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Uma perspectiva de comparação na escrita histórico-social do currículo do ensino secundário1 2

Resumo

Neste trabalho, apresentamos parte de resultados de uma pesquisa que toma como fontes dissertações e teses sobre o ensino secundário no sul do Mato Grosso e de Minas Gerais, produzidas no Grupo de Estudos Observatório de Cultura Escolar (Universidade Federal de Mato Grosso do Sul) e no Centro de Pesquisa em História da Educação (Universidade Federal de Minas Gerais), no período de 1999 a 2012. Temos constituído práticas de pesquisa com os estudos comparados, alimentadas por percursos teórico-metodológicos que entendemos em uma versão particular, por recorrermos ao cruzamento da educação comparada com a história comparada da educação. Diante disso, incursionamos por histórias dos “ensinos secundários” construídas em torno de uma interpretação semelhante para suas origens do ponto de vista da organização das cidades, da caracterização socioeconômica da população-alvo e dos fetiches em torno das instituições, mesmo tratando de objetos diferenciados nos espaços e tempos históricos. O desenvolvimento empírico dessas histórias evidenciou que diferenças dos sistemas analisados, se existem ou existiram, não foram abordadas. Estamos falando de diferenças ligadas à composição, às práticas e às dinâmicas das políticas educacionais locais, das estratificações sociais e dos interesses das famílias, responsáveis por experiências socializadoras diferenciadas.

Palavras-chave
ensino secundário; estudo comparado; dissertações e teses

Abstract

We present herein, part of the research results, which are based on the dissertations and theses, used as our sources, regarding secondary education in the Brazilian states of southern Mato Grosso and Minas Gerais and produced by/in the Studies and Research Groups, Observatory of School Culture (UFMS) and History of (UFMG) from 1999 to 2012. We have established research practices with a comparative study, provided by theoretical and methodological pathways, which we understand as being a particular version, because we have drawn on the crossing of compared education with the comparative history of education. In this sense, we enter into stories of "secondary teaching" built around a similar interpretation for their origins, from the point of view of the organization of the cities, the socioeconomic characterization of the target population, the fetishes around the institutions, even when dealing with differentiated objects in historical spaces and times. The empirical development of these histories showed that differences of the analyzed systems, if they exist or existed, were not addressed. We are talking about differences related to the composition, practices and dynamics of local educational policies, of the social stratifications, of the interests of families, responsible for differentiated socializing experiences.

Keywords
Secondary Education; Comparative Study; Dissertations and Theses

Notas introdutórias

Neste trabalho, apresentamos parte de resultados de pesquisa em fase de conclusão, inscrita no campo da história do currículo, que toma como fontes dissertações e teses3 3 Na pesquisa Estudo histórico-comparado da produção de conhecimento sobre o ensino secundário (Silva, 2013), temos como fontes um conjunto composto de seis dissertações e uma tese do GEPHE e oito dissertações do OCE. Cabe ressaltar que não utilizamos as dissertações e teses na perspectiva de análise e/ou avaliação dos exercícios teórico-metodológicos realizados, tampouco de questionamentos acerca das fontes eleitas/acessadas para a escrita da história do ensino secundário, mas estamos interessados na história informada/construída. sobre o ensino secundário no sul do Mato Grosso e de Minas Gerais, produzidas no Grupo de Estudos Observatório de Cultura Escolar (OCE, da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul) e no Centro de Pesquisa em História da Educação (GEPHE, da Universidade Federal de Minas Gerais), no período de 1999 a 2012.

As dissertações e teses são apreendidas como fontes e objetos de pesquisa. Na condição de fontes, são tomadas como impressos que selecionam, legitimam e distribuem conhecimentos, que mobilizam discursos na produção das verdades acerca do processo de escolarização, ao mesmo tempo que ocupam espaço privilegiado na reconstituição das ideologias ou mentalidades educativas subtraídas de uma projeção particular. São também abordadas como objetos por permitirem observar a materialidade discursiva de um habitus próprio da análise sobre o ensino secundário, isto é,

aquilo que confere às práticas a sua relativa autonomia no que diz respeito às determinações externas do presente imediato. Esta autonomia é a do passado, ordenado e atuante, que funcionando como capital acumulado produz história na base da história e assim assegura que a permanência no interior da mudança faça do agente individual um mundo no interior do mundo.

(Bourdieu, 1996Bourdieu, P. (1996). Razões práticas: Sobre a teoria da ação. Campinas, Papirus., p. 56)

Esse habitus é incapaz de funcionar em um vazio situacional e, portanto, só pode ser analiticamente reconstruído por meio do estudo dos seus produtos e da forma de pensar e estruturar as práticas para uma análise. Tomando como premissa que as regras epistêmicas estão a se modificar pela investidura de novas configurações globais do processo educativo, da intensa circulação de conhecimentos e das mudanças tecnológicas, que incidem diretamente nos espaços e tempos das condições históricas, na perspectiva das análises propostas, demos forma a uma versão particular dos estudos comparados, construída por

percursos teórico-metodológicos, que entendemos uma versão particular, por recorrermos ao cruzamento da educação comparada com a história comparada, esta última investigada pelos referentes do método histórico, que tem nos permitido buscar as diferenças e semelhanças do/no particular a partir dos processos históricos mais amplos (compreender a história como processo) e, reconstruí-las como parte de uma determinada realidade que é sempre complexa e aberta às transformações sob a ação dos sujeitos sociais (utilizando a história como método). (Silva, 2016Silva, F. C. T. (2016). Estudos comparados como método de pesquisa: A escrita de uma história curricular por documentos curriculares. Revista Brasileira de Educação, 21(64), 209-224., p. 214)

No atual contexto, o surgimento da perspectiva da comparação no campo da história da educação é descrito por Vidal (2001)Vidal, D. G. (2001). História da educação comparada: Reflexões iniciais e relato de uma experiência. História da Educação, 5(10), 31-41. nestes termos:

A preocupação com o levantamento de acervos documentais, construção de guias de fontes e publicação de documentos; a incorporação de uma massa documental, para além da legislação, nos trabalhos do campo, frutos da interlocução com a disciplina História, … e o crescimento da produção historiográfica no país têm levado os pesquisadores em história da educação a perceber e questionar a precariedade das análises históricas que pretendiam estender para o Brasil entendimentos construídos particularmente pela pesquisa na região sudeste. (p. 39)

Diante disso, parece incidir sobre diferentes unidades e objetos determinados, ao mesmo tempo, o fato de reconhecermos que os usos e as consequências da comparação são muito vastos. Contudo, seus princípios fundamentais emergem não somente dos discursos, das instituições e das práticas educativas, mas também da necessidade de desconstrução de realidades dadas hegemonicamente, na intenção de reconstruir os pressupostos políticos, econômicos, sociais e instrumentais que as geram.

Para compreender a comparação dessa forma, temos assistido a um processo de construção de configurações que coloca em tela a perspectiva do cruzamento entre teorias do conflito e do consenso, abordagens descritivas e conceituais (Nóvoa, 2009Nóvoa, A. S. (2009). Modelos de análise em educação comparada: O campo e a carta. In D. B. Souza & S. A. Martinez (Orgs.), Educação comparada: Rotas de além-mar (pp. 23-62). São Paulo: Xamã.), teoria da reflexão ligada à reforma e teoria científica ligada à compreensão das diferenças entre sistemas educativos (Madeira, 2009Madeira, A. I. (2009). O campo da educação comparada: Do simbolismo fundacional à renovação das lógicas de investigação. In D. B. Souza & S. A. Martinez (Orgs.), Educação comparada: Rotas de além-mar (pp. 105-135). São Paulo: Xamã.), e/ou diferenças e semelhanças no encontro do sentido para os processos educacionais (Ferreira, 2009Ferreira, A. G. (2009). O sentido da educação comparada: Uma compreensão sobre a construção de uma identidade. In D. B. Souza & S. A. Martinez (Orgs.), Educação comparada: Rotas de além-mar (pp. 137-166). São Paulo: Xamã.).

Em que pese a perspectiva do cruzamento de teorias, a pesquisa no âmbito do estudo comparado, particularmente a que temos desenvolvido, debruça-se sobre a crítica à validade de procedimentos teórico-metodológicos assentados no estabelecimento de semelhanças e diferenças entre contextos históricos marcados por características econômicas, sociais, políticas e culturais distintas, o que demonstra pouca fecundidade na produção de conhecimento.

No caso desta investigação, o estudo comparado está determinado por uma abordagem multidisciplinar, sugerindo uma aproximação entre a educação e a história da educação comparadas. Essa aproximação se funda na compreensão de uma outra história do ensino secundário, escrita em dissertações de mestrado e teses de doutorado tomadas, por si ou entre si, como recriação de uma historiografia já consolidada a esse respeito, matizada por algumas interpretações que se caracterizam pela destinação, num determinado momento histórico, a uma parcela específica da sociedade, e que são marcadas pela homogeneidade e organicidade.

Nesse sentido, incursionamos pelos indícios de um “ensino secundário regional” durante o século XX, no sul do Mato Grosso4 4 Essa porção do estado de Mato Grosso era constituída pelas cidades de Corumbá, Porto Murtinho, Bela Vista, Ponta Porã, Dourados, Entre Rios, Miranda, Nioaque, Maracaju, Campo Grande, Aquidauana, Herculânea (região de Coxim), Ladário, Três Lagoas e Parnaíba (Castro, 2018, p. 29 citado por Assis e Silva, 2018, p. 55). e em Minas Gerais, em uma relação “singular-plural” (Detienne, 2014Detienne, M. (2004). Comparar o incomparável. Aparecida: Ideias e Letras., p. 46), produzindo mecanismos de pensamento capazes de construir os comparáveis, ao mesmo tempo que permitem colocar em perspectiva os regimes de historicidade. A construção desses comparáveis está ancorada em Gonçalves Neto e Carvalho (2005)Gonçalves Neto, W., Carvalho, C. H. (2005). O nascimento da educação republicana: Princípios educacionais nos regulamentos de Minas Gerais e Uberabinha (MG) no final do século XIX. In D. Gatti Júnior & G. Inácio Filho (Orgs.), História da educação em perspectiva: Ensino, pesquisa, produção e novas investigações (pp. 263-294). Campinas: Autores Associados., cuja proposta de trabalho junta

As análises local e regional buscando novos ângulos de compreensão da realidade brasileira, sem, no entanto, perder de vista o contexto nacional, expandindo as categorias identificadas localmente, estabelecendo pontos de comparação com realidades semelhantes ou díspares e repensando o processo de formação do sistema de ensino no Brasil. (p. 184)

Assim, analisamos duas dissertações e uma tese voltadas às investigações sobre disciplinas e instituições escolares do ensino secundário em Campo Grande e Belo Horizonte. O estudo das disciplinas escolares, no limite das fontes escolhidas, apontava para uma análise do processo lento e gradual de instauração e funcionamento, ao mesmo tempo, que destacou os conflitos e as conquistas de experiências pedagógicas distintas, e o sucesso alcançado na formação dos alunos, na execução dos objetivos propostos e, principalmente, no interesse dos alunos. Quanto à história das instituições, desenvolveu-se um processo que procurou compreender a escola, integrando-a à história da educação, com uma internalidade complexa, que influenciava a realidade e era influenciada por ela, mediante a normatização e a transmissão de normas e atitudes.

Para tanto, partimos da premissa de que todo campo – nesse caso o da história da educação, particularmente do ensino secundário – possui uma estrutura, uma doxa (opinião consensual, senso comum, aquilo com que todos estão de acordo) e um nomos (leis que o regem e que regulam a luta pela dominação do campo). Além disso, consideramos que tanto a doxa quanto o nomos estão estruturados na dependência dos agentes ou das instituições envolvidas.

Aproximações à doxa e ao nomos na escrita da história do ensino secundário brasileiro

pôr em jogo “coisas teóricas” muito importantes a respeito de objectos ditos “empíricos” muito precisos, frequentemente menores na aparência, e até mesmo um pouco irrisórios.

(Bourdieu, 1989Bourdieu, P. (1989). O poder simbólico. Lisboa: Difel., p. 20)

Nas análises produzidas pela historiografia do ensino secundário brasileiro, encontramos referências, em diferentes estudos5 5 Na história do ensino secundário no Brasil, há referências a três trabalhos clássicos: Introdução crítica do ensino secundário, Geraldo Bastos Silva (1959); Ensino secundário e sociedade brasileira, de Maria Thetis Nunes (1962); e O ensino secundário no Império Brasileiro, de Maria de Lourdes Mariotto Haidar (1972). , que informaram sobre o impacto das reformas sofridas desde 1837 – após a criação do Imperial Collegio de Pedro II, passando pela de Benjamin Constant, por meio do Decreto nº 981, de 8 de novembro de 1890, até as empreendidas pelo ministro Francisco Campos (Decretos nº 19.890, de 18 de abril de 1931Decreto nº 19.890, de 18 de abril de 1931 (1931, 1º de maio). Dispõe sobre a organização do ensino secundário. Diário Oficial da União, seção 1., e nº 21.241, de 4 de abril de 1932Decreto nº 4.244, de 9 de abril de 1942 (1942, 10 de abril). Lei orgânica do ensino secundário. Diário Oficial da União, seção 1.) – na organização (currículo, disciplinas e habilitações) e no funcionamento (cursos preparatórios, exames parcelados, frequência obrigatória) escolar, visando à formação e modernização desse nível de ensino.

Souza (2008, p. 163)Souza, R. F. (2008). História da organização do trabalho escolar e do currículo no século XX: Ensino primário e secundário no Brasil. São Paulo: Cortez. considera que a Reforma Francisco Campos instalou as bases para a consolidação e expansão do ensino secundário nas décadas seguintes à de 1930. Dallabrida (2009, p. 190)Dallabrida, N. (2009). A reforma Francisco Campos e a modernização nacionalizada do ensino secundário. Educação, 32(2), 185-191. vê nessa reforma as marcas de um Estado autoritário e centralizador, que buscava por meio da educação consolidar um projeto de modernização (e homogeneização) política, econômica, social e cultural.

Tal cenário reformista/modernizador culminou com a publicação do Decreto nº 4.244, de 9 de abril de 1942 (Reforma Capanema), que atribuiu ao ensino secundário suas finalidades fundamentais, isto é:

  1. Formar, em prosseguimento da obra educativa do ensino primário, a personalidade integral dos adolescentes.

  2. Acentuar e elevar, na formação espiritual dos adolescentes, a consciência patriótica e a consciência humanística.

  3. Dar preparação intelectual geral que possa servir de base a estudos mais elevados de formação especial.

Schwartzman, Bomeny e Costa (2000)Schwartzman, S., Bomeny, H. M. B., & Costa, V. M. R. (2000). Tempos de Capanema. São Paulo: Paz e Terra. atribuíram à Reforma Capanema a premissa de que “o sistema educacional deveria corresponder à divisão econômico-social do trabalho. A educação deveria servir ao desenvolvimento de habilidades e mentalidades de acordo com os diversos papéis atribuídos às diversas classes ou categorias sociais” (p. 205).

Com a promulgação da Lei nº 4.024, de 20 de dezembro de 1961, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB), flexibilizou-se o controle do governo central sobre o ensino secundário, atendendo àqueles que advogavam em favor da descentralização do sistema de ensino, ou seja, “com a aprovação da Lei de Diretrizes e Bases o poder de decisão fora transferido do Ministério da Educação para o Conselho Federal de Educação e para as Secretarias Estaduais de Educação” (Nunes, 2000Nunes, C. (2000). O “velho” e “bom” ensino secundário: Momentos decisivos. Revista Brasileira de Educação, (14), 35-60., p. 54). Souza (2008)Souza, R. F. (2008). História da organização do trabalho escolar e do currículo no século XX: Ensino primário e secundário no Brasil. São Paulo: Cortez. observa que a LDB de 1961 incrementou o currículo, por meio da indicação de diretrizes gerais, ao indicar as disciplinas obrigatórias e as que seriam optativas ou complementares. Nesse caso, o Conselho Federal de Educação assumiu o predomínio das áreas cientificas e técnicas, em detrimento das humanidades, dando forma aos caminhos tecnicistas que seriam trilhados posteriormente pela educação.

O escopo desse nível de ensino, nos diferentes espaços e tempos históricos6 6 Períodos do Brasil Colônia, Pombalino, Joanino, Imperial, Primeira República, Era Vargas, entre outros. de sua (re)organização, acompanhou as transformações sociais, econômicas e políticas do país e, ao mesmo tempo, incorporou essas transformações na perspectiva da oferta de uma formação para as chamadas burguesia e elite brasileiras. Nesse sentido, distintas interpretações foram elaboradas sobre a finalidade da educação secundária, isto é, sendo voltada às camadas médias da população, identificada com os interesses das classes dominantes, ou determinada por ideais de ilustração, liberdade e propriedade, necessários à produção dos sentidos de burguesia e elite. Em meio a esses sentidos, está presente a afirmação de que a instrução secundária foi organizada com a intenção de encaminhar sua clientela para as escolas superiores e para as posições mais privilegiadas na sociedade (Beisiegel, 1995Beisiegel, C. (1995). Educação e sociedade no Brasil após 30. In S. B. Holanda (Dir.), História geral da civilização brasileira: Vol. 4. O Brasil republicano: Economia e cultura (pp. 383-416). Rio de Janeiro: Bertrand Brasil., p. 393).

Esse retrato histórico per se admite a doxa de que o ensino secundário, composto de indivíduos, de estrutura e de relações educativas objetivas, construiu sua história aparentemente de modo dependente das condições econômicas, sociais e políticas às quais estava vinculado. Contudo, essa aparente dependência parece enfraquecida se cobramos das análises mais do que vestígios de um modus operandi que as guia. Dito de outra forma, o conhecimento produzido sobre o ensino secundário parece perseguir a afirmação desse retrato, consolidando uma prática científica, ou nomos, que o autonomiza.

Essa autonomização alimenta-se de oposições do tipo educação para as elites versus educação para as classes menos favorecidas, ou humanidades versus ciência, que estão sendo restauradas para analisar de forma “pedagógica” a complexidade do pensamento e da realidade social.

Assim, a história do ensino secundário foi formada, particularmente, por um conjunto de unidades historicamente possíveis de delimitação ou hierarquização, classes sociais ou extratos da sociedade, e muito pouco por espaços sociais estruturados, nos quais determinadas instituições lutaram em função das posições que ocupavam nesse espaço, ou queriam ocupar.

Sobre o ensino secundário: as dissertações e a tese como coleção7 7 “Em história, tudo começa com o gesto de separar, de reunir, de transformar em documentos certos objetos distribuídos de outra maneira. Esta nova distribuição cultural é o primeiro trabalho. Na realidade, ela consiste em produzir tais documentos, pelo simples fato de recopiar, transcrever ou fotografar estes objetos mudando ao mesmo tempo o seu lugar e o seu estatuto. Este gesto consiste em isolar um corpo, como se faz em física, e em desfigurar as coisas para constituí-las como peças que preencham lacunas de um conjunto, proposto a priori. Ele forma a coleção” (Certeau, 2010, p. 81, grifos do autor). para uma escrita social comparada

Para a conferência do sentido histórico, estamos ancoradas em algumas práticas contextualizadas para se discutir os objetos específicos de cada produção acadêmica, seja uma disciplina escolar, a história da instituição, ou o papel do Estado no incremento do ensino secundário nas cidades de Campo Grande e Belo Horizonte.

Nesse exercício, as dissertações e teses se constituíram como recurso substancial para o desocultamento da pertença dos agentes a um meio social em que os membros partilham identidades, pressupostos e expectativas, ou a um meio em que a comunicação se baseia nas características pessoais, se desliga do contexto e apela ao desenvolvimento de distintas formas de linguagem, associáveis à estrutura de classes (Bourdieu, 1999Bourdieu, P. (1999). Las estrategias de reconversión. In M. Enguita (Ed.), Sociología de la educación. Barcelona: Editorial Ariel.).

Diante disso, partimos do pressuposto de que as produções analisadas adotaram referenciais de dois tipos: autores ligados ao campo da história e que estudaram as cidades em seus aspectos políticos, econômicos, sociais e/ou culturais; e outras produções acadêmicas que tivessem estudado objetos semelhantes ou relacionados aos investigados. Dessa forma, as duas dissertações (D) e a tese (T) eleitas aqui para as análises promoveram um cruzamento desses dois tipos de referenciais para construir um discurso historiográfico que deu sentido ao contexto histórico de seus objetos, a saber: Menezes (2012)Menezes, F. V. (2012). Indícios das práticas curriculares na disciplina história em uma escola exemplar de Campo Grande entre 1942 e 1970. Dissertação de Mestrado, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, Campo Grande., do OCE, em Indícios das práticas curriculares na disciplina história em uma escola exemplar de Campo Grande entre 1942 e 1970 (D), identificou e analisou as finalidades de uma disciplina escolar a partir das relações que esta estabelece com os objetivos que determinam a função social da escola e os câmbios culturais resultantes do binômio escola-sociedade e, para tanto, investigou os indícios que poderiam desvelar as práticas curriculares da disciplina de história no Colégio Maria Constança Barros Machado, considerado uma “escola exemplar”, entre os anos de 1942 e 1970; Oliveira (2009)Oliveira, S. S. (2009). A história da disciplina escolar francês no Colégio Estadual Campo-Grandense (1942-1962). Dissertação de Mestrado, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, Campo Grande., também do OCE, em A história da disciplina escolar francês no Colégio Estadual Campo-Grandense (1942-1962) (D), analisou a história da disciplina escolar francês, seu funcionamento no curso ginasial do Colégio Estadual Campo-Grandense, em Campo Grande, à época pertencente ao estado de Mato Grosso, entre 1942 e 1962; e Teixeira (2011)Teixeira, A. H. L. (2011). “Uma escola sem muros”: Colégio Estadual de Minas Gerais (1956-1964). Tese de Doutorado, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte., do GEPHE, em “Uma escola sem muros”: Colégio Estadual de Minas Gerais (1956-1964) (T), investigou a produção da memória coletiva referente ao Colégio Estadual de Minas Gerais, no período de 1956-1964, marcada pela excelência acadêmica, a cultura e a liberdade. Acresce-se a isso que o colégio, projetado arquitetonicamente por Oscar Niemeyer como “uma escola sem muros”, tornando-se um marco na história da instituição e da cidade de Belo Horizonte, possibilitou a liberdade de ir e vir e a ampliação do número de vagas.

Utilizamos como critério para o agrupamento dessas fontes a materialidade das representações nos estudos de diferentes instituições escolares, em diferentes cidades, no incremento do ensino secundário para a formação de sujeitos. Vale destacar que existiu nessa materialidade a incorporação dos discursos historiográficos produzidos para compor uma forma interpretativa que os reforçava, a partir de um estatuto de veracidade que perpassou desde a narração, que organizou o sentido do texto, até a semantização, que construiu o nexo que deu sentido ao texto sobre os ensinos secundários (Certeau, 2010Certeau, M. (2010). A escrita da história (2a ed.). Rio de Janeiro: Forense Universitária.).

Acresce-se a isso a perspectiva de não incorrermos no estudo do “outro”, considerando que este seja melhor, como solução para problemas enfrentados nessas regiões. Essa incorreção encontrou-se alimentada na perspectiva da interculturalidade, aspecto de renovação da pesquisa comparada ancorado na ideia de que as influências são recíprocas, mesmo que haja um padrão exercendo hegemonia. Nesse sentido, convém lembrar que:

O historiador não é apenas alguém que percebe os poderes e controles que os homens de determinada época estabeleciam sobre o espaço, ele mesmo é também criador de um território, na medida em que ao recortar um objeto de conhecimento estabelece um espaço de poder e de controle através do seu próprio discurso historiográfico.

(Barros, 2005Barros, J. D. A. (2005). História, região e espacialidade. Revista de História Regional, 10(1), 95-129., p. 115)

Para analisar o ensino secundário nas diferentes regiões entre as décadas de 1940 e 1960, recuperamos as seguintes informações sobre as cidades:

a construção da Ferrovia Noroeste do Brasil (NOB), inaugurada na cidade em 1914, colocou Campo Grande em contato mais direto com o eixo São Paulo – Rio de Janeiro, contribuindo para elevar o fluxo populacional e seu consequente desenvolvimento econômico. Contudo, além da ferrovia, a transferência do Comando Militar de Corumbá, em 1921, fez com que Campo Grande se tornasse, a partir de então, a capital militar do estado. Deste fato, resulta uma aliança entre a elite econômica da cidade, formada essencialmente por pecuaristas, e os comandantes militares.

(Menezes, 2012Menezes, F. V. (2012). Indícios das práticas curriculares na disciplina história em uma escola exemplar de Campo Grande entre 1942 e 1970. Dissertação de Mestrado, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, Campo Grande., p. 56)

Belo Horizonte, sobretudo, também experimenta o surto de crescimento. Com o êxodo rural, a população da cidade que, em 1940, era de 211.377 mil habitantes, praticamente dobra de tamanho em 1960, conforme IBGE. As exigências de maior escolarização motivadas pela industrialização, particularmente sobre a área urbana, e problemas de crescimento e articulação do ensino primário, acabariam refletindo no ensino secundário.

(Teixeira, 2011Teixeira, A. H. L. (2011). “Uma escola sem muros”: Colégio Estadual de Minas Gerais (1956-1964). Tese de Doutorado, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte., p. 10)

Essas configurações das cidades remeteram à tendência, presente à época, de difusão das ações de urbanização e higienização, que tinham como veículo de transformação social a escolarização. No entanto, tais transformações eram dependentes dos projetos republicanos que essas regiões construíram para si.

No caso do sul de Mato Grosso, evidenciava-se um projeto de desenvolvimento que concentrava o processo de escolarização em cidades de maior relevância no setor econômico do estado, particularmente Campo Grande, sendo restrito a estudantes oriundos de frações de classes financeiramente mais favorecidas. Em Minas Gerais, esse projeto pareceu ancorar-se no processo de industrialização, particularmente da área urbana de Belo Horizonte, como fundamento da necessidade da educação como instrumento de mobilidade social. “Através de ações de inculcação e de imposição de valores, a instituição escolar contribui para criar a disposição geral para a cultura legítima” (Bourdieu, 2007Bourdieu, P. (2007). A distinção: Crítica social do julgamento. São Paulo: Edusp., p. 22).

Nesse contexto foram criadas e/ou consolidadas instituições públicas de ensino secundário em resposta ao aumento quantitativo das instituições privadas. Em Belo Horizonte, o Colégio Estadual de Minas Gerais, instalado na capital mineira desde 1897, representou uma forma de organização espacial da/na cidade, revelando-se uma estratégia de distinção – alimentada definitivamente pela mudança, em 1956, para um edifício que estampava o moderno.

O conjunto arquitetônico, assinado por Oscar Niemeyer, ele próprio, símbolo do modernismo, foi projetado para o jovem secundarista, sendo, portanto, um lugar da juventude e de suas atividades escolares e culturais. Comportava no seu traçado um universo cultural no qual parte dos jovens de Belo Horizonte participava num movimento de trocas com outros espaços, instituições e pessoas da cidade.

(Teixeira, 2011Teixeira, A. H. L. (2011). “Uma escola sem muros”: Colégio Estadual de Minas Gerais (1956-1964). Tese de Doutorado, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte., p. 11)

Tal distinção permaneceu na história do Colégio Estadual Campo-Grandense, no sul de Mato Grosso, quando, em 1954, acomodou-se em edifício também projetado por Niemeyer.

A criação do Colégio Estadual em Campo Grande pode explicitar os projetos de modernização de grupos sociais interessados pela educação…. No ano de 1954, o Colégio Estadual, como era conhecido pela comunidade, foi transferido para sua sede própria no bairro Amambaí. O prédio é projeto de Oscar Niemeyer.

(Oliveira, 2009Oliveira, S. S. (2009). A história da disciplina escolar francês no Colégio Estadual Campo-Grandense (1942-1962). Dissertação de Mestrado, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, Campo Grande., pp. 63-64)

A arquitetura dessas instituições revelou um processo de criação e de instalação da escola, com seus rituais, sua cultura e seu significado para aquelas sociedades. Outro elemento comum era a indicação de que o novo prédio atendeu às novas exigências impostas ao ensino secundário, mesmo com a explicitação nos textos de que essas exigências estavam relacionadas à necessidade quantitativa advinda do crescimento da demanda por vagas.

Nesse contexto, outras questões também foram inferidas, uma delas dizendo respeito à função social que o ensino secundário exerceu naquele momento histórico na representação dos grupos sociais das cidades. Prédios novos, monumentais e com uma arquitetura inovadora e moderna foram, assim, uma materialização do simbolismo adquirido pelo secundário como formador de grupos sociais específicos.

o público-alvo do Ginásio Mineiro era aquele que iria se preparar para as carreiras liberais, ou seja, os futuros bacharéis em Direito, Medicina e Engenharia. Atendia basicamente ao sexo masculino, apesar de franqueada a presença do sexo feminino. Assim como as mulheres, os alunos pobres eram uma exceção.

(Teixeira, 2010Teixeira, A. H. L. (2011). “Uma escola sem muros”: Colégio Estadual de Minas Gerais (1956-1964). Tese de Doutorado, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte., p. 50)

[era considerada] uma escola “sem muros”, de excelência acadêmica, cujo cotidiano institucional era definido pelo exercício da liberdade.

(Teixeira, 2010Teixeira, A. H. L. (2011). “Uma escola sem muros”: Colégio Estadual de Minas Gerais (1956-1964). Tese de Doutorado, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte., p. 12)

[era tida] como uma “escola exemplar”8 8 São consideradas escolas exemplares “aquelas que teriam sido, não apenas referência de qualidade e de formação, mas também percebidas como ligadas à própria identidade cultural dos grupos sociais que se expressavam como ‘elites’ nessas cidades, em momentos históricos específicos” (Pessanha et al., 2007, p. 25). , pois além de ser considerada de excelência na qualidade do ensino oferecido, introjetou-se nos grupos sociais que se consideravam como elite na cidade, tornando-se parte da identidade cultural desses grupos.

(Menezes, 2012Menezes, F. V. (2012). Indícios das práticas curriculares na disciplina história em uma escola exemplar de Campo Grande entre 1942 e 1970. Dissertação de Mestrado, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, Campo Grande., p. 11)

Para além das características dos sujeitos “eleitos” a serem formados por essas instituições, encontramos outro indicador de seletividade, isto é, tanto o Colégio Estadual Mineiro quanto o Colégio Estadual Campo-Grandense, apesar de “públicos”, cobravam taxas para matrículas e exames de admissão, o que não era vedado9 9 Ver artigo 25, alínea c, do Decreto nº 19.890, de 18 de abril de 1931. . Diante disso, a suposta formação para a elite nessas instituições indicava o controle que exerciam na escolha de seu alunado, seja por meio da seleção financeira decorrente do valor das taxas ou dos exames de admissão.

não é jamais possível, em todo caso, dizer com segurança quem, entre o agente e a instituição, escolhe realmente; se é o bom aluno que escolhe a escola ou se é a escola que o escolhe….

(Bourdieu, 1998aBourdieu, P. (1998a). As categorias do juízo professoral. In M. A. Nogueira & A. Catani (Orgs.), Escritos de educação (pp. 185-216). Petrópolis: Vozes., p. 198)

Em se tratando do exame de admissão, que perdurou até o início dos anos 1970, a leitura das fontes indicou a presença da premissa de que padrões de desempenho definem, em verdade, a posição “hierárquica” dessas instituições. Essa dialética entre o padrão de desempenho e a hierarquia traduz-se, na cultura, como um jogo social, cujo valor se assenta na crença coletiva acerca desse mesmo valor (fetiche).

Para Minhoto (2008)Minhoto, M. A. P. (2008). Articulação entre primário e secundário na Era Vargas: Crítica do papel do estado. Educação e Pesquisa, 34(3), 449-463., ao longo dos 40 anos em que vigoraram os exames de admissão, observaram-se inúmeras alterações legais na sua forma, no seu conteúdo e no seu funcionamento, mas “nenhuma das normas extinguiu o ritual de passagem entre os dois âmbitos de ensino” (p. 451). Entre as décadas de 1950 e 1960, ainda era possível depreender o debate acerca do exame de admissão nas duas regiões estudadas:

No caso dos candidatos ao exame de admissão do Colégio Estadual, a procura era dos alunos oriundos dos grupos escolares já que não havia essa articulação no caso das escolas públicas. Estamos falando de inúmeros grupos escolares da cidade de Belo Horizonte e do interior do estado para uma única escola estadual e um colégio municipal.

(Teixeira, 2011Teixeira, A. H. L. (2011). “Uma escola sem muros”: Colégio Estadual de Minas Gerais (1956-1964). Tese de Doutorado, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte., p. 79)

Em dados levantados em registros do Arquivo da Escola Maria Constança, em 1958, dos candidatos que se submeteram aos exames, apenas 26% aprovados, o maior índice de aprovação, registrado nos primeiros anos de funcionamento, foi de 67%, em 1945.

(Oliveira, 2009Oliveira, S. S. (2009). A história da disciplina escolar francês no Colégio Estadual Campo-Grandense (1942-1962). Dissertação de Mestrado, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, Campo Grande., p. 66)

Hipotetizamos que a rigidez dos exames de admissão para o ensino secundário se deveu, também, ao caráter da relação dos estudantes com os seus estudos, no qual se evidenciou a “relação fundamental que sua classe social mantém com a sociedade global, com o sucesso social e com a cultura” (Bourdieu & Passeron, 1992Bourdieu, P., Passeron, J.-C. (1992). A reprodução. Rio de Janeiro: Francisco Alves., p. 36). Dessa forma, estava expresso o que realmente se encontra em jogo, isto é, não o ensino secundário no seu cerne, mas antes a operacionalização e a tradução das suas finalidades. Tal hipotetização se materializava na questão do regime de estudos, classes ou disciplinas presente nas fontes estudadas:

O exame Madureza era o nome do curso e também do exame final de aprovação do curso – que ministrava disciplinas dos antigos ginásio e colegial, a partir da Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB), de 1961. Fixava em 16 e 19 anos as idades mínimas para o início dos cursos, respectivamente, de Madureza Ginasial e de Madureza Colegial.

(Teixeira, 2011Teixeira, A. H. L. (2011). “Uma escola sem muros”: Colégio Estadual de Minas Gerais (1956-1964). Tese de Doutorado, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte., p. 122)

Essa prática corrobora o que foi registrado por Zotti (2004)Zotti, S. A. (2004). Sociedade, educação e currículo no Brasil: Dos jesuítas aos anos de 1980. Campinas: Autores Associados. ao afirmar que, no Brasil, “a realidade do ensino secundário era muito crítica, visto que até então não tinha uma organização de base nacional, não passando de um curso preparatório, apenas servindo de elo ao ensino superior” (p. 103). No entanto, nos estudos sobre o ensino secundário no sul de Mato Grosso, o que se destacou não foi a progressão da escolaridade, e sim a dinâmica de expansão delineada pelo debate público versus privado.

o ensino secundário, entre as décadas de 1930 e 1960, apesar de buscar seguir as determinações nacionais para este setor, complementando-se com leis e decretos estaduais, e de exibir números que sugerem evolução quanto ao número de alunos matriculados e de estabelecimentos oficiais de ensino, mostra o poder público estadual sempre tímido em relação às iniciativas que efetivamente pudessem expandir o ensino secundário no estado, tratando os assuntos da educação mais de acordo com as suas conveniências políticas.

(Menezes, 2012Menezes, F. V. (2012). Indícios das práticas curriculares na disciplina história em uma escola exemplar de Campo Grande entre 1942 e 1970. Dissertação de Mestrado, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, Campo Grande., p. 48, grifo nosso)

Nesse contexto, não era possível negar os investimentos públicos que havia nesse segmento educacional, com a participação – mesmo que “tímida” – do Estado na disseminação e organização do ensino secundário no sul do Mato Grosso. O envolvimento do Estado na manutenção de estabelecimentos privados, “uma vez que subsidiou a construção e manutenção destas escolas, de forma direta … ou de forma indireta, mantendo alunos bolsistas nas instituições particulares” (Menezes, 2012Menezes, F. V. (2012). Indícios das práticas curriculares na disciplina história em uma escola exemplar de Campo Grande entre 1942 e 1970. Dissertação de Mestrado, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, Campo Grande., p, 123), não pode ser considerado apenas “conveniência política”, mas, antes, parte das ações que compuseram a estratégia de implantação do ensino nessa localidade.

Essa análise da organização e expansão do ensino secundário remete-nos, nessa perspectiva, à política educativa como campo de forças, onde os agentes sociais se definem por suas posições relativas. Dito de outra forma, essa política tornou-se um espaço de relações construído, que associava o lugar, o social e o cultural, de acordo com os posicionamentos e as avaliações que dele faziam os agentes sociais.

Uma parte substancial desse campo de forças foi construída precisamente pelos professores das instituições estudadas, como agentes que representavam um habitus hereditário (Bourdieu, 1999Bourdieu, P. (1999). Las estrategias de reconversión. In M. Enguita (Ed.), Sociología de la educación. Barcelona: Editorial Ariel.), com disposição interior para crer10 10 No sentido de crença, como forma de pertença a um campo, traduzida em termos de illusio (Bourdieu, 1996). também em suas excelências – referências assim como os espaços escolares.

Seus primeiros professores, chamados de lentes, eram nomeados pelo Governador do Estado e, ao longo das primeiras décadas do século XX, participavam de disputados concursos abertos ao público, com a presença de autoridades. Eram todos “doutores” e possuíam uma cultura clássica típica daquela época.

(Teixeira, 2011Teixeira, A. H. L. (2011). “Uma escola sem muros”: Colégio Estadual de Minas Gerais (1956-1964). Tese de Doutorado, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte., p. 50, grifo da autora)

[o corpo docente do] colégio contava, quando do início de suas atividades com algumas professoras normalistas e que os demais professores não possuíam formação específica para o magistério, sendo composto por médicos, advogados, militares do exército, religiosos entre outros. A maioria ingressou na escola de forma interina, ou seja, sem a realização de concurso, e não possuía registro no MEC [Ministério da Educação]. Com a realização dos cursos da CADES (Campanha de Aperfeiçoamento e Divulgação do Ensino Secundário), estes professores puderam realizar os Exames de Suficiência e obter o registro no MEC.

(Menezes, 2012Menezes, F. V. (2012). Indícios das práticas curriculares na disciplina história em uma escola exemplar de Campo Grande entre 1942 e 1970. Dissertação de Mestrado, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, Campo Grande., p. 61, grifos nossos)

Se por um lado esses professores foram alçados a essa condição por não terem formações específicas para a docência, de outro, no plano da prática, eram para o ensino secundário das instituições estudadas aquilo que esse nível de ensino cobrava deles. Portanto, a excelência pedagógica desses agentes definiu-se como um ato de imposição de um arbitrário cultural, que se dissimulou como tal e que dissimulou o arbitrário daquilo que inculcou.

Notas finais

Os distintos contextos históricos, as contradições e as complexidades inerentes a esses contextos analisados e retratados nas dissertações e teses constituíram-se nos quesitos que deram forma ao primeiro movimento da comparação empreendida. Em segundo lugar, focalizamos a crise de identidade expressa nos desenhos sobre o ensino secundário, uma vez que a doxa presente colocou em discussão visões idealizadas, às vezes anti-históricas, que predominam nos nomos das epistemes desenvolvidas.

Tais idealizações e anti-historicidade são retratadas em uma produção historiográfica marcada, sobretudo por análises estruturais, que reproduziam uma interpretação do ensino secundário na qual os autores centravam seus objetos de investigação e fontes documentais em diretrizes políticas, nas determinações econômicas e nas reformas educativas levadas a termo no período, e em seus efeitos no contexto da escolarização da sociedade brasileira. Isso, per se, impossibilitava uma escrita historiográfica a partir de formas distintas e singulares, marcadas por diferentes ritmos, tensões, disputas e negociações, que definiram a configuração do ensino secundário no contexto das regiões, dos estados e dos municípios brasileiros.

Apontamos que as referidas dissertações e teses registram processos de relativização cultural e ideológica produtores de uma escrita histórico-social sobre o ensino secundário. Há que se registrar que não foi possível depreender a ênfase diferenciada de tratamento do ensino secundário nessa escrita – seja no sentido da escolarização, seja no sentido de uma cultura – contra a crença de um objetivo puramente “preparatório”, centrado nos sujeitos a serem formados.

Para tal apontamento, nos (re)apropriamos das histórias dos “ensinos secundários” construídas pelas fontes, tratando do nomos ou das condições que cumpriram para que acontecesse a transmutação pela qual essa escrita recriou os fetiches daquelas sociedades em torno do nível de ensino secundário (a doxa). Nesse sentido, as histórias dos “ensinos secundários” foram construídas em torno de uma interpretação semelhante para suas origens do ponto de vista da organização das cidades, da caracterização socioeconômica da população-alvo e dos fetiches em torno das instituições, mesmo tratando de objetos diferenciados nos espaços e tempos históricos.

O desenvolvimento empírico dessas histórias evidenciou que diferenças entre os sistemas analisados, se existem ou existiram, não foram abordadas. Estamos falando de diferenças ligadas à composição, às práticas e às dinâmicas das políticas educacionais locais, das estratificações sociais e dos interesses das famílias, responsáveis por experiências socializadoras diferenciadas. Essas experiências informariam sobre os processos de incorporação de um patrimônio de disposições distintas e, paralelamente, estabeleceriam uma relação particular com aquelas instituições e os processos de constituição de uma cultura educacionalizada.

Por fim, a comparação aqui empreendida trouxe à tona outros protagonistas, circunscritos à illusio de novos jogos entre os Estados, os sistemas educacionais, além das forças culturais e do ambiente social, que dotariam as análises do ensino secundário de uma perspectiva dialética dentro/fora da educacionalização. Isto é, possibilitariam pensar na educação secundária não como uma orientação para a vida, mas um processo que implicaria uma abertura reflexiva para novas ideias e pessoas, distante de uma lealdade historiográfica a determinadas normas e tradições de escrita.

  • 1
    Apoio: Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).
  • 2
    Normalização, preparação e revisão textual: Aline Maya (Tikinet) – revisao@tikinet.com.br
  • 3
    Na pesquisa Estudo histórico-comparado da produção de conhecimento sobre o ensino secundário (Silva, 2013Silva, F. C. T. (2013). Estudo histórico-comparado da produção de conhecimento sobre o ensino secundário. Projeto de Pesquisa, Observatório de Cultura Escolar, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, Campo Grande.), temos como fontes um conjunto composto de seis dissertações e uma tese do GEPHE e oito dissertações do OCE. Cabe ressaltar que não utilizamos as dissertações e teses na perspectiva de análise e/ou avaliação dos exercícios teórico-metodológicos realizados, tampouco de questionamentos acerca das fontes eleitas/acessadas para a escrita da história do ensino secundário, mas estamos interessados na história informada/construída.
  • 4
    Essa porção do estado de Mato Grosso era constituída pelas cidades de Corumbá, Porto Murtinho, Bela Vista, Ponta Porã, Dourados, Entre Rios, Miranda, Nioaque, Maracaju, Campo Grande, Aquidauana, Herculânea (região de Coxim), Ladário, Três Lagoas e Parnaíba (Castro, 2018Castro, T. P. V. (2018). Do direito à educação da infância rural do município de Cuiabá – MT (1937-1945): Dos quintais aos bancos escolares. Dissertação de Mestrado, Universidade Federal de Mato Grosso, Cuiabá., p. 29 citado por Assis e Silva, 2018Assis e Silva, L. V. C. (2018). Na cadência das águas, no ritmo da política: A escola pública rural no município de Poconé-MT (1930-1945). Tese de Doutorado, Universidade Federal de Mato Grosso, Cuiabá., p. 55).
  • 5
    Na história do ensino secundário no Brasil, há referências a três trabalhos clássicos: Introdução crítica do ensino secundário, Geraldo Bastos Silva (1959)Silva, G. B. (1959). Introdução crítica do ensino secundário. Rio de Janeiro: Ministério da Educação e Cultura.; Ensino secundário e sociedade brasileira, de Maria Thetis Nunes (1962)Nunes, M. T. (1962). Ensino secundário e sociedade brasileira. Rio de Janeiro: Instituto Superior de Estudos Brasileiros.; e O ensino secundário no Império Brasileiro, de Maria de Lourdes Mariotto Haidar (1972)Haidar, M. L. M. (1972). O ensino secundário no Império Brasileiro. São Paulo: Edusp..
  • 6
    Períodos do Brasil Colônia, Pombalino, Joanino, Imperial, Primeira República, Era Vargas, entre outros.
  • 7
    “Em história, tudo começa com o gesto de separar, de reunir, de transformar em documentos certos objetos distribuídos de outra maneira. Esta nova distribuição cultural é o primeiro trabalho. Na realidade, ela consiste em produzir tais documentos, pelo simples fato de recopiar, transcrever ou fotografar estes objetos mudando ao mesmo tempo o seu lugar e o seu estatuto. Este gesto consiste em isolar um corpo, como se faz em física, e em desfigurar as coisas para constituí-las como peças que preencham lacunas de um conjunto, proposto a priori. Ele forma a coleção” (Certeau, 2010Certeau, M. (2010). A escrita da história (2a ed.). Rio de Janeiro: Forense Universitária., p. 81, grifos do autor).
  • 8
    São consideradas escolas exemplares “aquelas que teriam sido, não apenas referência de qualidade e de formação, mas também percebidas como ligadas à própria identidade cultural dos grupos sociais que se expressavam como ‘elites’ nessas cidades, em momentos históricos específicos” (Pessanha et al., 2007Pessanha, E. C. et al. (2007). Tempo de cidade, lugar de escola: Um estudo comparativo sobre a cultura escolar de escolas exemplares constituídas no processo de urbanização e modernização das cidades brasileiras. Relatório de Pesquisa Interinstitucional, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, Campo Grande., p. 25).
  • 9
    Ver artigo 25, alínea c, do Decreto nº 19.890, de 18 de abril de 1931.
  • 10
    No sentido de crença, como forma de pertença a um campo, traduzida em termos de illusio (Bourdieu, 1996Bourdieu, P. (1996). Razões práticas: Sobre a teoria da ação. Campinas, Papirus.).

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    20 Jan 2020
  • Data do Fascículo
    2020

Histórico

  • Recebido
    30 Maio 2017
  • Revisado
    23 Nov 2018
  • Aceito
    28 Dez 2018
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