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Experiências de leitura literária digital por leitores jovens 1 1 Editor responsável: Norma Sandra de Almeida Ferreira. https://orcid.org/0000-0002-3078-2168 2 2 Normalização, preparação e revisão textual: Luan Maitan – revisao@tikinet.com.br

Digital literary reading experiences by young readers

Resumo

A leitura literária se modificou com a cultura digital, por meio de obras diferentes daquelas produzidas pela cultura impressa. Neste artigo, apresentamos um recorte dos resultados de uma pesquisa realizada com jovens brasileiros de 15 a 17 anos. Apresentamos as experiências de leitura literária digital de jovens leitores, procurando identificar as formas de busca e de acesso às obras literárias digitais e digitalizadas lidas por eles. A investigação adotou uma perspectiva quantitativa, com aplicação de questionários, e qualitativa, com acompanhamento das práticas de leitura literária digital de leitores jovens. Verificamos que os ambientes digitais de busca são diversos, mas nem sempre fáceis de serem conhecidos pelos jovens leitores. Para cada tipo de leitura literária digital, existem formas específicas de aceso nos ambientes digitais que as disponibilizam, bem como para cada ambiente digital que disponibiliza obras literárias são necessários procedimentos específicos para localização das obras.

Palavras-chave
leitura literária digital; leitores jovens; formação de leitores

Abstract

The literary reading has changed with the digital culture through digital works different from those produced by the printed culture. In this article we present a summary of the results from a survey conducted with young Brazilians aging from 15 to 17 years old. We present the experiences of digital literary reading of young readers seeking to identify the forms of search and access to digital and digital literary works read by them. The investigation adopted a quantitative perspective, with application of questionnaires, and qualitative, with follow-up of the practices of digital literary reading of young readers. For each type of digital literary reading there are specific ways to access them in the digital environments that make them available, as well as for each digital environment that provides digital literary works, specific procedures of localization of works are necessary.

Keywords
digital literary reading; young readers; training of readers

Introdução

As pesquisas em torno do campo dos estudos da história da leitura e do livro têm se pautado, na contemporaneidade, em diversas áreas de conhecimento que assimilaram a leitura como objeto de investigação. Os temas de interesse da história da leitura e do livro, sobretudo a partir dos estudos de Roger Chartier (1997Chartier, R. (1997). A ordem dos livros. Trad. Leonor Graça. Editora: Vega Lisboa.; 1998Chartier, R. (1998). A aventura do livro- do leitor ao navegador. Trad. Reginaldo Moraes. São Paulo: Editora Unesp.; 2002Chartier, R. (2002). Os Desafios da Escrita. São Paulo: Editora UNESP. ; 2011)Chartier, R. (2011). Do livro à leitura. In. Roger Chartier (Org). Práticas de Leitura. 5. Ed. São Paulo: Estação Liberdade. e Robert Darnton (2010)Darnton, R. (2010). A questão dos livros, passado, presente e futuro. São Paulo: Companhia das Letras., elegem a forma de produção, a materialidade desses objetos culturais, sua forma de circulação e de leitura em determinados períodos históricos. Esses estudos também têm incorporado as tecnologias digitais, tendo em vista as mutações que os textos digitais promovem na ordem do livro e nas formas de ler e escrever (Gallagher, 2015Gallagher, T. L. (2015). International Perspectives on Literacy Learning with iPads. Journal of Education. 195(3) 15-25. doi:10.1177/002205741519500303
https://doi.org/10.1177/0022057415195003...
).

Outras abordagens apresentam vertente mais pedagógica ou literária: os gêneros textuais lidos, as práticas de leitura, os mediadores, os objetos de leitura. As práticas de leitura também são objeto da sociologia da leitura, que investiga, entre outros aspectos, os hábitos de leitura, a distribuição de materiais de leitura em uma perspectiva geográfica, socioeconômica, as disposições criadas em torno do ato de ler, os modos de utilização dos materiais de leitura, como o que foi realizado, entre outros, por Leveratto e Leontsini (2008)Leveratto, J.-M.; Leontsini, M. (2008). Internet et La sociabilité littéraire. Paris: Éditions de la Bibliothéque Publique de Information., Diaz-Plaja (2008)Diaz-Plaja, A. (2008). Entre Libres: La constucció d’un itinerari lector propi en l’adolescència. In: Lectures adolescents. Colomer, T [e tal] (Orgs.) Barcelona: GRAÓ., Colomer (2003Colomer, T. (2003). Formação do Leitor Literário. Trad. Laura Sandroni. São Paulo: Global.; 2007)Colomer, T. (2007). Andar entre livros – A leitura literária na escola. Trad. Laura Sandroni. São Paulo: Global.. Dessa forma, há diferentes abordagens que buscam compreender a leitura nos seus mais diversos prismas.

Buscamos dialogar com várias dessas tendências neste artigo, nos fundamentando nos estudos históricos, sociológicos e sobre a leitura literária. Os estudos históricos são muito importantes neste estudo, para promover reflexões sobre um passado que ajuda a compreender se há rupturas ou continuidades nas práticas de leitura entre os meios manuscritos, impressos e digitais. Este artigo se insere em um dos diversos objetos que o campo da história da leitura e do livro se ocupa a investigar, nos estudos sobre as práticas de leitura, focalizando um tipo específico: a leitura literária digital. Segundo Chartier (2011, p. 78)Chartier, R. (2011). Do livro à leitura. In. Roger Chartier (Org). Práticas de Leitura. 5. Ed. São Paulo: Estação Liberdade., para conhecermos as práticas de leitura, é necessário a compreensão e a análise “dos usos, dos manuseios, das formas de apropriação dos materiais impressos” pelos leitores em determinados períodos, em grupos ou em populações específicas. Para Batista e Galvão (2011, p. 13)Batista, A. A. G., Galvão, A. M. de O. (2011). Práticas de Leitura, impressos, letramentos: uma introdução. In Leitura: práticas, impressos, letramentos, 3a ed. Belo Horizonte: Autêntica., as práticas de leitura assinalam os estudos em torno da “leitura em seu acontecimento concreto, tal como desenvolvida por leitores reais, e situada no interior dos processos responsáveis por sua diversidade e variação”.

Baseados nessas acepções, consideramos como práticas de leitura todos os atos envolvidos no momento da leitura literária, entre eles, os gestos, os comportamentos, as experiências e as preferências de suporte. Na concepção de práticas de leitura também estão incluídas as ações anteriores ou posteriores ao ato de ler do leitor jovem, que criam determinadas formas de apropriação dos materiais literários, modos de compartilhamento de informação sobre as obras lidas, buscas de obras semelhantes ou de autores conhecidos, entre outras ações que criam as condições para o ato de ler a obra literária digital. A leitura literária digital compreende a leitura de literatura digital e digitalizada realizada por jovens no suporte digital. A primeira é definida por Torres (2004)Torres, R. 2004. Poesia Experimental e ciberliteratura: por uma literatura marginalizada. In Poesia Experimental Portuguesa. 1. Enquadramento teórico e contexto crítico da PO.EX. doi: POCI/ELT/57686/2004.
https://doi.org/POCI/ELT/57686/2004...
, Hayles (2009)Hayles, N. K. (2009). Literatura Eletrônica: Novos Horizontes para o Literário. São Paulo: Global. e Manresa e Real (2015)Manresa, M., Real, N. (2015). Digital Literature for Children: Texts, Readers and Educational Practices. Oxford: Peter Lang AG. como diferente da literatura impressa que, por vezes, é transposta para o computador. Para Hayles (2009)Hayles, N. K. (2009). Literatura Eletrônica: Novos Horizontes para o Literário. São Paulo: Global., a literatura digital

geralmente considerada excludente da literatura impressa que tenha sido digitalizada, é, por contraste, “nascida no meio digital”, um objeto digital de primeira geração criado pelo uso de um computador e (geralmente lido em uma tela de computador) (p. 20).

Existe uma diversidade de tipos de obras consideradas como literatura digital; algumas compreendem gêneros integrados às obras literárias do suporte impresso, como as obras que utilizam realidade aumentada (Ortega, 2017Ortega, É. (2017). Not a case of words: Textual Environments and Multimateriality in Between Page and Screen. electronic book review. Recuperado de http://www.electronicbookreview.com/thread/electropoetics/multimateriality
http://www.electronicbookreview.com/thre...
) ou com uso de redes de construção coletiva on-line ou off-line. Outras inauguram gêneros literários novos, com características diferentes dos encontrados na cultura impressa, elaborados por meio de hipertextos, recursos multimodais e uso de programas de computador. A literatura digitalizada, por sua vez, é praticamente transportada do meio impresso para o digital, preservando as mesmas características, e pode ser acessada livremente na internet ou baixada em qualquer dispositivo digital por meio de sites, blogs, redes sociais, bibliotecas digitais ou adquirida em sites de loja de comércio eletrônico ou em aplicativos de smartphones (Almeida, 2016Almeida, F. C. de. (2016). O livro digital como processo hipermidiático. João Pessoa: Marca da Fantasia.).

Neste artigo, selecionamos dados empíricos que permitem discutir dois temas interligados: a forma de busca e de acesso, e os gêneros lidos, entendendo que os modos de realizar a busca e o acesso em meio digital exigem determinadas competências inéditas ou outras que os leitores levam do mundo do impresso e envolvem a participação em redes de sociabilidade literária na internet que, por sua vez, permitem que sejam acessados ou usufruídos determinados gêneros literários.

Metodologia

Neste artigo, apresentamos um recorte dos resultados de uma pesquisa intitulada “Práticas de leitura de literatura digital de leitores jovens”, realizada entre os anos de 2015 e 2016, com jovens brasileiros de 15 a 18 anos, pertencentes a estratos socioeconômicos diversos. Na seleção dos sujeitos e em todas as etapas da pesquisa, a variável estrato socioeconômico foi um elemento importante, sobretudo para compreendermos a relação entre condições financeiras, o acesso a dispositivos digitais/internet e a obras impressas e/ou digitais. Identificamos as formas de busca e de acesso às obras e as experiências de leitura literária digital.

A investigação adotou duas perspectivas: a primeira, quantitativa, com aplicação de questionário a 342 jovens e questionário semiaberto com 68 leitores jovens, esses filtrados do corpus geral a partir de categorias de leitura. Essa etapa teve o objetivo de fornecer um quadro mais geral do perfil de leitura literária digital desses jovens, contribuindo para verificar seus interesses e motivações pela leitura de literatura digital e digitalizada e evidenciar suas práticas de leitura literária digital. Além disso, o questionário possibilitou selecionar os leitores jovens mais ávidos, ou seja, que tinham práticas de leitura mais constantes, que responderam ter lido obras literárias, inteiras ou parcialmente, nos últimos dois meses antes da aplicação do questionário, possibilitando realizar a coleta de dados da segunda etapa da pesquisa, de natureza qualitativa. Ressalta-se que o termo “jovem” se refere aos 342 sujeitos do corpus geral da pesquisa, e “leitor jovem”, aos 68 sujeitos selecionados após a filtragem do corpus geral e aos 6 sujeitos selecionados para a etapa qualitativa.

Nessa etapa acompanhamos por sete meses as práticas de leitura literária digital de seis leitores jovens por meio de entrevistas semiestruturadas, com o intuito de conhecer os usos, as formas de ler, as relações que estabeleciam com as leituras literárias impressas e as obras literárias digitais lidas, e entre essas modalidades. Nessas entrevistas, eles relembravam leituras feitas e descreviam em detalhes as práticas desenvolvidas.

Formas de busca e de acesso à leitura literária digital e repercussões nos modos de ler

Ler literatura em dispositivo digital, seja literatura digital ou digitalizada, demanda do leitor jovem uma busca por caminhos nem sempre fáceis. Explorar sites de busca, redes sociais, blogs, entre outros ambientes digitais, e ter acesso livre às obras literárias, baixando, lendo livremente, on-line, comprar em sites de comércio eletrônico, de livrarias ou em aplicativos de smartphones, são alguns dos meios que os leitores lançam mão para acessar e ler as obras literárias digitais.

Assim como nos dados gerais do questionário 1, respondido por 342 jovens, os seis leitores jovens que participaram de entrevistas semiestruturadas, comumente, optam por acessar on-line, gratuitamente, a obra desejada, pois baixar a obra pode acarretar em diminuição de armazenamento do dispositivo digital no qual realizam a leitura, em geral, os móveis. Adquirir a obra na versão impressa não é muito recorrente e, na versão digitalizada, não foi citado pelos leitores jovens. Se compararmos com os dados quantitativos, o índice referente a essa forma de acesso está abaixo de 12%. Esse baixo índice está ligado a dois fatores: acesso mais restrito devido ao fato de os leitores jovens apresentarem limitação financeira para adquirir a obra impressa ou dificuldade de adquiri-las por não as encontrarem nas livrarias para aquisição. Nessas condições, o leitor jovem necessita suplantar, em algumas vezes, a preferência pelo suporte impresso para realizar as leituras literárias de seu interesse.

A forma de acesso tem implicações na mudança das formas de ler, tanto porque não se conserva o arquivo digital da obra lida quanto porque são necessários alguns procedimentos novos para retomar o texto de onde se parou. No impresso, usam-se os marcadores de livro ou outras estratégias; na obra digitalizada em PDF, em geral, não é possível a marcação da última página lida, cabendo ao leitor memorizar a página em que parou. Assim, há gestos e comportamentos herdados do impresso, tão discutidos nas diversas obras de Roger Chartier e de outros historiadores do livro, que precisam ser reaprendidos. Assim, podemos dizer que os escritores/criadores de obras digitais, assim como seus leitores, buscam retomar, simbolicamente e com outras formas materiais, algumas características do ordenamento gráfico ou físico da obra no formato impresso, em forma de códice.

Na leitura de livros digitalizados (Almeida, 2016Almeida, F. C. de. (2016). O livro digital como processo hipermidiático. João Pessoa: Marca da Fantasia.), mas lidos em formato epub, o aplicativo retoma a última página visualizada, entre outras funções, semelhantes às possibilidades do impresso. Quanto ao acesso, os leitores jovens apontam, em sua maioria, que realizam a leitura literária digital por meio de acesso livre às obras na internet; entretanto, a qualidade do acesso à internet pode ser o condicionante para definir se o leitor jovem irá baixar o arquivo ou ler a obra on-line.

Ressalta-se que o tipo de obra também pode definir se o leitor jovem irá arquivá-la ou não no seu dispositivo digital. Se for obra de difícil acesso, o armazenamento com o objetivo de ter uma biblioteca digital, privada, pode ocorrer. Os aplicativos de livros, tais como o Google Play Livros e Ebook Reader, acabam sendo um ambiente digital propício para busca e uma forma de fácil acesso a uma diversidade de títulos literários digitalizados. Neles, os leitores jovens podem ler páginas de amostra das obras vendidas e, também, ler as que estão disponíveis gratuitamente.

Muitas das obras digitalizadas não estão em domínio público, mas existe uma rede que as disponibiliza, desafiando as leis de direito autoral. Esse é um bom contraponto ao novo ordenamento de tipo mais convencional e que repercute em compras ou direitos para alguma instituição, como o Google, de acordo com Darnton (2010)Darnton, R. (2010). A questão dos livros, passado, presente e futuro. São Paulo: Companhia das Letras.. Essa é uma querela relacionada aos direitos autorais envolvidos no acesso às obras em geral e também a obras de literatura digital, mas parece haver um tipo de mutação na forma de divulgação da cultura escrita, importante para entendermos o fenômeno que vivemos (Chartier, 1998Chartier, R. (1998). A aventura do livro- do leitor ao navegador. Trad. Reginaldo Moraes. São Paulo: Editora Unesp.). Uma das fontes de sociabilidade literária na internet que compartilham informações sobre obras de literatura digitalizadas, facilitando as buscas, são as redes sociais. Leveratto e Leontsini (2008)Leveratto, J.-M.; Leontsini, M. (2008). Internet et La sociabilité littéraire. Paris: Éditions de la Bibliothéque Publique de Information. destacam a importância da internet para essas “conversas estéticas”. Para os autores, essa rede de sociabilidade literária na internet cria uma comunidade de escrita que antes era possível apenas nos espaços destinados à circulação da literatura, como bibliotecas e teatros. O espaço doméstico ou qualquer outro local é utilizado para as “conversas literárias”. Conforme os autores:

Como os círculos das bibliotecas municipais, como os teatros, a Internet pode ser o lugar onde a “escrita é vivida na comunidade”. Basta ver o número de sites e revistas online onde o internauta discute seus gostos literários, recomenda os livros que lhe são preciosos, elabora um inventário de sua biblioteca ideal … Assim, a literatura não é mais assimilada a uma “atualidade cultural e comercial” que sofremos, que consumimos passivamente

(Leveratto, & Leontsini, 2008Leveratto, J.-M.; Leontsini, M. (2008). Internet et La sociabilité littéraire. Paris: Éditions de la Bibliothéque Publique de Information., p. 26, tradução nossa)3 3 “Comme le cercles des bibliothéques municipales, comme lês théâtres, internet peut être le lieu où ‘l’écrit se vit dans la communauté’. Il suffit de voir le nombre de sites et de revues en ligne où l’internaute discute de ses goûts littéraires, recommande les livres que lui tiennent a coeur, dresse l’inventaire de sa bibliothèque idéale … Ainsi, la littérature n’est plus assimilée á une ‘actualité culturelle et commerciale’ que l’on subit, que l’on consomme passivement.” .

Utilizar as redes sociais pode ser visto como uma forma segura de procurar leitura literária digital, mas é necessário conhecer a página por meio dos comentários dos participantes da comunidade de leitores. Ao mesmo tempo, nela, o leitor jovem pode ter acesso a fontes seguras de links de obras digitalizadas, bem como ao texto digitado da obra desejada.

Os procedimentos para conhecer obras do interesse dos leitores jovens demanda deles buscas na página da rede social da qual participam e solicitações de recomendações para a comunidade de leitores. Existem várias sociabilidades literárias envolvidas nesses percursos, mas, conforme Leontsini e Leveratto (2008)Leveratto, J.-M.; Leontsini, M. (2008). Internet et La sociabilité littéraire. Paris: Éditions de la Bibliothéque Publique de Information., devemos questionar se as sociabilidades literárias na internet e pela internet são oriundas de uma sociabilidade anterior, externa à cultura digital, ou são uma sociabilidade específica da cultura digital.

Outro local em que todos os leitores jovens pesquisam informações sobre obras literárias e acessam obras para ler on-line ou baixar é o site do Google; no entanto, os caminhos para encontrar sites sem vírus, sem spams, onde podem somente baixar, e não para comprar os livros, não é simples. O leitor jovem precisará ter uma expertise sobre a cultura digital para que a tarefa de encontrar os melhores sites se torne fácil.

Com o intuito de não ocupar a memória dos dispositivos digitais, existem serviços de hospedagem e compartilhamento de arquivos. Neles, os usuários podem fazer upload ou download de diversos tipos de arquivos, inclusive obras de literatura digitalizadas. Para o envio de arquivos, o usuário recebe um link e pode distribuí-lo pela internet, facilitando aos leitores jovens baixar os livros digitalizados que desejam ler. Ou seja, existe uma série de condições favoráveis para a difusão e o acesso de livros digitalizados na cultura digital (Almeida, 2016Almeida, F. C. de. (2016). O livro digital como processo hipermidiático. João Pessoa: Marca da Fantasia.).

Outras formas de busca se dão por meio de informações sobre o escritor/criador e sobre as obras que já foram lidas pelos leitores jovens. A internet é o local em que se iniciam as pesquisas pelas obras desejadas, e mesmo as obras impressas lidas também são escolhidas pela internet.

No entanto, a busca por obras literárias nas lojas das livrarias continua sendo uma das formas de conhecer títulos e possíveis interesses de leitura para os leitores jovens, seguindo-se da procura na internet pela versão digitalizada. A livraria, que normalmente é utilizada como um espaço de aquisição, acaba se configurando, por vezes, somente como espaço de busca, e não de compra, conforme aponta, no trecho de entrevista transcrito a seguir, a leitora jovem Maria Eduarda_16_D. Nas citações de entrevistas foram utilizados nomes fictícios para manter em sigilo a identificação dos sujeitos. Primeiro o nome, seguido da idade e, por último, o estrato socioeconômico.

MARIA EDUARDA_16_D: É… eu vou lá… pego o livro, dou uma folheada, olho atrás, é a sinopse do livro, o resuminho, aí, se eu gostar, eu olho em casa.

E: Hum… tá… e você, aí geralmente você acha na internet?

MARIA EDUARDA_16_D: Hum-rum.

E: Hum, o que você já fez em relação a isso, que, que livro que você fez isso e você achou na internet, você lembra?

MARIA EDUARDA_16_D: Que livro? Deixa eu ver.

E: Você foi na [livraria] Leitura, gostou…

MARIA EDUARDA_16_D: Divergente, é uma… é uma trilogia, e… eu baixei os três livros, é… na internet.

E: Por esse site?

MARIA EDUARDA_16_D: Isso.

O blog é um ambiente digital muito utilizado como ambiente de sociabilidade literária na internet, mas, também, segundo Leveratto e Leontsini (2008)Leveratto, J.-M.; Leontsini, M. (2008). Internet et La sociabilité littéraire. Paris: Éditions de la Bibliothéque Publique de Information., citando Jenny Hatley, sociólogo britânico, esses grupos podem ser “efêmeros e diversos, eles formam comunidades de fala agitadas e instáveis” (p. 24, tradução nossa)4 4 “Éphémères, et divers, ils forment des communautés de parole excitées et instables.” . Como os blogs são, em geral, criados por uma pessoa que assina sua autoria, isso gera uma sensação de segurança para os leitores jovens, de que se trata de ambiente confiável, no qual podem manter uma relação com o criador. Ademais, para que os leitores continuem visitando o blog, é necessário que o criador mantenha uma relação de confiança com seus leitores, diferente das redes sociais, onde várias pessoas postam informações na comunidade de leitores.

As bibliotecas digitais não são muito conhecidas pelos leitores jovens entrevistados, somente Paulo_17_C1, Maria Eduarda_16_D e sua colega Sara_19 disseram conhecer esse ambiente digital, por meio do site governamental Domínio Público. Provavelmente, isso ocorre porque, como essas bibliotecas digitais são criadas por instituições, grupos de pesquisa ou organizações não governamentais, elas seguem as normas dos direitos autorais e disponibilizam somente obras que estão em domínio público. Possivelmente, os leitores jovens podem desconhecer vários autores que não são do seu tempo e, portanto, não chegam a localizar o site, a não ser que as escolas que frequentam o indique. Conforme Paulo_17_C1 relata, o acesso a esse ambiente para buscas de obras literárias se dá somente quando a escola indica leituras literárias. Como os leitores jovens têm uma preferência pelos bestsellers, a biblioteca digital que funciona como repositório de obras clássicas não será o ambiente digital mais propício para encontrar obras de suas preferências.

Essa dissonância entre o que a escola indica e o que os leitores jovens preferem, de outra forma, restringe as possibilidades de orientação da escola para outras redes de sociabilidade literária na internet. Dáz-Plaja (2008)Diaz-Plaja, A. (2008). Entre Libres: La constucció d’un itinerari lector propi en l’adolescència. In: Lectures adolescents. Colomer, T [e tal] (Orgs.) Barcelona: GRAÓ. assinala a necessidade de se iniciar uma proposta de leitura literária para jovens a partir da análise das obras de interesse dessa faixa-etária, dos suportes preferidos pelos leitores jovens para a leitura literária e dos modos de acesso a essas obras. Os interesses de leitura que a autora denomina “campos de leitura” são considerados por ela como diversos conjuntos de obras literárias valorizadas cultural, sociológica e educativamente. No entanto, em geral, os campos de leitura da escola são diferentes de outros espaços da sociedade, pois a escola valoriza a cultura canônica e os autores de alto prestígio acadêmico, ao passo que outros setores e grupos sociais, em especial, os jovens, interessam-se pela cultura de consumo, de massa, popular ou vulgar.

Além desses dois pólos, a cultura dos adolescentes viaja através dos caminhos da leitura marginal (associada a passatempos muito determinados, tribos urbanas ou grupos sociológicos) e também em algumas terras de ninguém, em que colocamos certos materiais difíceis de enfrentar

(Dáz-Plaja, 2008, p. 122, tradução nossa)5 5 “A més d’aquests dos pols, la cultura dels adolescents transita pels camins de la lectura marginal (associada a aficions molt determinades, a tribus urbanes o a grups sociològics) i també per alguns terrenys de ningú, en què situariem certs materials de difícil encabiment.” .

A formas de busca de obras de literatura digital também não são simples. Maria Eduarda_16_D relata procedimentos que precisa realizar para localizar os sites de fanfics de confiança: procura os mais organizados e que possuem menos spams e, depois, seleciona entre as várias fanfics disponíveis no site aquela da qual irá iniciar a leitura. Essa seleção se dá por meio de alguns critérios, dentre eles, a quantidade de comentários sobre a obra.

Depois de localizar o site e a obra, a leitora jovem inicia uma outra etapa: verificar se a obra escolhida é do seu agrado. A escolha da obra não é realizada pelo título ou pelo escritor/criador, mas de forma aleatória. Ela inicia a leitura de uma fanfic e, se não for do interesse, interrompe a leitura e inicia outra, até a seleção final da obra que será lida. Quando Ronaldo_15_C1 está indeciso sobre qual tema selecionar para ler uma fanfic, utiliza o sistema de busca de um site de RPG para indicação de temas. Em seguida, faz uma busca no Google, utilizando a palavra fanfic seguida do tema indicado no site de RPG e, assim, seleciona um site da lista para iniciar a leitura de uma fanfic. Essa decisão passa, então, pela consulta a mais de um site.

A especificidade desse tipo de obra de literatura digital, provavelmente, facilita essa forma de seleção, pois existem fanfics de vários tamanhos com poucos ou muitos capítulos e, em um mesmo site, a quantidade de temas e de obras também é abundante. Todos esses caminhos para buscar as obras literárias digitais e digitalizadas se tornam mais simples quando existe uma rede de sociabilidade literária na internet. O compartilhamento de informações pelos membros da comunidade de leitores de literatura, que leem e fazem comentários e resenhas das obras, possibilita ao leitor jovem o acesso a sites, blogs, redes sociais onde podem encontrar não só obras literárias digitais, mas também indicações de títulos de literatura digitalizada mais lidos pelos seus pares.

Esse compartilhamento de informações favorece, também, a escolha de obras que sejam do seu gosto, de forma mais assertiva do que se fossem nas livrarias físicas, apesar de muitas delas fazerem indicações dos livros mais bem recomendados por meio de lembretes ao leitor afixados nas prateleiras. Essa estratégia não se compara àquelas utilizadas pelos leitores reais, que compartilham suas impressões de leituras nas comunidades de leitores, nas avaliações da obra nos sites, entre outros ambientes de sociabilidade literária na internet.

Gisele_17_B1 aponta que as recomendações são importantes, principalmente para aqueles leitores iniciantes na leitura literária digital, pois, por não saber procurar os ambientes digitais para localizar as obras desejadas, podem desistir da busca e permanecer nos sites e nos aplicativos que disponibilizam as obras em domínio público. Para a leitora jovem, essa seria a justificativa para obras que ela considera desinteressantes, apesar de estarem no ranking das mais baixadas.

Por fim, observam-se nos leitores jovens os efeitos de ações convergentes em torno de uma mesma obra literária, exercidas por variadas mídias que lhes possibilitam conhecer novas obras de literatura digital e digitalizadas relacionadas a outros tipos de meios ou narrativas visuais. Ao assistirem a séries, filmes, animes ou ao jogarem um jogo eletrônico, os leitores jovens logo se sentem mobilizados a verificar a existência de uma obra literária que esteja relacionada ao mesmo conteúdo. Esse pensamento convergente (Jenkins, 2009Jenkins, H. (2009). Cultura da Convergência, 2a ed. (S. Alexandria, trad.). São Paulo: Aleph.), mais provocado, sem dúvida, pelas estratégias comerciais e contemporâneas de marketing que vinculam produtos a vários tipos de linguagens, a diferentes formas e espaços de circulação, proporciona a ampliação das práticas de leitura literária digital.

MARCELA_17_B2: Não, vamos supor… igual das séries que eu gosto, eu procuro saber se tem o livro. Ou se não algum livro que eu já tenho referência de amigas minhas que já leram e aí falam para mim. Aí eu procuro na internet e leio.

Assim, o cinema, as séries de TV e os jogos eletrônicos são mobilizadores dos leitores jovens para buscas de livros literários digitalizados com conteúdos que se relacionam. Para a leitura de literatura digital, também é realizado esse tipo de pensamento convergente. Maria Eduarda_16_D aponta os filmes e os animes como temas de interesse de buscas para fanfics. Podemos verificar que o estrato socioeconômico não é um fator impeditivo para o acesso à leitura literária. Todos os leitores jovens leem as obras do seu interesse, seja literatura digital ou digitalizada, devido ao acesso gratuito que a internet possibilitou e, também, à rede de sociabilidade literária digital que facilita a localização dessas obras.

Experiências de leituras literárias digitais

Os seis leitores jovens, cujas práticas de leituras literárias digitais acompanhamos por meio dos relatos ao longo de sete meses, afirmaram realizar leituras de literatura digital e digitalizada. No primeiro tipo de leitura literária digital os jovens citaram as fanfiction, narrativas ficcionais criadas por fãs, colaborativamente; a hiperficção, obras com possibilidade de início, meio e fim diferentes; a ficção interativa e o RPG on-line, que possuem elementos de jogos. No segundo tipo de leitura, os livros literários, HQs e mangás digitalizados.

A maioria deles relatou mais experiências de leitura literária com literatura digitalizada do que com literatura digital. Essa realidade tem relações com a difusão da literatura digital, ainda restrita no Brasil. Verificamos que as experiências com leituras literárias digitais são realizadas pelos leitores jovens para fins de estudo, diversão e entretenimento, mas também para a produção escrita, conforme relatou o leitor jovem Paulo_17_C1 nas sessões de entrevistas, quando relatou que já havia escrito fanfics.

A seguir, comentaremos alguns tipos de leitura literária digital, relacionando-as aos gêneros ou modos de sua produção/representação. Ressalta-se que a produção e divulgação de obras de literatura digital ficam restritas a grupos de pesquisa e a alguns sites e criadores/escritores autônomos que disponibilizam suas obras em sites particulares, limitando a difusão de obras dessa natureza.

A leitura de fanfiction

Os interesses pela leitura literária digital são diversos e se intercruzam. Dentre os tipos de leitura literária digital, o gênero de literatura digital mais difundido no país é a fanfiction. Esta é considerada uma escrita colaborativa devido ao processo de criação compartilhada com outros interessados na obra, mas há também a modalidade na qual somente o criador/escritor constrói os capítulos a partir de determinada série, HQ, personagem, filme (Neves, 2014Neves, A. de J. (2014). Processo de Construção de Identidade Autoral nas Comunidades Virtuais e Blogs Literários. Jundiaí: Paco Editorial.). Entre os seis leitores jovens que pesquisamos, quatro deles, Paulo_17_C1, Maria Eduarda_16_D, Gisele_17_B1 e Ronaldo_15_C1, conhecem e têm ou já tiveram uma prática frequente de leitura do gênero. Leonardo_15, colega de Ronaldo_15_C1, relata que não gosta de fanfics por ser uma obra de autoria coletiva: “é… não sinto muito graça em pegar uma coisa que não seja… daquele autor sabe? Você pega o universo de um autor… mas você não lê algo que seja realmente dele”. Para este leitor jovem, a produção literária advinda da tradição manuscrita e impressa, na qual a obra é escrita apenas por um escritor, ganha preferência em suas escolhas de leituras literárias.

A despeito do que sabemos sobre a história do livro, algumas interferências na produção da obra (Chartier, 1998Chartier, R. (1998). A aventura do livro- do leitor ao navegador. Trad. Reginaldo Moraes. São Paulo: Editora Unesp.; Goméz, 2010Gomez, A. C.. (2010). Livros e leituras na Espanha no século de Ouro. Ateliê Editorial.) ocorriam na reprodução de obras manuscritas, na edição de obras impressas, mas eram ações implícitas; na edição de obras na cultura digital, isso faz parte de alguns gêneros e é esperado que essa intervenção seja feita, explicitamente.

Quanto à forma das obras de fanfics lidas pelos leitores jovens, Paulo_17_C1 relata ter lido obras escritas colaborativamente, diferente do formato de fanfic lido por Maria Eduarda_16_D e Gisele_17_B1, elaborado apenas por um escritor. A leitora jovem conheceu esse tipo de obra sozinha, procurando informações sobre filmes e animes de que gostava. No período da entrevista, relatou que fazia cerca de cinco meses que não lia, pois preferia ler no seu tablet, que estava com defeito. No decorrer das sessões das entrevistas, a leitora jovem retomou a leitura de fanfics, e essa prática se fortaleceu após a aquisição de um smartphone. A primeira leitura foi de uma fanfic com o tema de um jogo de que ela gosta, League of Legends. Para selecionar a obra, verificou, entre as diversas opções de fanfic sobre o tema disponíveis nos sites, uma que tivesse um texto gramaticalmente correto. Pois, segundo a leitora jovem “… eu prefiro como se… se fosse um livro mesmo, ortografia certinha, com parágrafo certo, pontuação, eu prefiro assim”.

A experiência de leitura de fanfiction da Gisele_17_B1 se deu quando ela tinha quinze anos, por indicação de uma amiga que havia criado uma fanfic sobre uma banda de heavy metal. Assim como Maria Eduarda_16_D, Gisele_17_B1, durante o período da pesquisa, realizava leituras desse gênero esporadicamente; a última havia dois meses. No decorrer das sessões de entrevista, Gisele_17_B1 voltou a procurar por fanfics e leitura compartilhada. Segundo ela, “procurei os dois, que eram os… que eu mais lia, os que eu mais gostava. Fanfic eu achei bastante, né, e… e…. a leitura compartilhada eu não achei nenhuma”.

A efemeridade das obras na cultura digital cria uma renovação célere de possibilidades de leitura literária, ao mesmo tempo em que apaga outras e, nesse sentido, não podemos dizer que a cultura impressa padeça desse problema. De outra forma, a qualidade das obras lidas não passa por critérios de legitimação presentes no campo literário ou editorial em suas formas convencionais. Assim, a análise que a leitora Maria Eduarda_16_D e Gisele_17_B1 fizeram da qualidade e da forma das obras literárias que gostam de ler mostra que usam de repertórios externos às obras digitais para avaliá-las.

Já Ronaldo_15_C1, que gosta muito de fanfiction, lê somente as escritas em língua inglesa. Suas leituras desse gênero são frequentes, quase diárias. Ressalta-se a memória do título da obra lida pelo leitor jovem, indicando uma busca menos “errante” e mais direta. Como a fanfiction é um gênero no qual os criadores/escritores podem começar a escrever e, caso desejem não continuar com a história, podem finalizar antes do fechamento do enredo, essa característica pode desestimular o leitor jovem a continuar seguindo a postagem dos capítulos.

PAULO_17_C1: Era tipo assim, era uma coisa bem sem compromisso, tipo algum fórum, e as pessoas postavam, ou elas inventavam completamente, uma coisa pequena, sei lá, de umas cinco páginas semanalmente ou por dia. E só que não me lembro de ninguém terminando uma. E acabava que o pessoal prolongava demais, e eu perdia o interesse. E a pessoa que estava fazendo a fanfiction não tinha mais o interesse em fazer.

Maria Eduarda_16_D e Ronaldo_15_C1 relatam que ficam apreensivos pela postagem dos criadores/escritores dos capítulos seguintes. Essa relação de fidelização com a obra e de necessidade de lê-la faz com que acessem diariamente o site em seus dispositivos digitais mais usados ou em qualquer outro dispositivo digital que encontrem disponível. Para não passar pela apreensão da espera das postagens dos capítulos, Maria Eduarda_16_D prefere selecionar fanfics que estão finalizadas, e isso tem relação com a ideia de completude da obra. A fidelização a uma obra está condicionada a uma postagem regular do criador/escritor. E a regularidade deverá ter um período curto, pois, caso contrário, o leitor jovem não criará vínculo com a obra.

Ressalta-se que esse gênero de literatura digital pode ter um capítulo ou diversos, como citado pelos leitores jovens nos trechos abaixo. Os temas também variam e podem ser uma criação com uma história semelhante às obras literárias de referência ou destoar completamente, mas com alguns elementos e personagens pertencentes à obra de referência. Segundo Neves (2014, p.108)Neves, A. de J. (2014). Processo de Construção de Identidade Autoral nas Comunidades Virtuais e Blogs Literários. Jundiaí: Paco Editorial., “umas das características que une essas expressões culturais relacionadas à cultura participatória é o desejo de expandir universos ficcionais sem o intuito de lucro”, podendo ser um dos motivos pelos quais é o gênero de literatura digital mais conhecido e lido entre os leitores jovens.

A continuidade da leitura de uma fanfic pode estar pautada nos comentários dos leitores da obra, indicando, assim, a influência da rede de sociabilidade literária na internet. Segundo Ronaldo_15_C1, ele utiliza essa estratégia quando começa a perder o interesse pela obra lida, ou seja, categoriza a obra como “estranha/ruim”. Nesse momento, pesquisa nos comentários de outros leitores informações sobre a continuação da história. O leitor jovem relata a existência de duas formas de utilização dos comentários: antes e durante a leitura. Antes da leitura, a quantidade de comentários sobre uma obra pode ser um indicativo de popularidade tanto positivo quanto negativo. Depois da leitura, é o conteúdo dos comentários que é importante. A despeito da relevância dos comentários antes e depois da leitura, os leitores jovens, em geral, não têm o hábito de escrever e postar comentários, mas somente de lê-los, pois é necessário o cadastro no site para a escrita e a postagem de comentários. Essa indisposição para o cadastro ocorre, provavelmente, por considerarem uma tarefa dispendiosa de tempo informar seus dados pessoais. Alguns sites criam cadastros com a utilização de dados de redes sociais, migrando dados de quem pode já ser cadastrado.

A leitura de hiperficção

Além da fanfic, outro gênero de literatura digital lido foi a hiperficção ou “ficção narrativa” (Hayles, 2009Hayles, N. K. (2009). Literatura Eletrônica: Novos Horizontes para o Literário. São Paulo: Global.). Este gênero possui recursos multimodais, hipertextualidade e uma interatividade que permite a participação dos leitores na construção do início, meio e fim da história. Essa experiência de leitura literária foi um caso particular da Marcela_17_B2, que buscou informações sobre literatura digital e localizou o site brasileiro do Movimento de Literatura Digital, que disponibiliza obras dessa natureza. No site, a leitora jovem encontrou outras obras literárias digitais, como O Jogo do Gato Poeta, de Ana Mello, e o Minicontos Coloridos, de Marcelo Spalding. O primeiro intrigou a leitora jovem, pois não conseguia desvendar o mistério para encontrar o nome do gato, e o segundo causou surpresa por ser uma obra que, a cada acesso, gera uma obra diferente, a partir da participação do leitor em selecionar a porcentagem das cores, vermelho, verde e azul.

Podemos considerar que esse tipo de obra pode ser lida mais de uma vez, pois o leitor jovem pode acessar a mesma obra e, a cada leitura, ela se apresenta de forma diferente. O interesse de Marcela_17_B2 pelas obras de literatura digital disponíveis no site do Movimento Literatura Digital se relaciona a uma experiência de leitura literária permeada pela participação do leitor, pelo uso intenso de elementos multimodais e de interatividade.

MARCELA_17_B2: Na minha opinião… porque igual eu não conhecia… ela me chamou atenção porque… tipo… tocou em vários outros sentidos… não só na visão nem na imaginação… igual… foi na imaginação… no conhecimento… eu ouvi o som… foi muito bacana…

Essa forma de leitura é bastante diferente do que se espera com um livro impresso convencional, que é denominada por Anne-Marie Chartier (2016)Chartier, A. M. (2016). Os três modelos da leitura entre os séculos XVI e XXI: como as práticas sociais transformam os métodos de ensino. Revista Brasileira de história da Educação, Maringá-PR, 16(1/40), 207-214. como leitura de recepção. Problematizando os modelos de leitura, de modo geral, em vários períodos históricos, a autora comenta o modelo contemporâneo de interação pela leitura e escrita que, ao conjugar leitura a atos de escrita, denominou de leitura de produção. Se levarmos essa ideia para a leitura literária digital, teríamos como verificar momentos em que há essa simultaneidade.

Uma das tentativas de busca de obras de literatura digital da leitora jovem Marcela_17_B2 ocorreu em uma rede social:

aí eu comecei a ler mais… procurei… eu tentei entrar em uma comunidade no face [Facebook]… mas tinha uma lá que era espanhol… eu falei assim nó… que legal… tem até fora do Brasil… aí era em espanhol… então aí eu não consegui ler muito…

A surpresa de ter obras em outros países e a falta de conhecimento de uma língua estrangeira podem ser indicativas de alguns impeditivos para a ampliação da leitura de literatura digital. As criações desse tipo de literatura fora do Brasil estão em ampla expansão e difusão.

MARCELA_17_B2: … tentei procurar mais alguns… só que eu queria procurar… eu até falei como Walisson [namorado da leitora jovem] no celular… porque no computador já ficou um pouco mais restrito… porque eu não achei mais sites…

A leitura de ficção interativa

Outro gênero de literatura digital lido por Paulo_17_C1, Marcos_17_B2, Ronaldo_15_C1 e Gisele_17_B1 foi a ficção interativa, que, segundo Hayles (2009)Hayles, N. K. (2009). Literatura Eletrônica: Novos Horizontes para o Literário. São Paulo: Global., tem características de jogos, mas com histórias ficcionais que demandam do leitor ações para definir o percurso. Quando citam esse gênero literário, os leitores jovens o chamam de jogo. A combinação de histórias reais e ficcionais, a participação dos leitores jovens na criação da obra e outros elementos, como o mistério e a disputa entre os jogadores aguçam o interesse por esse tipo de obra. Ronaldo_15_C1 e Maria Eduarda_16_D relatam jogar/ler diariamente RPG on-line, e consideramos o texto do RPG como um tipo de literatura. Ronaldo_15_C1 diferencia o RPG que ele joga/lê em uma sala de bate-papo com o RPG intitulado Dungeons & Dragons, líder no mercado de role-playing games de tabuleiro e precursor dos jogos mais modernos .

Ronaldo_15_C1 relata que, para jogar/ler RPG, é necessário no mínimo duas pessoas e, no máximo, cinco ou seis, mais do que isso ficaria muito confuso: “Toda pessoa tem uma opinião, aí a opinião dessa pessoa pode, ahm… pode entrar em conflito com a das outras. Aí fica uma bagunça toda aí”. Como o leitor jovem utiliza uma sala de bate-papo gratuita, não é permitido excluir um jogador, pois isso é possível somente em salas pagas. A partida pode ser interrompida a qualquer momento, bem como pode ser retomada.

Verificamos que o jogo/leitura é criado por meio de uma produção escrita ficcional compartilhada, diferente do jogo/leitura de RPG que Maria Eduarda_16_D joga, pois é uma combinação de elementos de RPG com jogos de estratégia em tempo real e, para ser jogado, é necessário acessar o site do jogo ou baixá-lo. O League of Legends também foi citado por Ronaldo_15_C1 ao longo das sessões de entrevistas.

A leitura de obras literárias digitalizadas

Neste tópico, finalizamos com o relato de experiências dos leitores jovens com leituras de literatura digitalizada. Essas são as mais frequentes entre eles; no entanto, restringem-se apenas a dois tipos, às obras literárias que possuem versão impressa e os HQs. Dos seis leitores jovens que participaram da etapa qualitativa da pesquisa, Marcela_17_B2 e Marcos_17_B2 são os que mais realizam leituras de livros literários digitalizados. Nesse caso, o acesso e a divulgação por determinada comunidade de leitores, em sites, blogs, redes sociais e outros ambientes digitais, mostram que há sociabilidades literárias na internet em torno dessa modalidade de leitura literária. Já Gisele_17_B1, Maria Eduarda_16_D e Ronaldo_15_C1 tiveram poucas experiências com leitura literária digitalizada e, talvez por isso, quando leem um livro de literatura, preferem o livro impresso. Como podemos verificar no relato abaixo,

MARIA EDUARDA_16_D: Digital. Bom, que eu já li na internet foi A Moreninha, o Auto da Barca do Inferno… deixa eu ver… acho que são estes dois, que eu lembro são esses dois.

E: E que são eles?

MARIA EDUARDA_16_D: São obras clássicas que eu li por causa mais de trabalho da escola.

Gisele_17_B1 relatou ter pesquisado no seu aplicativo de livros do smartphone outras obras literárias digitalizadas, mas que não gostou das obras encontradas e leu apenas alguns capítulos de uma obra pela qual, inicialmente, se interessou. Outro tipo de obra de literatura digitalizada indicada pelo Saulo_19 e Leonardo_15, colegas de Marcos_17_B2 e Ronaldo_15_C1, respectivamente, foram os mangás e as histórias em quadrinhos.

Saulo_19: Não… tô lendo pouco… porque como eu acompanho… tô acompanhando uma série de mangá e de história em quadrinho… então sai toda semana… aí… é a única que eu tô lendo… aí eu leio no celular… ou no computador…

Leonardo_15: Eu tenho costume de ler um pouco de quadrinhos pela internet… porque existem muitos sites que liberam esses quadrinhos… on-line… de graça…

Os leitores jovens estão ampliando suas experiências de leitura literária com a cultura digital, buscando acesso a obras literárias que, anteriormente, eram apenas disponíveis em formato impresso, devendo ser adquiridas em banca de jornal ou em outros locais de comercialização; os leitores jovens também buscam colaborar com os criadores/escritores na criação das obras literárias digitais (Almeida, 2016Almeida, F. C. de. (2016). O livro digital como processo hipermidiático. João Pessoa: Marca da Fantasia.). A liberação de obras digitalizadas gratuitamente na internet, a despeito dos direitos autorais, como comentado anteriormente, favorece as experiências de leitura literária, independentemente do estrato socioeconômico, mas verificamos, ainda, práticas pouco diversificadas, pois se limitam às obras literárias remediadas do impresso (Bolter, & Grussin, 2000Bolter, J. D.; Grusin, R. Remediation: understanding new media. Cambridge: The MIT Press. 2000.).

Considerações finais

Os ambientes digitais de busca são diversos, mas nem sempre fáceis de serem conhecidos pelos leitores jovens. O não arquivamento do local de acesso da obra e sua efemeridade promovem práticas de leituras literárias distintas a cada acesso. Para cada tipo de leitura literária digital, se literatura digital ou digitalizada, existem formas distintas de acesso nos ambientes digitais que as disponibilizam, bem como para cada ambiente digital que disponibiliza obras literárias digitais são necessários procedimentos específicos para que o leitor jovem consiga localizar as obras de seu interesse. Essas formas de pesquisa demandam uma rede de sociabilidade literária na internet que compartilhe informações para que os leitores jovens tenham maior êxito em suas buscas e ampliem suas práticas de leitura literária digital.

Compreende-se, assim, que, mesmo considerando os problemas relacionados ao acesso e aqueles relativos à própria produção de literatura digital em língua portuguesa ou no país, as experiências de leitura literária digital dos leitores jovens são realizadas tanto com obras de literatura digital quanto de literatura digitalizada, sendo estas últimas as mais lidas. Além disso, cada tipo de obra demanda usos e formas de apropriação diferenciadas. As fanfics são lidas pela maioria dos leitores jovens pesquisados, mas esse fenômeno pode ser decorrente de uma maior difusão desse tipo de gênero de literatura digital no Brasil. Quanto à literatura digitalizada, as versões de obras literárias e HQs são as mais lidas por esse público. A despeito de o ato de ler ser solitário, a experiência de leitura é compartilhada por meio de uma sociabilidade literária na internet e pela demanda específica de alguns tipos de obras literárias digitais, como as fanfics e o RPG on-line, criadas coletivamente. Ressaltamos que os leitores jovens participantes da pesquisa podem ter tido outras experiências de leitura literária digital que não foram lembradas durante as entrevistas. Além disso, a impossibilidade de acompanhar as práticas no ato da leitura de obras digitais, provavelmente, limitou a coleta de mais dados que pudessem emergir outras nuances dessas experiências de leitura literária digital.

A variável socioeconômica compôs o perfil dos sujeitos e foi relacionada ao acesso a obras, pois consideramos que o peso das limitações financeiras poderia impactar o acesso a determinadas tecnologias digitais, da mesma forma como isso repercute no acesso ao impresso, por meio de compra, conforme foi discutido no resultado dos questionários. No entanto, constatamos que as experiências de leitura literária digital não têm como condicionante o estrato socioeconômico dos leitores jovens, pois todos eles, independentemente do nível, possuem dispositivos digitais e internet, e leem as obras de seu interesse. Em geral, eles não precisam adquirir essas obras, mas têm acesso a elas por meio de outras formas que a internet possibilitou. Verificamos uma diferença de frequência de leitura literária digital no tipo de acesso a dispositivos digitais móveis e a um plano de dados de internet móvel. Nesse contexto, é a posse de um dispositivo digital privado, ou seja, não compartilhado com familiares, e a mobilidade de utilização da tecnologia digital que permitem a ampliação das experiências de leitura literária digital. A exemplo, a leitora jovem Maria Eduarda_16_D relata um retorno à leitura de literatura digital, após a aquisição de um smartphone: “Bom, é… nesse período, eu comprei um celular e… nele eu voltei a ler fanfic”. Esses dados podem qualificar os resultados apresentados pela pesquisa Retratos de Leitura do Brasil6 6 Quarta edição da pesquisa intitulada Retratos da Leitura no Brasil, realizada em 2015 e divulgada em 2016. Ver: http://prolivro.org.br/home/index.php/atuacao/25-projetos/pesquisas/3900-pesquisa-retratos-da-leitura-no-brasil-48 , divulgados em 2016, que apontam a existência de leitores em todas as classes econômicas, inclusive, uma porcentagem significativa nas classes D/E e C, 40% e 57%, respectivamente. O acesso às tecnologias digitais e à internet cria mais uma possibilidade. Assim, mesmo com menos condições socioeconômicas, os brasileiros têm conseguido ampliar as práticas de leitura.

  • 2
    Normalização, preparação e revisão textual: Luan Maitan – revisao@tikinet.com.br
  • 3
    “Comme le cercles des bibliothéques municipales, comme lês théâtres, internet peut être le lieu où ‘l’écrit se vit dans la communauté’. Il suffit de voir le nombre de sites et de revues en ligne où l’internaute discute de ses goûts littéraires, recommande les livres que lui tiennent a coeur, dresse l’inventaire de sa bibliothèque idéale … Ainsi, la littérature n’est plus assimilée á une ‘actualité culturelle et commerciale’ que l’on subit, que l’on consomme passivement.”
  • 4
    “Éphémères, et divers, ils forment des communautés de parole excitées et instables.”
  • 5
    “A més d’aquests dos pols, la cultura dels adolescents transita pels camins de la lectura marginal (associada a aficions molt determinades, a tribus urbanes o a grups sociològics) i també per alguns terrenys de ningú, en què situariem certs materials de difícil encabiment.”
  • 6
    Quarta edição da pesquisa intitulada Retratos da Leitura no Brasil, realizada em 2015 e divulgada em 2016. Ver: http://prolivro.org.br/home/index.php/atuacao/25-projetos/pesquisas/3900-pesquisa-retratos-da-leitura-no-brasil-48

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Editor responsável: Norma Sandra de Almeida Ferreira. https://orcid.org/0000-0002-3078-2168

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    28 Maio 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    09 Maio 2018
  • Revisado
    16 Maio 2019
  • Aceito
    02 Dez 2019
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