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Aprender por signos proustianos numa filosofia da diferença 1 1 Editor responsável: Alexandre Filordi de Carvalho. https://orcid.org/0000-0003-4510-9440 2 2 Normalização, preparação e revisão textual: Luan Maitan – revisao@tikinet.com.br

Resumo

Este artigo propõe perscrutar pela exterioridade das relações seriais o fenômeno aprender, no sentido de tensionar o campo didático para além do fenômeno instrução, ensino intencional, que se realiza em circunstâncias bem características e delimitadas – as quais são denominadas de ensino escolar. Envolto nesse problema do fenômeno aprender, revistaremos o livro Proust e os signos, no intento de aí flagrar como os signos proustianos nos abrem diferentemente à aprendizagem infinitesimal pelas repetições materiais e espirituais, diferindo no tempo.

Palavras-chave
educação; aprender; signos proustianos; Deleuze

Abstract

This article proposes to examine the phenomenon of learning through the externality of the serial relations, in order to stress the didactic field beyond the teaching phenomenon, intentional teaching, which takes place in very characteristic and delimited circumstances - which are called school education. Enveloped in this problem of the phenomenon to learn, we will search the book Proust and the signs, in the attempt to catch there as the proustian signs open us differently to the infinitesimal learning by the material and spiritual repetitions differing in the time.

Keywords
education; learn; proustian signs; Deleuze

Palavras Iniciais

Por que acionar Gilles Deleuze (1925-1995) para se dedicar a pensar a educação, tendo em vista que ele não se debruçou a pensar diretamente sobre problemas relativos à educação senão de forma muito marginal? E por meio de um filósofo estrambótico, hermético, difícil, errático, nômade à própria filosofia?

Ora, a educação, dada a sua natureza, nos traz e nos expressa problemas quanto às diversas maneiras de socializar e de formar pessoas para o devir, maneiras estas pelas quais não seja obliterada e diminuída – ou até mesmo eliminada – a singularidade existente em devir em cada ser presentemente vivo. A educação, como a realidade à qual se vê colada, é aberta e múltipla, e por isso se faz necessário buscar pensamentos fiéis ao devir, com capacidade de pensar a diferença sem representá-la a priori, pois o vir a ser em sua forma pura é insubmisso aos liames mediadores da representação, já que não se re-apresenta, ao passo que a sua natureza caótica não lhe informa uma imagem que se mantenha a nosso dispor em quietude para ser re-conhecida. A educação, então, busca socializar e formar pessoas para o futuro, cuja faina diuturna pode ser fundamentada por meio da célebre frase de Agostinho de Hipona, recolhida por Xavier Zubiri (2005, p. 6)Zubiri, X. (2005). ¿Qué es investigar? The Xavier Zubiri Review, 7, 5-7.: “Busquemos como buscam os que ainda não encontraram, e encontremos como encontram os que ainda buscarão”. Perscrutar como a educação é na realidade, para conseguir socializar e formar pessoas para o devir, é faina interminável, pois, tal como o real, a educação nunca está rematada, porque ambas – repetimos: realidade e educação – são abertas e múltiplas.

Deleuze é um desses filósofos que nos puseram a pensar e criar conceitos afeitos à questão da diferença, e, assim, com capacidade para liberar o pensamento de sua função recognitiva e fazer dele uma potência criadora tão necessária ao problema da educação.

A educação cuida de múltiplos seres, e por isso ela é unívoca, ou seja, ela expressa uma só voz para toda uma multiplicidade de seres, de forma que todos se dizem da mesma maneira, mas em sua própria diferença. Desta forma, em sua univocidade, a educação não exclui a multiplicidade. Essa é a verdadeira natureza da educação. E é isso que Deleuze nos ajuda a compreender, porque o grande objetivo dele é libertar a diferença das antigas malhas da representação. A diferença, ao ser submetida às regras da identidade e da semelhança, perde força ao ser enredada pelas tesas malhas da representação, a qual obedece aos critérios rígidos do raciocínio lógico e representativo.

Para Deleuze (1988)Deleuze, G. (1988). Diferença e repetição. Tradução de Luiz B. L. Orlandi e Roberto Machado. Rio de Janeiro: edição Graal., enquanto a diferença é submetida às exigências da representação, ela não é nem pode ser pensada em si mesma. A diferença em si mesma parece excluir toda relação do diferente com o diferente, relação esta que a tornaria pensável. Parece, também, que ela só se torna pensável quando domada, isto é, quando submetida à quádrupla sujeição da representação: a identidade no conceito; a oposição no predicado; a analogia no juízo; a semelhança na percepção. Esse é o mundo clássico da representação, cuja definição se dá por meio de quatro dimensões que o medem e o coordenam, como foi bem mostrado por Foucault (1990)Foucault, M. (1990). As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas. Trad. Salma Tannus Muchail; revisão Roberto Cortes de Lacersa. (5aed.) São Paulo: Martins Fontes..

Nesse sentido, Deleuze afirma que toda e qualquer outra diferença que não se enraíze nesses princípios será desmesurada, incoordenada, inorgânica: grande demais ou pequena demais, não só para ser pensada, mas para ser. A diferença, deixada de ser pensada, dissipa-se no não-ser. Por isso a necessidade de estender a representação até o grande demais e o pequeno demais da diferença, tornando-a infinita. Mas, mesmo tornando infinita a representação – cujos esforços nesse sentido tiveram seus ápices com Leibniz e com Hegel –, o que é descoberto é somente um fundamento que refere o excesso e a deficiência da diferença ao idêntico, ao semelhante, ao análogo, ao oposto, isto é, à razão suficiente, que não deixa escapar mais nada. Assim, a diferença continua marcada pela maldição. Esses exercícios nada mais fizeram do que descobrir meios mais sutis e mais sublimes de fazer a diferença se expiar ou de submetê-la, de resgatá-la sob as categorias da representação. Por isso, defendeu Deleuze, há de se pensar o ser pela questão da diferença, mais propriamente por meio da ontologia da diferença pura.

Assim como a diferença pura é o singular, não podemos confundir a generalidade com a repetição. Deleuze quer mostrar que quando a ciência fala de repetição, ela está falando apenas da passagem de uma ordem de generalidade para outra ordem de generalidade. Caso considere-se que somente há ciência do geral e só há ciência do que se repete, para Deleuze há, sim, de se instalar na e pela multiplicidade das coisas vivas para aprendermos “a repetição como passagem de um estado das diferenças gerais à diferença singular, das diferenças exteriores à diferença interna – em suma, a repetição como o diferenciador da diferença” (Deleuze, 1988Deleuze, G. (1988). Diferença e repetição. Tradução de Luiz B. L. Orlandi e Roberto Machado. Rio de Janeiro: edição Graal., p. 136). E atente-se para essa noção de diferença singular e individual como não sinônimas. Desse modo, na repetição não são os indivíduos que retornam, e sim as singularidades – esses elementos essencialmente virtuais, os quais precedem a existência dos próprios seres. As singularidades são os verdadeiros acontecimentos transcendentais. Mas longe de serem individuais ou pessoais, para Deleuze (1974, p. 105-106)Deleuze, G. (1974). Lógica do sentido. Trad. Luiz Roberto Salinas Fortes, São Paulo: Perspectiva.

… as singularidades presidem à gênese dos indivíduos e das pessoas: elas se repartem em um potencial que não comporta por si mesmo nem Ego (Moi) individual, nem Eu (Je) pessoal, mas que os produz atualizando-se, efetuando-se, as figuras desta atualização não se parecendo em nada ao potencial efetuado. É somente uma teoria dos pontos singulares que se acha apta a ultrapassar a síntese das pessoas e a análise do indivíduo tais como elas são (ou se fazem) na consciência. Não podemos aceitar a alternativa que compromete inteiramente ao mesmo tempo a psicologia, a cosmologia e a teologia: ou singularidades já tomadas em indivíduos e pessoas ou o abismo indiferenciado. Quando se abre o mundo pululante das singularidades anônimas e nômades impessoais, pré-individuais, pisamos, afinal, no campo do transcendental.

E foi por meio das contribuições teóricas de Gilbert SimondonSimondon, G. (2005). L`Individuation à La lunière des notions de forme et d´information. France: Jérôme Million. em L’Individu et sagenèse physico-biologique (2005) que Gilles Deleuze pôde pensar e esboçar as características principais desse mundo inerente – porque empírico – do campo transcendental. Conforme Deleuze, foi Simondon quem apresentou a primeira teoria racionalizada das singularidades impessoais e pré-individuais. Ao propor explicitamente, a partir dessas singularidades, a fazer a gênese tanto do indivíduo vivo como do sujeito cognoscente, Simondon concebeu uma nova concepção de transcendental. E as cinco características pelas quais Deleuze buscou definir o campo transcendental – energia potencial de campo, ressonância interna das séries, superfície topológica das membranas, organização do sentido, estatuto do problemático – foram todas analisadas por Simondon. Porém, se, por um lado, essas cinco características principais do campo transcendental deleuziano dependeram estreitamente das reflexões de Simondon presentes no seu livro L’Individu et sagenèse physico-biologique (2005), por outro lado, Deleuze (2006)Deleuze, G. (2006). Gilbert Simondon: O indivíduo e sua gênese físico-biológica. InG. Deleuze. A ilha deserta: e outros textos. Edição preparada por David Lapoujade; organização da edição brasileira e revisão técnica Luiz B. L. Orlandi. São Paulo: Iluminuras. divergiu das conclusões às quais chegou Simondon.

Enquanto ambos consideram que há relação entre individuação e diferenciação; para Deleuze a individuação é intensiva, pois todas as diferenças são portadas pelo indivíduo, mas nem por isso são individuais. E tal divergência tornou-se mais distinta quando Deleuze substituiu o conceito “campo transcendental” pelo conceito “plano de imanência”. “Plano” e não mais “campo”: porque ele não é para um sujeito suposto fora-de-campo ou no limite de um campo que se abra a partir de si próprio segundo o modelo de um campo de percepção, ao contrário, o sujeito constitui-se no dado, ou, mais exatamente, sobre o plano.

Este artigo propõe perscrutar pela enunciação deleuzeana serial – a qual poderia ser expressacomo um: “sinto que me torno outro, logo eu era, logo era eu!” (Deleuze, 1974Deleuze, G. (1974). Lógica do sentido. Trad. Luiz Roberto Salinas Fortes, São Paulo: Perspectiva., p. 360 e Deleuze; Guattari, 2010Deleuze, G., & Guattari, F. (2010). O anti-Édipo: capitalismo e esquizofrenia 1. Trad. Luiz B. L. Orlandi. São Paulo: Editora 34., pp. 21-30) – o fenômeno aprender, no sentido de tensionar o campo didático para além do fenômeno instrução, ensino intencional, que se realiza em circunstâncias bem características e delimitadas – as quais são denominadas de ensino escolar. Não se trata de delimitar uma teoria de instrução, e sim de trazer à tona que o fenômeno aprender “é uma tarefa infinita” (Deleuze, 1988Deleuze, G. (1988). Diferença e repetição. Tradução de Luiz B. L. Orlandi e Roberto Machado. Rio de Janeiro: edição Graal., p. 271) e ligado aos “estados intensivos de uma força anônima” (Deleuze, 2002Deleuze, G. (2002). Espinosa: filosofia prática. Trad. Daniel Lins e Fabien Pascal Lins. Revisão técnica: Eduardo Diatahy Bezerra de Menezes. São Paulo: Escuta., p. 132).

Nesse momento, pressentimos, diante do turbilhão de dados a que estamos expostos, que há algo importante a ser extraído do caos, mas temos repugnância pelas formas costumeiras de sua atribuição, ao mesmo tempo em que adivinhamos que as condições de um discernimento imanente não se dão por si, dependendo de um ato especial. Falta-nos um plano que recupere o caos, condições que nos permitam ligar esses dados e neles encontrar sentido, antes no modo de uma problemática do que no de uma interpretação. E nunca “se sabe de antemão como alguém vai aprender – que amores tornam alguém bom em Latim, por meio de que encontros se é filósofo, em que dicionários se aprende a pensar” (Deleuze, 1988Deleuze, G. (1988). Diferença e repetição. Tradução de Luiz B. L. Orlandi e Roberto Machado. Rio de Janeiro: edição Graal., p, 270).

Com Deleuze, consideramos que talvez pensar comecepela efetuação de tal corte ou pela instauração de tal plano. O plano de imanência é a condição sob a qual o sentido tem lugar, o próprio caos sendo esse não-sentido que habita o fundo mesmo de nossa vida. Mas como nos imantar desse pensar para nós para pensar o que é aprender? Pensar-aprender – seria a fórmula?

Sem ter a pretensão de fazer um balanço da vasta literatura sobre Proust, somado à percepção de que o livro Proust e os signos de Deleuze foi muito lido, parece, salvo engano, que o problema do fenômeno aprender em torno dos signos proustianos não provocou nenhum efeito, pois as pessoas continuam falando tão somente da memória quando se remetem Àla recherche du temps perdu. Envolto nesse problema do fenômeno aprender, revistaremos especialmente o livro Proust e os signos, no intento de aí flagrar como a ênfase pelos signos – os quais Deleuze buscou reparar porque haviam sido esquecidos pelos leitores e comentadores de Proust –, no sentido de evocar como os signos proustianos nos abrem diferentemente à aprendizagem infinitesimal pelas repetições materiais e espirituais diferindo no tempo.

Os signos, na leitura deleuzeana de Proust

O aprendizado proposto por Proust e claramente exposto por Deleuze está ancorado nos signos (e entenda-se que não é possível a eles furtar-se), pois toda aprendizagem é uma aprendizagem pelos signos. Entretanto, que vem a ser um signo para Deleuze, nessa sua leitura da obra Em busca do tempo perdido, de Proust?

Habitualmente, consideram-se signos os elementos representativos que se expressam em dois aspectos: significante e significado; trata-se assim, de signos linguísticos. Entretanto, compreender os signos proustianos como signos linguísticos é incorrer em um desafinamento com a obra.

Igualmente, não é possível tomar os signos como imagens, ou qualquer outro modo de agenciamento. Os signos proustianos não são matérias, mas podem ser emanados ou produzidos por objetos e sujeitos. Quando Deleuze afirma que os signos da arte são imateriais, enquanto os demais signos ainda são sensíveis, ele não está se referindo à sua materialidade física, e sim aos objetos que os emitem e sua explicação correspondente. Um signo pode ser um sabor, um movimento, um som, pode ser uma expressão e um gesto; enfim, os signos não são, necessariamente, visíveis, embora sejam perceptíveis. Nas palavras de Proust: “nascia em mim, irradiando de uma estreita zona em meu derredor, uma sensação (sabor do bolinho umedecido, ruído metálico, pavimentação irregular)” (Proust, 1983Proust, M. (1983). Tempo Redescoberto. (7a ed.). L. M. Pereira (Trad.). Rio de Janeiro: Editora Globo., p. 126, grifos nossos).

O signo, de acordo com Deleuze, é formado por duas partes: designa um objeto e, ao mesmo tempo, significa algo diferente (Deleuze, 2010Deleuze, G. (2010). Proust e os signos. (2aed.). Tradução de Antonio Piquet e Roberto Machado. Rio de Janeiro: Forense Universitária., p. 26). Nessa perspectiva, infere-se que o signo seja uma proposição e, simultaneamente, um atributo; designa um objeto e, em paralelo, é atributo desse objeto. Sem ser qualidade de um corpo, o atributo é um devir, nunca é alguma coisa; está sempre antes e depois, entre o passado e o futuro. Sincronicamente, a transubstancialização de um objeto/signo em outro signo/objeto se dá em dois sentidos, ao contrário do bom senso, que caminha em apenas um telos, porque o signo é acontecimento. E o acontecimento é o devir-ilimitado, ou seja, é aquilo que tem os dois sentidos, é “o que acaba de se passar e o que vai se passar, mas nunca o que se passa” (Deleuze, 2015, p. 9). Assim, o signo já é também acontecimento, emerge do acaso do encontro de dois corpos.

E o angustiante do acontecimento puro está, justamente, em que ele é alguma coisa que acaba de ocorrer e que vai se passar, ao mesmo tempo, nunca alguma coisa que se passa. O X de que sentimos que isto acaba de se passar é o objeto da “novidade”; e o X que sempre vai se passar é o objeto do “conto”. O acontecimento puro é conto e novidade, jamais atualidade. É neste sentido que os acontecimentos são signos

(Deleuze, 2015, p. 66).

Não falando em signo, e sim em signos – do que se deduz que estes sejam múltiplos e variáveis –, Deleuze indica quatro tipos de signos que pertencem a mundos específicos: signos mundanos, signos amorosos, signos sensíveis e signos da arte. O tempo em Proust, na leitura de Deleuze, é essencial para o aprendizado e para os signos, afinal, o que se busca é sempre a verdade, a qual é sempre verdade do tempo, nunca descoberta, sempre produzida (Deleuze, 2010Deleuze, G., & Guattari, F. (2010). O anti-Édipo: capitalismo e esquizofrenia 1. Trad. Luiz B. L. Orlandi. São Paulo: Editora 34., pp. 16 e 139). O tempo na Recherche não é de maneira alguma linear, remete antes à fragmentação temporal; portanto, o tempo perdido não é a única estrutura temporal a ser investigada, mas, igualmente, o tempo que se perde, bem como o tempo redescoberto e o tempo que se redescobre.

O signo se revela, por exemplo, na tentativa do amado em encobrir uma mentira. No caso dos signos amorosos, nunca estão postos, emergem como que traindo a própria mentira. É, por exemplo, o enrubescer diante de uma fraude, correspondendo a vermelhidão do rosto a um signo que, quando percebido, já se foi, aparecendo como efeito de superfície, fugaz e temporário (Deleuze, 2015Deleuze, G., & Guattari, F. (2010). O anti-Édipo: capitalismo e esquizofrenia 1. Trad. Luiz B. L. Orlandi. São Paulo: Editora 34., p.6).

Para fins introdutórios, apresentaremos brevemente cada grupo de signos, que serão explicitados logo adiante, em decorrência da delimitação do que vem a ser a aprendizagem. Cada tipo de signo dispõe de uma linha temporal privilegiada e de uma faculdade escolhida para interpretá-lo, isto é, explicá-lo. Comecemos pelos signos mundanos: são interpretados pela inteligência involuntária, ou seja, aquela que se põe a funcionar devido à coação do signo. São expressos pelas mudanças, pelas regras e leis dos salões que não são engessadas, ao contrário, sofrem alterações, assim como seus legisladores:

Mas – em contradição com essa permanência – os velhos mundanos achavam tudo diferente na sociedade, onde se recebia gente outrora inadmissível … E o mais interessante nessas transformações dos salões era provirem do tempo perdido, filiarem-se a um fenômeno da memória

(Proust, 1983Proust, M. (1983). Tempo Redescoberto. (7a ed.). L. M. Pereira (Trad.). Rio de Janeiro: Editora Globo., pp. 186-187).

Os signos mundanos remetem às mudanças percebidas pelos traços em um rosto há muito esquecido e às regras e leis dos salões, existentes na contemporaneidade de Proust, frequentados antes por pessoas diferentes. Apesar de guardarem por principal estrutura temporal o tempo perdido que transforma corpos e regras, os signos mundanos igualmente se encaixam no tempo que se perde, tempo “desperdiçado”, isto é, na busca de sua verdade, acaba-se descobrindo que valiam por si mesmos, vazios. Assim sendo, a única verdade possível é o próprio processo de aprendizagem que permite a maturação do aprendiz – aliás, o único que se modifica ao fim da interpretação desses tipos de signos é o aprendiz –, e sua explicação, a saber, o próprio sentido, é endereçada a ele mesmo, valendo por sua própria ação (Deleuze, 2010Deleuze, G. (2010). Proust e os signos. (2aed.). Tradução de Antonio Piquet e Roberto Machado. Rio de Janeiro: Forense Universitária., p. 81). Caso exemplar são as mímicas da sra. Verdurin: “mas, desde o acidente da mandíbula, havia renunciado ao trabalho de dar gargalhadas de verdade e, em vez disso, entregava-se a uma mímica convencional que significava, sem fadiga nem riscos, que ela ria a mais não poder” (Proust, 1981Proust, M. (1981). No Caminho de Swann. (6a ed.). M. Quintana (Trad.). Rio de Janeiro: Editora Globo., p. 176). Não que a personagem de fato risse, apenas fingia rir, o que configura um signo vazio sem qualquer sentido além dele mesmo.

Os signos amorosos são decifrados igualmente pela inteligência involuntária despertada pelo ciúme e pelos signos mentirosos, e sua linha de tempo primordial é o tempo perdido, visível, quando observada no rosto do amado, a juventude que se foi e não pode retornar. A explicação desses signos é sempre tardia por ser alcançável quando já não se ama mais, acontece quando o eu ao qual o sentido condizia já deixou de existir. O sentido aparece quando já não há mais harmonia com o sujeito que sofria com o ciúme, ou com a mentira (Deleuze, 2010Deleuze, G., & Guattari, F. (2010). O anti-Édipo: capitalismo e esquizofrenia 1. Trad. Luiz B. L. Orlandi. São Paulo: Editora 34., p. 81).

Os signos amorosos são participantes, similarmente, do tempo que se perde, tempo gasto, por exemplo, com uma mulher que não tem as formas físicas preferenciadas por aquele que as ama: “E dizer que eu estraguei anos inteiros de minha vida, que desejei a morte, que tive o meu maior amor, por uma mulher que não me agradava, que não era o meu tipo!” (Proust, 1981Proust, M. (1981). No Caminho de Swann. (6a ed.). M. Quintana (Trad.). Rio de Janeiro: Editora Globo., p. 316).

Pode-se dizer que a verdade inscrita nos signos do amor e nos signos mundanos assume os traços de uma lei serial para o amor, como elucida Proust: “Assim meu amor por Albertina, até nas suas divergências, já se inscrevia em meu amor por Gilberta” (Proust, 1983Proust, M. (1983). Tempo Redescoberto. (7a ed.). L. M. Pereira (Trad.). Rio de Janeiro: Editora Globo., p. 148). Em contrapartida, a generalidade dos grupos é marcada pela semelhança entre os termos (pessoas) que compõem um grupo: “quanto à princesa, pôs-se a rir às gargalhadas, porque o espírito de Swann era extremamente apreciado em seu círculo” (Proust, 1981Proust, M. (1981). No Caminho de Swann. (6a ed.). M. Quintana (Trad.). Rio de Janeiro: Editora Globo., p. 284).

O terceiro tipo de signo são os sensíveis, e deles se pode dizer que são mais nobres por serem menos materiais, pertencem ao tempo que se redescobre no interior do tempo perdido, provocam um vislumbre da eternidade por tornar contíguos momentos distantes espacial e temporalmente, sendo valiosos por conduzirem ao tempo redescoberto da arte (Deleuze, 2010Deleuze, G. (2010). Proust e os signos. (2aed.). Tradução de Antonio Piquet e Roberto Machado. Rio de Janeiro: Forense Universitária., p. 52). É neles que as duas potências da essência, diferença e repetição, permanecem juntas, ou seja, as duas faculdades evocadas para interpretá-los: a imaginação e a memória involuntária (Deleuze, 2010Deleuze, G., & Guattari, F. (2010). O anti-Édipo: capitalismo e esquizofrenia 1. Trad. Luiz B. L. Orlandi. São Paulo: Editora 34., p. 50). Caso célebre de signo sensível e o despertar da memória involuntária é o da madeleine:

Levei aos lábios uma colherada de chá onde deixara amolecer um pedaço da madalena. Mas no mesmo instante em que aquele gole, de envolta com as migalhas do bolo, tocou o meu paladar, estremeci, atento ao que se passa de extraordinário em mim. Invadira-me um prazer delicioso, isolado, sem noção da sua causa. … tudo isso que toma forma e solidez, saiu, cidade e jardins, da minha taça de chá

(Proust, 1981Proust, M. (1981). No Caminho de Swann. (6a ed.). M. Quintana (Trad.). Rio de Janeiro: Editora Globo., p. 47).

Essas experiências proustianas, ligadas a sistemas literários, têm duas séries, a de um antigo presente (Combray, tal como vivida) e a de um presente atual. Permanecendo numa primeira dimensão da experiência, há uma semelhança entre as duas séries (a Madeleine, a refeição matinal), e mesmo uma identidade (o sabor como qualidade não somente semelhante, mas idêntica nos dois momentos). Todavia, não está aí o segredo. O sabor só tem poder porque ele envolve alguma coisa = x, que não mais se define por uma identidade: o sabor envolve Combray tal como ela em si, fragmento de passado puro, em sua dupla irredutibilidade ao presente que ela foi (percepção) e ao atual presente, em que se poderia revê-la ou reconstituí-la (memória voluntária).

Outros signos sensíveis têm seu sentido interpretado pelas figuras da imaginação e pelo desejo, por uma impressão causada mesmo por um movimento e a vista de uma paisagem:

Na curva de um caminho, senti de súbito, aquele prazer peculiar que não se assemelhava a nenhum outro ao avistar as duas torres de Martinville … Sem confessar-me que aquilo que estava oculto atrás das torres de Matinville devia ser algo como uma bela frase, pois que aparecera sob a forma de palavras que me causavam prazer

(Proust, 1981Proust, M. (1981). No Caminho de Swann. (6a ed.). M. Quintana (Trad.). Rio de Janeiro: Editora Globo. pp. 156-157).

Portanto, torna-se possível dizer que são dois os tipos de signos sensíveis: a lembrança que consegue ressurgir pela memória involuntária e a busca empreendida por verdades escondidas (Deleuze, 2010Deleuze, G. (2010). Proust e os signos. (2aed.). Tradução de Antonio Piquet e Roberto Machado. Rio de Janeiro: Forense Universitária., p. 50).

O quarto e último tipo de signos corresponde aos da arte, os quais se mostram primordiais e reveladores da aprendizagem final. Apenas nos signos da arte a essência ganha liberdade e apresenta a “unidade de um signo imaterial e de um sentido inteiramente espiritual”(Deleuze, 2010Deleuze, G. (2010). Proust e os signos. (2aed.). Tradução de Antonio Piquet e Roberto Machado. Rio de Janeiro: Forense Universitária., p. 39). Essa categoria revela o tempo redescoberto original e inédito, e tem por faculdade interpretativa o pensamento puro. Ou seja, é em seu devir que o tempo aciona subversões, ao mexer com a ordem das coisas, fazendo emergir a diferença pura pela lógica do acontecimento. Assim, o pensamento puro está ancorado na imanência de crer neste mundo-aqui, um mundo que contém a divergência, a heterogeneidade, a incompossibilidade.

Os signos da arte têm a capacidade de gerar a repetição do modo de ser em si do passado. Se todo o passado se conserva em si – é este o ponto em que Proust retoma, relê Bergson –, há a questão de como salvá-lo para nós. Como penetrar nesse em-si sem reduzi-lo ao antigo presente que ele foi ou ao atual presente em relação ao que ele é passado? São os signos da arte que permitem salvar pela repetição o ser em si do passado. Não se trata, então, de ficar tão-somente à mercê das reminiscências, no sentido de que estas designam uma síntese passiva ou uma memória involuntária que difere por natureza de toda síntese ativa da memória voluntária. A fórmula proustiana redescoberta por Deleuze – “um pouco de tempo em estado puro” – designa, em primeiro lugar, o passado puro, o ser em si do passado, isto é, a síntese erótica do tempo, mas designa, mais profundamente, a forma pura e vazia do tempo, a última síntese, a do instinto de morte que leva à eternidade do retorno no tempo. A experimentação de Àla recherche trouxe à luz a criação de um novo conceito, expresso em definir que esse novo conceito é a coexistência de três (e não dois) tempos.

Aprendizagem, para Proust e conforme Deleuze

Aprender, para Deleuze, é ser sensível aos signos, é considerar que as coisas, pessoas, objetos, materiais ou imateriais, emitem signos que carecem de ser decifrados, e aprender é saber decifrar esses signos (Deleuze, 2010Deleuze, G., & Guattari, F. (2010). O anti-Édipo: capitalismo e esquizofrenia 1. Trad. Luiz B. L. Orlandi. São Paulo: Editora 34., p. 4). Andemos, no entanto, com cautela, pois não basta interpretar. Em outras palavras, não basta explicar o sentido e o signo, é necessário chegar à revelação final que vem pela arte. Aprender se relaciona, sobretudo, com as essências. Invertendo Platão, para Deleuze, as essências formam uma ontologia dos fluxos, cuja força está em fazer emergirem do fundo as singularidades impessoais, destronando a antiga crença nos sujeitos a priori e possibilitando aos simulacros, pela sua disjunção, afirmar as diferenças e permitir o contágio dos heterogêneos. Aprender pelas essências, então, é imantar o pensamento para ser afetado por instâncias criadoras de novos sentidos, ao fazer vir à tona o fundo e fazer falarem as mil vozes que habitam este mundo-aqui.

O aprendiz não escolhe quais signos poderá ou não interpretar, pode bem percorrer todos os mundos de signos, como também enveredar por caminho contrário, detendo-se em apenas um, ser um gênio na interpretação de um mundo e malfadado em outros. Caso exemplar apresentado por Deleuze, em concordância com Proust, é o médico Cottard, sensível aos signos da doença e médico exímio, entretanto, sem qualquer sensibilidade para apreender e interpretar os signos mundanos presentes, como regras nos salões dos Verdurin (Deleuze, 2010Deleuze, G. (2010). Proust e os signos. (2aed.). Tradução de Antonio Piquet e Roberto Machado. Rio de Janeiro: Forense Universitária., p. 5).

Deleuze afirma que a “vocação é sempre uma predestinação com relação aos signos” (2010, p. 4). Dessa perspectiva, o aprendiz não escolhe o que vai aprender e nem como, longe disso, é escolhido pelas essências que o envolvem, estando, assim, implicadas no aluno predestinado a elas. São as essências que o sensibilizam aos signos correspondentes, daí não ser possível mensurar o valor da aprendizagem antes de seu término, só se atribuindo valor depois, nunca antes de terminá-la.

Nesse ponto, emerge a primeira divergência entre a didática e a aprendizagem proustiana. De modo geral, para a didática, o ensino deve ser de conteúdos relevantes e intencionais, pois sabe-se o valor do que será ensinado antes da ação de ensinar. Constata-se serem veredas contrárias ao ensino dos signos, que são frutos dos acasos que só ensinam pela coação, violência que seleciona as faculdades específicas e as fazem funcionar em sentido involuntário (Deleuze, 2010Deleuze, G. (2010). Proust e os signos. (2aed.). Tradução de Antonio Piquet e Roberto Machado. Rio de Janeiro: Forense Universitária., p. 94).

Infere-se que cada aprendiz seja mesmo um sujeito indeterminado, ao qual singularidades se combinam e se completam de maneira que, em cada mundo das essências, essas combinações podem ser diferentes, propondo soluções diferentes para os mesmos problemas apresentados em todos esses mundos. Essa concepção deriva das mônadas, de Leibniz (1983, p. 103-115)Leibniz, G. W. (1983). A monadologia, In Newton, I. Princípios Matemáticos; Óptica; O peso e o equilíbrio dos fluídos; Leibniz, Gottfried. A monadologia; Discurso de Metafísica e outros textos. Traduções de Carlos Lopes de Matos … (et al.). (2a ed.). São Paulo: Abril Cultural, (coll. Os Pensadores)., na qual cada uma comporta singularidades, pois são organizadas e determinam os indivíduos, que se convergem sobre si mesmos, isto é, formam mônadas cuja autonomia do interior contém um interior sem exterior. Esse é o processo de individuação, de modo que cada mundo só possa ser expresso por esses indivíduos (Deleuze, 2015Deleuze, G. (2006). Gilbert Simondon: O indivíduo e sua gênese físico-biológica. InG. Deleuze. A ilha deserta: e outros textos. Edição preparada por David Lapoujade; organização da edição brasileira e revisão técnica Luiz B. L. Orlandi. São Paulo: Iluminuras., pp. 118-119).

Cada sujeito exprime o mundo de um certo ponto de vista. Mas o ponto de vista é a própria diferença, a diferença interna e absoluta. Cada sujeito exprime, pois, um mundo absolutamente diferente e, sem dúvida, o mundo expresso não existe fora do sujeito que o exprime (o que chamamos de mundo exterior é apenas a projeção ilusória, o limite uniformizante de todos esses mundos expressos), mas o mundo expresso não se confunde com o sujeito: dele se distingue exatamente como a essência se distingue da existência e inclusive de sua própria existência. Ele não existe fora do sujeito que o exprime, mas é expresso como a essência, não do próprio sujeito, mas do Ser, ou da região do Ser que se revela ao sujeito

(Deleuze, 2010Deleuze, G., & Guattari, F. (2010). O anti-Édipo: capitalismo e esquizofrenia 1. Trad. Luiz B. L. Orlandi. São Paulo: Editora 34., pp. 40-41).

Para Deleuze, então, os indivíduos são participantes de mundos “incompossíveis”, repletos de acasos que fogem das determinações, e o mundo incompossível é rejeitado por Leibniz na medida em que traz contingências. As singularidades, isto é, essências, pontos de vistas, ideias, são individuais e individualizantes, dando forma a muitos mundos revelados ao artista que, por sua vez, mais que os criar, os transparece (Deleuze, 2015Deleuze, G. (1988). Diferença e repetição. Tradução de Luiz B. L. Orlandi e Roberto Machado. Rio de Janeiro: edição Graal., p. 118; Deleuze, 2010Deleuze, G. (2010). Proust e os signos. (2aed.). Tradução de Antonio Piquet e Roberto Machado. Rio de Janeiro: Forense Universitária., p. 41).

Esclarecido o que vem a ser um aprendiz, avancemos aos ensinamentos. Os ensinos não passam por verdades e matérias objetivas, pelos grandes saberes armazenados e repassados por grandes especialistas. Proust expressa grande admiração por Bergotte e Elstir, no entanto, são esses mesmos “homens superiores” (no sentido de homens especializados em determinados saberes) que o frustram (Deleuze, 2010Deleuze, G., & Guattari, F. (2010). O anti-Édipo: capitalismo e esquizofrenia 1. Trad. Luiz B. L. Orlandi. São Paulo: Editora 34., p. 29) por comunicarem ao protagonista determinados saberes, cuja verdade, como efeito, o imobilizara para o aprendizado, impedindo-o de percorrer a trilha dos signos, das decepções e superações pelas quais se encaminha. Nota-se, aqui, que, em didática, diz-se que o professor é sujeito capaz de avaliar o que será ensinado, mas em Proust, opera-se o inverso: os mestres capazes de ensinar são justamente os que nada têm a oferecer. Aflora, assim, mais uma importante divergência entre o que se considera ensinar, para diversos autores no campo da didática (Comenius, 1966Comenius. (1966). Didática magna: tratado da arte universal de ensinar tudo a todos. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian.; Flitner, 1935Flitner, W. (1935). Pedagogía sistemática. Trad. José Ferrater Mora. Barcelona; Madri; Buenos Aires; Rio de Janeiro: Labor.; Alian, 2012Alain. (2012). Considerações sobre a educação seguidas de pedagogia infantil. Tradução de Lília Ledon da Silva. São Paulo: É Realizações.), e o aprender, na leitura de Proust, conforme Deleuze (2010, p. 29)Deleuze, G., & Guattari, F. (2010). O anti-Édipo: capitalismo e esquizofrenia 1. Trad. Luiz B. L. Orlandi. São Paulo: Editora 34.: o professor na Recherche não se reconhece como professor, nem sabe que o é, não se tratando de uma identidade, como ocorre na didática.

O primeiro passo para a aprendizagem é o acaso de um encontro, a emissão de um signo que surge do encontro entre dois corpos, entre o objeto ou pessoa que emite o signo e o sujeito sensível que o percebe: “Não procurara as duas pedras em que tropeçara no pátio. Mas o modo fortuito, inevitável por que surgira a sensação constituía justamente uma prova da verdade do passado que ressuscitava” (Proust, 1983Proust, M. (1983). Tempo Redescoberto. (7a ed.). L. M. Pereira (Trad.). Rio de Janeiro: Editora Globo., p.130). Desse modo, o acaso do encontro faz com que o sujeito desperte para uma verdade até então oculta, conforme afirma Deleuze:

A verdade depende de um encontro com alguma coisa que nos força a pensar e a procurar o que é verdadeiro. O acaso dos encontros, a pressão das coações são os dois temas fundamentais de Proust. Pois é precisamente o signo que é objeto de um encontro e é ele que exerce sobre nós a violência. O acaso do encontro é que garante a necessidade daquilo que é pensado”

(Deleuze, 2010Deleuze, G., & Guattari, F. (2010). O anti-Édipo: capitalismo e esquizofrenia 1. Trad. Luiz B. L. Orlandi. São Paulo: Editora 34., p.15).

A necessidade e a verdade são fundamentais. O que dá início à busca é o enigma do signo, a verdade que ele esconde leva à necessidade de interpretá-lo, de retirar o pensamento da simples representação. Ao se deparar com o signo, o sujeito tende a buscar no objeto o segredo procurado. Nasce, aí, o segundo passo: a decepção. A decepção é indispensável, pois se o objeto não é portador da verdade, o sujeito é levado a compensar a frustração com interpretações de signos menos profundos (Deleuze, 2010Deleuze, G., & Guattari, F. (2010). O anti-Édipo: capitalismo e esquizofrenia 1. Trad. Luiz B. L. Orlandi. São Paulo: Editora 34., p. 33).

O desenvolvimento do signo e do sentido não é realizado nem pelo objeto e nem pelo sujeito sensível que apreende: ultrapassando-os, é a essência quem anula ambos. Cada mundo dos signos mantém relação com as essências, o objetivo é sempre alcançá-las; no entanto, tal relação somente é revelada na arte: partindo-se da obra de arte retrospectivamente, percebe-se que a essência já estava em todos os outros signos sempre assumindo uma forma mais geral.

A essência em Proust remete, de acordo com Deleuze, às ideias platônicas, de modo que ganham uma realidade independente do sujeito, sendo, nesse sentido, pré-existente, antecedendo os sujeitos e as revelações artísticas, e, à vista disso, não é verídico assumir as essências ou signos como estados psicológicos (Deleuze, 2010Deleuze, G. (2010). Proust e os signos. (2aed.). Tradução de Antonio Piquet e Roberto Machado. Rio de Janeiro: Forense Universitária., p. 41).

As duas potências da essência são a diferença e a repetição, forças que permanecem em todos os mundos, e para melhor compreender o que vem a ser o mundo das artes e da essência precisamos entender como esta última se apresenta em cada caso e, finalmente, como atinge sua total liberdade (Deleuze, 2010Deleuze, G., & Guattari, F. (2010). O anti-Édipo: capitalismo e esquizofrenia 1. Trad. Luiz B. L. Orlandi. São Paulo: Editora 34., p. 47).

A forma mais geral das essências são as leis do vazio. Como já mencionado, os signos mundanos são marcados por sua vacuidade. Valendo por suas ações, são percebidos pelas repetições dos gestos e palavras, daí, nesse caso, a essência não ser individual nem individualizante e sim geral, pois não se apresenta por vias de apenas um indivíduo, mas do grupo e, habitualmente, é demonstrada pelos sujeitos mais falantes. O valor dessa categoria reside no inconsciente dos elementos do grupo que se expressam sem pensar previamente, obedecendo simplesmente aos preceitos instituídos e atendendo à necessidade de amadurecimento do aprendiz, e sem eles não seria possível atingir os demais níveis (Deleuze, 2010Deleuze, G. (2010). Proust e os signos. (2aed.). Tradução de Antonio Piquet e Roberto Machado. Rio de Janeiro: Forense Universitária., p. 81).

Os amores ensinam, e, diferentemente do que Cordeiro (2007)Cordeiro, Jaime. (2007) Didática. São Paulo: Contexto. propõe, então as experiências amorosas estão entre as mais profícuas em aprendizagem. Os amores não se explicam pelo ser amado, nem ao menos pelas circunstâncias vividas. De acordo com Deleuze, existiria uma diferença original que antecede as séries amorosas, constituindo uma mesma essência que anima as séries e se diversifica nos amados: “É que a essência é em si mesma diferença, não tendo, entretanto, o poder de diversificar e de diversificar-se, sem a capacidade de se repetir, idêntica a si mesma” (Deleuze, 2010Deleuze, G. (2010). Proust e os signos. (2aed.). Tradução de Antonio Piquet e Roberto Machado. Rio de Janeiro: Forense Universitária., p. 46). Em cada amor sucessivo é retomada a lei da mentira, dos mundos implicados no amado, cada amor conta com termos diferentes, vários amores diferentes por pessoas diferentes que formam séries. Por outro lado, a essência diversifica um mesmo amado como se este assumisse vários aspectos e formasse novas séries em si.

Como a essência é uma lei anterior e não carece dos sujeitos por ser precedente, por realizar a articulação de várias experiências independentes, as vivências amorosas de Proust com Albertina e Gilberta se conectam às experiências amorosas de Swann e Odette, sempre se repetindo e, ao mesmo tempo, sempre com diferenças de contraste (Deleuze, 2010Deleuze, G., & Guattari, F. (2010). O anti-Édipo: capitalismo e esquizofrenia 1. Trad. Luiz B. L. Orlandi. São Paulo: Editora 34., p. 67).

Por implicar mundos desconhecidos, o ser amado emite signos que traem a verdade e despertam o sofrimento resultante do ciúme, e, pela sensibilidade acarretada pelo sofrimento, a inteligência em sua forma involuntária procura a verdade. A lei dessa série é a constatação de que se está sendo enganado, antecedendo o rompimento da relação e fazendo emergir a alegria por descobrir essa dolorosa lei. É a inteligência, em sua forma involuntária, que permite a transformação do sofrimento em alegria.

Nessa categoria, a essência não dispõe de autonomia por se submeter às contingências externas, sendo sempre escolhida pelo acaso dos encontros e escolhas dos parceiros, pela qual um e outro encarnam essências específicas, as quais serão sensíveis, deixando ao lado milhares de outras essências e possíveis séries (Deleuze, 2010Deleuze, G. (2010). Proust e os signos. (2aed.). Tradução de Antonio Piquet e Roberto Machado. Rio de Janeiro: Forense Universitária., p. 72). Para além dos signos mentirosos, o amor procura calar e ocultar as séries homossexuais presentes no amado. Para as mulheres, a série de Gomorra, para os homens, a série de Sodoma, mundo inacessível àquele que ama, e são as séries homossexuais que despertam igualmente o ciúme, por encobrirem o segredo de tais mundos (Deleuze, 2010Deleuze, G. (2010). Proust e os signos. (2aed.). Tradução de Antonio Piquet e Roberto Machado. Rio de Janeiro: Forense Universitária., p.76).

Como já referido, o próximo grupo é mais nobre, embora ainda esteja um nível abaixo da arte pelo excesso de materialidade: trata-se dos signos sensíveis, reminiscências ou desejos. O uso da memória é específico desse grupo, e vale a ressalva de que a memória só é válida enquanto involuntária, pois essa faculdade é solicitada pelo próprio signo sensível.

A complexidade de tais signos reside na contiguidade espacial que decorre de uma contração do tempo. A princípio, sugere uma associação por ainda estar em funcionamento a memória voluntária, que separa os dois momentos – a despeito de ser semelhante à sensação de um e outro. A distância material que essa faculdade cognitiva ressalta não permite que se chegue à verdade escondida pelo signo, assim, não revela a essência. Um exemplo reside na própria lembrança voluntária do autor sobre Combray, a já mencionada cidade, em que, no livro, Proust vivera uma parte de sua infância:

Como se Combray consistisse apenas em dois andares ligados por uma estreita escada, e como se nunca fosse mais que sete horas da noite. Na verdade, poderia responder, a quem me perguntasse, que Combray compreendia outras coisas mais e existia em outras horas. Mas como o que eu então recordasse me seria fornecido unicamente pela memória voluntária, a memória da inteligência, e como as informações que ela nos dá sobre o passado não conservam nada deste, nunca me teria lembrado de pensar no restante de Combray

(Proust, 1981Proust, M. (1981). No Caminho de Swann. (6a ed.). M. Quintana (Trad.). Rio de Janeiro: Editora Globo., p. 44).

A memória voluntária observa e compõe a lembrança do passado como um presente distante, ao que Bergson chama de memória-lembrança. Sabe-se da sobrevivência do passado, no entanto, ela não dá conta de explicar como o passado sobrevive em si (Deleuze, 2004, p. 30).

Para que seja possível relembrar, Deleuze afirma que “o passado é isso em que nós nos colocamos de súbito para nos lembrar” (2004, p. 30), o passado não deixou de ser, apenas é abandonada sua utilidade pelo consciente. O que o filósofo defende é a coexistência do passado com o presente, e o próprio presente entra em cena, então, com a memória-contração. O presente seria apenas a contração do passado, assim como o passado, a distensão do presente (Deleuze, 2004Deleuze, G. (2006). Gilbert Simondon: O indivíduo e sua gênese físico-biológica. InG. Deleuze. A ilha deserta: e outros textos. Edição preparada por David Lapoujade; organização da edição brasileira e revisão técnica Luiz B. L. Orlandi. São Paulo: Iluminuras., p. 31). “Só o presente existe no tempo e reúne, absorve o passado e o futuro, mas só o passado e o futuro insistem no tempo e dividem ao infinito cada presente” (Deleuze, 2015, p. 6).

Pela contração é possível estabelecer a ressonância de uma sensação passada com uma sensação atual, “o que vale dizer que essa memória não se apodera diretamente do passado: ela o recompõe com os presentes. … o passado, tal como é em si, coexiste, não sucede ao presente que ele foi” (Deleuze, 2010Deleuze, G., & Guattari, F. (2010). O anti-Édipo: capitalismo e esquizofrenia 1. Trad. Luiz B. L. Orlandi. São Paulo: Editora 34., pp. 54-55).

Apenas a memória em seu exercício involuntário consegue envolver dois momentos diferentes, mas com sensações semelhantes, de modo que ressurjam lembranças até ali esquecidas ou, no mínimo, adormecidas. A memória voluntária é provocada pelo signo e traz para o presente uma imagem de eternidade, uma sensação tão viva que parece situada fora do tempo, que apenas se trai pela materialidade do presente:

… o sabor do bolinho fazendo o passado permear o presente ao ponto de me tornar hesitante, sem saber em qual dos dois me encontrava; na verdade, o ser que em mim então gozava dessa impressão e lhe desfrutava o conteúdo extratemporal, repartido entre o dia antigo e o atual … conseguia situar no único meio onde poderia viver, gozar a essência das coisas, isto é, fora do tempo. … Neste caso, como em todos os precedentes, a sensação comum buscara recriar em torno de si o lugar antigo, enquanto o atual que o substituía opunha-se com toda resistência de sua matéria a essa imigração …

(Proust, 1983Proust, M. (1983). Tempo Redescoberto. (7a ed.). L. M. Pereira (Trad.). Rio de Janeiro: Editora Globo., pp. 124-126).

As duas potencialidades da essência se apresentam como a repetição de uma mesma impressão; entretanto, a essência se exprime por intermédio de Combray ideal: a saber, é a própria diferença que retorna, é essa essência que implica de maneira relativa o sabor do bolinho e as qualidades da cidade, resultando em uma essência local. Novamente, Deleuze expõe que a essência ainda é material e, nesse caso, porque depende das eventualidades exteriores, sujeitando-se às vivências para realizar a associação, sendo antes escolhida, e não a que escolhe; as matérias em que se encarna não efetuam o envolvimento completo (Deleuze, 2010Deleuze, G. (2010). Proust e os signos. (2aed.). Tradução de Antonio Piquet e Roberto Machado. Rio de Janeiro: Forense Universitária., p. 61).

Importante que falemos sobre o tempo que se redescobre nas reminiscências, por tornar próximos dois momentos separados no tempo e no espaço, resultando em uma impressão ideal e diferente do que se tinha. O tempo redescoberto nas reminiscências permite ver, por apenas um instante, de forma fugaz, a eternidade, traduzida como mundo das essências.

No campo dos signos da arte – literatura, pintura, música, teatro –, as essências ganham total autonomia e efetuam a escolha do sujeito que irão individualizar; e, uma vez escolhido, o sujeito é envolvido por elas: “não é o sujeito que explica a essência, é antes a essência que implica, se envolve, se enrosca no sujeito” (Deleuze, 2010Deleuze, G., & Guattari, F. (2010). O anti-Édipo: capitalismo e esquizofrenia 1. Trad. Luiz B. L. Orlandi. São Paulo: Editora 34., p. 41).

Os signos da arte são imateriais. O que vem a ser isso? Cada signo artístico é emitido por meios mais espiritualizados, pelas cores, pelas notas – como é o caso da pequena frase musical revelada por Vinteuil (este seria um compositor muito procurado por Swann por conta de um arranjo musical peculiar, repleto de signos) –, por gestos, pela própria formação de frases. As obras artísticas “inspiradas”, ou melhor, animadas pelas essências, não carecem dos sentidos para serem engendradas – donde é possível inferir que seja esta, por exemplo, a característica do corpo sem órgãos3 3 O corpo sem órgãos se remete à obra Proust e os Signos, pois, para Deleuze, seria este não literalmente um corpo desprovido de qualquer órgão, mas dos órgãos dos quais gostaria de dispor para algumas funções, como: saber ouvir uma música, ou observar uma paisagem, funções que Marcel Proust afirma não possuir. Assim, o corpo sem órgãos é aquele que não carece dos sentidos, daquilo que é sensível para compreender; é precisamente aquele corpo que não está submisso aos órgãos porque atende ao chamado do signo, que é o que o move. “O narrador pode ser dotado de uma extrema sensibilidade, de uma prodigiosa memória: ele não possui órgãos no sentido em que é privado de todo uso voluntário e organizado de suas faculdades … Sensibilidade involuntária, memória involuntária, pensamento involuntário são como que reações globais intensas do corpo sem órgãos a signos de diversas naturezas” (Deleuze, 2010, p. 173). apresentado por Deleuze ao fim da obra.

Proust tem muitos momentos de desapontamento com a ausência de habilidades como saber ouvir, ver e mesmo descrever as coisas e paisagens, as quais, a princípio, acredita serem necessárias para criar suas obras. Como elucidado anteriormente, essas são habilidades objetivas que confiam ao objeto, à matéria vista, a verdade que se busca, num nível de produção que permanece atrelada à vida e não às essências, outorgando à inteligência voluntária e mesmo ao pensamento, enquanto re-cognição, o valor que só o pensamento puro detém. Por esse motivo é que o acaso do encontro com os signos é crucial. Sem o inesperado, a inteligência permaneceria prevenida e não cederia espaço para seu exercício involuntário.

Uma nuvem, um triângulo, um campanário, uma flor, um seixo, sentido que talvez houvesse, sob esses sinais, algo diferente que devia procurar descobrir, uma ideia traduzida à maneira dos hieróglifos, que se suporiam representar apenas objetos materiais. Decifração sem dúvida difícil, mas que unicamente nos permitia ler a verdade. Porque as verdades direta e claramente apreendidas pela inteligência no mundo da plena luz são de qualquer modo mais superficiais do que as que a vida nos comunica à nossa revelia numa impressão física já que entrou pelos sentidos, mas da qual podemos extrair o espírito

(Proust, 1983Proust, M. (1983). Tempo Redescoberto. (7a ed.). L. M. Pereira (Trad.). Rio de Janeiro: Editora Globo., p. 129).

O pensamento puro é a única faculdade capaz de interpretar a essência. A despeito de toda complexidade, é nesse ponto que Deleuze mantém uma comunicação estreita com as demais obras de sua autoria utilizadas no estudo em questão; não que se trate de um mimetismo, mas porque, como o autor mesmo disse, no mundo das essências, todas as séries que se formam (Deleuze, 2015) não são comunicáveis, de modo que a única forma de comunicação se dá por intermédio das obras de arte.

O mundo das essências, pode-se inferir, que se compõe dos mundos incompossíves que não conseguem se comunicar. No entanto, para Deleuze, cada obra de arte é elaborada por essências implicadas no sujeito artista portador de signos imateriais (Deleuze, 2010Deleuze, G., & Guattari, F. (2010). O anti-Édipo: capitalismo e esquizofrenia 1. Trad. Luiz B. L. Orlandi. São Paulo: Editora 34., p. 35), de forma que não se conhece mais do que o mundo que possa exprimir. Cada artista revela um mundo que é só seu, que o individualiza pelas suas próprias essências. Ocorre que uma obra se irradia com outra transversalmente; isto é, existe uma unidade entre obras de autores díspares porque uma obra de arte provoca um díspar, evoca outra e, na repetição, dispara diferentemente a diferença, jorrando a atualização pelos acontecimentos (Deleuze, 2010Deleuze, G. (2010). Proust e os signos. (2aed.). Tradução de Antonio Piquet e Roberto Machado. Rio de Janeiro: Forense Universitária., p. 160).

Essa repetição é uma repetição espiritual, visto que ela se elabora no ser em si do passado; é, também, repetição do Todo, em níveis diversos coexistentes. São essências que ganham uma realidade espiritual, não visível. E quem melhor exprime esse mundo com as seguintes palavras é juntamente Proust:

E o prazer que lhe dava a música e que em breve ia criar nele uma verdadeira necessidade, assemelhava-se com efeito, em tais momentos, ao prazer que sentiria ao experimentar perfumes, ao entrar em contato com um mundo para o qual não fomos feitos, que nos parece sem forma porque nossos olhos não o percebem, sem significado porque escapa à nossa inteligência, e nós só o atingimos por um único sentido. … Swann não se enganara, pois, em crer que a frase da sonata realmente existia. Humana sob esse ponto de vista, pertencia, no entanto, a uma ordem de criaturas sobrenaturais que nunca vimos, mas que apesar disso reconhecemos enlevados quando algum explorador do invisível chega a captar uma delas, a trazê-las, do mundo divino a que ele tem acesso, para brilhar alguns instantes acima do nosso. Era o que fizera Vinteuil com a pequena frase

(Proust, 1981Proust, M. (1981). No Caminho de Swann. (6a ed.). M. Quintana (Trad.). Rio de Janeiro: Editora Globo., pp. 203 e 292).

As essências são expressas pelas obras que se revelam ao sujeito; no entanto, se encarnam na obra de arte através de matérias menos brutas, de modo que o artista tenha condições de comunicá-la: “ela se encarna na matéria, mas essas matérias são dúcteis tão bem malaxadas e desfiadas que se tornam inteiramente espirituais. Essas matérias sem dúvida são a cor para o pintor, como o amarelo de Vermeer, o som para o músico e a palavra para o escritor” (Deleuze, 2010Deleuze, G. (2010). Proust e os signos. (2aed.). Tradução de Antonio Piquet e Roberto Machado. Rio de Janeiro: Forense Universitária., p. 44).

A literatura oferece grande interesse por aparentar ser mais sublime pelo próprio intelecto do autor, mas, na verdade, é o resultado de uma busca interior, de sofrimentos, como o valor que Albertina (um dos pares românticos de Proust na Recherche) ganha aos olhos do eu lírico, depois que este descobre que os sofrimentos causados por ela, o tempo perdido com seu amor e despendido em amor levaram à obra que ele compunha.

Sobretudo ao perguntar-me à Sra de Cambremer como podia eu preferir a companhia de Albertina à de um homem notável como Elstir. Mesmo do ponto de vista intelectual eu a adivinhava enganada, mas não sabia que o erro lhe provinha da ignorância das lições com as quais aprende seu ofício o homem de letras … A mulher de quem não podemos prescindir nos faz sofrer, arranca-nos, como não faria nenhum homem intelectual que nos interessasse, toda uma gama de sentimentos profundos, vitais … Fazendo-me perder tempo, afligindo-me, Albertina me terá sido mais útil, do ponto de vista literário …

(Proust, 1983Proust, M. (1983). Tempo Redescoberto. (7a ed.). L. M. Pereira (Trad.). Rio de Janeiro: Editora Globo., pp. 150 e 152).

O que supomos inferior é mais rico em signos e por isso oferece mais aprendizado. A obra de arte é composta pelo aprendizado obtido pelo sofrimento:

um homem dotado de sensibilidade poderia, ainda que não tivesse imaginação, escrever romances admiráveis. O sofrimento que outros lhe causassem, seus esforços para evitá-lo, os conflitos que daí lhe resultariam com pessoas cruéis, tudo isso interpretado pela inteligência, forneceria matéria para um livro

(Proust, 1983Proust, M. (1983). Tempo Redescoberto. (7a ed.). L. M. Pereira (Trad.). Rio de Janeiro: Editora Globo., p. 146).

A arte ganha relevância, primeiramente, por ser a revelação das essências, mas igualmente por carregar consigo dois elementos primordiais: o tempo redescoberto e o pensamento puro. Afinal, o pensamento em Deleuze nunca é um exercício natural, e talvez por isso sua filosofia se comunique tanto com Proust. Tanto que, nas palavras do próprio filósofo, é Marcel Proust quem forma uma nova imagem do pensamento que, com os signos e as essências, confronta a filosofia em seus pressupostos (Deleuze, 2010Deleuze, G. (2010). Proust e os signos. (2aed.). Tradução de Antonio Piquet e Roberto Machado. Rio de Janeiro: Forense Universitária., pp. 88-89), como a falsa crença de que o ser humano é predisposto a pensar, e, voluntariamente, buscar o que é verdadeiro, que, por vias de métodos é possível alcançá-lo. Para Deleuze (1974, p. 279)Deleuze, G. (1974). Lógica do sentido. Trad. Luiz Roberto Salinas Fortes, São Paulo: Perspectiva., precisamos ser chacoalhados violentamente pelas intensidades para termos a coragem, comentando Lucrécio, de “determinar o que é verdadeiramente infinito e o que não é, distinguir o verdadeiro e o falso infinito”. Nesse ponto, tem-se mais uma divergência não somente com os ditos racionalistas, mas com a didática, pois não existe método capaz de ensinar a pensar.

Pensar é algo que se cria dentro do próprio pensamento, arrebatando-o de toda inércia, por isso é uma coação. É ela que emerge como pensamento puro, cuja própria explicação é a essência, ela leva o sujeito a pensá-la, nunca está disponível aos esforços voluntários: “só se deixam pensar quando somos coagidos a fazê-lo” (Deleuze, 2010Deleuze, G., & Guattari, F. (2010). O anti-Édipo: capitalismo e esquizofrenia 1. Trad. Luiz B. L. Orlandi. São Paulo: Editora 34., p. 94). Ela se enrola nos signos de modo que nos obrigue a pensá-la e desenrolá-la por via do sentido: só desse modo torna-se necessariamente pensada (Deleuze, 2010Deleuze, G. (2010). Proust e os signos. (2aed.). Tradução de Antonio Piquet e Roberto Machado. Rio de Janeiro: Forense Universitária., p. 95).

O tempo redescoberto só é acessível pelas artes, porque o tempo das essências é criação e foge a toda linearidade, é a composição de um mundo não visível que pertence às essências. O início do próprio tempo que não carece de separar passado, presente e futuro só é considerado redescoberto porque é o artista quem o redescobre nas próprias essências que o envolvem, por isso é sempre um começo de mundo, de um ponto de vista que é individual que só se expressa pelo indivíduo sem dele depender (Deleuze, 2010Deleuze, G., & Guattari, F. (2010). O anti-Édipo: capitalismo e esquizofrenia 1. Trad. Luiz B. L. Orlandi. São Paulo: Editora 34., p. 44).

Todos os demais efeitos produzidos pelos signos da vida podem ser suscitados pela arte. No último volume da série Tempo redescoberto, o protagonista experimenta simultaneamente diversas sensações, como a reminiscência da madeleine, mas nenhuma delas vem por signos sensíveis, longe disso, são evocadas pela literatura (Deleuze, 2010Deleuze, G. (2010). Proust e os signos. (2aed.). Tradução de Antonio Piquet e Roberto Machado. Rio de Janeiro: Forense Universitária., p. 145).

O que se descobre ao fim da obra é que as artes são máquinas, inclusive a obra de Proust, mundos repletos de signos que despertam aqueles que são sensíveis a eles, animados por essências. As obras, no próprio dizer de Proust, quando se refere à sua própria obra, são óculos, isto é, permitem que cada leitor se veja melhor, por isso é uma máquina que precisa funcionar: cada leitor poderia ver os efeitos, estar atento aos signos.

Entramos, por fim, em uma última questão: seria Proust um professor e, assim, poderia essa aprendizagem ser ensinada? Por todas as leituras realizadas e por todo o esforço aqui expresso, acreditamos que Marcel Proust não seja um professor, porque não se pode ensinar a pensar, nem a reconhecer os signos. Tal como Leonardo Maia expôs, toda aprendizagem é resultado das experiências de cada indivíduo, não pode depender de métodos, já que cada qual é sensível a signos específicos, e os encontros são acasos nunca premeditados (Maia, 2014Maia, L. (2014). A interpretação deleuziana de Proust: aprendizado e subjetividade. InDeleuze Hoje. Org: A. B. Azevedo… [et al.]. Editora: Fap-Unifesp. São Paulo., p. 374).

Por que alguém aprende? Maia afirma que se aprende quando se perde uma direção, quando somos interrompidos por um imprevisto que nos desorienta, daí a necessidade de lembrar, buscar nas experiências vividas uma orientação para esse novo aprendizado, não há um fim determinado a priori a ser alcançado.

Para fazer um contraponto à aprendizagem pelos signos proustianos, iremos retomar o livro de Clarice Lispector, Uma aprendizagem ou O livro dos prazeres, cuja protagonista Lóri segue um mesmo caminho de aprendizagem que seu par romântico Ulisses. Cabe aqui uma breve comparação em prol de estabelecer uma contraposição da aprendizagem presente nesse livro de Clarice Lispector com a leitura de Proust realizada por Deleuze. A aprendizagem em que Lóri envereda é a busca do ser, de abdicar de uma identidade pessoal, como o próprio nome, que, no entanto, não é individuada.

Em alguns momentos, Lispector se refere a Lóri não como um indivíduo individual, mas como “a mulher”, sem nome ou qualquer identidade além de ser uma mulher, além de ser um ser vivo, individuada pela sua aprendizagem de ser, de se descobrir e de descobrir que as coisas existem emancipadas das funções que o ser humano lhe atribui (Lispector, 1982Lispector, C. (1982). Uma aprendizagem ou O livro dos Prazeres (15ª ed.). Rio de Janeiro: Editora: Nova Fronteira., p. 83). “Sua pesquisa do mundo não humano, para entrar em contato com o neutro vivo das coisas que, estas não pensando, eram, no entanto, vivas, ela passeava por entre barracas e era difícil aproximar-se de alguma, tantas mulheres trafegavam com sacos e carrinhos” (Lispector, 1982Lispector, C. (1982). Uma aprendizagem ou O livro dos Prazeres (15ª ed.). Rio de Janeiro: Editora: Nova Fronteira., p. 136). Propõe um mundo interligado que configurasse uma unidade que transcende tanto as coisas animadas quanto as não animadas; o deus no qual Lóri passa a crer é um todo impessoal em que cada coisa toma parte, mais que divindade, é um conjunto harmonioso. “Nesse realismo cada coisa da feira tinha importância em si mesma, interligada a um conjunto – mas qual era o conjunto” (Lispector, 1982Lispector, C. (1982). Uma aprendizagem ou O livro dos Prazeres (15ª ed.). Rio de Janeiro: Editora: Nova Fronteira., p. 137).

O tema de Clarice Lispector é o mesmo de Marcel Proust, e ambos são profundamente filosóficos; no entanto, não se trata do mesmo aprendizado. O herói Ulisses acredita que Lóri esteja trilhando os mesmos passos que ele, sem se dar conta de que “a mulher” o ultrapassara, chegando ao seu ser sem se ver perdida:

Minutos depois ela disse:

− Não encontro ainda uma resposta quando me pergunto: quem sou eu? Mas acho que agora sei: profundamente sou aquela que tem a própria vida e também a tua vida. Eu bebi a nossa vida.

− Mas isso não se pergunta. E a pergunta deve ter outra resposta. Não se faça de tão forte perguntando a pior pergunta de um ser humano. Eu, que sou mais forte que você, não posso me perguntar “quem eu sou” sem ficar perdido. E sua voz soara como a de um perdido

(Lispector, 1982Lispector, C. (1982). Uma aprendizagem ou O livro dos Prazeres (15ª ed.). Rio de Janeiro: Editora: Nova Fronteira., p. 173).

Por serem os mesmos passos e os mesmos fins, diverge assim de Proust, na medida em que, para o autor francês, o indivíduo não escolhe a essência que irá envolver, ao passo que, na narrativa de Lispector, as duas personagens passam pelos mesmos sintomas, permitindo o reconhecimento da etapa de aprendizagem em que se está. Para Proust não se conhece a obra e nem o valor do que irá aprender por serem aprendizagens únicas e inéditas (Maia, 2014Maia, L. (2014). A interpretação deleuziana de Proust: aprendizado e subjetividade. InDeleuze Hoje. Org: A. B. Azevedo… [et al.]. Editora: Fap-Unifesp. São Paulo., p. 379). Ulisses vê-se como professor de Lóri, aquele que conduz: outra divergência com a Recherche, já que a aprendizagem ali desvelada não tem aluno ou professor previamente estabelecido.

Trata-se, portanto, de duas formas diferentes de pensar-aprender. Casualmente, o aprendiz saberá que há uma realidade não atualizada, que os signos estão dispostos, que sofremos a violência deles; no entanto, nenhum professor pode dizer qual é a arte que o aprendiz poderá encarnar, nem mesmo quais serão os amores que o levarão às séries amorosas precedidas pelas essências. Talvez seja possível inferir que se o autor da Recherche não é um professor, mas que mesmo assim tem força para afetar os corpos pela sua sensibilidade, já que sua obra só se comunicará àqueles que forem sensíveis a ela.

Considerações finais

Com base na leitura da série Em busca do tempo perdido, a saber, especialmente, No caminho de Swann e Tempo redescoberto, de Marcel Proust, e igualmente em cotejo com a obra de Gilles DeleuzeProust e os signos, é possível notar que a aprendizagem em Deleuze é algo extraescolar, não demanda a restrição do ambiente escolar – embora este possa incitá-la pelas inúmeras relações, pessoas, signos e essências que possa conter – porque a aprendizagem se inicia na vida, nos amores, nos sofrimentos, nas desilusões, nos ambientes governados pelas regras de grupo, espaço de convivência, e mesmo em momentos em que Cordeiro (2007)Cordeiro, Jaime. (2007) Didática. São Paulo: Contexto. diz não se ter a intenção de ensinar, pois é onde/quando mais se ensina sobre a vida, sobre a arte, sobre as verdades enigmáticas dos signos.

Por isso, seguindo ainda esse raciocínio, não existe um professor enquanto identidade objetiva em Proust, os professores são todos aqueles que oferecem signos a serem interpretados. Um elemento que está implícito e é pouco enfatizado pelo próprio Proust é a relação com o outro, que se torna mais enfático em Lispector, pois não se aprende nada sozinho, em outras palavras, só se aprende com o outro, mas não como o outro, aspecto este que Deleuze ressalta quando afirma que “Nunca se aprende fazendo como alguém, mas fazendo com alguém (2010, p. 21). E esse outro pode ser a mãe ou a roda de amigos.

O valor da aprendizagem nunca é determinado antes, vem sempre depois, quando se entende a presença da essência que estava implicada no signo e no sujeito. Aprender em Deleuze é aprender a buscar a verdade pela necessidade causada pelo signo, é considerar absolutamente toda matéria da vida ou a imaterialidade da arte como portadora de signos que escondem a verdade, mas irradia instabilidades cujo liame do pensamento com a individuação produz a aprendizagem. Todo o tempo é relevante, mesmo o tempo que se perde, empreendimento sem valor aparente, como amar pessoas que mentem e enganam, tempo gasto com a sociedade e suas regras, em ser aceito por elas, tempo gasto com outras coisas mais importantes, como trabalhar ou se dedicar a pessoas mais profundas (Deleuze, 2010Deleuze, G. (2010). Proust e os signos. (2aed.). Tradução de Antonio Piquet e Roberto Machado. Rio de Janeiro: Forense Universitária., p. 19).

Não se aprende uma identidade em Proust. Aprende-se que as essências implicadas nos signos dão “[o] que pensar” (Deleuze, 2010Deleuze, G., & Guattari, F. (2010). O anti-Édipo: capitalismo e esquizofrenia 1. Trad. Luiz B. L. Orlandi. São Paulo: Editora 34., p. 89). Ou seja, forçam a verdadeiramente pensar, colocar o pensamento em movimento, corroborando, como diz Deleuze, que devemos ser egiptólogos, nos atermos aos símbolos mais que às palavras carregadas de significações explícitas (2010, p. 100). Não se pode ensinar a interpretar os signos, apenas aludir a sua realidade e esperar que cada um, em sua individuação, tenha suas próprias vivências de decifração dos enigmas. Talvez seja por isso que a didática não consiga estabelecer, como padrão, uma sequência de como fazer para que a aprendizagem seja sempre efetivada, e, assim, repetida tal qual, como pretende a ciência positivista.

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    Normalização, preparação e revisão textual: Luan Maitan – revisao@tikinet.com.br
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    O corpo sem órgãos se remete à obra Proust e os Signos, pois, para Deleuze, seria este não literalmente um corpo desprovido de qualquer órgão, mas dos órgãos dos quais gostaria de dispor para algumas funções, como: saber ouvir uma música, ou observar uma paisagem, funções que Marcel Proust afirma não possuir. Assim, o corpo sem órgãos é aquele que não carece dos sentidos, daquilo que é sensível para compreender; é precisamente aquele corpo que não está submisso aos órgãos porque atende ao chamado do signo, que é o que o move. “O narrador pode ser dotado de uma extrema sensibilidade, de uma prodigiosa memória: ele não possui órgãos no sentido em que é privado de todo uso voluntário e organizado de suas faculdades … Sensibilidade involuntária, memória involuntária, pensamento involuntário são como que reações globais intensas do corpo sem órgãos a signos de diversas naturezas” (Deleuze, 2010Deleuze, G. (2010). Proust e os signos. (2aed.). Tradução de Antonio Piquet e Roberto Machado. Rio de Janeiro: Forense Universitária., p. 173).

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Editor responsável: Alexandre Filordi de Carvalho. https://orcid.org/0000-0003-4510-9440

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    28 Maio 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    06 Set 2018
  • Revisado
    22 Jun 2019
  • Aceito
    18 Mar 2020
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