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Geontologia e as artes neoliberais de governo: educar os corpos para além do imaginário do carbono 1 1 Normalização, preparação e revisão textual: Andressa Picosque (Tikinet)

Resumo

Inspirado na obra Geontologies: a requiem to late liberalism, de Elizabeth Povinelli, este texto problematiza as atuais condições do governamento neoliberal expandindo o conceito foucaultiano de biopolítica. Procura mais amplamente repensar os processos educativos nas margens da biontologia desdobrada pela entrada no Antropoceno, a fim de desabilitar o chamado “imaginário do carbono”. Trata-se de ensaio especulativo organizado em dois eixos que articulam noções foucaultianas, tematizando as condições pelas quais certas populações e certos corpos sofrem pela exposição diferencial a injustiças, violência e morte. Em seguida, discute-se a possibilidade de ativar outros modos de vida capazes de resistir no contexto das economias do abandono e das políticas queer de migração. Ao final, busca-se evidenciar algumas razões pelas quais o campo pedagógico inflacionou a questão da educação como empreendimento-de-si e deflacionou a preocupação com o cuidado-de-si e dos outros, defendendo uma abertura para outras figuras e sujeitos da educação como parte de uma crítica potente aos excessos provocados pelo imaginário do carbono em nossos sistemas de pensamento.

Palavras-chave
geontologia; neoliberalismo; governo da vida; corpos em fluxo

Abstract

Inspired by Elizabeth Povinelli’s essay Geontologies: a requiem to late liberalism, this paper problematizes the current conditions of neoliberal governance, through an expansion of the Foucaultian concept of biopolitics. The intention is to rethink the educational processes on the margins of biontology deployed by the entrance into the Anthropocene to disable the imaginary of carbon. This is a speculative essay organized in two axes. First, the paper reflects the conditions under which certain populations and, more specifically, certain bodies suffer from differential exposure to injustice, violence and death. Then, discuss the possibility of activating other ways of life capable of resisting the neoliberal arts of government. In the limit, the purpose is to indicate some reasons why the pedagogical field has inflated the issue of education as a selfenterprise and deflated the concern with self-care and care of the others, defending an opening of educational theories to other figures and subjects of education as part of a powerful criticism of the excesses caused by the imaginary of carbon in our systems of thought.

Keywords
geontology; neoliberalism; government of life; bodies in flow

“A filosofia atravessa um período de cesura epocal”. Fabián L. Romandini

Este texto desdobra uma espécie de ficção analítica acerca das chamadas “artes neoliberais de governo”, inspirada na obra Geontologies: a requiem to late liberalism, de Elizabeth Povinelli, problematizando as atuais condições do governamento neoliberal mediante uma expansão do conceito foucaultiano de biopolítica. A intenção mais ampla consiste em repensar os processos educativos nas margens da biontologia desdobrada pela entrada no Antropoceno,2 2 O termo “Antropoceno” foi proposto por Paul Crutzen e Eugene Stoermer em 2000, durante um encontro do International Geosphere-Biosphere Programme. Diz respeito ao que seria uma nova época geológica que se seguiu ao Holoceno, iniciada com a Revolução Industrial e intensificada após a Segunda Guerra Mundial (Danowski & Viveiros de Castro, 2014; Viveiros de Castro, 2012). a fim de desabilitar o chamado “imaginário do carbono” e seus processos de marcação, distinção e desqualificação ontológica.

O argumento apresenta tom intencionalmente especulativo e foi organizado em dois eixos analíticos que se intersecionam. No primeiro, articula-se um conjunto de fragmentos extraídos das aulas ministradas por Michel Foucault, em 1978, no curso Segurança, território, população, a fim de mostrar como, a partir dos séculos XVI e XVII, a soberania “capitaliza um território”, o poder disciplinar “arquiteta um espaço” e os mecanismos de segurança “criam um ambiente” em função de uma “série de acontecimentos” que é preciso “regularizar num contexto multivalente e transformável” (Foucault, 2008Foucault, M. (2008). Segurança, território, população. São Paulo: Martins Fontes., p. 27). Com isso, no segundo eixo da análise tematizam-se as condições pelas quais certas populações e, mais especificamente, certos corpos sofrem pela exposição diferencial a injustiças, violência e morte. Nesse momento, discute-se a possibilidade de ativar outros modos de vida capazes de resistir às artes de governo neoliberal no contexto das políticas queer de migração (De Genova, 2015De Genova, N. (2015). As políticas queer de migração: reflexões sobre “ilegalidade” e incorrigibilidade. Revista Interdisciplinar Mobilidades Humanas. 23(45), 43-75.).

No conjunto, os dois movimentos analíticos buscam evidenciar algumas das razões pelas quais o campo pedagógico inflacionou a questão da educação como empreendimento-de-si e deflacionou a preocupação com o cuidado-de-si e dos outros, defendendo uma abertura das teorias educativas para outras figuras e sujeitos da educação a fim de conspirar modos outros de formação do humano, orientados por uma postura diferinte3 3 Como discutiremos mais adiante, a noção de diferinte aponta um deslocamento radical na compreensão antropofilosófica da diferença ao levar em conta, para além dos marcadores sociais, as cosmologias que recusam a univocidade da ontometafísica ocidental. Assim, o diferinte resguarda ou reativa uma concepção ontológica situada para além das distinções absolutas ente vivo e não vivo. Nesse contexto, a expressão otherwise usada por Elizabeth Povinelli (2016) foi traduzida como diferinte por Costa (2016) por sugestão de Eduardo Viveiros de Castro, Déborah Danowski e Juliana Fausto, a propósito de uma entrevista realizada com a autora no Colóquio Internacional Os Mil Nomes de Gaia: Do Antropoceno à Idade da Terra, em 2014. e descolonizadora dos nossos sistemas de pensamento.

Para começar: contra os golpes de Estado para que haja sedição e sublevação

Na aula de 11 de janeiro do curso Segurança, território, população, ministrado em 1978, Michel Foucault, após apresentar a perspectiva global do curso e defender uma diferenciação analítica entre os sistemas legais, os mecanismos disciplinares e os dispositivos de segurança, passa em seguida a uma caracterização abrangente desses últimos, tomando como exemplo a organização do espaço urbano entre os séculos XVI e XVII. Com base nisso, Foucault conclui que a delimitação precisa de um conjunto de acontecimentos possíveis remetidos, simultaneamente, ao âmbito do temporal e do aleatório é o que permite singularizar o espaço da segurança, chamado por ele de “meio”. Essa noção teria emergido na biologia com Lamarck e na física com Newton, sendo imprescindível na medida em que visa explicar a “ação à distância de um corpo sobre outro” (Foucault, 2008Foucault, M. (2008). Segurança, território, população. São Paulo: Martins Fontes., p. 27). Essa noção é, de fato, “o suporte e o elemento de circulação de uma ação” (p. 27), indicando um certo número de efeitos que agiriam sobre todos os que aí residem, “um elemento dentro do qual se faz um encadeamento circular dos efeitos e das causas” (p. 28).

O meio seria um campo privilegiado de intervenção governamental, já que ao invés de agir sobre os indivíduos, apreendidos como um conjunto de sujeitos de direito e capazes de ação voluntária, ou mesmo como uma multiplicidade de corpos capazes de desempenho, o meio os atingiria como população, isto é, “uma multiplicidade de indivíduos que são e que só existem profunda, essencial, biologicamente ligados à materialidade dentro da qual existem” (Foucault, 2008Foucault, M. (2008). Segurança, território, população. São Paulo: Martins Fontes., p. 28). Assim, ele articularia, por um lado, um conjunto de “dados naturais” (rios, pântanos e morros, por exemplo), e, por outro, um conjunto de “dados artificiais” (como as aglomerações de indivíduos), o que levanta, nos termos de Foucault, um problema técnico, pois o meio seria inseparável da irrupção do problema da “naturalidade da espécie [humana] dentro da artificialidade política de uma relação de poder” (p. 29).

Mas, antes de concluir essa aula, como é comum na sua retórica docente, Foucault indica um texto e um autor, praticamente desconhecidos, que ninguém lê ou, se leu, não lhe prestou a devida importância, mas que ele reputa ser o primeiro grande relato da biopolítica. Trata-se do Estudos sobre a população de Moheau, em que Foucault (2008)Foucault, M. (2008). Segurança, território, população. São Paulo: Martins Fontes. encontra ideias tais como: “depende do governo mudar a temperatura do ar e melhorar o clima; um curso dado às águas estagnadas …, montanhas destruídas pelo tempo” (p. 29).

De fato, Moheau,4 4 Sobre a identidade desse autor, considerado enigmático ou mesmo mítico, ver a nota 39 dos editores do curso Segurança, território, população (Foucault, 2008, p. 37-38). apoiado em um verso de Virgílio acerca dos vinhos que congelavam nos tonéis na Itália, defende que seria tarefa do governo intervir em uma natureza cujo meio (geográfico, climático etc.) está em permanente associação com a espécie humana e seus múltiplos afazeres. O governante deveria, portanto, exercer seu poder justamente “nesse ponto de articulação em que a natureza no sentido dos elementos físicos vem interferir com a natureza no sentido da natureza da espécie humanam” (Foucault, 2008Foucault, M. (2008). Segurança, território, população. São Paulo: Martins Fontes., p. 30). Esse ponto exato é aquele em que o meio se torna um determinante constituinte de uma dada natureza, o que nos faz tropeçar, lembra Foucault, no eixo vital dos dispositivos de segurança, os quais compõem um projeto e uma técnica política endereçada ao meio como alvo de regulação, uma vez que a população não se configuraria como um dado primeiro, mas dependeria antes de uma série de variáveis.

A população varia. Varia com o clima, com o entorno material. Mas varia também com a intensidade do comércio, com as leis a que é submetida, com os hábitos, com os valores morais. Em síntese, o meio desdobra uma nova maneira de se colocar a questão do governo, posto que um fenômeno natural não se pode “mudar por decreto”, o que não significa que a “população seja uma natureza inacessível e que não seja penetrável, muito pelo contrário” (Foucault, 2008Foucault, M. (2008). Segurança, território, população. São Paulo: Martins Fontes., p. 93).5 5 De fato, insiste Foucault (2008), a população se configura como um conjunto de elementos em que se pode localizar “regularidades até nos acidentes” (p. 97). Essa crença possibilitou inúmeras análises por parte dos fisiocratas e dos economistas, e toda a matriz de pensamento utilitarista. Tem-se justamente uma população quando sua “natureza” se torna o alvo de “procedimentos refletidos de governo”.

A população é constituída por um conjunto de elementos que, por um lado, se insere “no regime geral dos seres vivos”, e, por outro, apresenta uma “superfície de contato para transformações autoritárias, mas refletidas e calculadas” (Foucault, 2008Foucault, M. (2008). Segurança, território, população. São Paulo: Martins Fontes., p. 98). A partir do momento em que já não se chama os homens de “gênero humano”, mas se evoca uma “espécie humana”, só então o homem pode “aparecer em sua inserção biológica primeira”. Mais: a população surgiria de uma confluência sinérgica entre a espécie humana e o público. Sobre esse último, Foucault ressalta que a palavra não é nova, mas seu uso sim, tendo em vista que, no século XVIII, o público torna-se a “população considerada do ponto de vista de suas opiniões, das suas maneiras de fazer, dos seus comportamentos, dos seus hábitos” (Foucault, 2008Foucault, M. (2008). Segurança, território, população. São Paulo: Martins Fontes., p. 98), entre os quais se destacam seus temores, seus preconceitos, seus descontentamentos, suas exigências, e sobre os quais se age seja por meio da educação, seja por meio do convencimento.

A população então é tudo o se estende entre o “arraigamento biológico pela espécie” e a superfície de contato materializada pelo público. Curiosamente, nesse ponto da análise uma palavra volta sem cessar nas aulas de Foucault, mas que ele diz não ser algo proposital: trata-se justamente da palavra “governo”, pensada como uma visada nova em direção a certo nível de realidade, uma técnica nova. Em seus próprios termos, uma espécie de “inversão do governo em relação ao reino” (Foucault, 2008Foucault, M. (2008). Segurança, território, população. São Paulo: Martins Fontes., p. 99). Esse é o novo prisma reflexivo no qual aparece a questão do Estado nas suas análises políticas.

Uma questão que seria inseparável de um contexto dramatizado, ou seja, do problema da “prática teatral na política, ou ainda da prática teatral da razão de Estado” (Foucault, 2008Foucault, M. (2008). Segurança, território, população. São Paulo: Martins Fontes., p. 354). A teatralização seria, ela mesma, um modo de manifestação do poder estatal e do soberano enquanto depositário legítimo do novo poder administrativo. Uma teatralização intensa, posto que atravessada por intrigas, desgraças, traições. A governamentalização do poder emerge então inseparável de todo um teatro político, voltado sobretudo à “representação do golpe de Estado”. Essa dramatização é responsável por abrir uma nova governamentalidade, que Foucault chama de governamentalidade indefinida, que se pretende infinita e que visa a “permanência dos Estados que não terão fim nem termo” (Foucault, 2008Foucault, M. (2008). Segurança, território, população. São Paulo: Martins Fontes., p. 355).

Trata-se de Estados descontínuos, sem dúvida, mas fadados a uma história sem esperança porque se organizam segundo uma razão cuja lei não é mais a da sua legitimidade intrínseca, mas a do imperativo de enfrentar golpes sempre incertos, ainda que detalhadamente concertados. Golpes que visariam realizar tragicamente uma cena que é o seu próprio real. É nesse contexto que as grandes “promessas do pastorado”, que nos faziam suportar diligentemente todas as misérias, inclusive aquelas do próprio ascetismo, desdobram essa “dureza teatral e trágica do Estado que pede que, em nome de sua salvação, uma salvação sempre ameaçada, nunca certa, se aceitem as violências como a forma mais pura da razão e da razão de Estado” (Foucault, 2008Foucault, M. (2008). Segurança, território, população. São Paulo: Martins Fontes., p. 356).

Essa nova governamentalidade entrecruza duas questões seminais: a da obediência e a das revoltas. E eis que, nesse momento de sua argumentação, surge outro daqueles textos notáveis encontrados por Foucault: o texto do chanceler Bacon6 6 Um texto tão “notável” que Foucault chega a dizer: “Não costumo dar conselhos quanto ao trabalho universitário, mas se alguém de vocês quisessem estudar Bacon, creio que não perderiam seu tempo” (Foucault, 2008, p. 356). intitulado Ensaio sobre sedições e distúrbios. Qual a sua importância?

Nesse texto, diz Foucault, se designa a “grande probabilidade” imanente aos cálculos da governamentalidade sem fim em que estaríamos ainda mergulhados na atualidade: as revoltas a evitar. As revoltas, diz Foucault (2008)Foucault, M. (2008). Segurança, território, população. São Paulo: Martins Fontes., repetindo Bacon, são a catástrofe do lado de toda forma de governo – são “como as tempestades” (p. 357). Como o mar, elas crescem secretamente. São sinais. Logo, por mais que se teatralizem, como tragédia ou farsa, os golpes de Estado, não é possível eliminar da própria razão de Estado sua virtualidade imanente: que haja sedição e sublevação.

Isso indica que a nova ordem governamental é incapaz de eliminar todos os efeitos possíveis de uma tomada revoltosa da palavra pelos próprios sujeitos excluídos dos cálculos governamentais. Daí que seja urgente atentar para uma espécie de “sinal ética” ou “semiótica da revolta” (Foucault, 2008Foucault, M. (2008). Segurança, território, população. São Paulo: Martins Fontes., p. 357), a qual permitiria entrever no próprio cerne da racionalidade liberal e neoliberal a emergência de uma nova guerra. Uma guerra contra os corpos que encarnam os outros da razão soberana. Uma guerra que almeja se livrar, de forma permanente, ou ao menos neutralizar indefinidamente os ilegalismos populares que, de tempo em tempo, se manifestam como possibilidade de retorno de um acontecimento revolucionário porvir.7 7 Como sabemos, desde 1978, o declínio da Revolução como chave para pensar a política conduziu Foucault para outras direções. É possível especular que foi por meio da revolta que a subjetividade (não aquela dos grandes homens, como ele faz questão de ressaltar) se introduz na história. As revoltas atravessariam as sociedades modernas como algo outro; um outro cuja presença obscura permanece silenciada, embora reavivando medos e disseminando mitos morais. Assim, na contraface do curso Nascimento da Biopolítica, de 1979, encontraremos, além de um relato preciso da razão de Estado moderna, uma exposição inquieta acerca da emergência dos corpos revoltados (Freitas, 2017). As massas em revolta se tornariam doravante o lugar concreto de uma ameaça somática aos poderes constituídos.

A experiência política da revolta apontaria para as mesmas verdades que repousam na raiz de toda atividade filosófica ou pedagógica ocupadas em fazer irromper novas formas de vida comprometidas com o trabalho, corpóreo e corporal, da liberdade. Em 1977, o próprio Foucault já havia atentado para “algo de plebe” imanente a toda revolta. Para ele, a plebe não designa uma parte da sociedade, como um estamento social, mas fala de “algo” que está presente de maneira difusa e variável em todos nós.

[Algo] no corpo social, nas classes, nos grupos, nos próprios indivíduos, que escapa de certa maneira às relações de poder; alguma coisa que é, não a matéria prima mais ou menos dócil ou avessa, mas o movimento centrífugo, a energia inversa, a escapada. “A” plebe sem dúvida não existe. Mas há “algo de” plebe. Há algo de plebe nos corpos e nas almas; há algo disso nos indivíduos, no proletariado, na burguesia, mas com uma extensão, com formas, com energias e com irredutibilidades diversas.

(Foucault, 2006Foucault, M. (2006). Estratégia, poder-saber (2a ed.). Rio de Janeiro: Forense Universitária., p. 245)

A plebe seria menos o exterior das relações de poder que seu reverso, seu limite, seu contraponto. Daí Foucault (2006)Foucault, M. (2006). Estratégia, poder-saber (2a ed.). Rio de Janeiro: Forense Universitária. dizer, em uma formulação aparentemente paradoxal, que a plebe não existe, contudo há plebe. Pois toda revolta comportaria um processo de desconstituição, uma desconjunção da relação verdade-poder-sujeito, encarnando nos corpos em revolta um desejo radical de desvestimento, uma vontade não de fundar, mas de subtrair. As revoltas expõem pequenas inervações corporais, sendo concebidas em um baixo material e corporal. Pois o espírito da revolta se move na aspiração de um mundo onde caibam muitos outros mundos, onde a igualdade seja a diferença e onde se reconheçam a multiplicidade das formas de vida. Foucault aqui é enfático: a revolta faz retornar as dissidências plebeias e suas heranças infernais.

A revolta de Gaia: o Antropoceno e as (des)conexões entre o matar e o morrer

Passemos então ao segundo fio da ficção especulativa desdobrada nas margens das artes neoliberais de governo, compreendidas por Foucault, em 1978, como uma forma de governamentalidade que se pensa, que se quer sem fim, e que, no entanto, não tem como expurgar de si mesma as formas revoltosas e imprevisíveis de contracondutas.

Retomamos uma ideia seminal defendida por Peter Sloterdijk (2012)Sloterdijk, P. (2012). Has de cambiar tu vida: sobre antropotécnica. Valencia: Pre-Textos. segundo a qual o chamamento para uma vida exercitante fez da Modernidade uma era técnica por excelência, marcada por um novo imperativo metanoético. Dirigido a todos e ao qual se dão múltiplas e, às vezes, divergentes respostas, esse imperativo mobilizaria uma extensa “coletivização e desespiritualização de um conjunto de exercícios e técnicas para a produção do sujeito por si mesmo, um sujeito governável” (p. 427, tradução nossa). Entre seus mediadores privilegiados estariam “o Estado moderno e a escola adequada a ele”, que, juntos, convocam-nos para um exercício global de fitness (p. 427, tradução nossa).

Na perspectiva ascética de Sloterdijk, a produção de sujeitos exercitantes está no centro das disposições que atuam no controle biopolítico das populações, uma vez que o indivíduo moderno é fundamentalmente um treinador-exercitante. Na contemporaneidade, contudo, o imperativo vigente passou a ser a transformação permanente por ação do próprio indivíduo, o que significa que já não se trata de um sujeito que se define em meio a identidades fixas para reconhecer um lugar no campo social, senão um sujeito de identidades móveis e flexíveis que se autoproduzem permanentemente por meio de técnicas que ele pode escolher.

O problema é que na própria série exercitação-condução-empresariamento se percebem vetores produtores de múltiplas crises (Binkley, 2009Binkley, S. (2009). The work of neoliberal governamentality: temporality and ethical substance in the tale of two dads. Foucault Studies, (6), 60-78.; Negri, 2016Negri, A. (2016). Quando e como eu li Foucault. São Paulo: n-1 edições.).8 8 Em que medida vivemos efetivamente as condições de uma crise generalizada de governamento ou se as crises se constituem, elas mesmas, em mecanismos sutis de controle biopolítico é uma questão que não vamos problematizar neste momento (ver Comitê Invisível, 2016, p. 23-46). Essas crises são desencadeadas, em grande medida, pelas próprias condições atuais de governamento da vida das populações, as quais engendram crises produzidas pelos próprios dispositivos de segurança que almejam justamente evitá-las.

Mais recentemente, as ciências humanas e sociais se depararam com uma crise assombrosa gestada pelas artes neoliberais de governo. Essa crise expressaria os efeitos catastróficos provocados pela entrada no chamado “Antropoceno”. Entre outros, autores como Déborah Danowski e Eduardo Viveiros de Castro (2014)Danowski, D., Viveiros de Castro, E. (2014). Há mundo por vir? Ensaio sobre os medos e os fins. Florianópolis: Cultura e Barbárie. advertem: a história humana já conheceu várias crises, mas a assim chamada “civilização global”, um nome arrogante para a economia capitalista baseada na tecnologia dos combustíveis fósseis, jamais enfrentou uma ameaça como a que agora está em curso em nossas sociedades globalizadas. O ponto crítico do diagnóstico está longe de se esgotar nos clichês acerca dos desastres ecológicos, das mudanças climáticas etc., apontando antes para um processo de degradação intenso e acelerado das condições que presidem a própria emergência da vida humana. Para além das distopias do pânico (catastrofismo) e do entusiasmo (aceleracionismo), o Antropoceno indicaria uma época em que o próprio tempo está fora do eixo, produzindo um vazamento da cultura sobre a natureza.

Como resultado, as categorias binárias e opositivas, típicas do pensamento filosófico da modernidade, não permitiriam mais compreender e, sobretudo, intervir nas mudanças que nos atravessam. Nos termos de Stengers (2015)Stengers. I. (2015). No tempo das catástrofes. São Paulo: Cosac Naify., a transformação dos humanos em força geológica pelo progresso técnico-científico desregulado tem sido paga com a intrusão de uma alteridade violenta, a intrusão de Gaia, que modificou as formas clássicas de autocompreensão do humano, seja como sujeito histórico. agente político ou pessoa moral. A comunicação do geopolítico com o geofísico fez desmoronar a distinção fundamental da episteme moderna – a distinção entre as ordens cosmológica e antropológica, separadas desde pelo menos o século XVII.

Note-se que o termo “Antropoceno” não é unânime. Há aqueles, como Jason Moore (2015)Moore, J. (2015). Capitalism in the web of life. New York: Verso. ou Donna Haraway (2016)Haraway, D. (2016). Antropoceno, capitaloceno, plantacionoceno, chthuluceno: generando relaciones de parentesco. Revista Latinoamericada de Estudios Críticos Animales, 3 (1), 15-26., que advogam o termo “Capitaloceno”, entendendo que a Revolução Industrial iniciada no começo do século XIX é consequência da mutação socioeconômica que gerou o capitalismo no chamado “longo século XVI”.

Mas o diagnóstico crítico permanece para além do debate idiomático. Isso porque o Antropoceno, aquém e além de suas metáforas sobre o fim do mundo ou o apocalipse, é atravessado por subentendidos filosóficos importantes. Como já destacava Günther Anders (2007)Anders, G. (2007). Le temps de la fin. Paris: L’Herne., “a derrocada da cosmologia geocêntrica se viu repentinamente compensada, no pensamento moderno, por uma absolutização antropocêntrica da história, isto é, pelo ‘relativismo histórico’” (p. 22). Todavia, a era atômica relativizou essa absolutização: o “fim da História” se tornando mera ocorrência “meteorológica, um acidente com dia e hora marcados” (Anders, 2007Anders, G. (2007). Le temps de la fin. Paris: L’Herne., p. 22). Com isso, perdem-se os sentidos - as conexões entre morrer - matar, abrindo uma inflexão abissal no debate acerca das artes neoliberais de governar.

Com efeito, o Antropoceno tornou inevitável a pergunta pelo compromisso do discurso filosófico da modernidade com as várias catástrofes em curso. Afinal,

se o Ánthropos (bem entendido, o homem esclarecido, ocidental-europeu-branco, ou quase…) é o “único cidadão do mundo”, o “seu próprio fim último” (Kant, 2006, p. 21), o que ele, enquanto espécie-povo eleito, poderia temer?! Se os cientistas do clima são “catastrofistas” de má-fé, as populações ditas tradicionais, incapazes de “ampliar a escala” do seu modo supostamente precário de existência, os povos das ruas, vândalos a-políticos, por que o filósofo, plenamente lúcido quanto às condições auto-fundantes de seu saber institucional, deveria responsabilizar-se por quimeras alheias e transformar a sua própria maneira de pensar?

(Valentim, 2014Valentim, M. A. (2014). A sobrenatureza da catástrofe. Revista Landa, 3 (1), 3-25., p. 4)

E mais:

se se considera o discurso filosófico moderno em vista de seu impacto imanente sobre outros povos, humanos e não humanos, que ele desde sempre manteve excluídos e ao mesmo tempo assujeitados à produção do sentido “em geral”, dificilmente se escapa à evidência de que o pensamento transcendental consiste em um dispositivo espiritual de “aniquilação ontológica” de outrem.

(Valentim, 2014Valentim, M. A. (2014). A sobrenatureza da catástrofe. Revista Landa, 3 (1), 3-25., p. 5)

Na análise de Marco A. Valentim (2014)Valentim, M. A. (2014). A sobrenatureza da catástrofe. Revista Landa, 3 (1), 3-25., “a proposição moderna exemplar … do ‘isolamento metafísico do homem’ … é, de Kant a Heidegger, tacitamente etno-eco-cida” (p. 6). O espírito do “povo cosmopolita” revelaria uma potência em si mesma catastrófica, que, embora dissimulada em seu próprio discurso, se faz manifesta quando se pensa sob o ponto de vista de Outrem. Nesse cenário, a modernidade revela-se como fonte explosiva do mundo comum, o qual passa a ser regido por uma paz policialesca. O Antropoceno figura então como espécie de duplo sobrenatural da modernidade.

Nesse sentido, levar a sério o Antropoceno significa evitar a falácia simultaneamente especista e racista contida na ideia do homem como espécie natural ou essência metafísica, tomado à parte dos vários povos diferentemente humanos e não humanos, problematizando o dispositivo da grande divisão que contribuiu para a despolitização das relações cósmicas, iniciando uma desenfreada “guerra dos mundos”. Uma “guerra entre guerras”, guerras de Estado, mas também contra o Estado, como a guerra xamânica dos índios contra os brancos, na qual se desdobram conflitos em que vivos e não vivos, espíritos e máquinas se imaginam e contraimaginam uns aos outros.

Tropeçamos aqui em uma imagem de pensamento radicalmente outra à consciência dos filósofos ocidentais (Costa, 2016Costa, A. C. (2016). Virada geo(nto)lógica: reflexões sobre vida e não-vida no Antropoceno. Analógos, 1, 140-150.). Lembremos nossa regra máxima de decoro acadêmico, enunciada por Kant, segundo a qual todos os objetos da experiência têm necessariamente que se regular pelos conceitos do entendimento humano e com eles concordar. Mas eis que, depois de séculos de censura ativa, o Antropoceno libera a resposta dos praticantes do chamado “pensamento selvagem” – essa figura fantasmática, entre tantas engendradas pelo racismo filosófico europeu.9 9 Por isso, enfatiza Valentim (2014), não é exagero supor que o Ánthropos moderno tentou “ignorar” ativamente seu duplo monstruoso. Essa ignorância ativa supõe um exorcismo especulativo, que visa neutralizar a “adversidade a fins” da natureza para submetê-la. Nessa perspectiva, Davi Kopenawa teria elaborado uma crítica ecopolítica da razão pura/branca, baseada em um princípio inverso ao da epistemologia objetivista da modernidade ocidental (Kopenawa: Albert, 2015).

Educar os corpos em fluxo para além do imaginário do carbono

Terá chegado, enfim, o momento de abandonar o barco, de trair a espécie? A pergunta foi endereçada aos amigos de um “comitê” invisível e disperso, que emerge onde o mundo se incendeia (Comitê Invisível, 2016Comitê Invisível. (2016). Aos nossos amigos: crise e insurreição. São Paulo: n-1 edições.).10 10 O Comité Invisível é um coletivo francês que se tornou conhecido em 2009 durante o caso dos 9 de Tarnac, quando o seu manifesto A insurreição que vem foi considerado prova do envolvimento do grupo em diversos atos de sabotagem. Mais recentemente, sua obra Aos nossos amigos (2016), traça um diagnóstico irônico sobre o desenvolvimento das crises do poder e do capital. Do ponto de vista pedagógico, o questionamento nos confronta com o fato de que as estruturas que fundam a economia política da educação foram naturalizadas. Por mais que o tratamento dado aos chamados “direitos das minorias” tenha incorporado aspectos que demonstram algum tipo de tolerância, reconhecimento e valorização, o sistema normativo vigente foi muito pouco influenciado pela compreensão dessas mesmas minorias sobre os sentidos implicados, por exemplo, no gesto de formar o humano desde a práxis educativa. As teorias pedagógicas permanecem invisibilizando outras cosmologias ou ontologias.

Essa situação permite inferir, conforme Vladimir Safatle (2017)Safatle, V. (2017). Governar é fazer desaparecer. Cult. Recuperado de https://revistacult.uol.com.br/home/vladimir-safatle-governar-e-fazer-desaparecer/
https://revistacult.uol.com.br/home/vla...
, que um dos eixos vitais dos processos de governo neoliberal consiste também em gerir a invisibilidade, criando zonas cinzentas onde vidas e corpos “desaparecem sem deixar restos” (p. 62).

Um efeito claro emerge quando cruzamos os estudos de migrações e os estudos queer. Comumente, estudos migratórios presumem que os migrantes seriam uma massa de sujeitos heterossexuais que migrariam apenas por questões estritamente econômicas, equiparando migrantes a trabalhadores (Teixeira, 2015Teixeira, M. A. A. (2015). Metronormatividades nativas: migrações homossexuais e espaços urbanos no Brasil. Áskesis, 4 (1), 23-38.). Raramente tematiza-se o que se passa quando se cruzam fronteiras nas chamadas migrações queer. No âmbito da legislação internacional, por exemplo, apenas 19 países reconhecem que a orientação sexual e a identidade de gênero podem constituir um atributo particular para os pedidos de asilo. Na maioria, inexiste qualquer legislação específica referente à população lésbica, gay, bissexual, travesti e transgênero (LGBT) como um grupo populacional que possa usufruir de proteção específica.

Enquanto isso, em cerca de oitenta países a homossexualidade ainda é considerada crime, passível inclusive de ser punida com pena de morte em seis deles. Essa situação força a mobilidade e o cruzamento de fronteiras em uma espécie de “sexílio” do qual mal temos notícias.11 11 Segundo Paul-Beatriz Preciado (2008), a sexopolítica é uma das formas dominantes da ação biopolítica no capitalismo contemporâneo. Com ela, o sexo (os órgãos chamados “sexuais”, as práticas sexuais e também os códigos de masculinidade e feminilidade) entra no cálculo do poder, fazendo dos discursos sobre o sexo e das tecnologias de normalização das identidades sexuais um agente de controle da vida. Não obstante, nesses casos

são claras as inter-relações e a interseccionalidade do gênero e da sexualidade com as identidades nacionais, raciais, étnicas e diaspóricas, bem como os circuitos de viagem, migração e deslocações, e com as subsequentes políticas de migração, asilo e de cidadania, [e suas conexões com] formas de globalização hegemónica e contra hegemônica com movimentos de corpos, ideias e capitais, [e] com os sistemas globais, nacionais e locais de inclusão.exclusão.

(Vieira, 2011Vieira, P. J. (2011). Mobilidades, migrações e orientações sexuais: percursos em torno das fronteiras reais e imaginárias. Ex Æquo, (24), 45-59., p. 52)

Assim, se, por um lado, os migrantes têm sido “objetos de um crescente e insólito clima de securitização” (De Genova, 2015De Genova, N. (2015). As políticas queer de migração: reflexões sobre “ilegalidade” e incorrigibilidade. Revista Interdisciplinar Mobilidades Humanas. 23(45), 43-75., p. 47), enquanto figuras ainda “sem nome” e fundamentalmente “inarticuláveis” de agência política, por outro, a presença dos migrantes queer perdura invisível e inaudível, o que só amplifica uma maior regulação dos seus corpos em fluxo, obstruindo o acesso aos bens de cidadania mais básicos, ao mesmo tempo que servem de alimento para as redes globais do tráfico de pessoas.

Habitando os espaços liminares do corpo, dos campos sexuais e dos Estados-nação, a migração queer compõe linhas de fuga que permanecem inassimiladas por nossas teorias e abordagens filosófico-educacionais das formas de governo. Uma das razões para essa situação, lembra Beatriz Preciado (2008)Preciado, B. (2008). Testo yonqui. Madrid: Espasa., é que as análises dos teóricos da biopolítica parecem parar quando chegam à “linha da cintura”, desconsiderando a relevância da sexualidade nas dinâmicas do tecnocapitalismo avançado, cujas formas de governamentalidade são regidas não apenas por uma cooperação entre cérebros.

Resultado: as multidões queer permanecem sendo tratadas como uma “exceção ontológica”, capturadas em uma espécie de limbo e submetidas, paradoxalmente, a políticas de estabilização de sua própria invisibilidade. São corpos e vidas visíveis em sua obscuridade, alimentando uma dinâmica de guerra civil pela generalização de um modus operandi em que governar significa fazer desaparecer. Esse modo de governamento propriamente neoliberal emerge inseparável de uma pretensa univocidade de uma dada ordem física e metafísica das coisas (a sua própria), denuncia Elizabeth Povinelli (2016)Povinelli, E. A. (2016). Geontologies: a requiem to late liberalism. London: Duke University Press.. É essa ordem que nos mantém prisioneiros de uma concepção ontológica fundamentada em um tipo específico de ser: o ser vivo e, mais especificamente, o ser que extrai sua diferença da demarcação de uma diferença absoluta entre entes vivos e não vivos.

Elizabeth Povinelli (2016)Povinelli, E. A. (2016). Geontologies: a requiem to late liberalism. London: Duke University Press. chama de “imaginário do carbono” o conjunto de processos metabólicos – quais sejam, nascimento, crescimento/reprodução e morte – que a epistemologia ocidental atribuiu à vida biológica. O imaginário do carbono cria a pressuposição de que há uma separação abissal entre o orgânico e o inorgânico, desconsiderando como mera matéria inerte desprovida de agência e intencionalidade todos os modos de existência que não parecem passar por aqueles processos metabólicos. A autora expande o conceito cunhado por Foucault, afirmando que a biopolítica não é só o que busca governar sobre a vida, mas também o que cria e mantém a divisão entre vida e não vida, pela qual os Estados neoliberais governam as diferenças.

Segundo Povinelli (2001)Povinelli, E. A. (2001). Radical worlds: the anthropology of incommensurability and inconceivability. Annual Review of Anthropology, 30, 319-334., a prioridade ontológica do metabolismo do carbono ancora-se em uma ontologia definida por questões como o ser e o não ser, a finitude e a infinitude, o uno e o múltiplo, engendrando e pressupondo um tipo específico de entidade-estado, a saber, a vida. Assim, seja nas ciências naturais, seja nas ciências sociais e mesmo na filosofia, a noção de vida age como uma divisão fundacional. A ontologia ocidental, na verdade, seria uma biontologia, cujo principal poder político consiste em transformar um plano de existência regional, isto é, a compreensão ocidental de vida, em um arranjo global com pretensões de universalidade.

Em oposição a essa biontologia e à biopolítica que a sustenta, Povinelli (2016)Povinelli, E. A. (2016). Geontologies: a requiem to late liberalism. London: Duke University Press. propõe o conceito de geontologia, que consiste na abertura a outras concepções de mundo que não sejam marcadas pela dualidade entre vida e não vida e suas distinções notáveis entre humanos e animais ou entre animais e plantas ou ainda entre plantas e rochas, concedendo dignidade ontológica a múltiplos seres.12 12 No artigo Do rocks listen? Elizabeth Povinelli começa narrando sua participação em uma audiência do processo conhecido como Kenbi Land Claim, no qual o povo aborígene Larrakia buscava obter direito de propriedade sobre a Península Cox, no Território do Norte australiano. Na ocasião, uma das mulheres do povo Belyuen, que habita a área, descrevia aos representantes do governo como uma rocha chamada Old Man Rock era capaz de ouvir e sentir o suor do seu povo, destacando a importância das interações entre humanos, ambientes e os seres totêmicos ancestrais para a saúde e a produtividade dos seus sistemas básicos de sobrevivência. Para uma discussão profunda desse texto, ver Costa (2016). Ela é enfática ao afirmar que se, durante os últimas décadas, os Estados e o capital neoliberais se viram beneficiados pela formação de poder biontológico, a grave desordem ecopolítica da atualidade propiciou a emergência da geontologia como formação de poder capaz de desabilitar o imaginário do carbono. Isso acontece porque a biontologia, longe de constituir uma universalidade organizativa, apresenta apenas um mundo, ainda que muito poderoso.

Assim, as crises atuais abririam espaço para novas concepções de conhecimento em que vida e não vida não são os operadores-padrão de distinção ontológica. Daí o interesse de Povinelli por uma antropologia do diferinte [otherwise]. O diferinte é uma condição de possibilidade de alteração dos arranjos determinados de existência (Costa, 2016Costa, A. C. (2016). Virada geo(nto)lógica: reflexões sobre vida e não-vida no Antropoceno. Analógos, 1, 140-150.), evidenciando as diversas geontologias que têm sido subjugadas pela pretensa universalidade da biontologia ocidental centrada no imaginário do carbono.

Vários questionamentos surgem desse posicionamento excêntrico aos sistemas de pensamento vigentes: como a não vida vai entrar no demos? Como fazemos ou deixamos falar e/ou silenciar os vários povos (humanos e não humanos) que habitam a polis?

Todas essas questões exigem pensar a vida fora das imposições biológicas, implicando, portanto, uma mudança do ponto de vista, especialmente sobre a morte humana. Povinelli afirma ser preciso “desdramatizar o humano” (Costa, 2016Costa, A. C. (2016). Virada geo(nto)lógica: reflexões sobre vida e não-vida no Antropoceno. Analógos, 1, 140-150., p. 147). Esse tipo de afirmação almeja problematizar o modo como lidamos com as várias exclusões que atravessam nossas sociedades, por meio de uma espécie de “eventização”, quer dizer, sua fixação enquanto acontecimentos extraordinários que capturam espetacular e momentaneamente nossos olhares, enquanto deixa à margem os pequenos acontecimentos de “morte lenta”, as experiências cotidianas de deterioração a que todos os seres estão submetidos sob a ordem do sistema político e econômico neoliberal.

Na ótica de Elizabeth Povinelli, as artes de governo neoliberal visam justamente construir e disseminar um amplo dispositivo humanitário em torno das catástrofes e dos riscos a que são expostas parcelas significativas da população, criando uma espécie de economia do abandono, cuja finalidade é dramatizar as próprias políticas de invisibilização. Logo, desdramatizar o humano significa, primeiro, que o humano enquanto forma de vida isolada dos outros existentes é uma quimera; segundo, que os processos de exclusão nunca atingem a todos os humanos igualmente.

Nessa direção, pensar o tipo de ação política ou pedagógica que está à altura do nosso tempo constitui uma tarefa desafiadora. O risco é sempre o de recair, mesmo que com a melhor das chamadas boas intenções, em práticas renovadas de colonialismo, pois ao fundamentar nossa ação em uma biontologia que destitui de valor outros modos de existência, tanto de humanos quanto de outros-que-humanos, acabamos por replicar, pragmaticamente, as exclusões que denunciamos. Toda política de resistência às artes de governo neoliberais, incluindo no campo da educação, precisa ser capaz de suspender os hábitos (maus hábitos, de fato) que nos fazem acreditar que sabemos, em um sentido absoluto, quem somos e que possuímos o sentido definitivo daquilo que nos faz existir.

Esse tipo de crença, raramente problematizada, começa por reduzir a agência e os modos de existência de múltiplos seres e mundos (Latour, 2013Latour, B. (2013). Investigación sobre los modos de existencia. Buenos Aires: Paidós.) ao valorizar formas de conhecimento que, historicamente, contribuíram para a dominação dos devires dos povos menores e suas contraciências pensadas, quase sempre, como mito, folclore e literatura. Em uma direção oposta, é urgente reaprender a pensar em termos de outras agências coletivas de enunciação que não separam natureza e cultura, reduzindo e desqualificando as visões de mundo exteriores ao sujeito moderno como irracionais.13 13 Para Viveiros de Castro (2015), a metafísica ocidental tem sido pródiga em cultivar, legitimar e replicar múltiplas formas de colonialismo ao não questionar os grandes divisores da nossa antropologia, distorcendo e restringindo outras narrativas que carregam consigo outros saberes e conhecimentos.

Isso significa acossar o sujeito da educação que, apesar das críticas pós-estruturalistas, permanece sendo pensado como uma forma excepcional de autoconsciência individual ancorada em alguma forma de identidade. No argumento aqui proposto, a subjetividade não cobra forçosamente uma forma reconhecida como humana. Um sujeito seria constituído, antes de tudo, pela “capacidade de tomar posição, multiplamente … um sujeito não é um corpo, não possui um corpo, nem habita um corpo, mas antes se posiciona em um corpo que, por definição, lhe resulta impróprio mesmo em sua momentânea apropriação” (Romandini, 2013Romandini, F. L. (2013). H.P. Lovecraft: a disjunção do ser. Florianópolis: Cultura e Bárbarie., p. 46-47).

Nesse contexto, educar para além do imaginário do carbono, para além da distinção ontológica entre vida e não vida, implica um desafio inusitado para a teorização crítica da educação. Pode a educação estar à altura desse desafio de pensamento? Talvez. Mas, sem dúvida, um passo importante nessa direção deve começar por uma contextualização das artes neoliberais de governo, refletindo seus efeitos concretos nos corpos colocados em fluxo mediante as distintas relações políticas entre seres e mundos agenciadas pela perversa economia do abandono (Povinelli, 2016Povinelli, E. A. (2016). Geontologies: a requiem to late liberalism. London: Duke University Press.), a fim de conspirar outras formas de educar e lembrar algumas coisas que ainda não sabemos como saber, isto é, algumas coisas que se situam para além de toda vontade de saber.

Assim, para (não) concluir…

No curso Segurança, território, população, Michel Foucault fez um contraste contundente sobre como a ideia do povo como fundação da democracia moderna teve de ceder lugar a uma análise da população. O povo figurou durante bom tempo como o fundamento da diferença liberal democrática, mas a gestão da população tornou-se a fonte constitutiva de sua legitimidade. Com esse argumento, Foucault não apenas retirou o foco de seus ouvintes do imaginário dos direitos soberanos dos reis, mas da chamada soberania popular ao contrastar o controle da população às revoltas do povo.

Quem é o povo? – ele pergunta. O povo é aquilo que, em um dado meio, em um dado modo de governamento, encarna o lugar de todos aqueles que são os não soberanos; o lugar daqueles que se comportam em relação à gestão da população, no nível da população, como se não fossem parte dela, como se se colocassem fora dela, recusando ser a população e perturbando a racionalidade vigente no Estado (Foucault, 2008Foucault, M. (2008). Segurança, território, população. São Paulo: Martins Fontes.). O povo é simplesmente quem não obedece, quem se revolta.

Em Geontologies: a requiem to late liberalism, Elizabeth Povinelli conduz essa análise foucaultiana ao limite. Para ela, é urgente não apenas solapar o entendimento do povo como base ideológica da diferença liberal democrática, no contexto das artes de governo neoliberais, mas questionar sua aplicação ao longo de tempos e espaços distintos. Na esteira de autores como Achille Mbembe (2014)Mbembe, A. (2014). Crítica da razão negra. Lisboa: Antígona., ela distende as análises de Foucault sobre sexualidade, raça e poder para compreender como, nas chamadas colônias de povoamento, o biopoder disseminou técnicas específicas de extermínio, de reconhecimento ou de assimilação, culminando em uma atuação marginal do Estado.

A violência policial no Brasil fornece um caso paradigmático dessa presença estatal mórbida, pois, entre nós, os chamados agentes da lei operam contra a lei dentro da lei. Aqui não há dúvidas, temos que encarar um Estado que não admite a pena de morte, mas que mata populações inteiras, em condições que replicam com crueldade a situação colonial e mesmo escravista, como mostram os estudos sobre as migrações queer (De Genova, 2015De Genova, N. (2015). As políticas queer de migração: reflexões sobre “ilegalidade” e incorrigibilidade. Revista Interdisciplinar Mobilidades Humanas. 23(45), 43-75.). Em países como o nosso, não casualmente, vemos sobreviver formas de terror corporal sob o influxo de uma desregulação neoconservadora, difundindo forças mórbidas de violência, ódio e horror, por meio de tecnologias necropolíticas que persistem incólumes e naturalizadas como parte do nosso repertório político.

Como resultado, “as modalidades de crime que este envolve não fazem nenhuma distinção entre inimigo interno e externo. Populações inteiras são alvo do soberano …. A vida cotidiana é militarizada.… Às execuções a céu aberto se adicionam matanças invisíveis” (Mnembe, 2014Mbembe, A. (2014). Crítica da razão negra. Lisboa: Antígona., p. 52-3). No Brasil, a construção do “opositor” sexualizado, generificado e racializado expõe concretamente a violência do Estado e suas políticas, manifestada sob diversas modalidades operacionais: segregação espacial, invizibilização forçada, expulsão escolar, epistemicídio, exposição sistemática à sujeição criminal.

No contexto atual, é difícil exagerar a magnitude do ódio social e da violência do Estado. É importante lembrar que as formas contemporâneas de poder que subjugam a vida reconfiguram profundamente as relações entre resistência, sacrifício e terror. Daí a noção de biopoder precisar incorporar novos caminhos de pensamento, desdobrando topografias reprimidas de crueldade, como também sugerem as reflexões de Judith Butler (2011)Butler, J. (2011). Vida precária. Contemporânea, 1 (1), 13-33. sobre a precariedade. Precariedade designando a condição politicamente induzida pela qual certas populações sofrem pelas fraquezas das redes sociais e econômicas de amparo e se tornam diferencialmente expostas a violência e morte. Não obstante, a precariedade, pressupomos saber, diz respeito exclusivamente aos seres vivos.

Por isso, ao longo deste texto, insistimos: a divisão entre a matéria geológica e a vida biológica pode restringir os poderes práticos de alguns viventes.14 14 Em vários lugares, determinadas matérias geológicas são consideradas animadas, vivas – e outras matérias geológicas também o são potencialmente. Assim, esse substrato geológico é a condição de outras formas de vida e a medida de valor ético e social de muitas populações (Latour, 2013). Obviamente, não se trata de propor uma nova diferença entre geológico e biológico, muito menos seu colapso. O ponto relevante é a pragmática discursiva na qual ser, vida e precariedade são postas em prática. Pois nem toda pragmática discursiva é absorvível nas dinâmicas metabólicas do imaginário do carbono enraizadas em nossas estruturas analíticas.

Para muitos coletivos, por exemplo, a vida não tem as fronteiras e os limites fantasmagóricos que o nascimento e a morte emprestam ao que delimitamos como sendo uma vida. Assim, um corpo morto permanece sendo um corpo. Como consequência, compreender as artes de governo neoliberais do ponto de vista de outrem, isto é, do ponto de vista dos múltiplos corpos em fluxo nas teias da vida, da não vida e da entrevida, exige que se repense as próprias figuras e sujeitos da educação.

Algumas dessas figuras e sujeitos já começam a se fazer presentes em análises da teoria educacional, como as multidões queer de Preciado (2011)Preciado, B. (2011). Multidões queer: notas para uma política dos “anormais”. Estudos Feministas. 19(1), 11-20., a crítica da razão negra de Mbembe (2014)Mbembe, A. (2016). Necropolítica. Arte & Ensaios, (32), 123-151. e as teorias e práticas de resistência transfeministas (Butler, 2003Butler, J. (2003). Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.; Koyama, 2003Koyama, E. (2003). The transfeminist manifesto. In R. Dicker, & A. Piepmeier (Eds.), Catching a wave: reclaiming feminism for the 21st century (pp. 244-259). Boston: Northeastern University Press.; Serano, 2007Serano, J. (2007). Whipping girl: a transsexual woman on sexism and the scapegoating of femininity. Berkeley: Seal Press.). Contudo, ainda precisamos de uma analítica do biopoder que parta de uma abertura resistente aos excessos governamentalizantes do imaginário do carbono, acolhendo além das figuras do animista, do deserto e do vírus, analisadas por Elizabeth Povinelli,15 15 O animista configura uma variedade de posições contrastantes em relação ao imaginário do carbono, e recusa não apenas a divisão hierárquica entre humanos e outros animais e a vida das plantas, mas as distinções entre formas de existência enquanto tais. O deserto configura a existência como existente, mas não vivida ainda, um ser que não é animado pelo Dasein – o deserto é Marte como futuro da Terra. O vírus, por sua vez, configura o conhecimento de que o ser humano, e a própria vida, é apenas uma pequena volta de uma força muito mais ampla do surgir e desaparecer (Povinelli, 2016). figuras como os terreiros e seus orixás, a ayahuasca e suas florestas de cristais, as “drogas” e suas deambulações ondulatórias.

Com esse gesto inaudito, talvez seja possível evidenciar como o campo pedagógico inflacionou a questão da educação como empreendimento-de-si e deflacionou a preocupação com o cuidado-de-si e com o cuidado-dos-outros. Nesse sentido, abrir nossas teorias filosóficas e pedagógicas para outras figuras e sujeitos da educação pode ser parte de uma crítica radical às artes neoliberais de governo, conspirando modos outros de formação do humano orientados por uma postura diferinte e descolonizadora.

  • 1
    Normalização, preparação e revisão textual: Andressa Picosque (Tikinet)
  • 2
    O termo “Antropoceno” foi proposto por Paul Crutzen e Eugene Stoermer em 2000, durante um encontro do International Geosphere-Biosphere Programme. Diz respeito ao que seria uma nova época geológica que se seguiu ao Holoceno, iniciada com a Revolução Industrial e intensificada após a Segunda Guerra Mundial (Danowski & Viveiros de Castro, 2014Danowski, D., Viveiros de Castro, E. (2014). Há mundo por vir? Ensaio sobre os medos e os fins. Florianópolis: Cultura e Barbárie.; Viveiros de Castro, 2012Viveiros de Castro, E. (2012). “Transformação” na antropologia, transformação da “antropologia”. Mana. 18(1), 151-171.).
  • 3
    Como discutiremos mais adiante, a noção de diferinte aponta um deslocamento radical na compreensão antropofilosófica da diferença ao levar em conta, para além dos marcadores sociais, as cosmologias que recusam a univocidade da ontometafísica ocidental. Assim, o diferinte resguarda ou reativa uma concepção ontológica situada para além das distinções absolutas ente vivo e não vivo. Nesse contexto, a expressão otherwise usada por Elizabeth Povinelli (2016)Povinelli, E. A. (2013). As quatro figuras da “sexualidade” nos colonialismos de povoamento. Cadernos Pagu, (41), 11-18. foi traduzida como diferinte por Costa (2016)Costa, A. C. (2016). Virada geo(nto)lógica: reflexões sobre vida e não-vida no Antropoceno. Analógos, 1, 140-150. por sugestão de Eduardo Viveiros de Castro, Déborah Danowski e Juliana Fausto, a propósito de uma entrevista realizada com a autora no Colóquio Internacional Os Mil Nomes de Gaia: Do Antropoceno à Idade da Terra, em 2014.
  • 4
    Sobre a identidade desse autor, considerado enigmático ou mesmo mítico, ver a nota 39 dos editores do curso Segurança, território, população (Foucault, 2008Foucault, M. (2008). Segurança, território, população. São Paulo: Martins Fontes., p. 37-38).
  • 5
    De fato, insiste Foucault (2008)Foucault, M. (2008). Segurança, território, população. São Paulo: Martins Fontes., a população se configura como um conjunto de elementos em que se pode localizar “regularidades até nos acidentes” (p. 97). Essa crença possibilitou inúmeras análises por parte dos fisiocratas e dos economistas, e toda a matriz de pensamento utilitarista.
  • 6
    Um texto tão “notável” que Foucault chega a dizer: “Não costumo dar conselhos quanto ao trabalho universitário, mas se alguém de vocês quisessem estudar Bacon, creio que não perderiam seu tempo” (Foucault, 2008Foucault, M. (2008). Segurança, território, população. São Paulo: Martins Fontes., p. 356).
  • 7
    Como sabemos, desde 1978, o declínio da Revolução como chave para pensar a política conduziu Foucault para outras direções. É possível especular que foi por meio da revolta que a subjetividade (não aquela dos grandes homens, como ele faz questão de ressaltar) se introduz na história. As revoltas atravessariam as sociedades modernas como algo outro; um outro cuja presença obscura permanece silenciada, embora reavivando medos e disseminando mitos morais. Assim, na contraface do curso Nascimento da Biopolítica, de 1979, encontraremos, além de um relato preciso da razão de Estado moderna, uma exposição inquieta acerca da emergência dos corpos revoltados (Freitas, 2017Freitas, A. S. (2017). As lições perigosas do professor Foucault. Bagoas: Estudos gays: Gêneros e Sexualidades. 11(16), 50-78.).
  • 8
    Em que medida vivemos efetivamente as condições de uma crise generalizada de governamento ou se as crises se constituem, elas mesmas, em mecanismos sutis de controle biopolítico é uma questão que não vamos problematizar neste momento (ver Comitê Invisível, 2016Comitê Invisível. (2016). Aos nossos amigos: crise e insurreição. São Paulo: n-1 edições., p. 23-46).
  • 9
    Por isso, enfatiza Valentim (2014)Valentim, M. A. (2014). A sobrenatureza da catástrofe. Revista Landa, 3 (1), 3-25., não é exagero supor que o Ánthropos moderno tentou “ignorar” ativamente seu duplo monstruoso. Essa ignorância ativa supõe um exorcismo especulativo, que visa neutralizar a “adversidade a fins” da natureza para submetê-la. Nessa perspectiva, Davi Kopenawa teria elaborado uma crítica ecopolítica da razão pura/branca, baseada em um princípio inverso ao da epistemologia objetivista da modernidade ocidental (Kopenawa: Albert, 2015Kopenawa, D., Albert, B. (2015). A queda do céu: palavras de um xamã yanomami. São Paulo: Companhia das Letras.).
  • 10
    O Comité Invisível é um coletivo francês que se tornou conhecido em 2009 durante o caso dos 9 de Tarnac, quando o seu manifesto A insurreição que vem foi considerado prova do envolvimento do grupo em diversos atos de sabotagem. Mais recentemente, sua obra Aos nossos amigos (2016), traça um diagnóstico irônico sobre o desenvolvimento das crises do poder e do capital.
  • 11
    Segundo Paul-Beatriz Preciado (2008)Preciado, B. (2008). Testo yonqui. Madrid: Espasa., a sexopolítica é uma das formas dominantes da ação biopolítica no capitalismo contemporâneo. Com ela, o sexo (os órgãos chamados “sexuais”, as práticas sexuais e também os códigos de masculinidade e feminilidade) entra no cálculo do poder, fazendo dos discursos sobre o sexo e das tecnologias de normalização das identidades sexuais um agente de controle da vida.
  • 12
    No artigo Do rocks listen? Elizabeth Povinelli começa narrando sua participação em uma audiência do processo conhecido como Kenbi Land Claim, no qual o povo aborígene Larrakia buscava obter direito de propriedade sobre a Península Cox, no Território do Norte australiano. Na ocasião, uma das mulheres do povo Belyuen, que habita a área, descrevia aos representantes do governo como uma rocha chamada Old Man Rock era capaz de ouvir e sentir o suor do seu povo, destacando a importância das interações entre humanos, ambientes e os seres totêmicos ancestrais para a saúde e a produtividade dos seus sistemas básicos de sobrevivência. Para uma discussão profunda desse texto, ver Costa (2016)Costa, A. C. (2016). Virada geo(nto)lógica: reflexões sobre vida e não-vida no Antropoceno. Analógos, 1, 140-150..
  • 13
    Para Viveiros de Castro (2015)Viveiros de Castro, E. (2015). Metafísicas canibais. São Paulo: Cosac Naify., a metafísica ocidental tem sido pródiga em cultivar, legitimar e replicar múltiplas formas de colonialismo ao não questionar os grandes divisores da nossa antropologia, distorcendo e restringindo outras narrativas que carregam consigo outros saberes e conhecimentos.
  • 14
    Em vários lugares, determinadas matérias geológicas são consideradas animadas, vivas – e outras matérias geológicas também o são potencialmente. Assim, esse substrato geológico é a condição de outras formas de vida e a medida de valor ético e social de muitas populações (Latour, 2013Latour, B. (2013). Investigación sobre los modos de existencia. Buenos Aires: Paidós.).
  • 15
    O animista configura uma variedade de posições contrastantes em relação ao imaginário do carbono, e recusa não apenas a divisão hierárquica entre humanos e outros animais e a vida das plantas, mas as distinções entre formas de existência enquanto tais. O deserto configura a existência como existente, mas não vivida ainda, um ser que não é animado pelo Dasein – o deserto é Marte como futuro da Terra. O vírus, por sua vez, configura o conhecimento de que o ser humano, e a própria vida, é apenas uma pequena volta de uma força muito mais ampla do surgir e desaparecer (Povinelli, 2016Povinelli, E. A. (2016). Geontologies: a requiem to late liberalism. London: Duke University Press.).

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    16 Set 2019
  • Data do Fascículo
    2019

Histórico

  • Recebido
    17 Ago 2017
  • Aceito
    06 Abr 2018
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