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A formação dos(as) trabalhadores(as) da saúde na construção de um acesso à saúde integral, equânime e universal à população trans 1 1 Editor responsável: Silvio Donizetti de Oliveira Gallo. https://orcid.org/0000-0003-2221-5160 2 2 Normalização, preparação e revisão textual: Vera Lúcia Fator Gouvêa Bonilha - verah.bonilha@gmail.com 3 3 Apoio: Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) – Bolsa de doutorado.

La formación de los trabajadores de la salud en la construcción de un acceso integral, equitativo y universal a la salud para las personas trans

Resumo

Identifica-se uma carência na produção científica sobre a formação dos(as) trabalhadores(as)da saúde para atuar com pessoas transgênero, transexuais e travestis, população que enfrenta barreiras como discriminação, desrespeito ao nome social e dependência ao diagnóstico de transexualismo para acessar o Sistema Único de Saúde (SUS). Este artigo, a partir da categoria enação de Francisco, Varela, analisa 25 entrevistas gravadas em áudio, produzidas por duas pesquisas qualitativas, e conclui que somente processos de formação não limitados à transmissão de informações possibilitarão a criação de um processo de trabalho em saúde que afirme o acesso da população trans aos serviços de saúde de forma integral, equânime e universal.

Palavras-chave
Formação; Enação; Trabalhadores da saúde; Pessoas Trans; Acesso à saúde

Resumen

Se identificó una falta de producción científica sobre la capacitación de trabajadores de la salud para trabajar con transexuales y travestis, una población que enfrenta barreras como la discriminación, la falta de respeto por el nombre social y la dependencia del diagnóstico de transexualidad para acceder al Sistema Único de Salud (SUS). En este artículo, a partir de 25 entrevistas grabadas en audio producido por dos investigaciones cualitativas, analizamos, desde la categoría de enacción de Francisco Varela, que solo los procesos de capacitación no limitados a la transmisión de información permitirán la creación de un proceso de trabajo de salud que afirme el acceso de la población trans a los servicios de salud de manera integral, equitativa y universal.

Palabras clave
Formación; Enacción; Trabajadores de la salud; Personas trans; Acceso a la salud

Abstract

We identified a lack of scientific production on the training of health personnel to work with transgender people, a population that faces barriers such as discrimination, disrespect for the chosen name, and dependence on the diagnosis of transsexualism to access the Unified Health System (SUS). In this article, from 25 interviews recorded in audio during two qualitative studies, we analyze, from the category of enaction of Francisco Varela, that only a training processes not limited to the transmission of information will enable the creation of a health work process that affirms the access of the Trans population to integral, equitable, and universal health services.

Keywords
Training; Enaction; Health Workers; Transgender People; Health Care Access

Introdução

A literatura tem apresentado a transformação do corpo empreendida pela população trans (travestis e transexuais) como necessidade em saúde (Almeida & Murta, 2013Almeida, G.; & Murta, D. (2013). Reflexões sobre a possibilidade da despatologização da transexualidade e a necessidade da assistência integral à saúde de transexuais no Brasil. Sexualidad, Salud y Sociedad, (14), 380-407.; Arán & Murta, 2009Arán, M., & Murta, D. (2009). Do diagnóstico de transtorno de identidade de gênero às redescrições da experiência da transexualidade: uma reflexão sobre gênero, tecnologia e saúde. Physis: Revista de Saúde Coletiva, 19(1), 15-41.; Bento, 2006Bento, B. (2006). A (re)invenção do corpo: sexualidade e gênero na experiência transexual. Garamond.; Rocon et al., 2016Rocon, P. C., Rodrigues, A., Zamboni, J., & Pedrini, M. D. (2016). Dificuldades vividas por pessoas trans no acesso ao Sistema Único de Saúde. Ciência & Saúde Coletiva, 21(8), 2517-2526.; Romano, 2008Romano, V. F. (2008). As travestis no Programa Saúde da Família da Lapa. Saúde e Sociedade, 17(2), 211-219.). Nessa direção, o Processo Transexualizador do Sistema Único de Saúde (SUS), criado em 2008 e ampliado em 2013, se constitui em importante serviço de saúde para as demandas da população trans, se delineando como principal ação estatal de promoção e cuidado com a saúde trans específica no Brasil.

Contudo, o que percebemos com a literatura é que, apesar dos esforços estatais, sejam eles pela criação do Processo Transexualizador, ou pelo lançamento de políticas importantes como a Política Nacional de Saúde Integral de Gays, Lésbicas, Bissexuais, Travestis e Transexuais (Brasil, 2011Brasil. (2011). Ministério da Saúde. Portaria GM/MS n.º 2836, de 01 de dezembro de 2011. Institui, no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS), a Política Nacional de Saúde Integral de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais (Política Nacional de Saúde Integral LGBT). Diário Oficial da União.) e a Carta dos Direitos dos(das) Usuários(as) do SUS (Brasil, 2006Brasil. (2006). Ministério da Saúde. Carta dos direitos dos usuários da saúde. Brasília: Ministério da Saúde.) que garantem o acesso livre de discriminação e o direito ao uso do nome social, as pessoas trans continuam tendo seu acesso aos serviços de saúde, da atenção primária à alta complexidade, se mostrando seletivo por uma série de embaraços. Tais embaraços podem ser traduzidos em desrespeito ao nome social, em episódios de discriminação promovidos por trabalhadores(as) dos mais diversos serviços e equipamentos em saúde, bem como no diagnóstico de transexualismo (Rocon et al., 2018Rocon, P. C.; Zamboni, J., Sodré, F., Rodrigues, A., & Roseiro, M. C. F. B. (2018). O que esperam pessoas trans do Sistema Único de Saúde?. Interface - Comunicação, Saúde, Educação, 22(64), 43-53.; Romano, 2008Romano, V. F. (2008). As travestis no Programa Saúde da Família da Lapa. Saúde e Sociedade, 17(2), 211-219.).

O diagnóstico de transexualismo, segundo a Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde (CID - 10), junto com o diagnóstico de disforia de gênero, segundo o Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM - V), ao reforçar a patologização da transexualidade, dificulta o acesso aos serviços de saúde para transformação dos corpos nos processos transexualizadores (Almeida & Murta, 2013Almeida, G.; & Murta, D. (2013). Reflexões sobre a possibilidade da despatologização da transexualidade e a necessidade da assistência integral à saúde de transexuais no Brasil. Sexualidad, Salud y Sociedad, (14), 380-407.; Bento, 2006Bento, B. (2006). A (re)invenção do corpo: sexualidade e gênero na experiência transexual. Garamond.) e contribui para a marginalização social dessa população (Butler, 2009Butler, J., & Rios, A. (2009). Desdiagnosticando o gênero. Physis: Revista de Saúde Coletiva, 19(1), 95-126.).

Nesse contexto de dificuldades no acesso aos serviços de saúde, o que se afere é abandono de tratamentos importantes em andamento, absenteísmo, resistência na busca de serviços de saúde em caso de adoecimento, bem como processos de sofrimento, como efeitos dos usos de silicone industrial e automedicação por hormônios (Rocon et al., 2016Rocon, P. C., Rodrigues, A., Zamboni, J., & Pedrini, M. D. (2016). Dificuldades vividas por pessoas trans no acesso ao Sistema Único de Saúde. Ciência & Saúde Coletiva, 21(8), 2517-2526.; Romano, 2008Romano, V. F. (2008). As travestis no Programa Saúde da Família da Lapa. Saúde e Sociedade, 17(2), 211-219.), tornando as pessoas trans as que mais enfrentam dificuldades em acessar os serviços de saúde no Brasil dentre a população lésbica, gays, bissexuais, travestis e transexuais - LGBT (Mello et al., 2011Mello, L., Perilo, M., Braz, C. A. de, & Pedrosa, C. (2011). Políticas de saúde para lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais no Brasil: em busca de universalidade, integralidade e equidade. Sexualidad, Salud y Sociedad (9), 7-28.).

Diante de reflexões sobre como intervir nessa realidade, estudos como os de Sampaio e Coelho (2012)Sampaio, L. L. P., & Coelho, M. T. A. D. (2012). Transexualidade: aspectos psicológicos e novas demandas ao setor saúde. Interface – Comunicação, Saúde, Educação, 16(42), 637-649., Sehnem et al. (2017)Sehnem, G. D., Rodrigues, R. L., Lipinski, J. M., Vasquez, M. E. D., & Schmidt, A. (2017). Assistência em saúde às travestis na atenção primária: do acesso ao atendimento. Revista de Enfermagem UFPE, 11(4), 1676-1684., Souza et al. (2015)Souza, M. H. T. de., Malvasi, P., Signorelli, M. C., & Pereira, P. P. G. (2015). Violência e sofrimento social no itinerário de travestis de Santa Maria, Rio Grande do Sul, Brasil. Cadernos de Saúde Pública, 31(4), 767-776. e Spizzirri, Ankier e Abdo (2017)Spizzirri, G., Ankier, C., & Abdo, C. H. N. (2017). Considerações sobre o atendimento aos indivíduos transgêneros. Diagnóstico e Tratamento, 22(4), 176-179. sugeriram a formação de trabalhadores(as) da saúde como uma opção profícua para agir no problema do acesso de pessoas trans aos serviços de saúde. Nesse artigo, vislumbramos problematizar o entendimento de formação que hegemonicamente tem sido apontada como caminho para desmantelar as barreiras que impedem a população trans de acessar os serviços de saúde. Formação não é um conceito sui generis e, nessa direção, ainda que permeada por “boas intenções”, propostas formativas, que se restrinjam a transmitir informações e representar gênero, sexualidade e transexualidade, não serão suficientes para produzir um trabalho com essa população que viabilize, com integralidade, universalidade e equidade, acesso em saúde da atenção básica ao Processo Transexualizador.

Metodologia

As questões aqui propostas tomam por análise a experiência dos pesquisadores na condução de duas pesquisas empíricas. Parte dos dados, produzido em duas pesquisas qualitativas com entrevistas semiestruturadas, comporão o texto em função do objetivo aqui proposto: analisar a possibilidade da formação de trabalhadores(as) da saúde como estratégia para construir um acesso à saúde de forma integral, equânime e universal pela população trans (pessoas transgêneras, transexuais e travestis). As pesquisas foram aprovadas pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal do Espírito Santo.

A primeira. realizada em 2013, entrevistou 15 pessoas trans, tencionando aferir os desafios para acessar serviços de saúde da atenção primária ao processo transexualizador. A segunda ocorreu em 2017 e entrevistou 10 mulheres transexuais, 9 que haviam realizado cirurgias de redesignação sexual e 1 em acompanhamento por um serviço transexualizador, com o propósito de analisar desafios para acessar o processo transexualizador, bem como serviços para cuidado em saúde nos pós-operatório das cirurgias de transgenitalização. Ambas as pesquisas aconteceram no estado do Espírito Santo e tiveram, como metodologia de seleção das participantes, as indicações pelas redes de amizade e solidariedade trans ou bola de neve e, como delimitação do número de participantes, a saturação teórica. Todas as participantes concederam as entrevistas, mediante assinatura do Termo de Consentimento Livre-Esclarecido.

O sigilo das participantes foi garantido: na primeira, por meio da atribuição de nomes fictícios sorteados pelos pesquisadores; e na segunda, optou-se pela não identificação, por ser pequena a população trans que realizou cirurgias de redesignação sexual no ES, e assim não se correr o risco de atribuir um nome que poderia identificar alguma ex-usuária do serviço, mesmo que não participante da pesquisa.

Neste artigo, propomos uma nova problematização dos dados ancorada nas proposições de Francisco Varela sobre conhecer por enação, refletindo que, para transformar o cotidiano dos serviços de saúde vivenciados pela população trans, faz-se necessária uma política cognitiva conciliada com a dimensão criadora do processo de trabalho, apostando nos aprendizados que emergem da experiência concreta do trabalho com a saúde e com a população trans.

Resultados e Problematizações

No meio de uma encruzilhada para formação de trabalhadores(as) da saúde, entre a técnica e a conscientização política

A literatura tem apontado a formação como caminho para intervir na realidade de discriminação sofrida pela população trans nos serviços de saúde. Segundo Spizzirri et al. (2017)Spizzirri, G., Ankier, C., & Abdo, C. H. N. (2017). Considerações sobre o atendimento aos indivíduos transgêneros. Diagnóstico e Tratamento, 22(4), 176-179., “diversos estudos procuraram identificar como é realizada a abordagem das particularidades desse grupo de pessoas pelos profissionais da saúde. Essas pesquisas relatam atitudes que poderiam parecer ou serem consideradas discriminatórias e fóbicas” (p. 176). Nessa direção, os autores apontam que as necessidades em saúde da população trans solicitam profissionais capacitados, apostando num discurso de especialização de trabalhadores(as) diante da saúde trans. Sampaio e Coelho (2012)Sampaio, L. L. P., & Coelho, M. T. A. D. (2012). Transexualidade: aspectos psicológicos e novas demandas ao setor saúde. Interface – Comunicação, Saúde, Educação, 16(42), 637-649. indicam a capacitação, afirmando que,

Quanto às concepções e expectativas em relação aos profissionais da Psicologia, os entrevistados reivindicaram que os mesmos estejam capacitados, a fim de não promoverem um maior desconforto, sentimentos de exclusão e discriminação por desconhecimento ou curiosidade, o que, por vezes, pode gerar uma tentativa de promover uma cura ou convencimento da desistência das cirurgias e outras intervenções, sob o argumento da seriedade e irreversibilidade das mesmas.

(p. 646)

Arán e Murta (2009)Arán, M., & Murta, D. (2009). Do diagnóstico de transtorno de identidade de gênero às redescrições da experiência da transexualidade: uma reflexão sobre gênero, tecnologia e saúde. Physis: Revista de Saúde Coletiva, 19(1), 15-41., ao tratarem da efetivação do processo transexualizador no Brasil, do mesmo modo apontam a ideia de capacitar para efetivar. Segundo as autoras, “Nota-se que um dos principais desafios para implementação desta modalidade de assistência é a capacitação profissional da equipe interdisciplinar e medidas de humanização, para que se possa garantir um atendimento de qualidade e livre de discriminação” (p. 17). Sehnem et al. (2017)Sehnem, G. D., Rodrigues, R. L., Lipinski, J. M., Vasquez, M. E. D., & Schmidt, A. (2017). Assistência em saúde às travestis na atenção primária: do acesso ao atendimento. Revista de Enfermagem UFPE, 11(4), 1676-1684. discutem que um dos embaraços para garantir a melhoria do acesso da população trans, sobretudo na atenção primária em saúde, é “a falta de qualificação dos profissionais de saúde para o atendimento a esta parcela da população” (p. 1682). Souza et al. (2015)Souza, M. H. T. de., Malvasi, P., Signorelli, M. C., & Pereira, P. P. G. (2015). Violência e sofrimento social no itinerário de travestis de Santa Maria, Rio Grande do Sul, Brasil. Cadernos de Saúde Pública, 31(4), 767-776. sugerem que, “Talvez, um primeiro passo seja repensar a formação dos profissionais que atendem às travestis, principalmente, a formação dos profissionais de saúde. Quem sabe se multiplicarmos meios de debater temas como sexualidade, gênero e diferença” (p. 774).

Nas entrevistas realizadas em 2013 (Rocon et al., 2018Rocon, P. C.; Zamboni, J., Sodré, F., Rodrigues, A., & Roseiro, M. C. F. B. (2018). O que esperam pessoas trans do Sistema Único de Saúde?. Interface - Comunicação, Saúde, Educação, 22(64), 43-53.), as participantes, ao serem questionadas sobre o que fariam se pudessem, para mudar a realidade vivida de discriminação nos serviços de saúde, foram enfáticas:

  • Palestras e seminários sobre diversidade sexual para todos que trabalham em Unidades Básicas de Saúde e hospitais. (Afrodite)

  • Pessoas capacitadas para atender às pessoas de qualquer forma pessoas. (Pandora)

  • Tinha que ter mais orientação sobre a diversidade sexual e a diferença para ser mais respeitado sobre a identidade de gênero e orientação sexual. (Efigênia)

Tanto a literatura como as participantes apontam a formação dos trabalhadores(as) da saúde como possibilidades para intervir nas barreiras de acesso vividas pelas pessoas trans aos serviços de saúde. Em vista disso, cabe questionar: não existem cursos de formações sobre saúde trans no Brasil? Por que as determinações da Política Nacional de Saúde Integral LGBT e da Carta dos Direitos dos(as) Usuários(as) do SUS sobre direito ao uso do nome social e atendimento livre de discriminação, publicadas respectivamente em 2009 e 2011, ainda não foram acolhidas nos cotidianos dos serviços de saúde? O problema que enfrentamos é a ausência de formação e informação para os trabalhadores(as)da saúde ou o modo de formá-los?

Não é demais lembrar que, ao longo dos últimos anos, têm surgido esforços políticos em intervir nessa realidade que passam pela formação de trabalhadores(as) da saúde para o trabalho com a população LGBT. Um interessante movimento foi a criação do curso sobre Política de Saúde LGBT, promovido pela Universidade Aberta do SUS (UNA-SUS) na modalidade EaD. O sítio do curso indica que o público-alvo são

profissionais de saúde, mas [tal perfil] se encontra aberto para qualquer profissional que deseja realizar suas ações de cuidado, promoção e prevenção, com qualidade, de forma equânime, garantindo à população LGBT acesso à saúde integral, melhorando, portanto, a saúde deste grupo populacional. (Brasil, 2019Brasil. (2019). Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Universidade Aberta do SUS. Política Nacional LGBT. http://unasus.uerj.br/cursos-em-andamento/lgbt.
http://unasus.uerj.br/cursos-em-andament...
)

E como objetivo registra que,

ao final do curso, espera-se que o participante, com competência e conhecimentos científicos, humanísticos e ético-sociais, compreenda a importância ao acesso equitativo, proporcionando maior qualidade de vida para as pessoas pertencentes aos grupos LGBT e garantindo a efetivação dos seus direitos humanos.

(Brasil, 2019Brasil. (2019). Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Universidade Aberta do SUS. Política Nacional LGBT. http://unasus.uerj.br/cursos-em-andamento/lgbt.
http://unasus.uerj.br/cursos-em-andament...
)

O que percebemos é uma aposta na capacitação, na especialização e na qualificação, e, assim, no acúmulo e na transmissão de informações e representações sobre gênero, sexualidade e transexualidade para trabalhadores(as) da saúde, com fins de aquisição de habilidades e competências. Tais propostas formativas têm oscilado entre a transmissão de informações técnicas ou a busca pela produção de uma consciência política com o propósito de produzir uma disposição afetiva com a população trans. Ambas as propostas são calcadas em perspectivas de um certo cognitivismo pautado na representação em sentido forte, que “estabelece que a atividade cognitiva se explica pela hipótese segundo a qual um sistema age a partir de representações internas” (Varela, s/dVarela, F. (s/d). Conhecer: as ciências cognitivas, tendências e perspectivas. Instituto Piaget., p. 79).

Varela (1993Varela, F. (1993). O reencantamento do concreto. Cadernos de subjetividade, 1(1), 71-86., s/d)Varela, F. (s/d). Conhecer: as ciências cognitivas, tendências e perspectivas. Instituto Piaget. nos oferece todo um caminho de problematização sobre mudanças nas ciências cognitivas para pensarmos os movimentos do exercício do conhecer-aprender. Acreditando na tese de que “a informação deve aparecer não como uma ordem intrínseca, mas como uma ordem que emerge das próprias atividades cognitivas” (Varela, s/dVarela, F. (s/d). Conhecer: as ciências cognitivas, tendências e perspectivas. Instituto Piaget., p. 11), o autor empreende sua análise sobre as ciências e as tecnologias da cognição.

Nas abordagens de um cognitivismo com representação em sentido forte, a “única solução para explicar a inteligência e a intencionalidade reside na justificação de que a cognição consiste em agir na base de representações que têm uma realidade física sob forma de código simbólico num cérebro ou máquina” (Varela, s/dVarela, F. (s/d). Conhecer: as ciências cognitivas, tendências e perspectivas. Instituto Piaget., p. 31). Assim,

O critério de avaliação da cognição é sempre a representação adequada de um mundo exterior predeterminado. Falamos em elementos de informação que correspondem a propriedades do mundo (como as formas e as cores), ou em resoluções de problemas bem definidos que implicam um mundo bem elaborado.

(Varela, s/dVarela, F. (s/d). Conhecer: as ciências cognitivas, tendências e perspectivas. Instituto Piaget., p. 72)

Nessa perspectiva, o mundo é compreendido como preestabelecido, cuja existência é prévia ao sujeito e à atividade cognitiva, de que Varela (s/d.,Varela, F. (s/d). Conhecer: as ciências cognitivas, tendências e perspectivas. Instituto Piaget. 1993)Varela, F. (1993). O reencantamento do concreto. Cadernos de subjetividade, 1(1), 71-86. discorda, uma vez que, dessa forma, as concepções de aprendizagem estão assentadas nas ideias de transmissão de solução de problemas e aprendizagem por representação/imitação. Aprender e formar significariam produzir uma adaptação do sujeito cognoscente ao mundo. Para Varela (1993, trata-se de um modelo “que desconsidera, portanto, a fluidez da experiência viva e vivida” (p. 74).

É por essas leituras sobre a cognição que parecem ter caminhado as ideias de formação como capacitação técnica com fins de aquisição de habilidades, competências e adaptabilidade a contextos, cuja presença tem sido hegemônica na formação acadêmica dos(as) trabalhadores(as) da saúde. Segundo Kastrup (2013)Kastrup, V. (2013) Um mergulho na experiência: uma política para a formação dos profissionais de saúde. In Capazzolo, A., Casetto, S. J. & Henz, A. (orgs.), Clínica comum: itinerários de uma formação em saúde (pp. 151-162). Hucitec.,

A ênfase tem sido na formação baseada na informação. Grande parte do meio acadêmico ainda trabalha com a dicotomia teoria-prática, bem como com a ideia de que a prática deve ser a aplicação de uma teoria previamente conhecida. Por outro lado, a formação atual que é hegemônica é pautada nos especialismos e na ênfase diagnóstica, baseada no domínio das informações veiculadas no DSM e no CID. Essa direção tem afastado os estudantes da experiência clínica, sobretudo da aprendizagem da observação, de escuta e da convivência com o paciente, que requer tempo, paciência e exercício constante de uma atenção sensível e delicada.

(pp.152-153)

A formação em ciências da saúde tem sido hegemonicamente pautada pela transmissão de representações do corpo, normas de seu funcionamento biológico (biologia, anatomia, fisiologia, histologia, etc.) e normas de seus desvios patológicos (patologia, parasitologia, infectologia, etc.). A partir de diversas disciplinas, apresentadas de maneira fragmentada sob a égide de especialismos, essa perspectiva formativa vislumbra transmitir protocolos clínicos (representações) universais em função da intervenção sobre processos patológicos com fins do resgate dos corpos às normas biológicas de funcionamento.

Esses enfoques formativos podem estar contribuindo para o embaraço promovido pelo diagnóstico como requisito para o acesso ao processo transexualizador. Sobre o acompanhamento no processo transexualizador, na pesquisa de 2017, as participantes disseram:

  • eles cobram é você ter uma vivência feminina. Eles falam que eles não operam homem. ... Eu já estava cansada de falar as mesmas coisas. Você tinha que provar que era mulher, que você era mulher na cabeça... Na maneira de vestir, em tudo. (Participante 7)

  • E em relação à pessoa ele [profissional] olha muito isso da pessoa ter passagem também. Eu acho. Acredito que sim. Mas ele estuda a pessoa, ele analisa também a pessoa. Como... A conversa da pessoa. Eu acho que ele dá uma observada na pessoa como um todo. A aparência conta. (Participante 5)

  • Foi difícil. Quatro anos. .... Mas ele [profissional] mesmo falava: -“Não. Você tem que estar melhorando”. ... A aparência eu acho que é isso... Eu acho que eles olham muito assim, a questão social mesmo. Se você vai ter uma aceitação. Eu acho que é isso também... Eu não concordo. (Participante 4)

  • E aqui no hospital uma pessoa que tem barba no rosto não vai operar.... A Profissional mesmo fala: “Você é tão feminina. Você já pode operar”. Não é isso que faz uma pessoa operar, não é o físico, é a cabeça. Você entendeu? Então muitas meninas que estavam no plano que não eram femininas, que não tinham condições de se cuidar, a Psicóloga achava que não estavam preparadas porque não eram femininas. Entendeu? (Participante 6)

  • Às vezes a gente chegava com as meninas lá e ele até corrigia. Porque se é mulher tem que ser mulher. Entendeu? Então ele relatava muito isso”. (Participante 8)

As participantes permitem resgatar a discussão realizada por Bento (2008, 2006) sobre a dramática busca por uma transexualidade verdadeira. Segundo a autora, não há um único átomo de neutralidade no processo de diagnóstico e, que, na verdade, o que se almeja encontrar – a transexualidade verdadeira – é produzido pelo próprio diagnóstico, que a autora ainda aponta ser embasado por estereótipos sobre ser homem e mulher, fundados no gênero binário e na heterossexualidade compulsória. Em diálogo com a autora, Rocon et al. (2016)Rocon, P. C., Rodrigues, A., Zamboni, J., & Pedrini, M. D. (2016). Dificuldades vividas por pessoas trans no acesso ao Sistema Único de Saúde. Ciência & Saúde Coletiva, 21(8), 2517-2526. nos auxiliam refletir que, numa sociedade em que o gênero é compreendido de maneira binária, a partir das genitálias e da sexualidade sob suposto destino natural à heterossexualidade, logo, os corpos trans que desses padrões se desviam serão considerados doentes. Assim, as buscas por uma transexualidade verdadeira estão assentadas nas representações transmitidas pelos manuais diagnósticos CID-10 e DSM-V, que patologizam as identidades trans, apresentando pressupostos passíveis de serem aplicados nos cotidianos da saúde.

Os dispositivos diagnósticos se constituem em verdadeiros checklists, como pontuou Caponi (2014)Caponi, S. (2014). O DSM-V como dispositivo de segurança. Physis: Revista de Saúde Coletiva, 24(3), 741-763., de modo que os(as) trabalhadores(as) da saúde são guiados por representações, desconsiderando as experiências dos(as) usuários(as) com as transexualidades, como apontam as participantes, ao dizerem discordar das representações produzidas sobre elas, produzindo assim uma seletividade no acesso aos serviços de saúde a todas que não se enquadrarem nas representações requeridas: “uma pessoa que tem barba no rosto não vai operar”; “- você é tão feminina. Você já pode operar”; “Eles falam que eles não operam homem”.

Essa problemática pode ser efeito de uma formação fundamentalmente calcada numa perspectiva biomédica. Camargo Jr. (2005)Camargo Jr., K. R. (2005). A biomedicina. Physis: Revista de Saúde Coletiva, 15(Suppl.), 177-201. delineia três proposições a respeito da biomedicina:

Dirige-se à produção de discursos com validade universal, propondo modelos e leis de aplicação geral, não se ocupando de casos individuais: caráter generalizante; os modelos aludidos acima tendem a naturalizar as máquinas produzidas pela tecnologia humana, passando o Universo a ser visto como uma gigantesca máquina, subordinada a princípios de causalidade linear traduzíveis em mecanismos: caráter mecanicista; a abordagem teórica e experimental adotada para a elucidação das leis gerais do funcionamento da máquina universal pressupõe o isolamento de partes, tendo como pressuposto que o funcionamento do todo é necessariamente dado pela soma das partes: caráter analítico.

(pp. 178-179)

A biomedicina apresenta aos(às) trabalhadores(as) da saúde em formação um corpo e um mundo predeterminados, cuja invariabilidade é assegurada por uma normalidade ditada por leis biológicas universais de funcionamento. Nessa perspectiva de formação, prega-se ser preciso conhecer e transmitir informações sobre normas e leis universais que regulam o funcionamento dito normal para o corpo e o mundo, a fim de aplicá-las, quando necessário, ao combate ao concebido como desvios patológicos e sociais.

Talvez possamos acrescentar uma quarta proposição a respeito da biomedicina. Trata-se de uma leitura cognitivista que, ao representar o corpo e o mundo sob perspectivas biológicas naturalizantes, invariáveis e universalistas, produzem processos formativos transmissores de informações. Assim, formar é capacitar, normatizar, apresentar modos de intervenções diante dos processos de saúde-doença, de maneira que intervir significará sempre imitar uma intervenção, uma representação por aplicação de protocolos e condutas terapêuticas controladas. Tal ótica de formação se assemelha à modelagem, à formatação de um modo de trabalhar com a saúde que se pretende padronizado e reprodutível.

Da formação pela informação é que se desdobram as ideias de capacitação técnica e capacitação política, também compreendidas como conscientização, ou aquisição de competências humanísticas e ético-sociais como discorreu o curso da UNA-SUS. Barros (1997)Barros, M. E. B. (1997). Formação em educação: serialização ou singularização? Educação, Subjetividade e Poder, 4(4), 63-70. problematiza a presença dos discursos que afirmam uma capacitação tecnicista (com exagero e hegemonia da técnica) ou uma conscientização política. Para a autora “o primeiro sentido está impregnado da ideia de habilidade a ser adquirida. O segundo, pela ideia de que a consciência crítica possibilita que ... possam interferir nos processos sociais podendo desarranjar a ordem que aí está” (p. 64).

Por vezes acreditamos que os embaraços oriundos do encontro entre trabalhadores(as) da saúde e pessoas trans são resultados da ausência de capacitação técnica, pensando serem as demandas em saúde da população trans muito recentes na tabela de procedimentos ofertados pelo sistema de saúde. Logo, era preciso capacitar – transmitir informações – para que aqueles soubessem como intervir sobre os corpos trans (procedimentos cirúrgicos, protocolos de hormonioterapia, produção de laudos clínicos, psiquiátricos, psicológicos, etc.). Bem como, quando debruçados sobre os problemas de discriminação presente nos cotidianos de saúde, novamente temos recorrido a transmitir informação, sob discursos que se propõem críticos dos processos de exclusão e produção de desigualdades, que vislumbravam apresentar, por uma dada compreensão sobre conscientização política, comportamentos a serem imitados (respeito ao nome social, identidade de gênero e orientação sexual), sob uma ideia de ruptura com a ordem de gênero e sexualidade vigente. Talvez chegamos a tais conclusões por serem de fácil apreensão e pensamento.

Contudo, dessas perspectivas de formação, podemos destacar o surgimento de dois grandes problemas: o primeiro, culpabilização dos(as) trabalhadores(as) – ora sob discurso de incapacidade técnica, ora acusando-os de inumanos, cruéis, perversos, maledicentes no processo de trabalho; o segundo, ao serem formados pela transmissão de representações aplicáveis, não abrirão espaço nos processos formativos para os aprendizados advindos da experiência concreta do processo de trabalho em saúde. Portanto, impossibilita-se criar novas técnicas, protocolos e cotidianos para os cuidados com a saúde da população trans.

Formação pela ação, romper com dicotomias, criando saídas pelo meio entre a formação para técnica e a conscientização política

A despeito das problematizações aqui produzidas em torno das compreensões hegemônicas sobre capacitação técnica ou conscientização política, o que se pretende não é lançá-las ao limbo, mas entendê-las como insuficientes para a criação de modos de gerir e trabalhar com usuários(as) trans na saúde, que enfrentem a realidade de dificuldades no acesso à saúde. Larrosa (2017)Larrosa, J. (2015). Tremores: escritos sobre experiências. Autêntica. aponta que necessitamos dos “experts, porque podem nos ajudar a melhorar as práticas. Os críticos, porque continua sendo necessário que a educação lute contra a miséria, contra a desigualdade, contra a competitividade, contra o autoritarismo” (p. 36).

Precisamos da técnica, que sejam elaborados e aprimorados protocolos clínicos e técnicas cirúrgicas em favor das necessidades específicas em saúde por transformação do corpo vividas pela população trans. Também almejamos ideais políticos e que continuemos a problematizar a violência, as desigualdades e os sofrimentos/adoecimentos produzidos pelas desigualdades de gênero, pelos binarismos dos gêneros e pela heterossexualidade compulsória. Todavia, ao apostar que, na formação de trabalhadores(as) da saúde, a técnica ou a conscientização política bastam-se em si para resolver os problemas do acesso à saúde vivenciados pela população trans, incorre-se no risco de afirmar o tecnicismo, como se a transmissão e o acúmulo de informações fossem suficientes para enfrentar as barreiras ao acesso aos serviços de saúde por essa população. Com base nas pesquisas entendemos que não.

O que desejamos afirmar é a impossibilidade de realizar os feitos anteriores, desconsiderando a experiência concreta dos(as)trabalhadores(as)da saúde dos processos transexualizadores, de forma que não basta consumir um conjunto de informações para aplicá-las no trabalho com a saúde trans, mas sim, criá-las, produzi-las nos cotidianos em saúde por um aprendizado pela ação, pela produção de um coletivo entre trabalhadores(as) e usuários(as), de um comum pela indissociabilidade entre gestão e cuidado com ampliação da comunicação entre os atores pela transversalidade.

As mesmas participantes que, em 2017, disseram sobre como as equipes envolvidas no processo diagnóstico do processo transexualizador as representavam – e como tais representações foram determinantes no acesso aos serviços do processo transexualizador, ao narrarem os sentidos produzidos por elas em torno da transexualidade e dos procedimentos realizados num serviço transexualizador, após terem realizado cirurgia de redesignação sexual – afirmaram:

  • Eu não me sentia doente, eu me sentia incompleta. Por mais que eu estivesse desse jeito que eu estou, por mais feminina, quando eu olhava no espelho parecia que eu voltava à época que eu era menino. Era uma coisa, assim, eu não sei explicar, era uma falta, não era doença. (Participante 6)

  • Eu acho doente um nome muito pesado. Eu acho que a cirurgia ajudou a consertar uma coisa que a natureza negou. Que a mãe natureza... Não é que negou... Deixou pra gente aprender. Eu acho doença um nome um pouco pesado. ... Mas eu acho que eles põem doença porque quando se fala em doença o preconceito diminui. (Participante 7)

  • Eu me sinto mulher hoje. Com a vagina. Porque tem penetração. E eu sinto prazer. Ser mulher é um conjunto de pequenas coisas. (Participante 7)

  • Eu me sinto mais mulher depois da cirurgia. Eu me sinto mais confiante, eu mais livre, mais confortável. Antes eu não ficava pelada na frente de ninguém, hoje eu já fico. (Participante 6)

  • Na minha cabeça eu já era mulher. Eu me tornei mulher pra me relacionar com outras pessoas. Aí eu acho que as pessoas, os homens, começam a me enxergar de outra maneira. A minha cabeça era essa. Mulher. Sempre fui. Tanto é que me incomodava ter o pênis no meio das pernas. Oh! Como eu sofri com aquele pênis, na hora sexual, e também na hora de guardar. Doía. Não era agradável. Eu sempre fui mulher na cabeça. É por causa dessas questões culturais, e o fetiche também do homem, que tem né. Pelo homem não entender que transexual é transexual e travesti é travesti, eles viam uma menina que era pré-operada, ela não era operada ainda, era pré-operada, eles achavam que era travesti. (Participante 5)

Rocon et al. (2020)Rocon, P. C., Sodré, F., Rodrigues, A., Barros, M. E. B. de., G.S., Pinto., & Roseiro, M. C. F. B. (2020). Vidas após a cirurgia de redesignação sexual: Sentidos produzidos para gênero e transexualidade. Ciência & Saúde Coletiva, 25(6), 2347-2356. apontam que os sentidos dos(as) trabalhadores(as) da saúde em relação à transexualidade e aos procedimentos do processo transexualizador como, por exemplo, as cirurgias de redesignação sexual, têm sido importantes barreiras para acesso da população trans, “na medida em que tais sentidos são produzidos sob a matriz binária e heterossexual para os gêneros, patologizando assim as transexualidades” (s/p).

O que vemos com as participantes é a inexistência de uma transexualidade verdadeira, na medida em que os sentidos que produzem para os procedimentos transexualizadores experimentados atravessam buscas pela liberdade de seus corpos pela nudez, relações sexuais, uso de determinadas vestimentas, em suma, estratégia de construção das condições de aparecimento no mundo dos gêneros. Tal inexistência também é aferida, tendo em vista que, ao serem cobradas sob quesitos de aparência, as usuárias vão adequando suas narrativas e performances corporais às solicitações da equipe multiprofissional em busca dos laudos que garantam acesso aos serviços, como mostrou a participante 8, ao dizer:

A profissional de cara não quis me dar o laudo não, aí ela foi conversando comigo. Eu fui bem positiva nas palavras, bem segura, só que ela ficou com o pé atrás, mas depois ela me deu o laudo. Eu acho que é porque eu falo demais, aí acabei convencendo.

Rocon et al. (2017)Rocon, P. C., Zamboni, J., Sodré, F., Rodrigues, A., & Roseiro, M. C. F. B. (2017). (Trans)formações corporais: reflexões sobre saúde e beleza. Saúde e Sociedade, 26(2), 521-532., ao analisarem divergências nas interpretações sobre estratégias para modificações dos corpos – hormônios e silicone industrial – entre pessoas trans e trabalhadores(as) da saúde, verificaram que, para a população trans que trabalha com sexo,

O uso dos hormônios, com ou sem acompanhamento médico, e as aplicações de silicone industrial são sinônimos de saúde e vitalidade, na medida em que auxiliam na construção do corpo bonito em sintonia com um corpo de mulher rentável na pista.

(p. 528)

Nessa direção, Rocon et al. (2020)Rocon, P. C., Sodré, F., Rodrigues, A., Barros, M. E. B. de., G.S., Pinto., & Roseiro, M. C. F. B. (2020). Vidas após a cirurgia de redesignação sexual: Sentidos produzidos para gênero e transexualidade. Ciência & Saúde Coletiva, 25(6), 2347-2356. apontam ser necessário compreender e inserir os sentidos que a população trans “produz sobre os procedimentos biomédicos para transformação do corpo, suas identidades e as relações de gênero no acompanhamento multiprofissional oferecido pelos serviços transexualizadores” (s/p) com o objetivo de minimizar as barreiras de acesso impostas pelo diagnóstico fundado nas representações da transexualidade. Para tal, cumpre experimentar estratégias formativas que considerem a experiência concreta, pelas quais “formar é criar outros modos de viver-trabalhar, aprender, desaprender e não instrumentalizar o outro com novas tecnologias ou, ainda, dar consciência crítica ao outro” (Dias, 2012Dias, R. (2012). Formação inventiva como possibilidade de deslocamentos. In Dias, R. (org.), Formação inventiva de professores (pp. p.25-41). Rio de Janeiro: Lamparina., p. 36).

Com Kastrup (2012Kastrup, V. (2012) Conversando sobre políticas cognitivas e formação inventiva. In Dias, R. (org.), Formação inventiva de professores (v. 1. pp. 52-60). Lamparina., 2013Kastrup, V. (2013) Um mergulho na experiência: uma política para a formação dos profissionais de saúde. In Capazzolo, A., Casetto, S. J. & Henz, A. (orgs.), Clínica comum: itinerários de uma formação em saúde (pp. 151-162). Hucitec., 2015)Kastrup, V., Tedesco, S., & Passos, E. (2015). Políticas da Cognição. Sulina., percebemos que falar em formação pela experiência não pode ser interpretado como apenas uma escolha dentre diferentes modelos teórico-metodológicos, mas, decerto, “um modo específico de relação com o conhecimento, com o mundo e consigo mesmo” (2012, p. 56). Dessa forma, o problema do conhecer não se restringe a debates ou decisões acerca de paradigmas técnico-científicos, mas, como pontua Kastrup (2012)Kastrup, V. (2012) Conversando sobre políticas cognitivas e formação inventiva. In Dias, R. (org.), Formação inventiva de professores (v. 1. pp. 52-60). Lamparina., envolve uma atitude, uma ação diante de si e do mundo, apontando Francisco Varela como importante intercessor para pensar a cognição como devir.

Varela (s/dVarela, F. (s/d). Conhecer: as ciências cognitivas, tendências e perspectivas. Instituto Piaget., 1993)Varela, F. (1993). O reencantamento do concreto. Cadernos de subjetividade, 1(1), 71-86., analisando as ciências cognitivas, propõe uma abordagem pautada no conhecer pela ação, que aposta na codeterminação entre mundo e sujeito cognoscente, a qual nomeará por abordagem enativa (enação) da cognição. Para o autor,

a preocupação geral de uma abordagem enactiva da percepção não é determinar como algum mundo independente do sujeito que percebe vai ser reconstruído; trata-se, sim, de determinar quais os princípios comuns ou conexões lícitas entre os sistemas sensorial e motor que irão explicar como a ação pode ser orientada perceptivamente em um mundo dependente de um sujeito percipiente. Essa preocupação central da abordagem enactiva situa-se em oposição à visão convencionada de que a percepção é basicamente um registro das informações ambientais existentes, com a finalidade de reconstruir verdadeiramente um pedaço do mundo físico. A realidade não é projetada como algo dado: ela é dependente do sujeito da percepção, não porque ele a constrói por um capricho, mas porque o que se considera um mundo relevante é inseparável da estrutura percipiente. ... Segundo essa abordagem, então, a percepção não está simplesmente embutida e confinada no mundo ao redor; ela também contribui para a enacção desse mundo ao redor.

(pp.79-80)

Essa perspectiva de análise sobre as ciências cognitivas preocupa-se em fazer “predominar o conceito da acção sobre o da representação” (Varela, s/dVarela, F. (s/d). Conhecer: as ciências cognitivas, tendências e perspectivas. Instituto Piaget., p. 74), nos indicando uma abordagem de conhecer o mundo, no instante em que o produzimos, não num enfoque construtivista, mas sim, de coemergência. Conhecemos o mundo, porque coemergimos com ele. Assim, conhecemos e produzimos o mundo em relação de codeterminação, não havendo, portanto, a reconstituição de um mundo anterior à atividade cognitiva pela percepção. Aqui, a noção de representação corresponderá à interpretação do estado do mundo (Varela, s/dVarela, F. (s/d). Conhecer: as ciências cognitivas, tendências e perspectivas. Instituto Piaget.). Há uma inversão da atitude representacionista, “Restando a representação como um caso particular da enação. [...] uma ampliação do conceito de cognição, transformando-o num sistema complexo em que a representação, incluída ao preço de seu enfraquecimento e mesmo de sua subversão, coexiste com os breakdowns” (Kastrup, 1999Kastrup, V. (1999). A invenção de si e do mundo: uma introdução do tempo e do coletivo no estudo da cognição. Papirus., p. 145).

Pela abordagem enativa, só é possível conhecer pela ação, uma prática, uma intervenção, um fazer-emergir com o mundo. Para a doutrina da enação de Varela (1993Varela, F. (1993). O reencantamento do concreto. Cadernos de subjetividade, 1(1), 71-86., s/d)Varela, F. (s/d). Conhecer: as ciências cognitivas, tendências e perspectivas. Instituto Piaget., além de uma percepção que seleciona os estímulos por sua sensibilidade, ou seja, uma percepção implicada, conhecemos o mundo por uma ação corporificada, “enactado através de nosso histórico de acoplamento estrutural” (Varela, 1993Varela, F. (1993). O reencantamento do concreto. Cadernos de subjetividade, 1(1), 71-86., p. 86).

As pistas de Dias (2011Dias, R. (2011). Deslocamentos na formação de professores: aprendizagem de adultos, experiência e políticas cognitivas. Lamparina., 2012)Dias, R. (2012). Formação inventiva como possibilidade de deslocamentos. In Dias, R. (org.), Formação inventiva de professores (pp. p.25-41). Rio de Janeiro: Lamparina., Kastrup (1999Kastrup, V. (1999). A invenção de si e do mundo: uma introdução do tempo e do coletivo no estudo da cognição. Papirus., 2012Kastrup, V. (2012) Conversando sobre políticas cognitivas e formação inventiva. In Dias, R. (org.), Formação inventiva de professores (v. 1. pp. 52-60). Lamparina., 2013Kastrup, V. (2013) Um mergulho na experiência: uma política para a formação dos profissionais de saúde. In Capazzolo, A., Casetto, S. J. & Henz, A. (orgs.), Clínica comum: itinerários de uma formação em saúde (pp. 151-162). Hucitec., 2015)Kastrup, V., Tedesco, S., & Passos, E. (2015). Políticas da Cognição. Sulina. e Varela (1993Varela, F. (1993). O reencantamento do concreto. Cadernos de subjetividade, 1(1), 71-86., s/d)Varela, F. (s/d). Conhecer: as ciências cognitivas, tendências e perspectivas. Instituto Piaget. propõem pensarmos em aprendizagem e formação inventiva, ao tratarem de uma formação baseada na experiência concreta, na produção de conhecimento pela ação e não apenas pela transmissão de informação.

Para discorrer sobre sua proposta para pensar numa aprendizagem inventiva, Kastrup (1999Kastrup, V. (1999). A invenção de si e do mundo: uma introdução do tempo e do coletivo no estudo da cognição. Papirus., 2015)Kastrup, V., Tedesco, S., & Passos, E. (2015). Políticas da Cognição. Sulina. nos dá o exemplo do aprendiz a flautista, o qual, para aprender a manusear tal instrumento, necessitará acoplar seu corpo ao instrumento, agenciar-se a ele e não se adequar à flauta. A autora nos oferece a leitura da aprendizagem como experimentação, invenção e criação de si e do mundo, e não como adaptação ou imitação com fins da obtenção de um saber, habilidade ou competência. Para a autora,

aprender é, antes de tudo, ser capaz de problematizar, ser sensível às variações que têm lugar na nossa cognição presente. ... Não se pode, portanto, falar em aprender algo previamente existente. O que eu aprendo só surge com o meu aprender.

(Kastrup, 2015Kastrup, V., Tedesco, S., & Passos, E. (2015). Políticas da Cognição. Sulina., pp. 206-207)

Kastrup (2012)Kastrup, V. (2012) Conversando sobre políticas cognitivas e formação inventiva. In Dias, R. (org.), Formação inventiva de professores (v. 1. pp. 52-60). Lamparina. traz as suas discussões sobre aprendizagem inventiva para o seio do que nomeia política da cognição, marcando a aprendizagem inventiva como posição no mundo. Por essas reflexões, a autora discorre que “o aprender começa como uma experiência de problematização, de invenção de problemas ou de posição de problemas. E envolve também a invenção de mundo. Não é questão de adaptação a um mundo preexistente” (p. 53).

Rosimeri Dias (2011)Dias, R. (2011). Deslocamentos na formação de professores: aprendizagem de adultos, experiência e políticas cognitivas. Lamparina. afirma que, “para colocar o problema da formação no âmbito do conhecer, é necessário avançar nos limites postos por teorias que o situam em suas condições universais” (p. 58). Percorrendo as pistas de Varela nas discussões sobre enação e Kastrup com suas proposições sobre cognição e aprendizagem inventiva, a autora nos oferece em suas análises a ideia de formação inventiva. Dias (2012)Dias, R. (2012). Formação inventiva como possibilidade de deslocamentos. In Dias, R. (org.), Formação inventiva de professores (pp. p.25-41). Rio de Janeiro: Lamparina. afirma que a formação inventiva possui como matéria-prima uma política de cognição calcada na enação, colocando sob análise a forma com a qual agimos junto com a diferença que compõe a nós e os processos formativos. Ao distingui-la da formação baseada na informação, por aquisição de habilidades e competências sob a égide de perspectivas tecnicistas ou certa compreensão de conscientização política, Dias (2012)Dias, R. (2012). Formação inventiva como possibilidade de deslocamentos. In Dias, R. (org.), Formação inventiva de professores (pp. p.25-41). Rio de Janeiro: Lamparina. apresenta a formação inventiva como “fazer com o outro, formar é criar outros modos de viver-trabalhar, aprender, desaprender e não apenas instrumentalizar o outro com novas tecnologias ou, ainda, dar consciência crítica ao outro” (p. 36).

Dias (2011, 2012) situa a formação inventiva como formação por vir, demonstrando seu caráter aprendiz e, ao encontro da desaprendizagem permanente, imersa num devir criacionista. “A questão de uma formação por vir é mais profunda, é uma experiência de deslocamento que movimenta uma problematização das ditas verdades transmissoras de conhecimento e encarna um conhecimento vivo, enativo, que problematiza o educador” (Dias, 2011Dias, R. (2011). Deslocamentos na formação de professores: aprendizagem de adultos, experiência e políticas cognitivas. Lamparina., p. 162). Ela afirma a formação por vir como estratégia de resistência adiante da mercantilização da experiência.

A autora (2011, 2012) também apresenta a formação inventiva como um método “faça comigo”, diferente de uma abordagem “faça como eu”, cujas práticas estão imersas no preestabelecido. Para Dias (2011)Dias, R. (2011). Deslocamentos na formação de professores: aprendizagem de adultos, experiência e políticas cognitivas. Lamparina., uma abordagem “faça comigo” situa-se num plano micropolítico que afeta uma existência compartilhada, aberta às imprevisibilidades pelo cultivo da desaprendizagem, que “opera para fazer emergir aquilo que nos força a pensar, tensionando a formação-verdade por um método que não pode ser aplicado e interpretado, mas experienciado coletiva e politicamente, forjando sentidos e produzindo efeitos diversos” (p. 253).

Kastrup e Dias nos ajudam a retomar nossa conversa com as participantes trans que entenderam a formação como estratégia para trans-forma-ação das experiências de discriminação vividas com os serviços de saúde. Tanto aprendizagem quanto formação inventiva apostam no conhecer como criação de si e de mundos em perspectiva de coemergência. Criar novos cotidianos com a saúde trans requer abandonar o método “faça como eu”, baseado na imitação e na transmissibilidade de informações técnicas ou políticas, crendo que somente junto com a população trans usuária dos serviços de saúde, num traçado de comum, em produção coletiva – usuários(as), trabalhadores(as) e pesquisadores(as) – será possível trans-formar a atual realidade de discriminação e patologização da saúde trans. Assim, Kastrup (2013)Kastrup, V. (2013) Um mergulho na experiência: uma política para a formação dos profissionais de saúde. In Capazzolo, A., Casetto, S. J. & Henz, A. (orgs.), Clínica comum: itinerários de uma formação em saúde (pp. 151-162). Hucitec. nos propõe que, “no âmbito da formação dos profissionais de saúde, o mergulho na experiência traz consigo o desafio ... da invenção de novos procedimentos, de novas práticas e de novas tecnologias de atendimento e de cuidado” (p. 161).

Precisamos nos desviar das perspectivas formativas que saturam as equipes da saúde com informações e representações da transexualidade, que secundarizam a ação no âmbito da produção de conhecimento, impedindo os processos formativos que acontecem nos encontros entre trabalhadores(as) da saúde e população trans. Tais perspectivas muitas vezes têm nos presenteado com os discursos sobre desconexão entre teoria e prática.

Tais discursos são efeitos de um errôneo foco na conscientização política, como se uma dada consciência crítica, diante da discriminação sofrida pela população trans nos serviços de saúde, pudesse ser depositada nos(as) trabalhadores(as). Assim, aposta-se na transmissão de ideais de comportamento aceitáveis, ditos humanizados, a serem imitados – “faça como eu”, impondo a formatação das atitudes em relação aos usos do nome social, dos pronomes de tratamento, etc., que não têm refletido em mudanças nos cotidianos de saúde, como mostram as participantes das pesquisas e a literatura consultada.

Tal quadro também é resultado de uma formação biomédica, que, sob o discurso de formação baseada em evidências científicas e da especialização da prática, tem viciado os(as) trabalhadores(as) da saúde em modelagens de ação, em receitas para intervenção – protocolos e diagnósticos como checklists aplicáveis.

Ambas as estratégias de formação têm sido insuficientes por suplantarem a experiência, amedrontam os(as) trabalhadores(as) diante das imprevisibilidades do cotidiano com a saúde e, assim, deixam atadas suas possibilidades de invenção de novas formas de trabalhar com a população trans nos serviços de saúde.

Para pensarmos as estratégias formativas com os cotidianos do processo de trabalho com a saúde, a partir do diálogo estabelecido anteriormente com nossos intercessores, e aqui, os aprendizados que advêm dos encontros entre trabalhadores(as) da saúde e a população trans, podemos seguir importantes pistas deixadas pelo movimento HumanizaSUS. Chamamos de movimento, por entender, com Pasche e Passos (2010aPasche, D. F., & Passos, E. (2010a). Inclusão como método de apoio para a produção de mudanças na saúde – aposta da Política de Humanização da Saúde. Saúde em Debate, 34( 86), 423-432., 2010bPasche, D. F., & Passos, E. (2010b) Apresentação: Cadernos temáticos PNH: formação em humanização. In Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Política Nacional de Humanização. Formação e intervenção. (Vol. 1., pp. 5-10). Ministério da Saúde.), a Política de Humanização da Atenção e da Gestão (PNH) do Sistema Único de Saúde não como uma portaria ministerial com informações, determinando passos a serem seguidos, mas como algo que se constitui em movimentos criadores de tal política, pautados no “SUS que dá certo” com seus desafios e paradoxos que emergem dos cotidianos em saúde.

Criada em 2003, a PNH teve como objetivo “deflagrar um movimento ético, político e institucional para alterar modos de gestão e de cuidado em saúde” (Pasche & Passos, 2010aPasche, D. F., & Passos, E. (2010a). Inclusão como método de apoio para a produção de mudanças na saúde – aposta da Política de Humanização da Saúde. Saúde em Debate, 34( 86), 423-432., p. 424), apresentando como princípios “a indissociabilidade entre gestão e cuidado, a transversalidade (ampliação da comunicação; produção do comum) e o fomento do protagonismo das pessoas” (Pasche & Passos, 2010bPasche, D. F., & Passos, E. (2010b) Apresentação: Cadernos temáticos PNH: formação em humanização. In Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Política Nacional de Humanização. Formação e intervenção. (Vol. 1., pp. 5-10). Ministério da Saúde., p. 7). Nessa direção, destacamos três pistas que ajudaram a pensar sobre uma política de formação pelas experiências oriundas dos encontros entre trabalhadores(as) da saúde e população trans.

A primeira pista: uma nova perspectiva para pensarmos humanização na saúde. Por vezes, a ideia de humanizar, transmitida por processos formativos fundados na conscientização política, esteve atrelada ao treino de benevolência, hospitalidade, bondade ou ao sensibilizar o pesar em relação à situação de um usuário(a) dos serviços de saúde, a fim da promoveruma interação harmoniosa entre os sujeitos do cotidiano em saúde. Assim, humanizar

pode corresponder a uma ação de expurgo, de assepsia, de negação da diferença na constituição do humano. Define-se humanização de modo negativo, fazendo da humanização das práticas de saúde uma caça ao que é tomado como contrário à natureza humana.

(Pasche & Passos, 2010aPasche, D. F., & Passos, E. (2010a). Inclusão como método de apoio para a produção de mudanças na saúde – aposta da Política de Humanização da Saúde. Saúde em Debate, 34( 86), 423-432., p. 425)

Assim, ações humanizadoras são entendidas como “enfrentamento a atitudes e comportamentos individuais considerados inadequados” (Pasche & Passos, 2010bPasche, D. F., & Passos, E. (2010b) Apresentação: Cadernos temáticos PNH: formação em humanização. In Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Política Nacional de Humanização. Formação e intervenção. (Vol. 1., pp. 5-10). Ministério da Saúde., p. 6), embasados por discursividades moralizantes e prescritivas pautadas no “faça como eu”.

É comum encontrar em perspectivas formativas transmissoras de representações sobre a transexualidade, que apostam numa dada concepção de conscientização política como estratégia de formação de trabalhadores(as) da saúde, sob a égide de uma “faça como eu”, a compreensão da população trans sob ideias de “piedade” e uma certa “vocação para ser vítima” de maneira naturalizada. Humanização no acolhimento dessa população passa a ser entendida como benevolência e caridade, colocando usuários(as) trans numa relação de passividade e hierarquia com os trabalhadores(as) da saúde, excluídos(as) dos processos decisórios envoltos no trabalho, no cuidado e na gestão da saúde.

A partir dos movimentos HumanizaSUS, os atores do cotidiano da saúde são convocados a experimentar um método da humanização que traz dentre seus pilares um modo de fazer inclusão, propondo a criação de solidariedade mútua e corresponsabilização, entendendo a humanização como prática social ampliada (Pasche & Passos, 2010bPasche, D. F., & Passos, E. (2010b) Apresentação: Cadernos temáticos PNH: formação em humanização. In Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Política Nacional de Humanização. Formação e intervenção. (Vol. 1., pp. 5-10). Ministério da Saúde.). Nessa perspectiva, humanização “é criação de novas práticas de saúde, de novos modos de gestão, tarefas inseparáveis da produção de novos sujeitos protagonistas e corresponsáveis” (p. 428).

Assim sendo, a posição de passividade é substituída por uma relação ativa entre usuários(as) trans e trabalhadores(as) da saúde, na medida em que a experiência concreta produzida pelo encontro desses atores em relação de lateralidade, instaura processos formativos enativos. Ideias de “vítimas por vocação” dão lugar à criação de corresponsabilização nos processos decisórios envoltos no trabalho, no cuidado e na gestão da saúde trans, apresentando a humanização como exercício cotidiano de crítica social, invenção de práticas em saúde e compreensão das pessoas trans como protagonistas de seus processos de cuidado, saúde e doença.

A segunda pista, anunciada na primeira: o método do tríplice inclusão. Pasche e Passos (2010a)Pasche, D. F., & Passos, E. (2010a). Inclusão como método de apoio para a produção de mudanças na saúde – aposta da Política de Humanização da Saúde. Saúde em Debate, 34( 86), 423-432. não indicam esse como passos predeterminados e sequenciais a serem seguidos. O método da tríplice inclusão se propõe a uma experimentação para construir metas a serem alcançadas de maneira coletiva e negociada, cujo caminho percorrido não se dê por objetivos prescritos, vislumbrando a “inclusão dos sujeitos com suas histórias, seus interesses e saberes (lateralização); inclusão dos conflitos ou pontos de tensão ... que devem ser entendidos como analisadores institucionais; inclusão, por fim, do coletivo que se consolida no exercício inclusivo” (Pasche & Passos, 2010aPasche, D. F., & Passos, E. (2010a). Inclusão como método de apoio para a produção de mudanças na saúde – aposta da Política de Humanização da Saúde. Saúde em Debate, 34( 86), 423-432., p. 430).

A terceira pista destacada: a formação de trabalhadores(as) da saúde como modo de intervenção. Segundo Pasche e Passos (2010b)Pasche, D. F., & Passos, E. (2010b) Apresentação: Cadernos temáticos PNH: formação em humanização. In Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Política Nacional de Humanização. Formação e intervenção. (Vol. 1., pp. 5-10). Ministério da Saúde.,

As diretrizes dos processos de formação da PNH se assentam no princípio de que a formação é inseparável dos processos de mudanças, ou seja, que formar é, necessariamente, intervir, e intervir é experimentar em ato as mudanças nas práticas de gestão e de cuidado, na direção da afirmação do SUS como política inclusiva, equitativa, democrática, solidária e capaz de promover e qualificar a vida do povo brasileiro.

(p. 8)

Heckert e Neves (2010)Heckert, A. L. C., & Neves, C. A. B. (2010). Modos de formas, modos de intervir: quando a formação se faz potência de produção de coletivo. In Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Política Nacional de Humanização. Formação e intervenção. (Vol. 1, pp. 13-28). Ministério da Saúde. discorrem sobre a integralidade e a indissociabilidade entre modos de formação, gestão e trabalho – formar, gerir e cuidar – em saúde, de modo que a formação não é compreendida como depósito e transferência de saberes apriorísticos de maneira hierarquizante. Os efeitos dessas perspectivas de formação

Nos modos de produzir o cuidado se sacralizam em perspectivas que tomam a saúde como contraponto da doença, como ausência de doença, e o sujeito como objeto das ações de saberes fragmentados e absolutos que definem a verdade sobre o sujeito. No que se refere à gestão aborda-se essa ação como tarefa exclusiva de especialistas (gestor/administrador) que definem os modos de organizar o processo de trabalho, o modo de dispor as ações nas instituições de saúde, reduzindo o trabalho apenas à sua face prescritiva.

(Heckert & Neves, 2010Heckert, A. L. C., & Neves, C. A. B. (2010). Modos de formas, modos de intervir: quando a formação se faz potência de produção de coletivo. In Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Política Nacional de Humanização. Formação e intervenção. (Vol. 1, pp. 13-28). Ministério da Saúde., p. 20)

Essa concepção divide os sujeitos envolvidos no processo de formação em emissores e receptores, postulando-os por informações apriorísticas na relação com o processo de aprendizagem. Em contraposição, as autoras problematizam que “as especificidades dos serviços/sistemas de saúde requerem torção nos modos de fazer formação, a fim de que seja possível acolher essas diferentes realidades não como um já dado, mas como movimento de desestabilização do próprio processo de formação” (Heckert & Neves, 2010Heckert, A. L. C., & Neves, C. A. B. (2010). Modos de formas, modos de intervir: quando a formação se faz potência de produção de coletivo. In Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Política Nacional de Humanização. Formação e intervenção. (Vol. 1, pp. 13-28). Ministério da Saúde., p. 25), a fim da superar práticas tutelares promotoras de redes de dependência e isolamento. Assim, as autoras creem na formação baseada na experiência, como invenção, como criação de modos de cuidar e gerir com a saúde, de modo que a “formação significa, sobretudo, produção de realidade, constituição de modos de existência – portanto, não se dissocia da criação de modos de gestão do processo de trabalho” (p. 17).

É pela aposta numa formação enativa que trabalhadores(as) da saúde e usuários(as) trans formam-se pela experiência concreta produzida em encontros envoltos pelos processos de cuidar, trabalhar e gerir com a saúde trans. Um processo de formação, que provém dos conflitos e dos estranhamentos produzidos pelo encontro de diferentes concepções e sentidos para saúde e adoecimento produzidos por trabalhadores(as)e pessoas trans, desestabiliza processos formativos baseados exclusivamente em representações e transmissão de informações. Na perspectiva da PNH, formar e intervir emergem juntos na medida em que se conhece por enação e, assim, criar possibilidades da produção de serviços de saúde universais, integrais e equânimes às pessoas trans supõe incluir a população trans com suas histórias e sentidos para o processo transexualizador, para a transformação dos corpos, para os gêneros, para a sexualidade, para o cuidado em saúde e para os processos de adoecimento.

Considerações finais

Vimos que a literatura sugere a formação dos(as) trabalhadores(as) da saúde como importante campo para intervenção rumo ao enfrentamento dos embaraços envolvidos no acesso da população trans aos serviços de saúde. Todavia, aqui problematizamos que a dependência de estratégias formativas, pautadas na transmissão de representações da transexualidade, informações técnicas e conscientização política, tem sido insuficiente para intervir na realidade de dificuldades vividas pela população trans no acesso aos serviços de saúde da atenção básica ao processo transexualizador.

As estratégias de formação dos(as) trabalhadores(as) da saúde, pautadas na transmissão de informações e representações que consideram apenas a dimensão técnica, tendem a modelar e universalizar modos de cuidar, trabalhar, gerir e formar nos cotidianos da saúde. Quando as participantes narraram sobre os requisitos a elas solicitados no processo de diagnóstico sob a égide da aplicação da representação de uma transexualidade verdadeira, o que se percebe é a afirmação de estereótipos socialmente construídos como hegemônicos para gênero e sexualidade, que apresentam os gênero de maneira binária, apriorísticos por seu aprisionamento às genitálias, à sexualidade, entendida também pela oposição homo/hetero, valorando a segunda sob perspectivas de compulsoriedade e complementariedade dos gêneros.

Assim, uma formação tecnicista para os(as)trabalhadores(as)do processo transexualizador tende a configurar o cuidado em saúde em ações corretivas, disciplinadoras e de readequação, na medida em que os(as) trabalhadores(as) são formados pela transmissão de protocolos e técnicas de intervenção sobre os corpos forjados sob a égide das normas de gênero e, assim, passam a compreender o processo de trabalho como processo de imitação das informações transmitidas, bem como a requerer das usuárias dos serviços a também imitação das normas de gênero a elas transmitidas no cotidiano dos serviços transexualizadores, como vemos nas narrativas. Assim, àqueles e àquelas que a tal imitação não se permitem ou não exercem como requeridas no processo de diagnóstico é negado o acesso, como mostra a literatura.

Não é possível depositar uma dada consciência crítica no outro, como pontuamos, anteriormente, com Dias (2012)Dias, R. (2012). Formação inventiva como possibilidade de deslocamentos. In Dias, R. (org.), Formação inventiva de professores (pp. p.25-41). Rio de Janeiro: Lamparina.. Processos formativos que apostem na conscientização política, como transmissão de informações sobre direitos de usuários(as) trans nos serviços de saúde; que vislumbrem transmitir comportamentos imitáveis ante a questões como uso do nome social e atendimento livre de discriminação; que questionem o status quo das normas para gênero e sexualidade que excluem as pessoas trans dos serviços de saúde, apesar de importantes, também não bastam em si.

Precisamos avançar nas propostas formativas para o trabalho em saúde com a população trans, apostando que, pela experiência concreta, pela ação no exercício de aprendizado com o cotidiano em saúde será possível produzir técnicas e posturas ético-políticas em favor do acesso aos serviços de saúde livre de discriminação, com respeito ao nome social e capaz de responder às diversas demandas em saúde por transformação do corpo desta população.

Avançar com um processo transexualizador humanizado supõe criar cotidianos de saúde que afirmem o protagonismo dos(as) usuários e usuárias, transversalizando a relação de atores e atrizes que o produzem. Cumpre priorizar modos de formação de trabalhadores(as) e usuários(as) pautados na afirmação da vida em sua multiplicidade, o que não pode ser reduzido a grades curriculares de formação instituídas em alguns aparelhos de formação. Colocar lado a lado trabalhadores(as) da saúde e usuários(as) trans torna possível aprender criando modos de trabalhar, gerir e cuidar, acoplados com os sentidos que a população trans produz para transexualidade e procedimentos transgenitalizadores e, assim, elaborar novos procedimentos, práticas e tecnologias de atendimento e cuidado que favoreçam a construção de um acesso à saúde integral, equânime e universal à população trans.

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    Normalização, preparação e revisão textual: Vera Lúcia Fator Gouvêa Bonilha - verah.bonilha@gmail.com
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    Apoio: Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) – Bolsa de doutorado.

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Editado por

1
Editor responsável: Silvio Donizetti de Oliveira Gallo. https://orcid.org/0000-0003-2221-5160

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    28 Mar 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    29 Ago 2019
  • Revisado
    03 Dez 2019
  • Aceito
    14 Jan 2020
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