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Botulismo em bovinos leiteiros no Sul de Minas Gerais, Brasil

Botulism in dairy cattle in southern Minas Gerais, Brazil

Resumos

Neste trabalho descreve-se um surto de botulismo decorrente da ingestão de milho contaminado em um sistema de produção de leite, em regime de confinamento, na região Sul de Minas Gerais. O rebanho era composto por 148 vacas holandesas lactantes de alta produção, confinadas em tempo integral e alimentadas com dieta completa, composta de silagem de milho e concentrado. Foram afetados 38 bovinos, verificando-se letalidade de 100%. Amostras de conteúdo intestinal, ruminal e fígado de sete animais necropsiados e amostras de água dos bebedouros e do milho utilizado na alimentação foram submetidas ao bioensaio e à soroneutralização para a detecção de toxina botulínica. Toxinas dos tipos C e D foram detectadas nas amostras de conteúdo intestinal, ruminal e milho. O surto descrito mostra que o milho estocado em condições inadequadas pode ser um fator de risco para a ocorrência da doença.

doença de bovinos; botulismo; Clostridium botulinum; milho contaminado


An outbreak of bovine botulism in a dairy herd caused by ingestion of contaminated maize, in southern Minas Gerais, Brazil is described. The herd was composed by 148 lactating cows of high milk production fed with diet based on maize ensilage and concentrate in a free stall system. Thirty eight cows were affected, with 100% of fatality rate. Samples from intestine, rumen and liver of necropsied cattle and drinking water and maize were submitted to the mouse bioassay and soroneutralization tests for detection of Clostridium botulinum toxins. Types C and D toxins were detected in samples from intestinal and rumen contents and maize. The reporter of an outbreak of botulism in cattle associated with an unusual source of toxin, shows that stocked maize in inadequate conditions is a factor of risk for the occurrence of the botulism in dairy cattle.

disease of cattle; bovine botulism; Clostridium botulinum; contaminated maize


NOTA

PATOLOGIA

Botulismo em bovinos leiteiros no Sul de Minas Gerais, Brasil

Botulism in dairy cattle in southern Minas Gerais, Brazil

Geraldo Márcio da CostaI,1 1 Autor para correspondência. ; Sandro César SalvadorI; Marcos Neves PereiraII

IDepartamento de Medicina Veterinária, Universidade Federal de Lavras (UFLA), Lavras, MG, Brasil. E-mail: gmcosta@ufla.br

IIDepartamento de Zootecnia, UFLA, Lavras, MG, Brasil

RESUMO

Neste trabalho descreve-se um surto de botulismo decorrente da ingestão de milho contaminado em um sistema de produção de leite, em regime de confinamento, na região Sul de Minas Gerais. O rebanho era composto por 148 vacas holandesas lactantes de alta produção, confinadas em tempo integral e alimentadas com dieta completa, composta de silagem de milho e concentrado. Foram afetados 38 bovinos, verificando-se letalidade de 100%. Amostras de conteúdo intestinal, ruminal e fígado de sete animais necropsiados e amostras de água dos bebedouros e do milho utilizado na alimentação foram submetidas ao bioensaio e à soroneutralização para a detecção de toxina botulínica. Toxinas dos tipos C e D foram detectadas nas amostras de conteúdo intestinal, ruminal e milho. O surto descrito mostra que o milho estocado em condições inadequadas pode ser um fator de risco para a ocorrência da doença.

Palavras-chave: doença de bovinos, botulismo, Clostridium botulinum, milho contaminado.

ABSTRACT

An outbreak of bovine botulism in a dairy herd caused by ingestion of contaminated maize, in southern Minas Gerais, Brazil is described. The herd was composed by 148 lactating cows of high milk production fed with diet based on maize ensilage and concentrate in a free stall system. Thirty eight cows were affected, with 100% of fatality rate. Samples from intestine, rumen and liver of necropsied cattle and drinking water and maize were submitted to the mouse bioassay and soroneutralization tests for detection of Clostridium botulinum toxins. Types C and D toxins were detected in samples from intestinal and rumen contents and maize. The reporter of an outbreak of botulism in cattle associated with an unusual source of toxin, shows that stocked maize in inadequate conditions is a factor of risk for the occurrence of the botulism in dairy cattle.

Key words: disease of cattle, bovine botulism, Clostridium botulinum, contaminated maize.

O botulismo é uma intoxicação alimentar que afeta várias espécies animais e é decorrente da ingestão de toxinas de Clostridium botulinum presentes nos alimentos (DUTRA et al., 2001). A doença é descrita no Brasil desde a década de 60 (TOKARNIA et al., 1970) e tem sido associada à osteofagia decorrente da deficiência de fósforo no solo e em forrageiras, tendo nos sistemas extensivos de criação o foco de sua descrição e discussão.

Na América do Norte, as principais fontes de toxinas botulínicas em sistemas de confinamento de bovinos têm sido a cama-de-frango (JEAN et al., 1995; LIVESEY et al., 2004), a silagem e o feno (GALEY et al., 2000; MARTIN, 2003). No Brasil, ORTOLANI et al. (1997) e DUTRA et al. (2005) relataram a ocorrência de surtos de botulismo em bovinos alimentados com cama-de-frango, nos quais se verificaram índices de morbidade e mortalidade elevados. DUTRA et al. (2001) relataram a ocorrência de surtos de botulismo de origem hídrica em bovinos em São Paulo e no Mato Grosso do Sul, nos quais também com elevadas taxas de morbidade e de letalidade. Embora o milho seja uma fonte comum de intoxicação para bovinos em rebanhos da região Sul de Minas Gerais de acordo com COSTA (2007 – informe verbal), relatos de ocorrência da doença associados a essa fonte de intoxicação não são encontrados.

Esta nota tem por objetivo descrever os achados clínicos e epidemiológicos de um surto de botulismo em bovinos de leite decorrente da ingestão de milho contaminado.

O surto ocorreu em um sistema de produção de leite em regime de free stall localizado na região Sul do Estado de Minas Gerais. O rebanho era composto por 148 vacas holandesas lactantes de alta produção, alimentadas com dieta completa baseada em silagem de milho e concentrado. Os bovinos eram divididos em quatro lotes de produção de acordo com a produção e o estágio de lactação. Foram afetados o Lote 1, composto por 50 vacas e o Lote 3, formado por 35 animais. Os demais lotes eram constituídos por 63 cabeças e não apresentaram nenhum animal acometido. As dietas eram formuladas para atender aos requerimentos nutricionais médios de cada lote, considerando-se o desvio padrão de produção de leite dentro de cada grupo na definição dos teores nutricionais. Quatro dietas eram formuladas e os ingredientes, previamente pesados, eram misturados manualmente nas pistas de alimentação duas vezes ao dia. Os teores nutricionais das dietas eram baseados nas recomendações da National Academy of Sciences (1999), sendo que todos os nutrientes, inclusive os minerais, eram teoricamente fornecidos via dieta completa. Também era disponibilizado sal ad libitum para todos os lotes.

O programa sanitário preventivo do rebanho incluía a vacinação contra brucelose, carbúnculo sintomático, febre aftosa, leptospirose e raiva. A vermifugação era realizada até os 12 meses de idade. Vacinas contra o botulismo não eram utilizadas na propriedade. Do total de bovinos confinados, 38 vacas lactantes, sendo 35 do Lote 3 e três do Lote 1, apresentaram sintomas de botulismo. Os sinais clínicos tiveram início súbito, três a quatro horas após o fornecimento de alimento subseqüente à ordenha da tarde e caracterizavam-se por anorexia, decúbito esternal permanente, seguido de decúbito lateral e movimentos de pedalagem, pleurotótono, respiração dispnéica e predominantemente abdominal, tetraparesia flácida ascendente, emboletamento dos membros posteriores e exposição fácil e permanente da língua após tracionamento manual. Todos os sinais clínicos observados eram característicos de botulismo (TOKARNIA et al., 1970; COBB et al., 2002; MARTIN, 2003), sendo a perda do tônus lingual o sinal mais sensível e específico do botulismo bovino, segundo WHITLOCK (1999). Na maioria dos casos, a doença apresentou curso superagudo (duas horas) a agudo (24-36 horas), com duração média de seis a 12 horas e letalidade de 100%. A alta letalidade é uma característica comum nos surtos de botulismo bovino, segundo LOBATO et al. (1995) e WHITLOCK (1999).

Foram necropsiadas sete vacas e foram coletados fragmentos de vários órgãos que foram fixados em formol a 10%, processados rotineiramente e submetidos a exames histopatológicos no Laboratório de Patologia Animal da Universidade Federal de Lavras. Além dos espécimes destinados à histopatologia, amostras de fígado, conteúdo intestinal e ruminal, juntamente com amostras de água de cada um dos bebedouros e amostras do milho utilizado na composição da dieta, foram coletados e enviados ao Laboratório de Enfermidades Infecciosas da Universidade Estadual Júlio de Mesquita Filho (UNESP-Campus de Araçatuba/SP) para a realização de bioensaio e soroneutralização em camundongos. No total, foram remetidas cinco amostras de fígado, nove amostras de conteúdo ruminal, quatro amostras de conteúdo intestinal, duas amostras de água de bebedouros e uma amostra do milho triturado que foi fornecido aos lotes acometidos. Embora os bovinos fossem vacinados contra a raiva e o curso observado não fosse indicativo dessa enfermidade, metade do encéfalo de cada um dos bovinos necropsiados foi enviada ao laboratório do Instituto Mineiro de Agropecuária (IMA) para a realização de imunofluorescência direta (IFA) e inoculação intracerebral em camundongos (ICC).

Nenhum bovino apresentou lesões macroscópicas ou histopatológicas e os testes de IFA e ICC foram negativos. Entre os espécimes submetidos ao bioensaio e à soroneutralização, todas as amostras de fígado e água apresentaram resultados negativos. Duas amostras de conteúdo ruminal, uma amostra de conteúdo intestinal e amostras do milho utilizado na confecção da dieta dos lotes acometidos foram positivas para toxina botulínica. Os tipos toxigênicos envolvidos foram identificados por meio da soroneutralização como C e D. Surtos de botulismo em sistemas de confinamento não são comuns ou raramente são comunicados. A doença, no Brasil, é geralmente associada com a pecuária de corte, acometendo bovinos criados em sistema extensivo, em solos de cerrado deficientes em fósforo e sem a correta mineralização, o que leva os animais a praticar a sarcofagia e a osteofagia (TOKARNIA et al., 1970; DÖBEREINER et al., 1992; ORTOLONI et al., 1997).

A intensidade das manifestações clínicas e a evolução rápida sugeriam como prováveis fontes de intoxicação a dieta completa ou a água dos bebedouros, que apresentava sedimento abundante e rico em matéria orgânica, porém, estas amostras resultaram negativas nos testes de bioensaio. Suspeitou-se então que a intoxicação tivesse sido ocasionada pelo milho que foi utilizado na formulação da dieta dos lotes acometidos e era proveniente de uma propriedade vizinha. Tal suspeita se confirmou pelos seguintes fatos: a) foram acometidas somente vacas dos dois lotes de alimentação onde o milho suspeito foi utilizado na confecção da dieta; b) outros alimentos utilizados na dieta foram comuns a todos os quatro lotes de alimentação; c) amostras do milho utilizado na alimentação dos lotes acometidos apresentaram resultado positivo no bioensaio e na soroneutralização para pesquisa de toxina botulínica.

Amostras do milho suspeito de ter ocasionado a intoxicação que foram obtidas por ocasião do surto apresentavam grãos mofados, indicando estocagem inadequada. Esse alimento é um ótimo meio de cultura para C. botulinum, que pode propiciar a produção de toxina botulínica quando incorretamente estocado, mesmo na ausência de carcaças de animais. No caso do Brasil, as chances de ocorrência de surtos são grandes devido às condições geralmente inadequadas de estocagem desse produto.

A utilização de dieta completa aumenta os riscos de surtos de grandes proporções, como o ocorrido em um rebanho leiteiro norte-americano, em 1998 (GALEY et al., 2000), no qual morreram 427 vacas de um lote de 441 bovinos, devido à incorporação de uma carcaça de felino no vagão misturador. Nessas condições, a toxina é distribuída homogeneamente na dieta e todo o lote que receber o alimento será acometido.

No surto aqui relatado, a letalidade foi de 100%, verificando-se mortalidade de 100% no Lote 3 e de 6% no Lote 1. A diferença de mortalidade se deveu ao fato de que uma pequena sobra do milho utilizada na confecção da dieta do Lote 3 foi utilizada na composição da dieta do Lote 1. Certamente, se o alimento contaminado tivesse sido distribuído uniformemente em todas as dietas, todos os lotes seriam igualmente acometidos.

Tão logo se iniciaram os sinais clínicos e estabeleceu-se o diagnóstico clínico e epidemiológico de botulismo, foi realizada uma tentativa de tratamento, fornecendo solução saturada de salamargo (hidróxido de magnésio) aos animais expostos na proporção de dois litros/vaca, via beberagem. Segundo DUTRA (2005 – informe verbal), tal prática induziria um quadro diarréico nos animais, minimizando a absorção intestinal da toxina. Adicionalmente, segundo MARTIN (2003), poderia ter sido realizada a aplicação de anti-toxina botulínica nos bovinos expostos ou que se encontrassem com sinais clínicos discretos. Com essa medida, alguns casos clínicos mais brandos poderiam ter sido estabilizados e os animais recuperados. O aparecimento de novos casos clínicos também poderia ter sido diminuído por meio da inativação da toxina botulínica circulante.

Uma questão importante com relação à ocorrência de botulismo em bovinos leiteiros é a possibilidade de eliminação da toxina no leite. Embora vários autores tenham relatado a ausência de toxina botulínica no leite de bovinos acometidos pelo botulismo (GALEY et al., 2000; MOLLER et al., 2003), não existe um consenso a esse respeito e muitos autores indicam o descarte do leite dos lotes acometidos por até 14 dias após o último caso clínico (COBB et al., 2002). Essa medida de proteção ao consumidor aumenta ainda mais o ônus ocasionado pela doença em rebanhos leiteiros.

No presente trabalho foi feito um relato sobre a ocorrência de um surto de botulismo em gado de leite em sistema de confinamento baseado no conceito de dieta completa, com o objetivo de demonstrar que a doença, no Brasil, não está restrita à pecuária extensiva praticada em regiões de cerrado deficientes de fósforo. Salientou-se ainda a utilização de milho inadequadamente estocado como fator de risco importante para a ocorrência da doença, sobretudo para bovinos em confinamento, e as altas taxas de morbidade e de letalidade ocasionadas pela doença nesse tipo de sistema de produção.

INFORME VERBAL

COSTA, G.M. Informe verbal, 2007. Universidade Federal de Lavras, Lavras/MG, Brasil. E-mail: gmcosta@ufla.br.

DUTRA, I.S. Informe verbal, 2005. Universidade Estadual de São Paulo, Araçatuba/SP, Brasil. E-mail: isdutra@fmva.unesp.br.

Recebido para publicação 05.09.07

Aprovado em 12.03.08

  • COBB, S.P. et al. Suspected botulism in dairy cows and its implications for the safety of human foods. Veterinary Record, v.150, p.5-8, 2002.
  • DUTRA I.S. et al. Surtos de botulismo em bovinos no Brasil associados à ingestão de água contaminada. Pesquisa Veterinária Brasileira, v.21, n.2, p.43-48, 2001.
  • DUTRA I.S. et al. Botulismo em bovinos de corte e leite alimentados com cama-de-frango. Pesquisa Veterinária Brasileira, v.25, n.2, p.115-119, 2005.
  • DÖBEIRENER, J. et al. Epizootic botulism of cattle in Brazil. Deutsche Tierärztliche Wochenschrift, v.99, n.5, p.165-232, 1992.
  • GALEY, F.D. et al. Type C botulism in dairy cattle from feed contaminated with a dead cat. Journal of Veterinary Diagnostic Investigation, v.12, p.204-209, 2000.
  • JEAN, D. et al. Clostridium botulinum type C intoxication in feedlot steers being fed ensiled poultry litter. Canadian Veterinary Journal, v.36, p.626-628, 1995.
  • LIVESEY, C.T. et al. Recent association of cattle botulism with poultry litter. Veterinary Record, v.154, n. 23, p.734-735, 2004.
  • LOBATO, F.C.F. et al. Surto de botulismo em bovinos alimentados com cama-de-frango no Brasil Comunicação. Arquivo Brasileiro de Medicina Veterinária e Zootecnia, v.47, n.6, p.849-850, 1995.
  • MARTIN, S. Clostridium botulinum type D intoxication in a dairy herd in Ontario. Canadian Veterinary Journal, v.44, p.493-495, 2003.
  • MOLLER, R.B.Jr. et al. Determination of the median toxic dose of type C botulinum toxin in lactating dairy cows. Journal of Veterinary Diagnostic Investigation, v.15, n.6, p.523-526, 2003.
  • NATIONAL ACADEMY OF SCIENCES. Nutrient requirements of dairy cattle 7.ed. Washington: National Academic, 1999. 381p.
  • ORTOLANI, E.L. et al. Botulism outbreak associated with poultry litter consumption in three brazilian cattle herds. Veterinary and Human Toxicology, v.39, n.2, p.8992, 1997.
  • TOKARNIA, C.H. et al. Botulismo em bovinos no Piauí, Brasil. Pesquisa Agropecuária Brasileira, v.5, p.465-472, 1970.
  • WHITLOCK, R. Botulism toxicosis of cattle. Procedures Annual Conference American Association Bovine Practioners, v.32, p.45-53, 1999.
  • 1
    Autor para correspondência.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      07 Out 2008
    • Data do Fascículo
      Out 2008

    Histórico

    • Recebido
      05 Set 2007
    • Aceito
      12 Mar 2008
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