Acessibilidade / Reportar erro

Florestan Fernandes e a educação pública na Assembleia Nacional Constituinte (1987-1988) 1 1 Editor responsável: André Luiz Paulilo. https://orcid.org/0000-0001-8112-8070 2 2 Normalização, preparação e revisão textual: Marina Teles – revisao@tikinet.com.br

Florestan Fernandes y la educación pública en la Asamblea Nacional Constituyente (1987-1988)

Resumo

Discute-se os enfrentamentos na área educacional na Constituinte e suas origens históricas, segundo o percurso teórico e político do sociólogo e deputado constituinte Florestan Fernandes. O desafio de romper o nó górdio da democracia em sua articulação com a pauta da educação pública constitui a chave de leitura pela qual percorremos as manifestações de Florestan à época da ANC. As fontes utilizadas foram seus textos publicados em jornais e seus discursos na Constituinte organizados em coletâneas e que estão disponíveis nos arquivos digitais do congresso. Em consonância com as quatro etapas da ANC, procedeu-se a uma leitura dos textos e discursos de Florestan Fernandes num percurso cronológico que acompanhou os principais momentos da Constituinte. Assim, o material analisado foi organizado em três núcleos temáticos que têm profunda conexão com as esperanças e impasses do processo constituinte: (i) Desafios históricos da Constituinte; (ii) O processo constituinte, a participação popular e a educação; e (iii) Transição Transada e os limites da “Nova República”. Nesta última fase, já aparecem os limites com os quais a Constituinte se deparava e impediam mais uma vez na história brasileira a ruptura do nó górdio das reformas democráticas.

Palavras-chave
educação pública; Assembleia Nacional Constituinte; Florestan Fernandes

Resumen

Este texto pretende discutir los enfrentamientos en el área educativa en la Asamblea Constituyente y sus orígenes históricos, a partir del transcurso teórico y político del sociólogo y diputado constituyente Florestan Fernandes. El desafío de romper el nudo gordiano de la democracia en su articulación con la pauta de la educación pública constituye la clave de lectura por la cual traspasa las manifestaciones de Florestan en la época de la Asamblea Nacional Constituyente (ANC). Se utilizaron como fuentes sus textos publicados en periódicos y sus discursos en la Asamblea Constituyente, recopilados y disponibles en los archivos digitales del Congreso. En consonancia con las cuatro etapas de la ANC, se procedió a una lectura de los textos y discursos de Florestan Fernandes en un transcurso cronológico que acompañó los principales momentos de la Asamblea Constituyente. De esta manera, el material analizado se organizó en tres núcleos temáticos que tienen una profunda conexión con las esperanzas e impases del proceso constituyente: (i) Desafíos históricos de la Asamblea Constituyente; (ii) El proceso constituyente, la participación popular y la educación; y (iii) Transición Transacionada y los límites de la “Nueva República”; En esta última fase, ya aparecen los límites con los cuales la Asamblea Constituyente se deparaba e impedían, una vez más en la historia brasileña, superar el nudo gordiano de las reformas democráticas.

Palabras clave
ducación pública; samblea Nacional Constituyente; Florestan Fernandes

Abstract

This text aims to discuss de struggles in the educational area in the National Constituent Assembly and its historical origins, following the theoretical and political ideas of sociologist and constituent deputy Florestan Fernandes. The challenge of breaking the democracy’s Gordian knot in its articulation with the public education agenda constitute the reading key used to follow Fernandes’ manifestations in the Constituent Assembly. The sources used were his articles in newspapers and his speeches in the Constituent Assembly, which are organized in collections and are available in the digital files of the Congress. In parallel with the four stages of the Constituent Assembly, we read Florestan Fernandes’ texts and discourses in a chronological path that followed its main moments. Thus, the analyzed material was organized into three core themes deeply related to the hopes and impasses of the constituent process: (i) Historical challenges of the Constituent Assembly; (ii) The constituent process, popular participation, and education; and (iii) The transacted transition and the limits of the “New Republic.” This last stage already shows the limits that the Constituent Process faced, which, again in Brazilian history, prevented the rupture of the Gordian knot of democratic reforms.

Keywords
public education; National Constituent Assembly; Florestan Fernandes

… a educação é o mais grave dilema social brasileiro. A sua falta prejudica da mesma forma que a fome e a miséria, ou até mais pois priva os famintos e miseráveis dos meios que os possibilitem a tomar consciência da sua condição, dos meios de aprender a resistir a essa situação. Portanto, pode representar um fator de difusão da ignorância e do atraso cultural. Com esses mecanismos e um sistema escolar injusto e inócuo, há reprodução do sistema de desigualdade, da concentração de riqueza, de poder e de dominação.

(Notas taquigráficas da Constituinte de 1987-1988Notas taquigráficas da Constituinte de 1987-1988. http://www2.camara.leg.br/deputados/discursos-e-notas-taquigraficas
http://www2.camara.leg.br/deputados/disc...
)

Introdução

Entre os momentos decisivos da história da educação brasileira encontram-se os debates e encaminhamentos atribuídos ao tema educacional na Assembleia Nacional Constituinte (ANC) de 1987-1988. Em meio ao período denominado como “Nova República”, impunha-se a necessidade de construir os fundamentos legais da ordem democrática, após a saída dos presidentes militares. Nessas circunstâncias, recolocam-se polêmicas que remontam às acirradas disputas que estiveram presentes nos projetos da primeira lei de diretrizes e bases da educação brasileira (LDB), entre a década de 1950 e 1961, relativas ao lugar do ensino público e do privado no orçamento do Estado. A abordagem acerca dos enfrentamentos na área educacional na Constituinte e suas origens históricas poderia ser realizada por diferentes caminhos; neste texto a escolha consiste em tratá-los segundo o percurso teórico e político do sociólogo Florestan Fernandes, que foi eleito deputado constituinte nas eleições de 1986 pelo Partido dos Trabalhadores (PT).

Florestan Fernandes resistiu a ingressar numa agremiação partidária. Apenas em 1986, com a perspectiva de participar da Assembleia Constituinte, o sociólogo aceitou o convite do PT para ser candidato a deputado federal. A Jornada de Estudos Florestan Fernandes na Universidade Estadual Paulista (Unesp) em Marília, nesse mesmo ano, foi um momento importante desse percurso que levou ao lançamento da sua candidatura. Grandes nomes das ciências sociais no Brasil estiveram presentes para debater a sua obra e houve a participação de mais de mil pessoas provenientes de diferentes partes do país (D’Incao, 1987D’Incao, M. A. (1987). O saber militante: Ensaios sobre Florestan Fernandes. São Paulo: Paz e Terra.). Sem ter esta intencionalidade, a jornada colaborou para impulsionar a candidatura do patrono (Soares, 1997).

O intelectual Florestan Fernandes a exemplo de sua atuação acadêmica chegou à ANC e personificou o político digno e respeitado, avesso às práticas tradicionais de privilegiamento dos de cima (Soares, 1997).

Acompanhar o tema educacional a partir de sua mirada constitui um olhar peculiar no interior da ANC, com posição privilegiada de observação, por perto e por dentro do processo constituinte e desde uma posição política articulada com uma elaboração teórica construída ao longo de mais de 40 anos de trabalho intelectual próximo aos temas educacionais (Fernandes, 1989bFernandes, F. (1989b). Projeto de dispositivos constitucionais. In F. Fernandes, O desafio educacional (pp. 252 - 261-yy). São Paulo: Cortez, Autores Associados.).

Florestan Fernandes é considerado pelo Professor Antonio Candido um dos grandes intérpretes do Brasil. De origem humilde, perfez um difícil caminho como criança trabalhadora até sua chegada à USP como estudante da graduação na década de 1940 (Candido, 1987Candido, A. (1987). Amizade com Florestan. In M. A. D’Incao, O saber militante: Ensaios sobre Florestan Fernandes (pp. 31-38). São Paulo: Paz e Terra.). Nessa universidade, construiu carreira brilhante e teve participação proeminente na construção das bases científicas das Ciências Sociais no país (Arruda, 1995Arruda, M. A. do N. (1995). A sociologia no Brasil: Florestan Fernandes e a “escola paulista”. In S. Miceli (Org.), História das ciências sociais no Brasil (Vol. 2, pp. 107-232). São Paulo: Editora Sumaré; Fapesp.). As suas obras têm relação intrincada com o processo histórico brasileiro e seus dilemas, muito bem descrito pelo autor em seu ensaio “Em busca de uma sociologia crítica e militante” (Fernandes, 1980Fernandes, F. (1980). A sociologia no Brasil. Petrópolis: Vozes.).

O Professor Florestan Fernandes se envolveu vigorosamente na luta pela educação pública em profunda coerência com sua origem social. Destaca-se o engajamento na Constituinte nos anos de 1980 e na Campanha Nacional em Defesa da Escola Pública no período dos embates a respeito dos projetos da Primeira LDB, ao final da década de 1950, circunstância em que ele afirma ter sido:

… porta-voz das frustrações e da revolta dos meus amigos da infância e da juventude. O meu estado de espírito fez com que o professor universitário falasse em nome do filho da antiga criada e lavadeira portuguesa, o qual teve de ganhar a sua vida antes mesmo de completar sete anos, engraxando sapatos ou dedicando-se a outras ocupações igualmente degradadas, de maneira severa, naquela época.

(Fernandes, 1966Fernandes, F. (1966). Educação e sociedade no Brasil. São Paulo: Dominus. p. XIX)

Florestan Fernandes realizou a defesa intransigente da escola pública, por meio da palavra de ordem “verba pública para escola pública”, como um elemento estruturante de uma reforma educacional vinculada à criação dos fundamentos da ordem democrática e das possibilidades de construção do capitalismo brasileiro em bases mais autônomas e nacionais.

Promulgada a lei em 1961, Florestan Fernandes fez uma avaliação muito negativa dos resultados a que se conseguiu chegar, uma vez que não foram respeitados princípios republicanos relativos à educação no que se refere: à autonomia do Estado em matéria de administração e política do ensino; à aplicação de recursos oficiais destinados à instrução e à intervenção dos poderes públicos na democratização das oportunidades escolares. Foi, assim, considerada por ele uma lei anacrônica, que demonstrou a apatia dos políticos diante do ensino e não respondeu às necessidades históricas de um sistema nacional de ensino e de uma política educacional daquele momento, já que manteve a educação escolarizada desvinculada dos processos econômicos, culturais e sociais que remodelavam a sociedade brasileira à época (Fernandes, 1966Fernandes, F. (1966). Educação e sociedade no Brasil. São Paulo: Dominus.).

Segundo Mazza (2003)Mazza, D. (2003). A produção sociológica de Florestan Fernandes e a problemática educacional: Uma leitura (1941 – 1964). Taubaté: Cabral Editora e Livraria Universitária., a obra de Florestan Fernandes nas décadas de 1940 e 1960 não só é perpassada pela problemática educacional como traz importantes repercussões em sua produção sociológica posterior. Desta primeira experiência de Florestan Fernandes no envolvimento sistemático na luta pela escola pública, foi extraído um dos conceitos que mais tarde colaborou na leitura que ele fez das dificuldades encontradas na ANC da década de 1980. Trata-se da “resistência sociopática à mudança” pelos círculos conservantistas do país, descrita por ele da seguinte maneira:

… O seu principal traço negativo está no fato de não envolver uma ligação emocional e moral íntegra e produtiva com o passado; o empenho maior volta-se para a preservação pura e simples do status quo, sem nenhuma preocupação de salvar a herança social por meio de sua renovação. Tudo se passa como se pessoas e grupos humanos colocassem acima de tudo as posições alcançadas na estrutura de poder da sociedade. Os influxos inovadores e seus efeitos previsíveis acabam projetados na área das “forças do mal” – sendo percebidos, interpretados e repelidos num contexto de atuação irracional.

(Fernandes, 1976Fernandes, F. (1976). A sociologia numa era de Revolução Social (2ª ed.). Rio de Janeiro: Zahar., p. 211)

O envolvimento de Florestan Fernandes nos debates da LDB de 1961 e os desdobramentos teóricos que tal experiência gerou em sua obra se evidenciam em sua produção subsequente voltada a compreender a peculiaridade da construção da sociedade burguesa no Brasil (Mazza, 2003Mazza, D. (2003). A produção sociológica de Florestan Fernandes e a problemática educacional: Uma leitura (1941 – 1964). Taubaté: Cabral Editora e Livraria Universitária.).

No início dos anos de 1980, o sociólogo esteve muito próximo à organização das entidades compostas de professores e pesquisadores da área educacional. Com papel destacado no debate público, apresentou uma fala contundente para abertura da II Conferência Brasileira de Educação, em 1982, com o título “O novo ponto de partida”. Na ocasião defendeu que educação e democratização da sociedade apareciam como entidades reais e processos concretos e interdependentes, em uma análise cuja mira se voltava às necessidades culturais das classes trabalhadoras (Fernandes, 1989cFernandes, F. (1989c). O desafio educacional. São Paulo: Cortez; Autores Associados.).

Assim, a militância de Florestan Fernandes na luta pela educação pública ocorreu paralelamente à agudez de sua análise do processo histórico à quente, em livros e artigos para jornais da época. Em outubro de 1983, o sociólogo passou a integrar semanalmente a seção “Tendências e Debates” do jornal Folha de S.Paulo. Esta experiência fez com que suas ideias chegassem a um campo de debate e ação mais amplo. Segundo Antonio Cândido (citado por Soares, 1997, p. 90): “Foi graças à atividade dele na imprensa que ele se tornou realmente uma pessoa conhecida no país todo e se pôde ver qual era o teor da política dele.”

Em 1985 foi publicada a primeira edição de Nova República? em que são expostas as possibilidades abertas à sociedade brasileira naquele novo momento caracterizado pela “contrarrevolução interrompida”. São retomadas as teses desenvolvidas em A revolução burguesa no Brasil. Voltadas a desnudar a essência da formação do capitalismo brasileiro, tais teses apontam que dentre as especificidades brasileiras está a consolidação da industrialização do país não associada às reformas democráticas e nacionais que caracterizaram as revoluções burguesas clássicas. A burguesia brasileira teria uma forma de dominação marcada por um forte princípio autocrático, além de ser contrarrevolucionária, distinguindo-se, assim, de suas congêneres europeias (Fernandes, 2006Fernandes, F. (2006). A revolução burguesa no Brasil (5ª ed.). São Paulo: Globo.). Em meados dos anos de 1980, as forças ditatoriais estariam se retraindo para a retaguarda do “poder civil” estatal. Florestan Fernandes ressalta a ambivalência deste deslocamento, já que de um lado havia a permanência, mesmo que nos bastidores, uma vez que a transição foi negociada e estava seguindo os moldes previstos pelos militares, num processo “lento, gradual e seguro” exposto na derrota das “diretas já” e na eleição no colégio eleitoral. Por outro lado, o movimento social cresceu significativamente no início da década de 1980. Na luta por direitos organizaram-se professores, trabalhadores fabris, profissionais da saúde, trabalhadores sem-terra, com forte presença dos setores progressistas da igreja católica, que representavam em conjunto uma força potente na defesa das reformas democráticas que tocavam nas estruturas da sociedade brasileira. Assim, Fernandes (1986, p. 33)Fernandes, F. (1989a). A constituição inacabada: Vias históricas e significado político. São Paulo: Estação Liberdade. afirma que:

Há um enlace dialético entre passado, presente e futuro; o futuro está embutido em nosso presente tanto como contrarrevolução quanto como revolução … Cabe-nos impedir que o passado se prolongue e se reproduza no presente e faça do futuro uma reprodução ampliada (e renovada) do passado, ou seja, cabe-nos extinguir uma forma de barbárie que deveria ter desaparecido com a escravidão ou com a Primeira República. Esse é o busílis do raciocínio político que não se confunde com a “conciliação nacional”. Os que interromperam as “revoluções capitalistas” e, depois, também interromperam a contrarrevolução que gerou a República institucional devem ser lembrados. Mas para que os seus erros não se repitam e para que o nó górdio da revolução democrática seja efetivamente cortado.

O nó górdio da revolução democrática, não cortado na eleição do primeiro presidente civil desde 1964, aparece como desafio central no processo constituinte, segundo o autor. O núcleo de suas preocupações políticas e intelectuais é constituído pela urgência referente aos encaminhamentos do que ele denomina como “revolução democrática”, composta pelas reformas que criariam bases sociais mais igualitárias no país. A defesa intransigente da escola pública, laica e gratuita, bem como a destinação exclusiva dos recursos do Estado para a escola pública aparecem como parte essencial dessas mudanças.

Assim, o presente texto traz resultados de um projeto de pesquisa realizado entre 2016 e 2019, com o título: “A proposta educacional de Florestan Fernandes e sua interlocução com os educadores na Assembleia Nacional Constituinte”. A metodologia da pesquisa foi elaborada tendo em consideração as relações entre os estudos de Florestan Fernandes sobre a formação social no Brasil, sistematizados em sua obra A revolução Burguesa no Brasil, e o conjunto de seus textos sobre educação nos anos de 1980.

Aqui, enfocamos especificamente a maneira pela qual o sociólogo e deputado constituinte aborda o desafio de romper o nó górdio da revolução democrática em sua articulação com a pauta da educação pública. Esta corresponde à chave de leitura pela qual percorremos as manifestações de Florestan à época da ANC. A seleção das fontes escritas por Florestan Fernandes tem um recorte cronológico e temático: trata-se de seus textos publicados em jornais e seus discursos na Constituinte (1987-1988) organizados em coletâneas e que estão disponíveis nos arquivos digitais do congresso (Fernandes, 1988Fernandes, F. (1988). O processo constituinte. Brasília, DF: Câmara dos Deputados – Centro de Documentação e Informação., 1989cFernandes, F. (2007). Que tipo de república? (2ª ed.). São Paulo: Globo., 2014Mazza, D. (2003). A produção sociológica de Florestan Fernandes e a problemática educacional: Uma leitura (1941 – 1964). Taubaté: Cabral Editora e Livraria Universitária.).

A educação nos textos de Florestan Fernandes nas quatro etapas da ANC

De acordo com o Regimento Interno aprovado em 10 de março de 1987, a ANC conformaria quatro etapas; Florestan Fernandes atuou na comissão e subcomissão que trataram do tema da educação. A ordenação dos trabalhos na ANC respondeu a um plano lógico, seriam oito comissões constitucionais cada uma subdividida em 3 subcomissões, “… que permitiriam distribuir os vários assuntos ou temas por grupos de deputados e senadores constituintes mais afeitos às questões pertinentes e à sua complexidade” (Fernandes, 1989bFernandes, F. (1989b). Projeto de dispositivos constitucionais. In F. Fernandes, O desafio educacional (pp. 252 - 261-yy). São Paulo: Cortez, Autores Associados., p. 81). Haveria ainda a Comissão de Sistematização, que faria a recomposição do todo. Tratou-se de um processo retalhado. Desde suas primeiras análises sobre o processo constituinte, Florestan Fernandes demonstra suas impressões a respeito do nexo conservador aí presente, desde a atribuição aos constituintes de tarefas discretas, dispersas e diluídas nas Comissões, até o crivo final na votação na ANC, composta por maioria de partidos do centro e da direita.

Em consonância com as quatro etapas da ANC, procedeu-se a uma leitura dos textos e discursos de Florestan Fernandes num percurso cronológico que acompanhou os principais momentos da Constituinte. Tendo por base a leitura e a organização cronológica dos textos foi possível identificar a principal temática que prevaleceu nos escritos em cada um dos momentos da ANC3 3 Os textos que foram analisados e estão organizados no Quadro 1 serão caracterizados com título e data original de publicação ao final de cada citação direta em que figurarem para favorecer a sua identificação pelo(a) leitor(a). . Foram, assim, elaborados 3 núcleos temáticos que possuem profunda conexão com as esperanças e impasses do processo constituinte: (i) Desafios históricos da Constituinte – nestes textos Florestan Fernandes esclarece a tarefa histórica da ANC diante da realidade concreta, nos dias que correspondem à instalação da ANC e de suas Comissões e Subcomissões; (ii) O processo constituinte, a participação popular e a educação – neste conjunto de textos encontram-se intervenções que trazem à cena os aspectos avançados relativos à participação popular na elaboração da nova Carta, bem como os impasses insuperáveis no clima de tensão crescente ao longo das discussões na Subcomissão e da Comissão que tratou do tema educacional; e (iii) Transição Transada e os limites da “Nova República”, fase em que já se delineiam as intervenções do “Centrão” que levam à alteração do regimento da ANC, num contexto cada vez mais difícil e tenso para as demandas populares, entre elas para a educação pública. Nesta fase, já aparecem os limites com os quais a Constituinte se deparava e impediam mais uma vez na história brasileira a ruptura do nó górdio das reformas democráticas que gerassem uma correlação de forças menos desigual entre as classes sociais. No Quadro 1 estas informações aparecem sintetizadas e organizadas:

Quadro 1
Principais temas tratados por Florestan Fernandes ao longo da Assembleia Nacional Constituinte

Desafios históricos da Constituinte

A Constituinte de 1987/1988, pela primeira vez na história do país, contou com mecanismos de participação popular; houve acentuada pressão da Igreja Católica e de Entidades Sociais para que a população pudesse intervir, seja por meio de audiências públicas ou das emendas populares (Michiles, 1989Michiles, C. (1989). Cidadão constituinte. Rio de Janeiro: Paz e Terra.). Segundo Fernandes (1989b, p. 77)Fernandes, F. (2006). A revolução burguesa no Brasil (5ª ed.). São Paulo: Globo. “A impregnação católico-reformista, social-democrática e socialista-reformista da reivindicação popular é conhecida. No Brasil, não fossem certas entidades com essa impregnação, o processo constituinte ficaria fechado intramuros.”

O método escolhido para elaboração da Carta excluiu a utilização de um anteprojeto, então, houve a recepção das sugestões dos constituintes, bem como de representantes da sociedade civil e do Estado. Baseando-se nestas contribuições se daria a votação dos primeiros anteprojetos, na construção do texto constitucional.

Conforme apresentado no Quadro 1, na fase inicial da Constituinte, as intervenções públicas de Florestan Fernandes são nucleadas pelo destaque aos “Desafios históricos da Constituinte”, em que se deslindam as esperanças e riscos ensejados na elaboração da nova Carta. Assim, em 12 de fevereiro de 1987, Florestan Fernandes profere o seguinte discurso à ANC5 5 Estão também no Núcleo temático A os seguintes textos de Florestan (1989a) que foram publicados no Pasquim São Paulo e Folha de S.Paulo: Congresso Constituinte sem sonhos (dez. 1986); Pacto Social e desmobilização (jan. 1987); A crise (fev. 1987); Nem ditador nem Kerensky (mar. 1987); Autofagia (mar. 1987). :

Tivemos várias Constituições, mas nunca tivemos uma Constituição tão importante na História do Brasil. E, infelizmente, nunca tivemos também condições tão adversas para que ela possa ser elaborada, tendo em vista a natureza dos problemas com que nos defrontamos. Para se debater o tema da soberania da Assembleia Nacional Constituinte, é preciso entender que ela resulta de um processo político inelutável. Houve uma transição que se chamou “transada”, isto é, a atual Nova República nasceu de um parto da ditadura, e o que herdamos foi uma ordem institucional ilegal. A Constituição de 67, com os complementos da de 69 e todo o conjunto de atos institucionais e decretos, constitui-se em um Frankenstein constitucional, e vemos aqui sacerdotes que se ajoelham diante dela, como se fosse um modelo de todas as Constituições e deve-se pautar nosso comportamento dentro desta Casa. Na verdade, houve uma ruptura, que se deveria ter consumado na eleição de Tancredo Neves e não o foi. Vai-se consumar agora, num plano que um autor muito conhecido. Max Weber, chamaria de uma revolução na esfera do Direito. A ruptura poder-se-ia ter dado em função do movimento das “diretas já”, mas não se deu. Poder-se-ia dizer que, por covardia de muitos políticos, por conveniência de muitas pessoas poderosas e por cegueira das nossas classes dominantes, hoje essa ruptura é inevitável. Não estamos aqui para elaborar um Constituição para a década de 50 nem para a década de 60, mas para hoje e para os próximos 25 ou 50 anos, e dentro de uma situação histórica na qual é impossível negar que estão ocorrendo transações estruturais profundas na sociedade brasileira.

(Fernandes, 1988Fernandes, F. (1988). O processo constituinte. Brasília, DF: Câmara dos Deputados – Centro de Documentação e Informação., p. 61)

Neste discurso indica-se o que estava em jogo na Constituinte: a superação das condições políticas da ditadura que se faziam presentes no processo de transição à democracia. Emblemática desta permanência foi a derrota do movimento popular pelas Diretas Já, com a eleição de Tancredo Neves pelo colégio eleitoral. A defesa de Florestan Fernandes é que a elaboração da Constituição incorpore as bases legais para a realização das reformas estruturais que estavam na pauta política do início dos anos de 1960 e foram suspensas pela ditadura a partir de 1964, tais como a Reforma Educacional que promovesse a igualdade substantiva de oportunidades e a Reforma Agrária. Na ausência dessas reformas estruturais, teria se desenvolvido no Brasil um “capitalismo selvagem”, com índices alarmantes de concentração de renda e riqueza. Assim, a crise econômica dos anos de 1980 expressa nos impasses da dívida externa e na inflação galopante teriam profundas relações com a crise estrutural. Para superar a crise em suas faces estrutural e conjuntural seria preciso haver espaço político para uma maior atuação dos trabalhadores na luta por seus interesses. Nas passagens a seguir, extraídas de textos que datam de momentos imediatamente anteriores e nas primeiras semanas da instalação da Assembleia Constituinte, são destacadas tais ideias:

Neste fim do século XX, o Brasil precisa de uma carta magna para possuir uma sociedade civil civilizada, um Estado aberto à luta de classes e uma democracia que o associe à Nação e à promoção do seu desenvolvimento, sem as deformações e as iniquidades do 1% e dos 5% mais ricos e poderosos. O Estado-cadeia, forjado pelas realidades do colonialismo direto, precisa ceder seu lugar ao Estado de uma sociedade civil civilizada, ainda que sob o capitalismo.

(Congresso Constituinte sem sonhos [dez. 1986] citado por Fernandes 1989aFernandes, F. (1989a). A constituição inacabada: Vias históricas e significado político. São Paulo: Estação Liberdade., p. 52, grifos nossos)

… Uma combinação de crise de conjuntura e de crise estrutural geralmente aponta para uma revolução histórica. Esta certamente está germinando, nos subterrâneos e na superfície da sociedade brasileira. Todavia, existem alternativas à revolução e uma oscilação que confere a ela um caráter político, de revolução dentro da ordem. Um passo à frente, neste momento, quer dizer a conquista de uma forma política popular de democracia, uma “democracia pluralista” com duas faces: uma proletária, outra burguesa. …

(A crise [fev. 1987] citado por Fernandes, 1989aFernandes, F. (1989a). A constituição inacabada: Vias históricas e significado político. São Paulo: Estação Liberdade., p. 66)

… a atual ANC aparece como o elo tolerado de uma cadeia, que se inicia como golpe de 1964, atinge o apogeu com o triunvirato de 1968-69 e alcança maturidade com as políticas de transição dos governos dos generais Geisel e Figueiredo. Essa maturidade deu à luz a candidatura Tancredo Neves, o atual Governo e a presente ANC, que coloca, da perspectiva da força bruta, o que se pretendia alcançar, a longo prazo e no plano conservador, através do Colégio Eleitoral Se a ANC coonestar a usurpação, ela endossará a ligação orgânica entre o Colégio Eleitoral e uma Constituição anódina, que exprimirá o quanto estamos longe de uma revolução nacional e democrática.

(Nem ditador nem Kerensky [mar. 1987] citado por Fernandes, 1989bFernandes, F. (1989b). Projeto de dispositivos constitucionais. In F. Fernandes, O desafio educacional (pp. 252 - 261-yy). São Paulo: Cortez, Autores Associados., p. 69)

O processo constituinte, a participação popular e a educação

Instalada a constituinte, na primeira etapa os trabalhos ocorreram nas 24 subcomissões temáticas, entre as quais havia a Subcomissão de Educação, Cultura e Esportes. As reuniões das Subcomissões eram abertas ao público e, no caso da educação, houve nesta etapa 4 audiências públicas, em que foram ouvidas cerca de 15 entidades da área (Pinheiro, 1995Pinheiro, M. F. P. (1995), O público e o privado na educação: um conflito fora de moda?. In: FÁVARO, O.(org.), A educação nas constituições brasileiras: 1923-1988. São Paulo: Cortez.). Assim, entramos no Núcleo Temático B6 6 Entre os textos que compõem esse Núcleo temático estão: A fragmentação do processo constituinte (abr. 1987); Invasão e desafio (maio 1987); Controvérsias sobre a Constituição (jul. 1987); O jeitinho brasileiro (ago. 1987), 1989; Controle burguês do processo constituinte (jul.-ago. 1987); Crise de poder e Assembleia Nacional Constituinte (jul. 1987); Educação e Constituição (ago. 1987); A constituição em perspectiva (ago. 1987); Um depoimento curto e grosso (ago. 1987); A nova conciliação (ago.-set. 1987), 1989; Artigos publicados em Fernandes (1989b). , em que predominam nas intervenções de Florestan Fernandes o destaque às dificuldades do processo constituinte, a importância da participação popular e as disputas no tema da educação, com foco nos problemas e formas de encaminhamento na Subcomissão de Educação, Cultura e Esportes e na fase seguinte relativa à Comissão Temática VIII.

Em seu discurso em 23 de abril de 1987 na ANC, durante o período em que estavam ativas as subcomissões, o deputado Florestan Fernandes fala da importância e legitimidade da manifestação dos professores na Constituinte:

… Pela primeira vez, vieram [palmas das galerias] e sentimos o palpitar do coração do povo brasileiro respondendo às palavras dos oradores que defenderam a causa da educação. É preciso que se entenda a luta dos professores, a amargura dessa luta, a humilhação dessa luta. Aqueles que dão tudo de si para educar filhos de outros pais, aqueles que sacrificam o seu tempo, o seu ser, para reproduzir o conhecimento, para criar uma sociedade democrática dentro de um mundo rústico e selvagem, são reduzidos a um salário de fome, são tratados como miseráveis, não encontram quem os ouça, nem entre os donos das escolas particulares, nem no Estado, proprietário das escolas públicas, nem mesmo no Governador biônico do Distrito Federal, um homem ilustrado mas que, ao mesmo tempo, deslustra a sua condição de intelectual ao se recusar a entender o significado dessa greve e a necessidade de dar fim a esta situação que estamos vivendo aqui. Os professores levantaram a sua bandeira, os professores mostraram como se defende a educação. A educação se defende como se se estivesse travando uma guerra. Eles estão dentro de trincheiras. Estão lutando como militantes. Não estão lutando só pelos seus salários: estão lutando por nós, estão lutando pelos nossos filhos e pelo futuro do Brasil.

(Notas taquigráficas da Constituinte de 1987-1988Notas taquigráficas da Constituinte de 1987-1988. http://www2.camara.leg.br/deputados/discursos-e-notas-taquigraficas
http://www2.camara.leg.br/deputados/disc...
)

Nesta fase foi intensa a participação da população e fica evidente nas intervenções de Florestan as esperanças depositadas no exercício dessa pressão popular, como força imprescindível para romper o nó górdio das reformas democráticas:

Enfim, vemos o mundo pelo avesso! O Povo inunda a ANC e abarrota as subcomissões de propostas, de informações e de sonhos. O subterrâneo sobe à tona em todo o seu esplendor e sublinha o quanto o nosso Estado é pobre e o nosso Governo, mesquinho.

O processo constituinte, abrindo-se às pressões da sociedade civil, libera a vitalidade do movimento democrático da sociedade brasileira e conduz à destruição do que subsiste do complexo ditatorial.

(Invasão e desafio [maio 1987] citado por Fernandes, 1989bFernandes, F. (1989b). Projeto de dispositivos constitucionais. In F. Fernandes, O desafio educacional (pp. 252 - 261-yy). São Paulo: Cortez, Autores Associados., p. 88-89)

Na subcomissão da educação, as principais questões foram a exclusividade da destinação das verbas públicas para o ensino público e sua laicidade. O lobby privatista se colocava frontalmente contra a tese da exclusividade de verbas públicas para a escola pública, assim como os representantes das escolas confessionais atacavam a laicidade do ensino público. Ainda nas subcomissões foi possível uma acentuada participação do movimento social organizado e houve também uma forte participação do Fórum Nacional em Defesa da Escola Pública junto aos constituintes e nas plenárias. Esse engajamento fortaleceu os deputados progressistas que conseguiram derrotar o relatório privatista do senador João Calmon, relator da Subcomissão (Cardoso, 1989Cardoso, M. L. (1989). Educação: Ensino público e gratuito para todos. In C. Michiles, Cidadão Constituinte. Rio de Janeiro: Paz e Terra.).

Na segunda etapa, os trabalhos ocorreram nas oito Comissões Temáticas. A Educação foi tratada na Comissão VIII, juntamente com os temas Comunicação, Ciência e tecnologia, Cultura, Esportes, Família, Menor e Idoso. As discussões se concentraram com mais intensidade na questão das comunicações se sobrepondo aos assuntos educacionais que se deslocaram para a questão da gratuidade do ensino; ademais, houve uma atuação mais coesa do grupo privatista (Cardoso, 1989Cardoso, M. L. (1989). Educação: Ensino público e gratuito para todos. In C. Michiles, Cidadão Constituinte. Rio de Janeiro: Paz e Terra.) A atuação da sociedade civil nesta fase foi diferente, deixando de ocorrer por meio da participação nos debates e passando a se dar pelas pressões exercidas junto aos constituintes. Os dois anteprojetos apresentados pela Comissão foram derrotados na votação. Neste caso, caberia ao relator da Sistematização a sua elaboração (Pinheiro, 1995Pinheiro, M. F. P. (1995), O público e o privado na educação: um conflito fora de moda?. In: FÁVARO, O.(org.), A educação nas constituições brasileiras: 1923-1988. São Paulo: Cortez.).

As intervenções de Florestan Fernandes expressaram as dificuldades vividas na Comissão VIII, com destaque para os seguintes artigos: Educação e Constituição (ago. 1987]); A constituição em perspectiva (ago. 1987); Um depoimento curto e grosso (ago. 1987) (Fernandes, 1989bFernandes, F. (1989b). Projeto de dispositivos constitucionais. In F. Fernandes, O desafio educacional (pp. 252 - 261-yy). São Paulo: Cortez, Autores Associados.). O Deputado relata sobre a impossibilidade de haver acordo na Comissão VIII e sobre o fatídico dia 14 de junho de 1987, quando não foi possível extrair desta fase da ANC um anteprojeto com o tema da educação, em razão das estratégias construídas pelo grupo defensor dos interesses privados e das escolas confessionais:

Não é possível ignorar os fatos nus e crus. Depois que a cisão rachou a subcomissão de Ciência, Tecnologia e Comunicação, graças à coragem da relatora Cristina Tavares e de seus companheiros, parecia que a Comissão da Família, da Educação, Cultura e Esportes, da Ciência e Tecnologia e da Comunicação, seria poupada da repetição da tragédia como comédia. No entanto, tal expectativa não ocorreu. Os 36 “conservadores” compeliram os “27 progressistas” a travar uma luta política ingrata e inglória, que deslustra a Assembleia Nacional Constituinte. Um autoritarismo que reproduz as lições da ditadura militar e um mandonismo digno dos antigos senhores de escravos ou da velha oligarquia da Primeira República na verdade serviram de biombo para esconder uma acintosa pirataria. Reeditou-se, com todo o vigor, o anti-republicanismo dos defensores das escolas privadas, que tornou a colocar na mesma trincheira o mercantilismo da indústria do ensino e o farisaísmo das escolas confessionais católicas e surgiu, em todo o esplendor, o poder incontrolável dos novos “barões assaltantes”, que comandam a indústria da comunicação de massa em associação com o governo. O botim, apesar de farto, era pequeno demais principalmente para os apetites que disputavam as presas, os recursos públicos para a educação e as concessões estatais dos serviços de rádio e televisão. Isso tornou impossível “um acordo de cavalheiros” entre os interessados diretos. Em consequência, o “consenso” entre os constituintes ficou para mais tarde. O anteprojeto e o substitutivo do relator, deputado Artur da Távola, foram enjeitados, e o deputado não pôde, sequer, apresentar um novo substitutivo, que acolheria a imensa área de consenso indiscutível e os acordos viáveis entre as partes contrárias. Os líderes e os mandantes da maioria “conservadora” não queriam um acordo. Pretendiam uma rendição incondicional, que assegurasse o atendimento de suas exigências, em sua essência um assalto ao erário público e uma afronta à soberania da Nação, condenada a uma forma predatória de acumulação capitalista subcolonial.

O dia 14 de junho de 1987 ficará em minha memória como um dia de lembranças amargas, de esperanças sepultadas e de um ponto final.

(Um depoimento curto e grosso [ago. 1987] citado por Fernandes, 1989bFernandes, F. (1989b). Projeto de dispositivos constitucionais. In F. Fernandes, O desafio educacional (pp. 252 - 261-yy). São Paulo: Cortez, Autores Associados., p. 133)

“Transição transada” e os limites da “Nova República”

Passou-se, então, à comissão de Sistematização, em 15 de junho de 1987, inserida no Quadro 1, no Item C: Transição Transada e os limites da “Nova República”. Os termos “transição transada” e o questionamento em torno da existência de novidade no período que se inicia por meio das eleições indiretas para presidente da república qualificam a maneira como Florestan Fernandes faz a leitura dos desafios sociais e políticos impostos ao país nos anos de 1980. Tal maneira de ver os problemas nacionais permeia o conjunto dos textos do autor analisados neste Item C e constituem título de dois de seus livros publicados à época: Nova República?, de 1985, em que é demonstrada a maneira pela qual o novo regime é extraído de uma “costela da ditadura”, e Que tipo de república?, de 1986, que reúne um conjunto de artigos publicados no Jornal Folha de S.Paulo, em que, segundo Antonio Candido (2007, p. 20)Candido, A. (2007). Apresentação. In F. Fernandes, Que tipo de república? (2ª ed.). Globo., Fernandes realiza “severa análise da Nova República no que ela tem de despistamento, continuidade e falsa promessa”.

Nos textos que tratam da Constituinte, no período da comissão de Sistematização, Florestan retoma sua análise acerca da “transição transada”, configurada aos moldes dos interesses dos militares, de forma “lenta, gradual e segura” após a não aprovação da emenda Calmon, que propunha o retorno das eleições diretas para a presidência da república e a formação da Aliança Democrática que levou à escolha de Tancredo Neves para presidência da república pelo Colégio Eleitoral7 7 Destacam-se Núcleo temático C a partir da problemática da transição transada e dos limites da “Nova República”: A Nova conciliação (ago.-set. 1987); A “transição democrática”: novas perspectivas? (out. 1987); Adeus à transição (out. 1987); O apogeu do processo constituinte (nov. 1987); Ser ou não ser estadista (nov. 1987); O teste parlamentar (abr. 1988); As contradições do centrão (abr. 1988); A qualidade da Constituição (maio 1988); Esperanças ameaçadas (maio 1988); Artigos publicados em Fernandes (1989a). . Para Florestan Fernandes, a ANC, embora difícil, seria uma nova oportunidade para “romper o nó górdio da democracia” e superar a “transição transada”. Na fase final da Constituinte, o desafio se mostrou inviável após a mudança do Regimento pelo “Centrão”:

A ANC não está funcionando sob práticas democráticas e pluralistas. Ela se afastou de procedimentos constitucionais democráticos e pluralistas, e enveredou por onde não deveria jamais ter entrado: o favorecimento dos poderosos e a negligência dos que são tidos como impotentes. As negociações que atualizam a politicalha tradicionalista e o politicismo viciado devem ser proscritas.

O nosso sonho – o grande sonho do povo – seria que a partir desta ANC nós poríamos um ponto final nos resíduos da ditadura e na “transição transada”, e forjaríamos o ponto de partida para a formação de uma nova sociedade.

(A nova conciliação [ago.-set. 1987] citado por Fernandes, 1989aFernandes, F. (1989a). A constituição inacabada: Vias históricas e significado político. São Paulo: Estação Liberdade., p. 137)

Em dois dos textos desta fase foi possível verificar que Florestan Fernandes recorre ao seu conceito de “resistência sociopática à mudança” para explicar a maneira como os setores conservadores se expressam na Constituinte, no momento em que ficam claras as tentativas de evitar uma democratização ampla da sociedade brasileira: “… As manobras do Centrão desmascaram qual é o compromisso dos partidos da ordem e dos políticos profissionais com a resistência à mudança na sociedade brasileira. …” (Derrota as esquerdas? [dez. 1987] citado por Fernandes, 1989aFernandes, F. (1989a). A constituição inacabada: Vias históricas e significado político. São Paulo: Estação Liberdade., p. 189). Em Quadro político atual (abr. 1988), Fernandes (1989a)Fernandes, F. (1989a). A constituição inacabada: Vias históricas e significado político. São Paulo: Estação Liberdade. volta a afirmar que uma minoria implacavelmente reacionária, resistente à mudança de forma sociopática, era a responsável por emperrar os avanços na ANC.

Neste momento crítico da ANC, Florestan Fernandes (1989a, p. 245)Fernandes, F. (1989c). O desafio educacional. São Paulo: Cortez; Autores Associados. afirma que seria necessário passar à luta para evitar retrocessos: “O “Centrão” (ou “direitona”) prestou-se a esse papel, e agora a luta defensiva não está voltada para melhorar o projeto de constituição. Ela se volta para o mínimo: impedir a instauração do retrocesso crescente.” (O quadro político atual (abr. 1988) citado por Fernandes, 1989aFernandes, F. (1989a). A constituição inacabada: Vias históricas e significado político. São Paulo: Estação Liberdade., p. 245).

As manifestações mais enfáticas e extensas de Florestan Fernandes na temática educacional, numa defesa aguerrida da escola pública, laica e gratuita, são encontradas na fase da Sistematização em que a ameaça de retrocessos se colocam crescentemente. Em 25 de junho de 1987, Florestan Fernandes comenta as notícias que vinham dos jornais, destacando as ameaças que já se evidenciavam à exclusividade dos recursos públicos para a educação pública, e mais uma vez denuncia o que seria um ataque às possibilidades da democracia no Brasil:

Hoje sabemos que a Comissão de Sistematização resolveu escolher entre o chamado espírito progressista e o espírito conservador. Mas, a julgar pela notícia que li nos jornais, o espírito progressista entra como enfeite de bolo. Não há nenhuma dúvida que poderia ser pior, especialmente para quem como eu trabalhou na Comissão da Família, da Educação, Cultura e Esportes, Ciência e Tecnologia e da Comunicação e não logrou sequer ver o substitutivo aprovado. O que está acontecendo não é o pior desfecho, mas a notícia que vem num jornal, segundo a qual a exclusividade de recursos públicos para a escola pública teria sido eliminada e ter-se-ia introduzido o tráfico antídemocrático, anti-república e antieducacional de destinar à escola privada, comercial, mercantil ou confessional uma parte dos recursos públicos, de associar o Estado ao desenvolvimento do sistema público e, ao mesmo tempo, do sistema privado de ensino. Isso representa um golpe mortal no crescimento da democracia no Brasil.

(Notas taquigráficas da Constituinte de 1987-1988Notas taquigráficas da Constituinte de 1987-1988. http://www2.camara.leg.br/deputados/discursos-e-notas-taquigraficas
http://www2.camara.leg.br/deputados/disc...
)

Por ter participado do movimento em defesa da escola pública nos anos de 1950, tendo figurado como um dos participantes mais expressivos, Fernandes percebe o reaparecimento dos riscos vivenciados na elaboração da primeira Lei de Diretrizes e Bases. Estas intervenções do então deputado constituinte expressam um olhar privilegiado ao processo de elaboração da Nova Carta no que diz respeito aos dilemas educacionais, pois trata-se de um personagem com longa história de participação nos embates que se deram ao longo ao longo das três décadas anteriores:

… Não teremos um grande futuro se não conseguirmos travar um combate contra o analfabetismo dos jovens e dos adultos, se não vencermos a batalha contra a evasão escolar, se não conseguirmos ampliar a participação dos estratos pobres da população nos ensinos de 2° e 3° graus. O desmantelamento do sistema público de ensino começou graças à aprovação da Lei de Diretrizes e Bases, refeita por iniciativa de educadores que, naquele momento, poderíamos até chamar de “direita”, e que encontraram patrocínio de Carlos Lacerda para o texto que apresentaram.

A campanha de defesa da escola pública foi derrotada parcialmente, e vitoriosa parcialmente, porque impediu o pior. Mas, se os meus colegas constituintes compararmos dados, por exemplo, de um estudo que fiz sobre o ensino em 1940 com a situação do ensino hoje, verificarão que o crescimento do setor público foi ofuscado pelo crescimento privado. A indústria do ensino cresceu, o ensino confessional cresceu e, ao mesmo tempo, ocorreu uma deterioração do sistema público de ensino, que foi desmantelado em benefício do crescimento do setor privado e com recursos públicos. Esta é uma situação dramática, calamitosa e lamentável! Para muitos, parece ser o melhor sinal dos tempos, da implantação da democracia e de um espirito de liberdade. Mas, se formos ao fundo das coisas, veremos que a revolução democrática no Brasil está comprometida, e que esta Assembleia Nacional Constituinte falhou em sua principal missão, que consistia em revitalizar o sistema público de ensino e de amparar a revolução democrática num amplo processo de revolução educacional.

(Notas taquigráficas da Constituinte de 1987-1988Notas taquigráficas da Constituinte de 1987-1988. http://www2.camara.leg.br/deputados/discursos-e-notas-taquigraficas
http://www2.camara.leg.br/deputados/disc...
)

Em Educação e Constituição (ago. 1987), Florestan Fernandes retoma as lutas pelas reformas do ensino, especialmente as relativas à reforma universitária entre 1964 e 1968, ressaltando o papel das entidades que levaram à ANC a contribuição pedagógica que nasceu e amadureceu contra e sob o regime ditatorial. Nesse texto em especial, há o relato pormenorizado das faces da Igreja Católica. De um lado, sob influência da Teologia da Libertação, esta instituição atuava de maneira engajada na defesa dos indígenas e pela reforma agrária. Por outro, não perdeu sua face reacionária e obscurantista, já que “… se empenhou a fundo na preservação do terreno que já possui e na multiplicação de suas vantagens relativas contra o ensino público, laico e gratuito” (Fernandes, 1989bFernandes, F. (1989b). Projeto de dispositivos constitucionais. In F. Fernandes, O desafio educacional (pp. 252 - 261-yy). São Paulo: Cortez, Autores Associados., p. 121).

Em 14 de agosto de 1987 a sessão da ANC é dedicada à Educação. Neste momento se encontra o discurso mais longo, detalhado e enérgico de Florestan Fernandes, donde se extraiu a epígrafe deste texto. Neste dia, Florestan exalta a educação como o mais grave dilema social brasileiro, porque não o enfrentar significaria uma trágica reprodução das profundas iniquidades, citando o sociólogo alemão Karl Mannheim e resgatando a maneira como a questão aparece ao longo de nossa história. Segue um dos trechos, que, embora extenso, tem significativa pertinência para a análise que ora desenvolvemos:

Não sei quantos dos meus colegas leram Karl Mannheim sociólogo alemão, tido como sociólogo róseo, porque pertencia a uma ala muito moderada da social democracia. Ele costumava dizer que a educação é a principal técnica social da transformação da situação histórica existente. Pois essa técnica social de transformação da situação histórica existente não pode operar entre nós nessas condições. Isso nos põe diante da segunda questão fundamental – a educação. A Assembleia Nacional Constituinte não podia tomar uma atitude leviana, equívoca, fugidia, como acontece com relação à reforma agrária, à reforma urbana, à fome, à miséria, à saúde, à moradia. Com referência à educação, a Assembleia Nacional Constituinte estava diante de um dos seus principais problemas. Herdamos do Império e da Primeira República a educação como privilégio. Anísio Teixeira foi um dos combatentes desse tipo de pedagogia dos poderosos, dos privilegiados, mas essa pedagogia continua em vigor, apesar de hoje existir, em contraponto à pedagogia dos oprimidos. …

Depois da revolução da Aliança Liberal, uma revolução política, de 1930 para cá, a consolidação do sistema público de ensino se expandiu. Os pioneiros da educação nova exerceram influência notável na transformação da mentalidade pedagógica e, ao mesmo tempo, pensaram que podiam fazer no Brasil uma revolução burguesa na área da educação. Uma ilusão que muitos tiveram e ainda hoje muitos de nós cultivam. Chegaram a usar uma célebre frase inscrita no livro: “A Educação na Encruzilhada”, de Fernando de Azevedo, tomada de um líder político mineiro: “Façamos a revolução na escola antes que o povo a faça nas ruas”. No entanto, esse desenvolvimento começou a esboçar contornos de um sistema público de ensino. Vemos que em 1933, por exemplo, existiam 21.726 estabelecimentos de ensino público, com 1.739.613 estudantes matriculados. As escolas particulares, inclusive as confessionais, estavam nessa altura com 6.044 estabelecimentos, com 368.006 estudantes matriculados. Em 1945 – vejam o salto que se dá – já há 33.423 estabelecimentos oficiais de ensino, com uma matricula total de 2.740.755 estudantes. As escolas particulares cresceram bem menos, passando para 5.908 estabelecimentos de ensino, com uma matricula de 49.085 estudantes. A mesma tendência vai se reproduzir no ensino médio a partir da década de 60. O que ocorre diante dessa situação? É um fato evidente: o ensino público estava em expansão e, ao mesmo tempo, as escolas privadas e confessionais não conseguiam crescer. E qual era a condição para fazê-las crescer? Asfixiar o ensino público. Os pioneiros da educação nova tiveram a ideia de defender uma lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional e ajudaram a elaborar um projeto que contribuiria poderosamente para uma revolução educacional. No entanto, educadores católicos e representantes das escolas privadas elaboraram um substitutivo, apresentado ao Congresso Nacional em nome do Deputado Carlos Lacerda – e por aí se estabeleceram várias prioridades, várias precedências, em fins de 1961.

(Fernandes, 1988Fernandes, F. (1988). O processo constituinte. Brasília, DF: Câmara dos Deputados – Centro de Documentação e Informação., p. 29)

Nessas circunstâncias, o deputado constituinte expõe que da mesma maneira que a questão da educação pública se colocou na década de 1960, novamente ela se recoloca, com vantagem de aparecer agora no processo de elaboração de uma Constituição democrática, que esteve aberta à iniciativa popular:

Estamos realizando algo inteiramente novo na História do Brasil, estamos tentando elaborar uma Constituição democrática, com iniciativa popular, na tentativa de construir uma nova sociedade no País. Qual é a relação que a Assembleia Nacional Constituinte tem com esses problemas? Não se pode fazer um projeto ou um anteprojeto na área da educação sem perguntar quais são as tarefas educacionais na situação brasileira e qual é a posição que a Assembleia Nacional Constituinte deve ter diante dessas tarefas. Não se trata de entrar num terreno tão complexo como se se estivesse dando um mergulho numa piscina. Com toda a participação popular, com todo o cuidado que tivemos em nossa subcomissão, não contamos com um trabalho originário que tivesse refletido de maneira orgânica as tarefas educacionais que cabiam a esta Assembleia enfrentar e resolver. Devo dizer que o principal problema do nosso sistema de ensino é estabelecer um sistema de ensino comum.

(Fernandes, 1988Fernandes, F. (1988). O processo constituinte. Brasília, DF: Câmara dos Deputados – Centro de Documentação e Informação., p. 31)

Tratava-se de tarefa fundamental da ANC indagar e procurar respostas acerca da situação educacional brasileira e elencar, assim, suas tarefas nesse campo. Neste discurso, Florestan Fernandes propõe três conjuntos de prioridades pedagógicas, que só podem ser compreendidas em sua profundidade se concatenadas com a extensa obra do autor: (i) Garantia de igualdade efetiva de oportunidades educacionais; (ii) Valorização de professores e funcionários da escola; (iii) Autoemancipação pedagógica.

A primeira prioridade pedagógica dizia respeito à igualdade efetiva das oportunidades educacionais, em todos os níveis e graus do ensino, o que envolveria a garantia pelo Estado das condições financeiras, de transporte, de atendimento à saúde que proporcionassem a permanência na escola daqueles provenientes das famílias de baixa renda. Para cumprir este objetivo, o lema da “verba pública para escola pública” constituía-se condição essencial. Em todas as suas análises sobre o assunto, desde a década de 1950, Florestan Fernandes ressalta que os desafios educacionais brasileiros têm que ser vistos desde as condições reais relacionadas ao subdesenvolvimento do país que se expressa nos percentuais alarmantes de analfabetismo ao longo das décadas, mesmo nos momentos de significativo crescimento econômico. Por isso, em uma das propostas para os dispositivos constitucionais, Florestan Fernandes (1989c, p. 216)Fernandes, F. (2007). Que tipo de república? (2ª ed.). São Paulo: Globo. escreve que as entidades privadas “… e suas mantenedoras ou proprietários estão taxativamente excluídos do acesso aos recursos públicos destinados à educação escolarizada e de isenções ou concessões fiscais de qualquer natureza.”

Assim, quando Florestan Fernandes defende a igualdade de oportunidades, ele trata de um ideal de grande complexidade, que não poderia se restringir a patamares mínimos, ou seja, apenas à universalização do ensino primário. Tratava-se de “… estabelecer um polo popular e operário que compartilhe das mesmas garantias educacionais que se universalizaram nas classes médias e altas. Essa é uma revolução pedagógica strictu sensu” (Fernandes, 1989cFernandes, F. (1989c). O desafio educacional. São Paulo: Cortez; Autores Associados., p. 30).

O segundo conjunto de prioridades pedagógicas diz respeito ao valor social da escola, à valorização dos professores e funcionários. Ou seja, fazia-se premente a valorização dos agentes humanos da escola em vinculação ao enaltecimento do valor social da escola. Este ponto expressava a necessidade de condições dignas de trabalho para professores e funcionários, bem como apontava para a exigência de que a escola fosse uma comunidade democrática. Florestan em uma das propostas apresentadas para o texto constitucional, ainda na fase das Subcomissões, chega a descrever a configuração dos Conselhos Escolares, que deveriam ser compostos paritariamente por professores, alunos, funcionários e representantes das Associações de Pais (Fernandes, 1989bFernandes, F. (1989b). Projeto de dispositivos constitucionais. In F. Fernandes, O desafio educacional (pp. 252 - 261-yy). São Paulo: Cortez, Autores Associados.). A escola é vista desta maneira por ser o espaço onde se deve vivenciar a democracia, por meio da participação ativa dos agentes que a compõem nas decisões que lhe dizem respeito, uma vez que: “… Uma escola que não seja capaz de funcionar como comunidade educacional não educa professor, não educa estudante e não educa funcionário. Deseduca a todos” (Fernandes, 1989cFernandes, F. (1989c). O desafio educacional. São Paulo: Cortez; Autores Associados., p. 131). Assim, Florestan Fernandes se conecta com uma discussão totalmente nova numa Assembleia Nacional Constituinte no Brasil: a gestão democrática.

A “autoemancipação pedagógica” constitui o terceiro conjunto de prioridades pedagógicas, assim Florestan Fernandes afirma na sessão de 14 de agosto de 187: “… precisamos de autonomia escolar que esteja relacionada dialeticamente com a independência econômica, com a emancipação nacional e com a revolução democrática. Esses elementos são interagentes reiterativos. …”. A “autoemancipação pedagógica” adquire maior riqueza analítica se compreendida à luz do esforço interpretativo inovador que Florestan Fernandes empreendeu acerca do capitalismo dependente. Segundo Miriam Limoeiro Cardoso (1996)Cardoso, M. L. (1996). Florestan Fernandes: A criação de uma problemática. Estudos Avançados, 10(26), 89-128. https://dx.doi.org/10.1590/S0103-40141996000100014
https://doi.org/10.1590/S0103-4014199600...
, a sociologia de Florestan Fernandes funda um novo recorte para o estudo da sociedade brasileira, tomando como referência principal de sua análise não a sociedade nacional, mas, sim, o capitalismo moderno. Por esta via, desde os anos de 1950, Fernandes produz uma teoria segunda a qual a forma de integração da sociedade brasileira na civilização ocidental moderna se dá de maneira particular e específica configurando um capitalismo dependente, com ramificações econômicas, sociais, políticas e culturais. Nos textos de Florestan Fernandes sobre a reforma universitária durante os anos de 1960 este é o recorte do problema. Para o autor, a questão universitária no Brasil teria que ser pensada segundo uma ruptura com a dependência cultural em conexão com os objetivos de desenvolvimento autônomo da sociedade brasileira (Fernandes, 1975Fernandes, F. (1975). Universidade brasileira: Reforma ou revolução? São Paulo: Alfa-Ômega.). Do mesmo modo, ao longo da Constituinte, Florestan Fernandes reivindica a urgência de a educação brasileira ser permeada por relações criativas e criadoras a fim de responder às necessidades da realidade nacional. Em entrevista à revista Língua e Literatura, no início dos anos de 1980, Fernandes afirma:

… Os centros imperiais têm um núcleo, uma dinâmica própria e não se voltam para as nossas necessidades de conhecimento – eles se voltam para a necessidade da sua dominação cultural, do seu profissionalismo e de sua concepção de “cosmopolitismo na ciência”.

É nos imperioso escapar a essa dominação cultural. Isso, no campo da ciência, significa produzir conhecimentos básicos para nós, o que nós temos que saber? Nós vivemos nas condições especiais de um povo subdesenvolvido, subnutrido, de capitalismo dependente, que enfrenta as maiores dificuldades em termos de descolonização, de revolução nacional, de revolução democrática. É preciso usar a ciência em termos exigentes, para produzir um conhecimento de alto nível, de alta qualificação naquelas áreas que são vitais para nós; as outras, que sejam cultivadas nos “centros avançados de investigação.

(Fernandes, 1989cFernandes, F. (1989c). O desafio educacional. São Paulo: Cortez; Autores Associados., p. 192)

As questões fundamentais levantadas por Florestan Fernandes não se efetivaram; em especial, não foi obtida a exclusividade de verbas públicas para as escolas públicas. Segundo Leher (2012, p. 1167)Leher, R. (2012). Florestan Fernandes e a defesa da escola pública. Educação & Sociedade, 33(121), 1157-1173. https://doi.org/10.1590/S0101-73302012000400013
https://doi.org/10.1590/S0101-7330201200...
, o deputado constituinte apresentou 93 emendas, “… 46 relacionadas à educação, das quais 27 são de natureza conceitual ou sobre a organização da educação brasileira, sete de questões relativas à Ciência e Tecnologia (C&T) e três sobre a universidade”. Do total de emendas apresentadas, 34 foram aproveitadas no texto constitucional:

Entre elas destacam-se: a autonomia didático-científica, administrativa e financeira da universidade incluída no artigo 207 da Constituição; a destinação de parte da receita orçamentária dos Estados e do Distrito Federal a entidades de fomento à pesquisa científica e tecnológica, contida no parágrafo quinto do artigo 208; compromisso do Estado com a promoção do desenvolvimento científico, da autonomia e da capacitação tecnológica, refletida no artigo 18; a garantia de atendimento em creches e pré-escolas a todas as crianças de zero a seis anos de idade, reproduzido no artigo 208, inciso IV;

(Soares, 1997, p. 111)

Considerações finais

Ao acompanhar as intervenções de Florestan Fernandes no período da constituinte foi possível captar os momentos dramáticos da ANC. Ao longo dos textos, percebeu-se o movimento entre as perspectivas abertas e as esperanças frustradas, os impasses da subcomissão e da comissão que tratou da temática educacional, os embates entre os interesses público e privado, a partir do olhar singular de um deputado constituinte que já tinha uma interpretação profunda sobre a formação social brasileira e o lugar dos desafios educacionais no capitalismo dependente e periférico. Estabeleceu-se assim uma relação intensa entre o político e o intelectual preocupado com os temas educacionais.

Conceitos construídos por Florestan Fernandes ao longo de sua participação na Campanha Nacional em Defesa da Escola Pública no final dos anos de 1950 reaparecem em seus textos e iluminam a realidade: quando se fala em “Resistência Sociopática à mudança”, vêm à tona as dificuldades de superação dos aspectos arcaicos e relativos à manutenção do status quo na sociedade brasileira. Em tom muitas vezes professoral, os discursos do deputado constituinte traziam explicações históricas para os dilemas sociais que se repunham na cena política do país, após anos de ditadura militar. Uma vez que, segundo ele: “Terminou o baile de máscaras. Burgueses e proletários defrontam-se em uma nova cena histórica” (Fernandes, 1986Fernandes, F. (1986). Nova república? (3ª ed.). Rio de Janeiro: Zahar., p. 36).

A luta de classes no Brasil passava, então, por momentos decisivos, abria-se a possibilidade de romper o nó górdio da democracia e superar a “transição transada”. Nesse processo, a luta pela educação pública adquiria caráter estratégico, compondo o rol das revoluções dentro da ordem (Fernandes, 1981Fernandes, F. (1981). O que é revolução? São Paulo: Brasiliense.).

As três prioridades pedagógicas elencadas por Florestan Fernandes se articulam dentro desta estratégia. Sua defesa enfática da necessidade de recursos públicos para as escolas públicas se justificava como ferramenta basilar a fim de conformar as condições para a presença dos trabalhadores, excluídos e os oprimidos, dos incultos ou semicultos nas malhas da rede escolar e, assim, viabilizar a igualdade das oportunidades educacionais (Fernandes, 1989cFernandes, F. (1989c). O desafio educacional. São Paulo: Cortez; Autores Associados.).

Outro eixo seria o do fortalecimento substantivo da democracia dentro da escola, entendendo este espaço como pequeno núcleo em que se vive e aprende a democracia. Florestan Fernandes tinha uma visão acurada a respeito do peso do passado em nossa formação social, bem como da manutenção do atraso que remetiam ao despotismo e ao particularismo das classes possuidoras e privilegiadas. Por isso, é possível desprender dessa defesa da democracia dentro da escola a busca pela edificação de importante ferramenta de resistência e defesa da escola pública. Os agentes que a compõem – estudantes, funcionários e professores – adquiririam, desse modo, maior voz e força política dentro e para fora do ambiente escolar.

A ANC como ponto culminante de uma década em que emergiram as manifestações populares em defesa das reformas democráticas teve em Florestan Fernandes, junto a outros nomes importantes, um lutador exemplar. De alto quilate intelectual, levou à constituinte uma vida dedicada à compreensão do Brasil e envidou esforços para colocar na ordem do dia as tarefas da educação pública em um país dependente e subdesenvolvido. Elaborou 96 emendas para o texto constitucional, 34 delas compuseram o texto final.

Apesar disso, o desfecho da ANC determinou uma Constituição em certo sentido moderna e avançada e que, ao mesmo tempo, consolidou a ordem existente, não rompendo o nó górdio da democracia. Segundo o autor: “… Por cima da Constituição ou através dela, prevalece a classe como instrumento de dominação econômica, social e política, bem como de conformação ideológica dos de baixo aos interesses e aos valores dos de cima” (Fernandes, 1989cFernandes, F. (1989c). O desafio educacional. São Paulo: Cortez; Autores Associados., p. 284). Assim, sua avaliação é de que as conquistas para a esquerda foram relativas, já que houve acordos com o centro em que foram aceitos castrações e arranjos que impediram as respostas às exigências prementes da nossa situação histórica.

  • 2
    Normalização, preparação e revisão textual: Marina Teles – revisao@tikinet.com.br
  • 3
    Os textos que foram analisados e estão organizados no Quadro 1 serão caracterizados com título e data original de publicação ao final de cada citação direta em que figurarem para favorecer a sua identificação pelo(a) leitor(a).
  • 4
  • 5
    Estão também no Núcleo temático A os seguintes textos de Florestan (1989a) que foram publicados no Pasquim São Paulo e Folha de S.Paulo: Congresso Constituinte sem sonhos (dez. 1986); Pacto Social e desmobilização (jan. 1987); A crise (fev. 1987); Nem ditador nem Kerensky (mar. 1987); Autofagia (mar. 1987).
  • 6
    Entre os textos que compõem esse Núcleo temático estão: A fragmentação do processo constituinte (abr. 1987); Invasão e desafio (maio 1987); Controvérsias sobre a Constituição (jul. 1987); O jeitinho brasileiro (ago. 1987), 1989; Controle burguês do processo constituinte (jul.-ago. 1987); Crise de poder e Assembleia Nacional Constituinte (jul. 1987); Educação e Constituição (ago. 1987); A constituição em perspectiva (ago. 1987); Um depoimento curto e grosso (ago. 1987); A nova conciliação (ago.-set. 1987), 1989; Artigos publicados em Fernandes (1989b)Fernandes, F. (1989b). Projeto de dispositivos constitucionais. In F. Fernandes, O desafio educacional (pp. 252 - 261-yy). São Paulo: Cortez, Autores Associados..
  • 7
    Destacam-se Núcleo temático C a partir da problemática da transição transada e dos limites da “Nova República”: A Nova conciliação (ago.-set. 1987); A “transição democrática”: novas perspectivas? (out. 1987); Adeus à transição (out. 1987); O apogeu do processo constituinte (nov. 1987); Ser ou não ser estadista (nov. 1987); O teste parlamentar (abr. 1988); As contradições do centrão (abr. 1988); A qualidade da Constituição (maio 1988); Esperanças ameaçadas (maio 1988); Artigos publicados em Fernandes (1989a)Fernandes, F. (1989a). A constituição inacabada: Vias históricas e significado político. São Paulo: Estação Liberdade..

Referências

  • Arruda, M. A. do N. (1995). A sociologia no Brasil: Florestan Fernandes e a “escola paulista”. In S. Miceli (Org.), História das ciências sociais no Brasil (Vol. 2, pp. 107-232). São Paulo: Editora Sumaré; Fapesp.
  • Candido, A. (1987). Amizade com Florestan. In M. A. D’Incao, O saber militante: Ensaios sobre Florestan Fernandes (pp. 31-38). São Paulo: Paz e Terra.
  • Candido, A. (2007). Apresentação. In F. Fernandes, Que tipo de república? (2ª ed.). Globo.
  • Cardoso, M. L. (1989). Educação: Ensino público e gratuito para todos. In C. Michiles, Cidadão Constituinte Rio de Janeiro: Paz e Terra.
  • Cardoso, M. L. (1996). Florestan Fernandes: A criação de uma problemática. Estudos Avançados, 10(26), 89-128. https://dx.doi.org/10.1590/S0103-40141996000100014
    » https://doi.org/10.1590/S0103-40141996000100014
  • D’Incao, M. A. (1987). O saber militante: Ensaios sobre Florestan Fernandes São Paulo: Paz e Terra.
  • Fernandes, F. (1966). Educação e sociedade no Brasil São Paulo: Dominus.
  • Fernandes, F. (1975). Universidade brasileira: Reforma ou revolução? São Paulo: Alfa-Ômega.
  • Fernandes, F. (1976). A sociologia numa era de Revolução Social (2ª ed.). Rio de Janeiro: Zahar.
  • Fernandes, F. (1980). A sociologia no Brasil Petrópolis: Vozes.
  • Fernandes, F. (1981). O que é revolução? São Paulo: Brasiliense.
  • Fernandes, F. (1986). Nova república? (3ª ed.). Rio de Janeiro: Zahar.
  • Fernandes, F. (1988). O processo constituinte Brasília, DF: Câmara dos Deputados – Centro de Documentação e Informação.
  • Fernandes, F. (1989a). A constituição inacabada: Vias históricas e significado político São Paulo: Estação Liberdade.
  • Fernandes, F. (1989b). Projeto de dispositivos constitucionais. In F. Fernandes, O desafio educacional (pp. 252 - 261-yy). São Paulo: Cortez, Autores Associados.
  • Fernandes, F. (1989c). O desafio educacional São Paulo: Cortez; Autores Associados.
  • Fernandes, F. (2006). A revolução burguesa no Brasil (5ª ed.). São Paulo: Globo.
  • Fernandes, F. (2007). Que tipo de república? (2ª ed.). São Paulo: Globo.
  • Fernandes, F. (2014). Florestan Fernandes na Constituinte: Leituras para a reforma política São Paulo: Fundação Perseu Abramo; Expressão Popular.
  • Leher, R. (2012). Florestan Fernandes e a defesa da escola pública. Educação & Sociedade, 33(121), 1157-1173. https://doi.org/10.1590/S0101-73302012000400013
    » https://doi.org/10.1590/S0101-73302012000400013
  • Mazza, D. (2003). A produção sociológica de Florestan Fernandes e a problemática educacional: Uma leitura (1941 – 1964) Taubaté: Cabral Editora e Livraria Universitária.
  • Michiles, C. (1989). Cidadão constituinte Rio de Janeiro: Paz e Terra.
  • Notas taquigráficas da Constituinte de 1987-1988 http://www2.camara.leg.br/deputados/discursos-e-notas-taquigraficas
    » http://www2.camara.leg.br/deputados/discursos-e-notas-taquigraficas
  • Pinheiro, M. F. P. (1995), O público e o privado na educação: um conflito fora de moda?. In: FÁVARO, O.(org.), A educação nas constituições brasileiras: 1923-1988 São Paulo: Cortez.
1
Editor responsável: André Luiz Paulilo. https://orcid.org/0000-0001-8112-8070

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    06 Maio 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    28 Out 2019
  • Revisado
    06 Abr 2020
  • Aceito
    26 Maio 2020
UNICAMP - Faculdade de Educação Av Bertrand Russel, 801, 13083-865 - Campinas SP/ Brasil, Tel.: (55 19) 3521-6707 - Campinas - SP - Brazil
E-mail: proposic@unicamp.br