculina é eleita como método menos trabalhoso para se alcançar os objetivos de controle populacional.

É interessante o alerta da escritora quanto à importância de proteger a cultura e tradições dos povos: Jyostna Gupta chama a atenção para o descaso em relação à destruição da cultura reprodutiva tanto da Holanda quanto da Índia. A proliferação das novas tecnologias reprodutivas incentiva em larga escala a desvalorização e o conseqüente abandono de heranças antigas. A balança está desequilibrada: o abuso e o uso indiscriminado das possibilidades oferecidas pelas novas técnicas têm sufocado as demais alternativas não-medicalizadas de procriação humana. Em razão dessa sacralização da ciência, o costume holandês de intervenção da parteira na gestação foi substituído aos poucos pelo exclusivo trabalho dos especialistas, retirando da mulher mais uma ferramenta de independência feminina. Por outro lado, a autora revela, na Índia, um processo similar, em que as tradicionais auxiliares de partos foram trocadas pela higiene e pelo conhecimento especializado dos processos físicos de reprodução disponíveis nas clínicas de tecnologias reprodutivas. Episódios como esses revelam o quanto a mulher é subestimada como agente capaz de aprender: na verdade, o que fica transparente é o contínuo desejo de sufocar as mínimas demonstrações de exercício de autonomia pelas mulheres.

Existe um aspecto interessante na pesquisa de Jyostna Gupta. Quando a pesquisadora elegeu a autonomia como princípio norteador para solucionar suas questões, criou, de imediato, uma atmosfera de conflitos, porque, na mesma medida, a autonomia também representou um obstáculo às suas conclusões. No caso da possibilidade de predeterminação sexual dos fetos, é curioso como Jyostna Gupta segue a mesma direção das demais feministas: apesar de estar ciente da preferência pelo sexo masculino nas famílias indianas, ela não diz em momento algum de seu texto que tal intervenção é errada, exatamente porque tal assertiva significaria uma afronta à soberania do princípio da autonomia em si. Nesse exato ponto, a escritora opta apenas em alertar que a oferta de mais opções de escolha não necessariamente significa ou conduz a mais autonomia para as mulheres. Assim, Jyostna Gupta prefere assumir o risco de que a sociedade irá se auto-regulamentar quanto à utilização da pré-seleção sexual a defender a intromissão no exercício pleno da autonomia reprodutiva, fruto de árdua conquista. Sem dúvida, é mesmo um ônus grave permitir a intervenção direta na autonomia, mesmo que seja em relação à possibilidade de predeterminação sexual dos futuros filhos.

Em geral, percebe-se nos escritos de bioética feminista a presença velada de um temor diante da potencialidade do exercício pleno da liberdade reprodutiva em camuflar ideais sexistas. Nesse contexto, as pesquisadoras feministas enfrentam o dilema da vulnerabilidade de suas proposições em nome da hegemonia do princípio da autonomia reprodutiva. A utilização do princípio como ferramenta de defesa na justificativa para concretização de um processo de predeterminação do sexo fetal forma a estrutura de um paradoxo para a bioética feminista. É este o grande dilema da discussão: apesar de a autonomia ser o emblema das teorias feministas pela emancipação da mulher na sociedade, o princípio, encarado sem restrições, permite a utilização da pré-seleção sexual nos fetos, o que, em geral, leva à interrupção voluntária das gestações daqueles fetos de sexo feminino, não obstante a perfeita condição física e neurológica do feto em desenvolvimento.

Porém, quando Jyostna Gupta deixa de incorporar um conjunto de dados fruto de sua fórmula mista de pesquisa – foram realizadas entrevistas com grupos e indivíduos abrangendo usuários, não-usuários, potenciais usuários das novas tecnologias reprodutivas, além de legisladores, representantes de organismos internacionais ativistas, entre outros - a pesquisadora frustra a expectativa do/a leitor/a, que busca, sobretudo, burlar as dificuldades de se compor um universo etnográfico sobre o assunto. Apesar de enfatizar, em alguma medida, que tanto a Holanda quanto a Índia continuam sob o domínio de tradições em que o segredo e o estigma sobre as implicações das novas tecnologias reprodutivas imperam, cada um nos limites de suas singularidades, Jyostna Gupta não aproveita a ocasião para desvelar a realidade: a pesquisadora simplesmente se abstém de fornecer ao/à leitor/a as valiosas informações coletadas em suas dinâmicas de trabalho, provocando um descompasso entre o conteúdo de sua obra e o título em si. No Brasil, por exemplo, onde há uma carência de relatos etnográficos sobre as mulheres usuárias da medicina reprodutiva, se Jyostna Gupta tivesse optado por uma estratégia diferente, em que traçasse um paralelo crítico entre os resultados de suas entrevistas e dinâmicas de grupo e suas disposições, sua obra seria fonte potencial de discussão, podendo tornar-se um paradigma para um ambiente repleto de lacunas e dúvidas.

Jyostna Gupta foi prolixa, provavelmente em razão de seu estilo indiano de escrita. O livro traz no seu cerne uma desconexão de capítulos desfavorável à compreensão de suas idéias: a cada novo capítulo o leitor se depara com uma espécie de 'sublivro'. Essa circularidade acabou trazendo um resultado final de pouca profundidade ao conteúdo do texto. Mas, por outro lado, o mérito da pesquisadora está exatamente no grau acessível da obra: a escritora elaborou um manual de compilação que traz um excelente levantamento bibliográfico, abordando de tudo um pouco, propiciando ao/à pesquisador/a iniciante o acesso a um panorama histórico, teórico, conceitual e ideológico do assunto. A obra de Jyostna Gupta é um marco social e acadêmico: reacende os debates sobre os alcances das novas tecnologias reprodutivas.

ARRYANNE QUEIROZ

ANIS – Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    18 Set 2002
  • Data do Fascículo
    Jan 2002
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