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Cartilhas alemãs da editora Rotermund (1927-1933): representação de gênero no trabalho rural 1 1 Editora responsável: Norma Sandra de Almeida Ferreira. https://orcid.org/0000-0002-3078-2168 2 2 Normalização, preparação e revisão textual: Luan Maitan – revisao@tikinet.com.br

Resumo

Neste artigo, buscou-se analisar a representação de gênero, especialmente no que concerne aos papéis de trabalho atribuídos ao homem e à mulher, presente nas ilustrações das cartilhas Mein Rechenbuch (“Meu livro de cálculo”) e Fibel für Deutsche Schulen in Brasilien (“Cartilha para as escolas alemãs no Brasil”), produzidas pela editora Rotermund, que era vinculada ao Sínodo Rio-Grandense. Elaboradas em língua alemã, essas cartilhas se destinavam a atender escolas sinodais ligadas às igrejas luteranas, que atuavam junto às colônias de imigrantes alemães-pomeranos na região meridional do Rio Grande do Sul. Objetivou-se, assim, no decorrer do estudo, identificar possíveis direcionamentos sociais dados por intermédio do modo de organização do trabalho ilustrado nas cartilhas. Nesse contexto, observou-se que as relações sociais representadas são construções étnicas e culturais historicamente instituídas, integrantes de um processo que envolveu instituições escolares e religiosas.

Palavras-chave
cartilha alemã; representação; gênero; mundo rural; trabalho

Abstract

This academic paper aims to analyze gender representation, especially concerning the work roles attributed to men and women presented in the illustrations of the guidelines Mein Rechenbuch (My calculus book) and Fibel für Deutsche Schulen in Brasilien (Guidelines for German schools in Brazil), both produced by the publishing house Rotermund, which was linked to the Rio-Grandense Synod. Elaborated in German language, these guidelines sought to attend Synod schools linked to Lutheran churches, which worked alongside the colonies of German-Pomeranian immigrants in southern Rio Grande do Sul. In the course of this study, the aim was to identify possible social directions transmitted through the work organization illustrated in the guidelines. In this context, it was observed that social relations represented are ethnic and cultural constructions historically established, integrating a process that involves school and religious institutions.

Keywords
german guidelines; representation; gender; rural world; work

Introdução

O presente estudo consiste em um recorte da dissertação de mestrado3 3 Albrecht, 2019. intitulada Cartilhas alemãs produzidas pelos sínodos luteranos no Rio Grande do Sul: usos e memórias (1923-1945), em História da Educação, que teve como objetivo analisar representações ilustrativas em cartilhas escolares alemãs produzidas pelas editoras Rotermund e Concórdia e as influências de seu uso com sujeitos alfabetizados nas instituições religiosas luteranas da Serra dos Tapes4 4 Microrregião situada dentro da região meridional do Rio Grande do Sul. Ela abarca atualmente os municípios de São Lourenço do Sul, Turuçu, Pelotas, Arroio do Padre, Canguçu, Capão do Leão e Morro Redondo. Para saber mais sobre o tema, ver Cerqueira (2010). . De forma mais específica, pretende-se neste trabalho investigar possíveis representações de gênero, especialmente no que tange às questões dos papéis sociais de trabalho atribuídos ao homem e à mulher, presentes nas ilustrações das cartilhas Mein Rechenbuch (“Meu livro de cálculo”) e Fibel für Deutsche Schulen in Brasilien (“Cartilha para as escolas alemãs no Brasil”), da editora Rotermund, vinculada ao Sínodo Rio-Grandense. Destaca-se, neste texto, a mobilização da categoria de gênero para entender os discursos manifestos nas cartilhas, já que o gênero é um elemento constitutivo das relações e da diferenciação entre os sexos (Scott, 1995Scott, J. (1995, julho-dezembro). Gênero, uma categoria de análise histórica. Educação e Realidade, 20(2), 71-99. Recuperado de http://seer.ufrgs.br/index.php/educacaoerealidade/article/view/71721/40667
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). O gênero também pode ser compreendido, conforme Louro (1994)Louro, G. L. (1994, novembro). Uma Leitura Histórica Sob a Perspectiva de Gênero. Projeto História. São Paulo, n.11, 31-46. Recuperado de https://revistas.pucsp.br/index.php/revph/article/viewFile/11412/8317
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, como uma construção social dos sujeitos que se reproduz de diferentes maneiras em sociedades e contextos históricos distintos.

Além disso, cabe destacar nas cartilhas a presença de aspectos étnicos e culturais do público ao qual eram destinadas, visto que se trata de material didático em língua alemã elaborado para as escolas comunitárias alemãs, vinculadas às igrejas luteranas constituídas entre os teuto-brasileiros. Segundo Kreutz (1994)Kreutz, L. (1994). Material didático e currículo na escola teuto-brasileira do Rio Grande do Sul. São Leopoldo: Editora Unisinos., como estavam associadas a um projeto comunitário sob liderança das igrejas, essas cartilhas tinham o objetivo de atingir tanto o aspecto social e religioso quanto as orientações das formas de se organizar as relações de trabalho. Esse projeto implicava, ainda, segundo Weiduschadt (2007)Weiduschadt, P. (2007). O Sínodo de Missouri e a educação pomerana em Pelotas e São Lourenço do Sul nas primeiras décadas do século XX: Identidade e cultura escolar. 2007. 256 f. Dissertação (Mestrado em Educação) – Universidade Federal de Pelotas/UFPel, Pelotas/RS., integrar ensino e religiosidade, possibilitando, assim, uma aproximação entre igreja e escolarização.

Como no Brasil a educação nesse período ainda se encontrava restrita a uma pequena parcela da população, ou seja, voltada mais especificamente à elite urbana. Os governantes não viam como necessidade alfabetizar a população rural, na qual os meios de produção eram elementares. No caso desse estudo, esses imigrantes e seus descendentes oriundos de uma tradição escolar institucionalizada buscaram, por conta própria, prover a educação de seus filhos, e encontraram nas igrejas institucionalizadas o assistencialismo necessário para elaboração e impressão de cartilhas escolares e mão de obra para instruir seus filhos. Dessa maneira, essas cartilhas fundamentadas em princípios pedagógicos e doutrinários das instituições religiosas buscavam refletir aspectos presentes no cotidiano das comunidades rurais teuto-brasileiras, visibilizando em seus conteúdos, especialmente os ilustrativos, atividades do cotidiano colonial e agrícola desses grupos, além de tornarem-se canais de promoção e preservação da cultura germânica (Kreutz, 1994Kreutz, L. (1994). Material didático e currículo na escola teuto-brasileira do Rio Grande do Sul. São Leopoldo: Editora Unisinos.), assim como fortalecer a organização doméstica e social das comunidades atendidas (Salamoni, 1996Salamoni, G. (1996). Os Pomeranos: valores culturais da família de origem pomerana no Rio Grande do Sul – Pelotas e São Lourenço do Sul. Pelotas: Editora da UFPel.).

Para discutir tais questões, aborda-se também neste estudo a circulação desse material difundido entre as colônias de imigrantes alemães-pomeranos5 5 Pomeranos: nome dado aos imigrantes que vieram ao Brasil da antiga Pomerânia, que se situava nas costas do mar Báltico, território atualmente incorporado pela Alemanha e Polônia. Hoje a sua cultura está praticamente extinta naquela região, mantendo-se viva entre algumas comunidades no Brasil que ainda preservam o dialeto e determinadas práticas culturais e religiosas. Para mais detalhes sobre o assunto, ver Schaeffer (2012). na região meridional do Rio Grande do Sul, com ênfase na microrregião denominada Serra do Tapes, espaço selecionado para análise das cartilhas, tendo como referência as memórias de sujeitos6 6 Com a motivação principal de entender os usos das representações ilustrativas das cartilhas alemãs que circularam nesse contexto, foram realizadas, de 2016 a 2018, 12 entrevistas com sujeitos escolarizados em língua alemã ou que iniciaram sua alfabetização nesse idioma entre 1932 e 1942. alfabetizados em escolas sinodais a partir desses rudimentos. Objetiva-se, portanto, observar as possíveis diferenciações sociais de trabalho por meio das representações ilustrativas contidas nas cartilhas propostas para análise. Para tanto, faz-se uso de teóricos como Joly (2006)Joly, M. (2006). Introdução à análise da imagem (11a ed.). Campinas: Papirus. e Pesavento (2005)Pesavento, S. J. (2004). História e História Cultural (2a ed.). Belo Horizonte: Autêntica., que afirmam que as imagens são percebidas como representações de algo, instaurando nos sujeitos uma sensação de pertencimento. Pesavento (2005)Pesavento, S. J. (2004). História e História Cultural (2a ed.). Belo Horizonte: Autêntica. enfatiza, ainda, que a representação não é uma cópia do real estampada, como se o real fosse sua imagem perfeita ou uma espécie de reflexo, mas uma construção feita a partir do real. Nesse sentido, a autora lembra que:

As representações construídas sobre o mundo não só se colocam no lugar deste mundo, como fazem com que os homens percebam a realidade e pautem a sua existência. São matrizes geradoras de condutas e práticas sociais, dotadas de força integradora e coesiva, bem como explicativa do real. Indivíduos e grupos dão sentido ao mundo por meio das representações que constroem sobre a realidade.

(Pesavento, 2005Pesavento, S. J. (2004). História e História Cultural (2a ed.). Belo Horizonte: Autêntica., p. 39).

É perceptível que a representação possui um papel importante, pois é internalizada no inconsciente coletivo, sendo considerada como natural e dispensando, dessa forma, a reflexão. As representações, portanto, mostram-se carregadas de sentidos, normas, discursos e imagens, que são socialmente construídos. Logo, nas cartilhas Mein Rechenbuch e Fibel für Deutsche Schulen in Brasilien, elas desempenham função relevante, uma vez que suas ilustrações reproduzem uma representação da realidade paralela à existência dos indivíduos que foram alfabetizados com essas cartilhas. Dessa maneira, busca-se fazer uma aproximação com teóricos que estudam a cultura escolar, em especial aqueles que investigam cartilhas escolares e a construção social da categoria de gênero, para compreender as relações estabelecidas entre o campo da pesquisa e o objeto de estudo e, assim, trazer algumas contribuições sobre a temática.

Conhecer para entender: uma aproximação com a materialidade das cartilhas

Cada vez mais, as pesquisas realizadas no campo dos estudos da história da educação têm se dedicado a estudar e conhecer as instituições escolares por intermédio de sua materialidade. E, entre os objetos que compõem a materialidade escolar, a cartilha é, segundo Choppin (2002)Choppin, A. (2002, abril). O historiador e o livro escolar. História da Educação, ASPHE/FaE/UFPel, Pelotas, 11, 5-24., uma fonte privilegiada, pois, por seu intermédio, é possível observar as funções políticas, sociais e religiosas desempenhadas por diferentes culturas em épocas e contextos variados.

Como objeto representativo da história e da memória da alfabetização, Mortatti (2000a)Mortatti, M. do R. L. (2000a). Os sentidos da alfabetização. São Paulo: Editora Unesp. 372 p. sinaliza que as cartilhas sistematizaram um percurso marcado por disputas entre os métodos tradicionais e os modernos. Suas pesquisas revelaram, ainda, que o movimento republicano do final século XIX incentivou a produção de manuais didáticos nos estados brasileiros, possibilitando a expansão do ensino primário e, consequentemente, um aumento de cartilhas nacionais. Esses materiais didáticos serviram ao longo do século XX como importantes instrumentos na disseminação de diferentes métodos de ensino. Tiveram, inicialmente, forte influência da pedagogia norte-americana e refletiram as diferentes tendências educacionais constituídas historicamente, buscando ensinar “… com base na definição das habilidades visuais, auditivas e motoras do aprendiz” (Mortatti, 2000bMortatti, M. do R. L. (2000b, novembro). Cartilha de alfabetização e cultura escolar: Um pacto secular. Cadernos Cedes, XX(52), 41-54. Recuperado de www.scielo.br/pdf/ccedes/v20n52/a04v2052
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, p. 43), enfatizando um ensino mais instrumentalizado. Em outros momentos da história da alfabetização no Brasil, as cartilhas chanceladas pelas políticas públicas visaram atender aos interesses de uma parcela da população brasileira, conforme explicita Messenberg (2012)Messenber, C. G. (2012). A série Na roça, de Renato S. Fleury, na história do ensino da leitura no Brasil. 2012. 176 f. Dissertação (Mestrado em Educação). Universidade Estadual Paulista/UEP, Marilia/SP., ao analisar a série Na roça, destinada especificamente para crianças que frequentavam escolas rurais. Já Bertoletti (2006)Bertolletti, E. N. M. (2006). Lourenço Filho e a alfabetização: um estudo de Cartilha do povo e da cartilha, Upa, cavalinho. São Paulo, Editora Unesp., ao estudar cartilhas produzidas por Lourenço Filho, observa a função socializadora que elas tiveram durante o movimento Escola Nova, no sentido de alcançar uma uniformização cultural. Por isso, os estudos que tiveram como fonte e objeto cartilhas nacionais e o movimento da alfabetização foram excelentes fontes históricas para compreender a mentalidade educacional de cada época.

Assim, é conveniente, antes de dar seguimento à análise do conteúdo presente nas cartilhas, projetar o olhar sobre sua estrutura material, visto que elas podem ser tomadas tanto como documento impresso quanto como produto cultural. Dessa maneira, entende-se, com base em Chartier (1990)Chartier, R. (1990). História Cultural: entre práticas e representações. Rio de Janeiro: Bertand., que a descrição da materialidade das cartilhas possibilita conhecer os códigos culturais e aproximar-se das práticas sociais nelas representadas. Tais representações, segundo Pesavento (2005)Pesavento, S. J. (2004). História e História Cultural (2a ed.). Belo Horizonte: Autêntica., são forjadas a partir de um conjunto de circunstâncias que provavelmente influenciaram as escolhas de quem produziu esse material.

Diante disso, parece oportuno destacar aqui a relevância de analisar as cartilhas, buscando perceber as estruturas sociais e econômicas do período de sua produção. Conforme Meneses (1998)Meneses, U. T. B. (1998). Memória e Cultura Material: documentos Pessoais no Espaço Público. Estudos históricos, 11(21), 89-103. Rio de Janeiro: FGV. Recuperado de bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/reh/article/view%20File/2067/1206
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, “os objetos materiais funcionam como veículos de qualificação social …” (p. 90), pois possuem as características da sociedade que os produziu. Assim sendo, a estrutura física e estética das cartilhas escolares abordadas nesta pesquisa corresponde ao período em que foram produzidas.

A cartilha intitulada Fibel fuer Deutsche Schulen in Brasilien foi publicada pela primeira vez em 1878 pelo pastor Wilhelm Rotermund, fundador e proprietário da editora Rotermund7 7 Fundada em 1877, em São Leopoldo, pelo pastor Wilhelm Rotermund, que, anos mais tarde, em 1886, fundou o Sínodo Rio-Grandense, vinculando a editora ao sínodo. Para saber mais sobre o tema, ver Dreher (2014). , que, desde sua origem, esteve ligada ao Sínodo Rio-Grandense, oficialmente fundado em 1886, na cidade de São Leopoldo, Rio Grande do Sul. Essa cartilha passou por sucessivas edições e reelaborações até o ano de 1932. A partir de 1924, além de Rotermund, dois outros autores, Nack e Heuer, reproduziram a cartilha, que passou a ser reelaborada em duas versões: a edição A (Ausgabe A – Deutsche Schrift), escrita em alemão com letra gótica, e a edição B (Ausgabe B – Lateinschrift), escrita também em alemão, mas com letra latina – todas as edições anteriores possuíam uma única versão. A Figura 1, a seguir, apresenta a capa da Fibel8 8 Para facilitar a escrita deste texto e tendo em vista que Fibel em alemão significa “cartilha”, optou-se por usar apenas o primeiro nome da cartilha Fibel für deutsche Schulen in Brasilien após essa apresentação inicial. .

Figura 1
Capa da Fibel fuer Deutsche Schulen in Brasilien

A Fibel10 10 Foram produzidas onze cartilhas Fibel, seis escritas em letra alemão gótico e cinco, em escrita latina, todas produzidas na década de 1920. Essas cartilhas possuem características semelhantes de apresentação e organização de conteúdo, porém algumas trazem o conteúdo do primeiro e segundo ano escolar de forma separada, e outras, de forma acoplada em uma única cartilha. analisada no presente trabalho é a terceira edição B, de escrita latina, reeditada no ano de 1927, conforme informado no seu prefácio (a primeira edição na escrita latina é de 1924, ano em que ela passou a ser impressa em duas versões). Essa cartilha apresenta, conforme Cardoso (2005)Cardoso, R. (2005) O Início do Design de Livros no Brasil. In R. Cardoso, O design brasileiro, antes do design: Aspecto da história gráfica, 1870-1960 (pp. 160-197). São Paulo: Cosacnaify., características comuns à maioria dos livros produzidos na década de 1920: capa dura estilo brochura e folhas semelhantes ao papel-jornal, transparecendo levemente as fibras e impressões nas cores preto e branco.

Quanto aos aspectos de organização, essa cartilha possui um total de 186 páginas, agrupando o conteúdo do primeiro e segundo ano escolar. Em anexo, traz um apêndice ilustrativo, ensinando a fazer origamis – objetos de papel dobrado. Suas ilustrações oscilam entre representações de cunho didático, social, religioso, histórico e folclórico, distribuídas em diferentes estágios de leitura, do mais simples ao mais avançado.

Observa-se, também, que existia uma intencionalidade no uso das ilustrações: promover uma ressignificação étnico-cultural e reforçar as relações sociais estabelecidas. Evidencia-se, assim, que a associação entre o livro e as práticas culturais de seu uso pode ser percebida na materialidade e forma de organização da cartilha (Frade, 2010Frade, I. C. A. da S. (2010). Livros para ensinar a ler e escrever: uma pequena análise da visualidade de livros produzidos no Brasil, em Portugal e na França, entre os séculos XIX e XX. In A. Bragança, M. Abreu (Orgs.). Impresso no Brasil: Dois séculos de livros brasileiros (pp. 171-190). São Paulo: Editora Unesp.).

Nesse sentido, cabe destacar que a ilustração é a principal metodologia de ensino das duas cartilhas analisadas, visto que elas proporcionam uma leitura visual que leva a decifrar o texto proposto, antes mesmo de incentivar a leitura do escrito, conforme pode ser observado na cartilha Mein Rechenbuch, apresentada na sequência (Figura 2).

Figura 2
Capa da Mein Rechenbuch

A cartilha Mein Rechenbuch foi impressa no ano de 1933, sendo a primeira de quatro12 12 Conforme o prefácio da cartilha, os três primeiros cadernos levam em consideração, especialmente, a escola de Colônia. A escolha de analisar o primeiro dos quatro cadernos deve-se ao fato de ser este o único da coleção a ser mencionado pelos entrevistados da pesquisa, apesar de o primeiro e o segundo caderno se encontrarem no acervo do Cedoc da UFPel. cadernos das cartilhas produzidas com o objetivo de auxiliar professores protestantes e católicos no ensino de uma “matemática mental mais frutífera e proveitosa”, conforme é indicado em seu prefácio. Nela, consta também a informação de que foi elaborada por dois autores – W. Nast e L. Tochtrop – e ilustrada por Hermann Wrede.

Como se pode observar, ela difere das outras cartilhas produzidas pela editora Rotermund, trazendo uma capa de tonalidade amarelada, com uma ilustração bastante emblemática: duas crianças e uma imagem do que, no imaginário popular, é reconhecido como o diabo. Logo, tal ilustração induz a pensar na matemática como algo assustador.

Diferentemente da Fibel, que foi produzida para atender as escolas ligadas aos sínodos luteranos, a cartilha Mein Rechenbuch é destinada também ao uso de professores católicos e evangélicos, evidenciando, assim, que alguns materiais escolares da editora Rotermund não se restringiam apenas às escolas evangélicas. A análise dessa cartilha também demonstra que a editora sofreu um processo de modernização, o que pode ser comprovado pela observação de duas outras cartilhas produzidas na década de 1930. Tal fato pode ser devido à influência da editora Concórdia13 13 Editora fundada no Brasil em 1923, em Porto Alegre, com o objetivo de dar assistência ao projeto educacional e religioso do Sínodo de Missouri. Para saber mais sobre o assunto, ver Warth (1979) e Weiduschadt (2007). , ligada ao sínodo concorrente, que já produzia capas ilustradas, ou, conforme salienta Cardoso (2005)Cardoso, R. (2005) O Início do Design de Livros no Brasil. In R. Cardoso, O design brasileiro, antes do design: Aspecto da história gráfica, 1870-1960 (pp. 160-197). São Paulo: Cosacnaify., ao maior investimento gráfico em capas de livros que começa a ocorrer a partir dos anos 1930 no Brasil, o que também pode justificar essa mudança no formato gráfico da capa.

A cartilha Mein Rechenbuch possui altura de 20 centímetros, largura de 13 centímetros e espessura de aproximadamente um centímetro. É do tipo brochura, com as folhas presas entre si por costura e cola e unidas à lombada por uma fita adesiva preta, que fixa o material à capa, a qual é dura e coberta por um papel texturizado de tonalidade amarela.

No que concerne à organização, essa cartilha, de alfabetização numérica, é dedicada aos anos iniciais, possui um total de 70 páginas, incluindo o prefácio, e segue o padrão ilustrativo da Fibel, dando um amplo destaque à linguagem visual, com 41 ilustrações de atividades do meio rural, do cotidiano doméstico e do setor comercial. Assim como na Fibel, em que, para cada letra ensinada, criou-se um contexto ilustrativo pensado para o ensino da letra em questão, na cartilha Mein Rechenbuch cada número é contextualizado tendo em vista seu ensino.

É possível notar, dessa forma, que as cartilhas Fibel e Mein Rechenbuch são amplamente ilustradas, reproduzindo um contexto visual que remete às situações do cotidiano ou da realidade local das comunidades teuto-brasileiras14 14 Teuto-brasileiro: indivíduo de origem alemã e brasileira. do Rio Grande do Sul. Concorda-se, assim, com Kreutz (1994)Kreutz, L. (1994). Material didático e currículo na escola teuto-brasileira do Rio Grande do Sul. São Leopoldo: Editora Unisinos., quando o autor afirma que as produções de materiais didáticos no contexto da imigração estavam vinculadas a um projeto comunitário sob liderança das igrejas. Esse projeto abrangia os aspectos tanto sociais e religiosos quanto trabalhistas, refletindo tais questões nos materiais didáticos. Para Kreutz (1994, p. 73)Kreutz, L. (1994). Material didático e currículo na escola teuto-brasileira do Rio Grande do Sul. São Leopoldo: Editora Unisinos., “trata-se de livros elaborados e impressos especialmente para a escola teuto-brasileira sob a justificativa de que o material didático deveria partir da realidade do aluno e prepará-lo para inserir-se melhor em seu contexto”.

A partir dessa concepção do material didático produzido, observa-se a intencionalidade de preparar o aluno para se integrar ao espaço geográfico e social, de modo que se perceba como parte integrante de um grupo comunitário étnico alemão-pomerano. Nessa lógica, Weiduschadt e Tambara (2016)Weiduschadt, P., Tambara (2016). Elomar Antonio Callegaro. Cartilhas e Livros Didáticos nas Escolas Pomeranas Luteranas do sul do Rio Grande do Sul (1900-1940). História da Educação, 20, 275-296. apontam que o significado do livro não se instituiu apenas pelo seu conteúdo escrito, mas pela forma como foi apresentado. Os aspectos religiosos e sociais, com destaque à presença de práticas vinculadas ao mundo do trabalho, são amplamente representados nas cartilhas, evidenciando a existência de atividades distintas e, consequentemente, representações do que se consideravam atividades masculinas e atividades femininas.

Nesse sentido, Louro (1994)Louro, G. L. (1994, novembro). Uma Leitura Histórica Sob a Perspectiva de Gênero. Projeto História. São Paulo, n.11, 31-46. Recuperado de https://revistas.pucsp.br/index.php/revph/article/viewFile/11412/8317
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afirma que é nos símbolos culturalmente invocados e expressos no processo de ensino e aprendizagem que se exerce a construção dos sujeitos. Se os símbolos15 15 Símbolos: tudo o que representa, sugere ou substitui alguma coisa. Na literatura, símbolo significa alegoria ou metáfora; palavra ou imagem cujo sentido designa um objeto ou qualidade, pela relação de semelhança entre eles. (Dicio, [s.d.]). forem pensados como representações da sociedade, será possível observar que, se

… essas representações são compreendidas por outras pessoas além das que as fabricaram, é porque existe entre eles um mínimo de convenção sociocultural, em outras palavras, elas devem boa parcela de sua significação a seu aspecto de símbolo …

(Joly, 1996,Joly, M. (2006). Introdução à análise da imagem (11a ed.). Campinas: Papirus. p. 40).

Analogamente, compreende-se que as ilustrações carregam consigo uma intenção autoral, que pode ir além do simples auxílio na aprendizagem. Para Belmiro (2008)Belmiro, C. A. (2008) Um estudo sobre relações entre imagens e textos verbais em cartilhas de alfabetização e livros de literatura infantil. 2008. Tese (Doutorado em Educação). Universidade Federal Fluminense/UFF, Niterói/RJ., as imagens são carregadas de histórias, sentimentos e ideologias, possuindo um cunho social. Trata-se, nessa perspectiva, de uma alfabetização cultural, que se dirige aos conhecimentos e saberes que o cidadão deve possuir para participar da vida em sociedade.

Como já mencionado, um dos objetivos deste estudo consiste em realizar uma breve análise das representações ilustrativas presentes nas cartilhas, a fim de perceber possíveis direcionamentos sobre as relações entre gênero e trabalho. Para tanto, são analisados os papéis de trabalho atribuídos ao homem e à mulher nas cartilhas. Segundo Louro (1994)Louro, G. L. (1994, novembro). Uma Leitura Histórica Sob a Perspectiva de Gênero. Projeto História. São Paulo, n.11, 31-46. Recuperado de https://revistas.pucsp.br/index.php/revph/article/viewFile/11412/8317
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, essas relações são efetivadas por construções históricas e sociais dos sujeitos. Kreutz (1994)Kreutz, L. (1994). Material didático e currículo na escola teuto-brasileira do Rio Grande do Sul. São Leopoldo: Editora Unisinos., por sua vez, reforça que, no conteúdo das cartilhas, predominava pedagogicamente o método da Realia16 16 O realismo pedagógico era baseado em um ensino prático, útil e voltado para a realidade, mantendo a atenção concentrada na observação do meio. No caso em estudo, o foco residia na realidade das escolas rurais teutas: instrumentos do trabalho rural, vida doméstica e mercado local. Para saber mais sobre o tema, ver Hoff e Cardoso (2006). , contemplando-se o que era habitual para os colonos.

Como o público-alvo dessa cartilha eram as comunidades rurais teuto-brasileiras, busca-se direcionar o olhar para as representações de trabalho nas cartilhas, de modo a perceber os possíveis direcionamentos sociais por intermédio da forma de organização do trabalho agrícola e doméstico. Dessa maneira, são apresentados a seguir alguns apontamentos que resultaram da análise das cartilhas escolares supracitadas. A partir disso, torna-se possível tecer algumas considerações sobre como essas representações colaboraram na ressignificação das relações sociais de trabalho estabelecidas entre os sujeitos escolarizados por essas cartilhas.

Relações de trabalho representadas em processos educativo-culturais

Partindo do pressuposto de que os processos educativos em diferentes épocas, espaços e culturas carregam a herança de valores e ideias de determinada sociedade e promovem a construção de sua identidade, busca-se compreender as manifestações, os hábitos, as rotinas, os costumes, as crenças, as religiões, os relacionamentos familiares e as manifestações artísticas do grupo de usuários das cartilhas, tentando realizar o movimento que Rodrigues (1989)Rodrigues, J. C. (1989) Os outros e os outros, In Antropologia e comunicação. Rio de Janeiro: Espaço Tempo. denominou de relativização. Para isso, é necessário o esforço de compreender a significação dos comportamentos, pensamentos e sentimentos do ser humano em sua diversidade cultural, lembrando que, para Rodrigues (1989)Rodrigues, J. C. (1989) Os outros e os outros, In Antropologia e comunicação. Rio de Janeiro: Espaço Tempo., o homem é produto e, ao mesmo tempo, produtor dessas transformações.

Ademais, tendo em vista que as cartilhas apresentam uma quantidade significativa de ilustrações envolvendo as relações de trabalho, é necessário verificar como essas representações estão relacionadas com a identidade étnica e cultural, que é o resultado, conforme Silva (2014), de uma bem-sucedida articulação entre sujeito e discurso. O referido autor reforça que as pessoas, enquanto sujeitos ativos dentro da sociedade, constroem sua identidade balizadas por produções simbólicas e discursivas, a partir das diferenças presentes nas relações culturais e sociais. Trata-se, portanto, de uma construção.

Por conseguinte, Scott (1995)Scott, J. (1995, julho-dezembro). Gênero, uma categoria de análise histórica. Educação e Realidade, 20(2), 71-99. Recuperado de http://seer.ufrgs.br/index.php/educacaoerealidade/article/view/71721/40667
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auxilia a pensar a categoria de gênero e, assim, a suposta determinação dos papéis sociais como construção cultural a partir de elementos diversos. Para ela,

O gênero é construído através do parentesco, mas não exclusivamente; ele é construído igualmente na economia e na organização política, que, pelo menos em nossa sociedade, operam atualmente de maneira amplamente independente do parentesco

(Scott, 1995Scott, J. (1995, julho-dezembro). Gênero, uma categoria de análise histórica. Educação e Realidade, 20(2), 71-99. Recuperado de http://seer.ufrgs.br/index.php/educacaoerealidade/article/view/71721/40667
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, p. 87).

Portanto, é preciso perceber as relações sociais estabelecidas no contexto onde as cartilhas eram produzidas e utilizadas, a fim de conhecer os possíveis objetivos e direcionamentos desses materiais. Pode-se afirmar, assim, que essas representações, enquanto expressão, potencializavam o entendimento e, consequentemente, ajudavam a produzir projeções mentais do tipo de cidadão que se objetivava formar.

As ilustrações das cartilhas poderiam facilitar a compreensão sobre como algumas representações eram selecionadas com o intuito de construir uma memória coletiva das narrativas consideradas importantes de serem cristalizadas, no sentido de afirmar as relações de trabalho e de sociabilidade que se buscava construir. Além disso, para Halbwachs (2003, p. 39)Halbwachs, M (2003). A memória coletiva. São Paulo: Centauro, 2003., os pontos de contato em comum são importantes para que as “… lembranças que nos fazem recordar venham a ser constituídas sobre uma base comum”. A representação visual pode, desse modo, ter servido como suporte para criar uma combinação de diferentes memórias em torno de uma representação comum direcionada para uma alfabetização cultural em que a criança aprendia a se reconhecer como parte integrante de determinada cultura e era estimulada a reproduzi-la. É nessa direção que Gramsci (1968)Gramsci, A. (1968). Os intelectuais e a organização da cultura. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. defendia que a consciência individual da esmagadora maioria das crianças reflete relações civis e culturais das pessoas que as cercam. Logo, as representações ilustrativas nos materiais didáticos podem ter sido projetadas com o intuito de afirmar as relações sociais do meio em que a criança se encontrava inserida.

Joly (2006)Joly, M. (2006). Introdução à análise da imagem (11a ed.). Campinas: Papirus. chama atenção para a necessidade de analisar uma imagem buscando perceber para quem ela foi produzida, pois isso facilitará identificar as intencionalidades de sua produção. Como foi mencionado anteriormente, foram realizadas entrevistas para compreender a apropriação das cartilhas por indivíduos escolarizados por meio desses materiais didáticos.

Além disso, os entrevistados, ao serem indagados sobre o uso das cartilhas, ressaltaram que as aulas buscavam abranger suas vivências diárias e as cartilhas ensinavam o que era preciso saber para viver em uma comunidade rural. Dessa maneira, é possível inferir que as ilustrações das cartilhas Mein Rechenbuch e Fibel carregam consigo uma intenção autoral que pode ir além do simples auxílio na aprendizagem. A esse respeito, cabe ressaltar o entendimento de Belmiro (2008)Belmiro, C. A. (2008) Um estudo sobre relações entre imagens e textos verbais em cartilhas de alfabetização e livros de literatura infantil. 2008. Tese (Doutorado em Educação). Universidade Federal Fluminense/UFF, Niterói/RJ., para quem as imagens nos livros didáticos são carregadas de histórias, sentimentos e ideologias, e possuem um cunho social, direcionando o olhar da criança para certos aspectos da vida em sociedade.

Assim, o conteúdo das cartilhas é organizado de modo a contemplar a realidade do aluno, de forma que as ilustrações apresentem situações envolvendo atividades e hábitos comuns ao universo do discente. Em algumas dessas representações, nota-se a construção de uma diferenciação entre as situações de trabalho típicas do público feminino e do masculino. Tal distinção pode ser visualizada nas figuras 3 e 4, expostas a seguir, copiadas da Fibel, em que o menino é representado auxiliando o pai, e a menina, cuidando do jardim ao lado da mãe.

Figura 3
O menino ajudando o pai
Figura 4
A menina ajudando a mãe

É notável que essas duas imagens fazem menção às atividades relacionadas ao mundo do trabalho. Na Figura 3, percebe-se a representação de um menino auxiliando o pai em atividades do campo, socialmente tidas como práticas correspondentes ao universo masculino, em que o menino é representado segurando os pregos, enquanto o pai conserta a cerca. Por outro lado, na Figura 4, a menina está ajudando a mãe nos afazeres domésticos, como cuidar do jardim, prática em que a menina é mostrada com um ancinho em uma mão e com uma tesoura em outra, objeto que alcança para sua mãe, enquanto o menino está correndo pelo jardim. Assim, entende-se que tais imagens refletem estruturas e modos de organização familiares, pois, como afirma Louro (1994)Louro, G. L. (1994, novembro). Uma Leitura Histórica Sob a Perspectiva de Gênero. Projeto História. São Paulo, n.11, 31-46. Recuperado de https://revistas.pucsp.br/index.php/revph/article/viewFile/11412/8317
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, homens e mulheres constroem-se em processo de relação de práticas sociais e familiares.

Além disso, de acordo com Nunes (2010)Nunes, P. M. (2010). O que as imagens fazem. In M. P. Manini. Imagem, memória e informação. Brasília: Ícone., não é possível imaginar a ação e as influências das imagens sem o auxílio de um contexto empírico mais ou menos conhecido, em que tais ilustrações possam ser observadas e reelaboradas. Essa ideia vem ao encontro dos escritos de Joly (2006)Joly, M. (2006). Introdução à análise da imagem (11a ed.). Campinas: Papirus., quando diz que a imagem nunca é aleatória, já que sempre tem uma razão de ser e geralmente está ancorada ao seu contexto de produção. Portanto, ela tem muito a dizer sobre a sociedade que a produziu.

Pode-se inferir, ainda, que as representações das figuras 3 e 4 trazem uma antecipação de situações do cotidiano da vida adulta, fato que é notório em diferentes situações de trabalho representadas ao longo da Fibel. Logo, a criança passa a se perceber dentro de um universo de trabalho em que as atividades são tidas como masculinas ou femininas.

Dessa forma, Louro (1997, p. 61)Louro, G. L. (1997). Gênero, sexualidade e educação. Petrópolis: Vozes. ressalta a participação dos próprios sujeitos nessa construção, que, segundo a autora, “não são passivos receptores de imposições externas. Ativamente eles se envolvem e são envolvidos nessas aprendizagens, reagem, respondem, recusam ou as assumem inteiramente”. Assim, o conhecimento não é transmitido automaticamente, mas por meio de uma construção social que requer a participação dos sujeitos envolvidos.

Como o público-alvo das cartilhas sinodais eram as comunidades rurais teuto-brasileiras, é perceptível que as representações de trabalho nesses materiais produzidos pela editora Rotermund são direcionados às atividades rurais e domésticas e a alguns ofícios em particular, como de professor e comerciante. Essas constatações são reforçadas por Buss (2005)Buss, P. (2005) Lutero no contexto do luteranismo brasileiro. In: Heimann, L. Lutero o educador. Canoas: Ed. Ulbra., ao observar que o currículo das escolas do Sínodo Rio-Grandense era elaborado em função das necessidades da sociedade17 17 Segundo Buss (2005, p. 51), “o currículo das escolas do Sínodo Rio-Grandense não era uniforme. Na zona rural, o objetivo principal da escola era o de ensinar o jovem a ler, escrever, fazer contas e dar-lhe um bom fundamento na doutrina cristã. Já nas vilas e cidades, a aspiração escolar era maior. Os currículos apresentavam, de forma complementar, geografia, história, ciências e, sobretudo, escrituração mercantil. Esta técnica comercial era matéria importante para os teuto-brasileiros que ocupavam lugar de destaque no comércio e na indústria do Rio Grande do Sul e Santa Catarina”. , o que refletia também na produção e circulação de cartilhas específicas para o contexto rural e urbano. Entretanto, como já mencionado, tratava-se de um ensino realizado a partir do espaço de vivência das crianças.

As figuras 5 e 6 vêm a corroborar tais afirmativas: são representações do início do século XX e reproduzem o cotidiano das comunidades rurais teuto-brasileiras.

Figura 5
O homem no trabalho do campo
Figura 6
A mulher e as atividades domésticas

Observa-se que, por intermédio da representação de atividades específicas, a cartilha tende a mostrar condutas distintas para o homem e para a mulher em relação ao trabalho. Na Figura 5, destacam-se atividades atribuídas ao gênero masculino. Ao passo que, na parte inferior dessa ilustração, encontra-se um homem espalhando sementes na lavoura, na parte superior, há uma imagem de crianças brincando de desfile cívico, em que três meninos marcham com suas armas de brinquedo, outro anda a cavalo com sua espada erguida, e a menina carrega a bandeira.

Fica visível que há uma intencionalidade em mostrar que existem certas atividades socialmente pensadas e articuladas de modo a parecer como destinadas ao sexo masculino, como, por exemplo, as que envolvem certa periculosidade, trabalho no campo ou uso da força física. Já as mulheres são relegadas ao recato da apresentação ou da vida doméstica, como mostra a Figura 6. Nesse sentido, Louro (1994)Louro, G. L. (1994, novembro). Uma Leitura Histórica Sob a Perspectiva de Gênero. Projeto História. São Paulo, n.11, 31-46. Recuperado de https://revistas.pucsp.br/index.php/revph/article/viewFile/11412/8317
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destaca que é por meio das manifestações físicas e corporais que se expressam as estruturas sociais. Essas representações são construídas e firmadas por uma série de atividades elencadas ao cotidiano, com o objetivo de legitimar organizações sociais culturalmente instituídas.

Scott (1995)Scott, J. (1995, julho-dezembro). Gênero, uma categoria de análise histórica. Educação e Realidade, 20(2), 71-99. Recuperado de http://seer.ufrgs.br/index.php/educacaoerealidade/article/view/71721/40667
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entende essas relações como símbolos culturalmente invocados e normativos sobre os papéis socialmente aceitos e recomendados para cada gênero em determinada sociedade. Pode-se constatar, assim, que, na Figura 6, toda a ilustração enfatiza atividades atribuídas pelo grupo social leitor da cartilha ao gênero feminino, indo ao encontro de Eco (2004)Eco, H. (2004). O Leitor-Modelo. In H. Eco, Leitor in Fábula (pp. 35-45). São Paulo: Perspectiva., que diz que o autor, antes de produzir sua obra, observa o seu público leitor. Para reforçar essa ideia, na parte superior da imagem, há a representação de uma senhora que acabou de ordenhar uma vaca, e de uma menina, que observa essa atividade – ressalta-se que também era papel da mulher cuidar dos filhos. Na parte inferior da ilustração, encontra-se a imagem de uma mulher estendendo roupas no varal e, ao fundo, distante no horizonte, de um homem andando de carroça, reiterando a perspectiva de que as atividades externas, ou seja, realizadas fora da propriedade, são atribuídas ao gênero masculino. Para Joly (2006)Joly, M. (2006). Introdução à análise da imagem (11a ed.). Campinas: Papirus., a linguagem visual tem uma função figurativa de naturalizar determinadas realidades. Segundo a autora,

… quando uma imagem nos parece “semelhante” é porque é construída de uma maneira a decifrá-la como deciframos o próprio mundo. As unidades que nela detectamos são “unidades culturais” determinadas pelo hábito que temos de detectá-las no próprio mundo

(Joly, 2006Joly, M. (2006). Introdução à análise da imagem (11a ed.). Campinas: Papirus., p. 73).

Assim, essas cartilhas podem ter constituído elementos eficazes na transmissão cultural, sendo as ilustrações usadas para afirmar as relações sociais de trabalho nas comunidades teuto-brasileiras. Isso originou um processo de assimilação e acomodação, o que Nosella (1981)Nosella, M. de L. C. D. (1981). As belas mentiras: a ideologia subjacente aos textos didáticos. São Paulo: Editora Moraes. chama de maneira direcionada de perceber o mundo, no qual as crianças submetidas à inculcação de determinada ideologia não irão apenas apreendê-la, mas terão também toda a sua estrutura de pensamento influenciada por ela.

Nesse sentido, as representações visuais da Fibel evidenciam a reprodução das divisões sociais de gênero no espaço familiar, espaço esse construído por unidades culturais. Tal divisão pode ser visualizada na Figura 7, a seguir, que traz uma representação do homem descansando enquanto a mulher está banhando a criança.

Figura 7
A mãe banhando a criança, e o pai descansando

É notório que essa ilustração reproduz um espaço familiar, com pai, mãe e filho. Tal representação familiar expressa uma construção social delimitada por fatores entendidos em determinadas sociedades como atividades adequadas a cada sexo, podendo, ainda, ser compreendida como uma maneira de naturalizar certos comportamentos sociais.

A esse respeito, cabe observar que a maioria das memórias relatadas pelos entrevistados que participaram deste estudo converge para a existência de uma vida rural, em que a mulher atuava auxiliando o marido nas atividades da lavoura. Por outro lado, é perceptível que existiam atividades que eram de competência masculina, como serviços de carpintaria, de arar a terra, de comercializar produtos e de abastecer a casa de mantimentos. Nesse contexto, a mulher aparece nos relatos como a responsável pelo espaço doméstico, como aquela que zela pela educação e higiene dos filhos, pela organização e pelo funcionamento da casa. Na maior parte das memórias, é a mãe ou a irmã que aparece como aquela que auxiliou nas tarefas escolares, pois “o pai trabalhava incansavelmente na roça e à noite estava cansado” (Albrecht, 2018Albrecht, L. S. entrevista (2018). Entrevistador: Elias K. Albrecht, 2018, Canguçu/RS. Entrevista concedida para fins desta pesquisa.).

As pesquisas realizadas por Salomani (1996)Salamoni, G. (1996). Os Pomeranos: valores culturais da família de origem pomerana no Rio Grande do Sul – Pelotas e São Lourenço do Sul. Pelotas: Editora da UFPel. junto às comunidades pomeranas na região meridional do Rio Grande do Sul são esclarecedoras nesse sentido. Segundo a autora, existia uma divisão dos papéis sociais que eram naturalmente construídos:

… aos homens cabia a responsabilidade da manutenção econômica da família, mas com participação efetiva da mulher nas ações e decisões. Os encargos femininos não se restringiam às tarefas domésticas como era habitual àquela época. Às mulheres estavam atribuídas os afazeres domésticos, o cuidado com a educação dos filhos e o trabalho na roça junto com o marido. Assim, quando chegava da lavoura, o homem descansava, e a mulher seguia sua jornada de labuta, preparando a comida, cuidando dos filhos. … cabia também à mulher o cuidado do jardim da horta, assim como o trato dos animais, a ordenha, a capina, a costura, a limpeza da casa, entre outros afazeres

(Salomani, 1996Salamoni, G. (1996). Os Pomeranos: valores culturais da família de origem pomerana no Rio Grande do Sul – Pelotas e São Lourenço do Sul. Pelotas: Editora da UFPel., p. 59).

Existiam, nesse cenário, dois papéis bem definidos e reproduzidos nas comunidades teuto-brasileiras. Cabia ao homem a responsabilidade econômica de trabalhar e garantir o alimento da família, bem como de exercer a liderança nas relações e negociações externas. Já o trabalho da mulher estava vinculado aos espaços da casa e dos seus arredores, como, por exemplo, cuidar da jardinagem, das hortas e das árvores frutíferas, além de cuidar dos animais e dos filhos. Evidencia-se, assim, a importância da mulher no contexto do trabalho doméstico e do homem nos trabalhos externos à casa, conforme indicam as figuras 8 e 9.

Figura 8
O diálogo entre o descendente de alemão e o gaúcho
Figura 9
O caixeiro viajante

A Figura 8, apesar de reproduzir a mescla de culturas, fruto da convivência do descendente dos imigrantes alemães com o gaúcho, possibilitando incorporações de costumes e tradições, apresenta a imagem de uma mulher que não participa diretamente da conversa, mas está representada colhendo uvas, enquanto outra senhora está na porta da casa, contemplando a conversa de longe. A ilustração reforça, assim, as ponderações de Salomani (1996)Salamoni, G. (1996). Os Pomeranos: valores culturais da família de origem pomerana no Rio Grande do Sul – Pelotas e São Lourenço do Sul. Pelotas: Editora da UFPel., para quem a mulher alemã-pomerana tendia a não se envolver diretamente em tratativas extradomésticas, o que não a impedia de atuar nos bastidores e, consequentemente, de influenciar as decisões do seu cônjuge.

Portanto, como apontado por Louro (1994)Louro, G. L. (1994, novembro). Uma Leitura Histórica Sob a Perspectiva de Gênero. Projeto História. São Paulo, n.11, 31-46. Recuperado de https://revistas.pucsp.br/index.php/revph/article/viewFile/11412/8317
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, as relações sociais de gênero decorrem de um processo de construção, socialização e educação, que se constitui conforme os diferentes modelos de sociedade, que também apresentam diferentes conceitos de gênero. São diversas formas de constituição de trabalho socialmente construídas em meio a um processo de resistência e acomodação, acentuando-se, no caso deste estudo, também as divisões regionais.

Seguindo nessa direção, a Figura 9 mostra uma imagem publicada na cartilha matemática Mein Rechenbuch, em que homens e mulheres também estão representados em atividades distintas. Apesar de as ilustrações nessa cartilha aparecerem em menor quantidade e serem mais singelas, é possível observar que, assim como na Fibel, tendem a representar a mulher vinculada ao espaço doméstico, e o homem, às atividades do campo e do comércio.

A Figura 9 dá a entender que o homem representado na ilustração trata-se de um caixeiro viajante, visto que o seu carro de bois possui uma cobertura, mostrando que existe algum tipo de mercadoria protegida embaixo da lona. Tem-se, ainda, na parte inferior da ilustração, os itens que são comercializados, como fósforos, talheres, relógios, dados e cartas postais. Além disso, a ilustração mostra que o homem está gesticulando, enquanto a mulher o observa, o que permite inferir que há um diálogo entre os dois. Porém, pelo contexto da ilustração, é possível notar que a mulher está no espaço doméstico, contexto que vai ao encontro de Salomani (1996)Salamoni, G. (1996). Os Pomeranos: valores culturais da família de origem pomerana no Rio Grande do Sul – Pelotas e São Lourenço do Sul. Pelotas: Editora da UFPel., que afirma que o cuidado doméstico era a ela atribuído, e que o homem, independentemente de sua ocupação, está sempre representado em uma atividade externa ao ambiente doméstico. Do mesmo modo, a Figura 10, que é uma das várias representações constantes na cartilha Mein Rechenbuch, mostra o gênero masculino atuando no comércio.

Figura 10
O homem e o comércio

Pela observação dos aspectos analisados, tanto a Fibel como a Mein Rechenbuch podem ter sido elementos eficazes na transmissão cultural de certos comportamentos em relação à divisão do trabalho. As ilustrações, em ambas as cartilhas, foram usadas para afirmar as relações sociais de trabalho nas comunidades teuto-brasileiras. A esse respeito, cabe ressaltar que o currículo de uma escola ou a seleção dos conhecimentos a serem transmitidos, conforme explicita Louro (1997)Louro, G. L. (1997). Gênero, sexualidade e educação. Petrópolis: Vozes., são reveladores das divisões sociais e da legitimação de alguns grupos em detrimento de outros. Muitas vezes, as diferenças sociais entre os sujeitos são acentuadas e justificadas pelo que é ensinado em sala de aula, especialmente por meio dos materiais didáticos veiculados.

Não se quer aqui afirmar que a escola orientava a divisão das atividades de trabalho de acordo com o gênero, apesar de algumas memórias apontarem esse aspecto, como é o caso de Adolfina K. Neitzke (2016)Neitzke, A. K. entrevista (2016, abril). Entrevistador: Elias K. Albrecht, 2016, Canguçu/RS. Entrevista concedida para fins desta pesquisa. e Ilsa K. Neunfeldt (2018), que recordam que eventualmente tinham aulas de artesanato e prendas domésticas, em que “… as meninas aprendiam a pintar, fazer tricô, bordado etc., e os meninos, a fazer serviços de carpintaria, cestos de cipó e de palha de milho” (Neunfeldt, 2018Neunfeldt, I. K. entrevista (2016, abril). Entrevistador: Elias K. Albrecht, 2016, Canguçu – RS. Entrevista concedida para fins desta pesquisa.). Corroborando tais afirmativas, Otto Schellin (2016)Schellin, O. entrevista (2016, maio). Entrevistador: Elias K. Albrecht, 2016, Canguçu/RS. Entrevista concedida para fins desta pesquisa. afirma que existiam também atividades recreativas, específicas para meninos e meninas, organizadas pelo professor. Essas memórias condizem, assim, com as afirmativas de Kolling (2000)Kolling, N. B. (2000). Educação e escolas em contextos de imigração pomerana no sul do Rio Grande do Sul-Brasil. 2000. Dissertação (Mestrado em Educação). Universidade Federal de Pelotas/UFPel, Pelotas/RS. sobre o contexto educacional pomerano tutelado pelas escolas sinodais em meados do século XX – o autor afirma que algumas escolas promoviam atividades diferenciadas para meninos e meninas.

Contudo, entende-se que as representações das atividades de trabalho nas cartilhas, provavelmente, constituíam um comportamento social da sociedade para a qual eram destinadas, até mesmo porque, conforme explicita Kreutz (1994)Kreutz, L. (1994). Material didático e currículo na escola teuto-brasileira do Rio Grande do Sul. São Leopoldo: Editora Unisinos., o material didático produzido pela editora Rotermund buscava representar o cotidiano das comunidades rurais teuto-brasileiras. Logo, a representação atua simbolicamente, classificando as relações sociais estabelecidas: de acordo com Woodward (2014)Woodward, K. (2014). Identidade e diferença: uma introdução teórica e conceitual. In T. T. da Silva. Identidade e diferenças: a perspectiva dos estudos culturais (15a ed.). Petrópolis: Vozes., a cultura molda a identidade a partir das condições sociais e materiais oferecidas. Dessa maneira, a criança naturalizava certos comportamentos, reproduzindo-os no interior da estrutura social em que vivia.

Portanto, é perceptível que as relações sociais de trabalho decorrem de um processo de construção, socialização e educação, constituído conforme os variados modelos de sociedade, modelos esses que são influenciados pela categoria de gênero. Trata-se, assim, de diversas formas de constituição de trabalho socialmente construídas em um processo de resistência e acomodação, com destaque para as atividades percebidas como femininas ou masculinas.

Considerações finais

Com base no referencial teórico deste estudo sobre imagem e relações de trabalho e na observação das representações presentes nas cartilhas Mein Rechenbuch e Fibel, é notório que a linguagem visual dessas cartilhas fazia alusão ao universo rural. Nesse contexto, a divisão social de gênero é acentuada por intermédio das ilustrações, que trazem direcionamentos empíricos do que deve ser entendido como trabalho masculino e feminino.

Os indícios apresentados permitem constatar que existiam nessas comunidades construções sociais de gênero, socialmente reconhecidas e ressignificadas. No que tange ao papel atribuído ao gênero feminino, por exemplo, a ênfase nas ilustrações girou em torno das lidas domésticas e das atividades de cuidar da casa, dos filhos, do jardim e dos animais, evidenciando, assim, um bom exemplo de mãe e dona da casa. Quanto ao gênero masculino, as atividades de trabalho representadas ocorrem fora do ambiente doméstico, colocando o homem como responsável pelo sustento financeiro da família.

Dessa forma, foi possível constatar que as representações presentes nas cartilhas tiveram grande relevância na reafirmação das relações sociais e culturais, pois são carregadas de um simbolismo funcional de fácil reconhecimento, trazendo um texto visual que pode ser claramente compreendido e ressignificado, tornando-se um importante recurso para o ensino da leitura e da escrita. Além disso, as ilustrações refletem a influência da sociedade étnica inserida no contexto rural do Rio Grande do Sul, que preservava características germânicas e apresentava combinações com a cultura regional.

Dessa maneira, a memória dos entrevistados tende a reforçar que essas práticas eram naturalizadas dentro das comunidades e que os autores das cartilhas analisadas simplesmente pinçavam essas informações, reproduzindo, assim, a vivência da sociedade. Com isso, destaca-se a força da representação na construção do imaginário social a partir da cultura a que uma comunidade pertence, já que, conforme Pesavento (2005), a representação exerce uma mediação entre o mundo do espectador e o do produtor, tendo como referência a realidade socializada em torno daqueles que integram um mesmo parâmetro identitário.

Por outro lado, apesar das vivências dos entrevistados mostrarem que muitas dessas representações foram reproduzidas em suas práticas diárias, não se pode afirmar que o objetivo das cartilhas era inculcar nas crianças direcionamentos sobre as relações de trabalho. Segundo Eco (2004)Eco, H. (2004). O Leitor-Modelo. In H. Eco, Leitor in Fábula (pp. 35-45). São Paulo: Perspectiva., o autor, ao escrever, assinala o seu destinatário em sua produção, dando a ela uma potencialidade significativa e fazendo com que o leitor se reconheça nesse conteúdo e o atualize. Logo, as cartilhas reproduziam o cotidiano social e familiar de seus destinatários, contemplando histórias e contos que faziam parte das vivências culturais e sociais dos colonos (Weiduschadt & Tambara, 2016Weiduschadt, P., Tambara (2016). Elomar Antonio Callegaro. Cartilhas e Livros Didáticos nas Escolas Pomeranas Luteranas do sul do Rio Grande do Sul (1900-1940). História da Educação, 20, 275-296.).

Assim, é possível constatar, com base na análise dos dados, que as relações sociais de gênero são construções étnicas e culturais historicamente constituídas, em meio a um processo que envolve instituições escolares e religiosas. Ademais, como se tratava de instituições étnicas culturais religiosas, muitas dessas relações podem ter sido reafirmadas com base em questões biológicas18 18 Biológicas: explicações supostamente naturais de ser homem ou mulher, nas quais as diferenças de aptidões e habilidades estão ancoradas nas formas físicas da pessoa. e teológicas19 19 Teológicas: levando em consideração que era um material didático produzido e divulgado em harmonia com o pensamento cristão. Mesmo que a cartilha refletisse um jeito de viver típico da época, em que o homem trabalhava fora e a mulher cuidava da casa e dos filhos, o que há por trás é a reafirmação de uma cena fundamentada pela ética religiosa cristã. A igreja certamente via isso com olhos positivos, reafirmando tal modo de organização com base nos mandamentos, que enfatizam as relações familiares no casamento, entre pais e filhos e com o próximo. . Entretanto, tais aspectos são apenas hipóteses, as quais necessitariam de uma análise mais aprofundada para assentar possíveis direcionamentos sobre o tema.

  • 2
    Normalização, preparação e revisão textual: Luan Maitan – revisao@tikinet.com.br
  • 3
    Albrecht, 2019Albrecht, E. K. Cartilhas alemãs produzidas pelos sínodos luteranos no Rio Grande do Sul: usos e memórias (1923-1945). 2019. Dissertação de mestrado (Programa de Pós-graduação em Educação). Universidade Federal de Pelotas/UFPel, Pelotas..
  • 4
    Microrregião situada dentro da região meridional do Rio Grande do Sul. Ela abarca atualmente os municípios de São Lourenço do Sul, Turuçu, Pelotas, Arroio do Padre, Canguçu, Capão do Leão e Morro Redondo. Para saber mais sobre o tema, ver Cerqueira (2010)Cerqueira, F. V. Serra dos Tapes: mosaico de tradições étnicas e paisagens culturais (2010). In IV Simp/Seminário Internacional em Memória e Patrimônio: Memória Patrimônio e Tradição, Pelotas/RS. Anais… Pelotas, 872-874. Recuperado de https://simpufpel.wordpress.com/2010/09/22/anais-do-iv-simp/
    https://simpufpel.wordpress.com/2010/09/...
    .
  • 5
    Pomeranos: nome dado aos imigrantes que vieram ao Brasil da antiga Pomerânia, que se situava nas costas do mar Báltico, território atualmente incorporado pela Alemanha e Polônia. Hoje a sua cultura está praticamente extinta naquela região, mantendo-se viva entre algumas comunidades no Brasil que ainda preservam o dialeto e determinadas práticas culturais e religiosas. Para mais detalhes sobre o assunto, ver Schaeffer (2012)Schaeffer, S. C. B. (2012). Descrição Fonética e Fonológica do Pomerano falado no Espirito Santo. 2012. Dissertação (Mestrado em Estudos Linguísticos). Universidade Federal do Espírito Santo/UFES, Vitória/ES..
  • 6
    Com a motivação principal de entender os usos das representações ilustrativas das cartilhas alemãs que circularam nesse contexto, foram realizadas, de 2016 a 2018, 12 entrevistas com sujeitos escolarizados em língua alemã ou que iniciaram sua alfabetização nesse idioma entre 1932 e 1942.
  • 7
    Fundada em 1877, em São Leopoldo, pelo pastor Wilhelm Rotermund, que, anos mais tarde, em 1886, fundou o Sínodo Rio-Grandense, vinculando a editora ao sínodo. Para saber mais sobre o tema, ver Dreher (2014)Dreher, M. N. (2014). Wilhelm Rotermund: seu tempo – suas obras (2a ed). São Leopoldo: Oikos..
  • 8
    Para facilitar a escrita deste texto e tendo em vista que Fibel em alemão significa “cartilha”, optou-se por usar apenas o primeiro nome da cartilha Fibel für deutsche Schulen in Brasilien após essa apresentação inicial.
  • 9
    História da Alfabetização, Leitura, Escrita e dos Livros Escolares- Faculdade de Educação/ Universidade Federal de Pelotas- Fae/ Ufpel
  • 10
    Foram produzidas onze cartilhas Fibel, seis escritas em letra alemão gótico e cinco, em escrita latina, todas produzidas na década de 1920. Essas cartilhas possuem características semelhantes de apresentação e organização de conteúdo, porém algumas trazem o conteúdo do primeiro e segundo ano escolar de forma separada, e outras, de forma acoplada em uma única cartilha.
  • 11
    Centro de Documentação- Centro de Estudos e Investigações em Educação- Faculdade de Educação/ Universidade Federal de Pelotas- Fae/Ufpel.
  • 12
    Conforme o prefácio da cartilha, os três primeiros cadernos levam em consideração, especialmente, a escola de Colônia. A escolha de analisar o primeiro dos quatro cadernos deve-se ao fato de ser este o único da coleção a ser mencionado pelos entrevistados da pesquisa, apesar de o primeiro e o segundo caderno se encontrarem no acervo do Cedoc da UFPel.
  • 13
    Editora fundada no Brasil em 1923, em Porto Alegre, com o objetivo de dar assistência ao projeto educacional e religioso do Sínodo de Missouri. Para saber mais sobre o assunto, ver Warth (1979)Warth, C. H. (1979). Crônicas da Igreja: Fatos históricos da Igreja Evangélica Luterana do Brasil (1900- 1974). Porto Alegre: Concórdia. e Weiduschadt (2007)Weiduschadt, P. (2007). O Sínodo de Missouri e a educação pomerana em Pelotas e São Lourenço do Sul nas primeiras décadas do século XX: Identidade e cultura escolar. 2007. 256 f. Dissertação (Mestrado em Educação) – Universidade Federal de Pelotas/UFPel, Pelotas/RS..
  • 14
    Teuto-brasileiro: indivíduo de origem alemã e brasileira.
  • 15
    Símbolos: tudo o que representa, sugere ou substitui alguma coisa. Na literatura, símbolo significa alegoria ou metáfora; palavra ou imagem cujo sentido designa um objeto ou qualidade, pela relação de semelhança entre eles. (Dicio, [s.d.]Dicio. Dicionário online de português. Portal eletrônico. Brasil. Especiais, [s.d.]. Acesso 27 dez. 2017. On-line. Recuperado de https://www.dicio.com.br/aurelio-2/
    https://www.dicio.com.br/aurelio-2/...
    ).
  • 16
    O realismo pedagógico era baseado em um ensino prático, útil e voltado para a realidade, mantendo a atenção concentrada na observação do meio. No caso em estudo, o foco residia na realidade das escolas rurais teutas: instrumentos do trabalho rural, vida doméstica e mercado local. Para saber mais sobre o tema, ver Hoff e Cardoso (2006)Hoff, S.; Cardoso, M. A. (2006). Realismo pedagógico. Revista HISTEDBR, [s.n.], 20. Recuperado de http://www.histedbr.fe.unicamp.br
    http://www.histedbr.fe.unicamp.br...
    .
  • 17
    Segundo Buss (2005, p. 51)Buss, P. (2005) Lutero no contexto do luteranismo brasileiro. In: Heimann, L. Lutero o educador. Canoas: Ed. Ulbra., “o currículo das escolas do Sínodo Rio-Grandense não era uniforme. Na zona rural, o objetivo principal da escola era o de ensinar o jovem a ler, escrever, fazer contas e dar-lhe um bom fundamento na doutrina cristã. Já nas vilas e cidades, a aspiração escolar era maior. Os currículos apresentavam, de forma complementar, geografia, história, ciências e, sobretudo, escrituração mercantil. Esta técnica comercial era matéria importante para os teuto-brasileiros que ocupavam lugar de destaque no comércio e na indústria do Rio Grande do Sul e Santa Catarina”.
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    Biológicas: explicações supostamente naturais de ser homem ou mulher, nas quais as diferenças de aptidões e habilidades estão ancoradas nas formas físicas da pessoa.
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    Teológicas: levando em consideração que era um material didático produzido e divulgado em harmonia com o pensamento cristão. Mesmo que a cartilha refletisse um jeito de viver típico da época, em que o homem trabalhava fora e a mulher cuidava da casa e dos filhos, o que há por trás é a reafirmação de uma cena fundamentada pela ética religiosa cristã. A igreja certamente via isso com olhos positivos, reafirmando tal modo de organização com base nos mandamentos, que enfatizam as relações familiares no casamento, entre pais e filhos e com o próximo.

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1
Editora responsável: Norma Sandra de Almeida Ferreira. https://orcid.org/0000-0002-3078-2168

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    15 Fev 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    03 Jan 2019
  • Revisado
    24 Jun 2019
  • Aceito
    02 Dez 2019
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