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“As meninas hoje tão muito soltas”: os discursos institucionais que fundamentam o processo de regulação moral 1 1 A pesquisa contou com financiamento do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), mediante bolsa de doutorado, e da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) com bolsa de doutorado sanduíche. 2 2 Normalização, preparação e revisão textual: Mônica Silva (Tikinet)

“Girls are very loose today”: the institutional discourses which found the process of moral regulation

Resumo

Este artigo trata da operacionalização das normas sociais por meio dos discursos institucionais de duas escolas do ensino fundamental II nas capitais São Paulo e Salvador. Nas interações cotidianas, os atores institucionais põem e explicam as regras de gênero nas quais as pessoas se apoiam para construir sua identidade e conduzir a vida. Sobressai uma discussão acerca das mudanças comportamentais de meninas na contemporaneidade, situando conteúdos normativos e valorativos implicados nos constrangimentos morais que permeiam as relações cotidianas entre direção, inspetoras de disciplina, professores e as estudantes. Esse intricado processo de regulação do comportamento feminino é condicionado por uma visão adultocêntrica e alarmista sobre as dinâmicas de construção da identidade de gênero entre adolescentes. As etnografias ainda permitem vislumbrar como as especificidades contextuais podem contribuir na polarização de modos de ser menina ou no alargamento de possibilidades dentro do espectro de feminilidade boa/má.

Palavras-chave
gênero; sexualidade; adolescência; regulação moral; meninas

Abstract

This study works the operationalization of social norms through the institutional discourses of two secondary schools in the cities of São Paulo and Salvador. In everyday interactions, the institutional actors explain the gender rules which people rely on the construction of identity and conduct their lives. It’s a discussion about the behavioral changes of girls in the contemporary society, which places normative and value content involved in the moral constraints that permeate daily relationships between education administrators, teachers and the girls. This intricate process of regulating female behavior is conditioned by an adult-centric, alarmist view of the dynamics of the construction of gender identity among adolescents. These ethnographies also allow us to glimpse how contextual specificities can contribute to the polarization of ways of being girl or the widening of possibilities within the good-mean spectrum.

Keywords
gender; sexuality; adolescence; moral regulation; girls

Introdução

Associada à imagem social da adolescência/juventude como uma fase transitória, de preparação para a vida adulta, está a compreensão da instabilidade juvenil. A experimentação é interpretada como desregramento e incapacidade de gerir a própria vida. Comumente as discussões sobre adolescentes e jovens têm por mote problemas sociais como violência, criminalidade, doenças sexualmente transmissíveis, gravidez precoce ou drogadição (Malfitano, Adorno, & Lopes, 2011Malfitano, A. P. S., Adorno, R. C. F., & Lopes, R. E. (2011). Um relato de vida, um caminho institucional: Juventude, medicalização e sofrimentos sociais. Interface, 15(38), 701-714.; Brandão et al., 2017Brandão, E. R., Cabral, C. S., Ventura, M., Paiva, S., Bastos, L., Oliveira, N., et al. (2017). Os perigos subsumidos na contracepção de emergência: moralidades e saberes em jogo. Horizontes Antropológicos, 23, 131-161.), o que configura esse período da vida como um momento de crise.

A tematização da juventude sob a ótica do problema social tem sido questionada através da concepção de pânico moral. Em “Folk devils and moral panics”, Cohen (2011)Cohen, S. (2011). Folk devils and moral panics: the creation of the mods and rockers. New York: Routledge. emprega esse conceito para definir as reações dos meios de comunicação, do público, de políticos e agentes de controle social ao “desvio” jovem. Durante o pânico moral, o comportamento de alguns membros é considerado bastante problemático para outros: a ideia de um efeito maligno sobre a substância e produção do corpo social impulsiona medidas para controlar e punir os desviantes, bem como para reparar o dano infligido à sociedade (Goode & Ben-Yehuda, 2009Goode, E., & Ben-Yehuda, N. (2009). Moral panics: The social construction of deviance. Oxford: Wiley-Blackwell.).

Enquadrar atividades da juventude como imorais remete à ideia de declínio moral, dada a incapacidade do grupo de diferenciar certo e errado. As análises do pânico moral versam sobre como o olhar dirigido à juventude se restringe a situações que representam ameaçar de ruptura com a continuidade social. A preocupação social vige na forma de integração dos jovens como membros da sociedade mediante a interiorização de valores, normas e comportamentos adultos. “Falhas” nessa apropriação cultural e ajuste social, segundo Abramo (1997)Abramo, H. (1997). Considerações sobre a tematização social da juventude no Brasil. Revista Brasileira de Educação, 5-6, 25-36., representam um risco para a manutenção da ordem social.

Historicamente a sexualidade feminina é produzida através da dicotomia moral pureza/impureza, forjada entre o ter ou não vergonha, respeito e sensatez (Duarte, 1987Duarte, L. F. (1987). Pouca vergonha, muita vergonha: Sexo e moralidade entre as classes trabalhadoras. In J. Lopes (Org.), Cultura e identidade operária: Aspectos da cultura de classe trabalhadora (pp. 203-226). Rio de Janeiro: Marco Zero/UFRJ.). Nesse plano, ela é representativamente encoberta e subjugada pela dominante sexualidade masculina. A ideologia da feminilidade compreende qualidades que as meninas devem desenvolver, como: ser atenciosa e emocionalmente comprometida; conter seus impulsos sexuais e acomodar os desejos do homem para o sexo; investir em um corpo atraente, cultivando a beleza sem expressar sexualidade; e aderir a sentimentos românticos (Fine, 1988Fine, M. (1988). Sexuality, schooling, and adolescent females: The missing discourse of desire. Harvard Educational Review, 58(1), 29-53.; Tolman, 2002Tolman, D. (2002). Dilemmas of desire: Teenage girls talk about sexuality. Cambridge: Harvard University Press.).

Não obstante, transformações amplas no processo de sexualização da sociedade contemporânea3 3 De acordo com Attwood (2006), a sexualização da cultura tem como lastro: o papel dos mass media na disseminação de linguagem e estilos considerados obscenos e “sujos”, resultando na aparente quebra de regulamentos e categorias morais; as transformações das relações afetivo-sexuais, que assumem formas mais fluidas, líquidas; a maior permissividade do espaço público às atitudes sexuais, reestruturando a noção de intimidade; e o lugar mais central ocupado pelo sexo nos “projetos de si”. engendraram novas práticas de sexualidade feminina, denominadas hipersexualização. A figura feminina hipersexualizada refere-se a alguém cujo poder já não deriva de uma suposta inocência ou virtude, mas de seu capital físico, suas habilidades sexuais e maior subjetividade sexual (Gill, 2012Gill, R. (2012). The sexualisation of culture? Social and Personality Psychology Compass, 6(7), 483-498.; Ringrose, Harvey, Fill, & Livingstone, 2013Ringrose, J., Harvey, L., Gill, R., & Livingstone, S. (2013). Teen girls, sexual double standards and “sexting”: Gendered value in digital image exchange. Feminist Theory, 14(3), 305-323.; Guimarães, 2018Guimarães, J. (2018). Dinâmicas interacionais do bullying entre meninas: explorando as tramas do aprendizado de gênero. Exæquo, (38), 167-182.). Em vários âmbitos sociais, mulheres jovens têm usado a sexualidade ativa, emancipada, para demarcar a independência entre os gêneros. Esta ênfase, para além das questões gerais de igualdade de gênero, reflete a virada substancial do pós-feminismo,4 ao condicionar o direito (individual) das mulheres à sexualidade ativa (Gill, 2007Gill, R. (2007). Postfeminist media culture: Elements of sensibility. European Journal of Cultural Studies, 10(2), 147-166.).

A hipersexualização e a sexualidade precoce constituem um terreno de representação complexo e contraditório, espaço de um pânico moral que envolve limites e possibilidades do que significa ser menina. A preocupação e o frenesi contemporâneos em torno do hedonismo sexual e social das jovens mulheres revelam uma preocupação pública com a erosão da normativa heterossexual e dos papéis tradicionais de gênero. A discussão acerca da garota sexualizada é importante por consolidar um rótulo marcante, que mobiliza um contexto referencial com seus significados e conotações associadas. A nomeação evoca um estado desviante e trabalha para descrever essa conduta como uma ameaça facilmente reconhecível pelos sujeitos.

Muitos estudiosos conceituam pânico moral como construções excepcionais para explicar reações desproporcionais a ameaças exageradas. Não obstante, considera-se aqui que esse conceito tem potencial para sustentar a investigação de processos rotineiros de regulação moral (Critcher, 2009Critcher, C. (2009). Widening the focus: moral panics as moral regulation. British Journal of Criminology, 49(1), 17-34.; Hier, 2011Hier, S. (Ed.). (2011). Moral panic and the politics of anxiety. London: Routledge.), ao contemplar episódios de contestação e negociação que emergem e reforçam processos mais amplos de moralização (regulação moral).

Hier (2008)Hier, S. (2008). Thinking beyond moral panic: Risk, responsibility and the politics of moralization. Theoretical Criminology, 12(2), 173-190. entende a regulação moral como construções dialéticas de si e dos outros que são transmitidas por discursos cotidianos de gestão de riscos e prevenção de danos. Desse modo, à medida que as atividades rotineiras são balizadas por julgamentos de certo e errado, considerando as consequências negativas para terceiros, a moralização se expressa nos indicadores de risco, dano e responsabilidade pessoal. Nesse processo é comum as pessoas serem chamadas a gerenciar riscos individuais, que existem em tensão com posições de sujeito coletivas de “outros nocivos”. Portanto, a moralização é dialética: discursos individualizadores convidam, por exemplo, garotas a comportar-se respeitavelmente para evitar riscos à reputação (também à saúde e gravidez precoce), ao passo que discursos coletivizadores representam a posição de dano do sujeito (no caso, a menina vadia).

Historicamente a escola tem produzido diferenças, distinções e desigualdades. Através de múltiplos mecanismos normalizadores, ela classifica e ordena os sujeitos. A pedagogia da sexualidade, conforme Louro (2008)Louro, G. (2008). Gênero, sexualidade e educação: Uma perspectiva pós-estruturalista. Petrópolis: Vozes., produz-se em afirmações e silêncios que legitimam ou condenam determinadas práticas e identidades sexuais, contribuindo para a consolidação de padrões hegemônicos de gênero. Meninas e meninos adotam comportamentos, posturas corporais, gestos e sentidos como parte de seu corpo, mediante a imposição cotidiana de arquétipos culturais e normas sociais.

Baseando-se nas concepções de Foucault, Vianna e Finco (2009)Vianna, C., & Finco, D. (2009). Meninas e meninos na educação infantil: Uma questão de gênero e poder. Cadernos Pagu, 33, 265-283. assinalam que essas interações devem ser analisadas a partir da institucionalização de técnicas disciplinadoras, configuradas no método de adestramento dos corpos. As autoras destacam as ideias de “vigilância hierárquica” e “sanção normalizadora”. A primeira corresponde às redes verticais de relações exercidas por dispositivos que obrigam pelo olhar, pela visibilidade dos submetidos e, consecutivamente, produzem efeitos de poder. A segunda se caracteriza por um duplo sistema de recompensa e punição, instituído para corrigir e reduzir os desvios, especialmente mediante micropenalidades.

A orientação de práticas, habilidades e configurações corporais dicotômicas para meninas e meninos, bem como os modelos cognitivos nelas referenciados, afirmam e consequentemente fixam hierarquias de gênero. Desde a educação infantil, os princípios das práticas pedagógicas aparecem relacionados à função de normalizar e controlar expressões corporais, demarcando fronteiras entre feminino e masculino e reforçando características físicas e comportamentais tradicionalmente esperadas de cada sexo no cotidiano (Vianna & Finco, 2009Vianna, C., & Finco, D. (2009). Meninas e meninos na educação infantil: Uma questão de gênero e poder. Cadernos Pagu, 33, 265-283.).

Múltiplos mecanismos são utilizados para legitimar essa realidade, a exemplo da prática docente que tende a reforçar e validar atitudes e comportamentos tidos como socialmente apropriados e dos livros didáticos que retratam mulheres em espaços privados, desenvolvendo atividades domésticas, enquanto os homens são associados a ações dinâmicas, em espaços públicos, consideradas social e intelectualmente privilegiadas (Moro, 2001Moro, C. (2001). A questão do gênero no ensino de ciências. Chapecó: Argos.; Lima e Souza & Lima 2008Lima e Souza, A., & Lima, T. L. (2008). Práticas educativas “atravessadas” pelo gênero: Percepções de docentes sobre identidades de meninas e meninos. In R. M. Tenorio, & J. A. Lordelo (Orgs.), Formação pela pesquisa: Desafios pedagógicos, epistemológicos e políticos (pp. 255-273). Salvador: Edufba.; Harvey & Ringrose, 2016Harvey, J., & Ringrose, J. (2016). Competition, accountability and performativity: Exploring schizoid neo-liberal ‘equality objectives’ in a UK primary school. In E. Reimers, & L. Martinsson (Eds.), Education and political subjectivities In neoliberal times and places emergences of norms and possibilities (pp. 49-67). London: Routledge.).

Assim delineia-se a socialização de gênero como um processo em que adolescentes e jovens aprendem a produzir performances, por meio da adoção, do distanciamento ou mesmo da conjunção de variados atributos que representam determinada identidade de gênero. Eles vão se apropriando do modelo social de gênero vigente à medida que percebem como são organizadas as relações em dado contexto, e assimilam e manipulam os códigos culturais.

A imposição de normas sociais instaura a tensão entre enquadrar-se ou não, gerando provável risco identitário em determinadas situações: aqueles estudantes que não se conformam à regra eventualmente sofrem retaliações e podem não escapar de agressões diversas. As sanções dirigidas a quem transgride esse tipo de norma mostram como a instituição escolar atua na composição das identidades sexuais e de gênero, enquanto espaço de poder que regula, normaliza, nomeia e inculca modelos de feminilidade e masculinidade e de sexualidade.

Nesse sentido, analiso os discursos que condicionam o processo cotidiano de moralização de meninas, enquanto dimensão do aprendizado da normatividade de gênero por esses sujeitos. A discussão ora apresentada resulta de um estudo etnográfico realizado no ano de 2014, em duas escolas públicas do ensino fundamental II, uma localizada na região Noroeste da cidade de São Paulo e a outra em um bairro da orla marítima de Salvador, Bahia. Atenta aos comportamentos dos atores institucionais, a imersão em campo focalizou a natureza de suas interações cotidianas para compreender o quadro de referências contextuais que constituem identidade de gênero e sexualidade entre meninas heterossexuais. Os instrumentos metodológicos foram a observação participante e entrevistas etnográficas com estudantes, docentes e inspetoras. Ao final da observação, procedi entrevistas semiestruturadas com diretores, um vice-diretor (que geria a instituição soteropolitana no turno vespertino) e sete professores, além de vinte entrevistas em profundidade com estudantes de ambos os sexos, entre 11 e 15 anos.

Vozes para a moralidade feminina: ressonâncias do padrão de gênero no cotidiano escolar

Ainda que potencialize a construção de feminilidades mais compatibilizadas com desejos particulares, o movimento de ampliação da liberdade sexual feminina tem reforçado as ideologias dominantes de gênero e sexualidade. Nesse cenário, discursos de escolha, liberdade e autonomia coexistem com a proliferação de discursos altamente restritivos e reguladores da sexualidade das mulheres (Gill, 2007Gill, R. (2007). Postfeminist media culture: Elements of sensibility. European Journal of Cultural Studies, 10(2), 147-166.; Renold, 2008Renold, E. (2008). Queering masculinity: Re-theorising contemporary tomboyism in the schizoid space of innocent/heterosexualized young femininities. Girlhood Studies, 1(2), 129-151.; Attwood, 2006Attwood, F. (2006). Sexed up: Theorizing the sexualization of culture. Sexualities, 9(77), 77-94.).

Em ambas as escolas havia um discurso generalizado entre os docentes acerca de uma mudança das meninas, originada nas modificações macrossociais contemporâneas. Se antes as garotas eram tímidas, hoje elas adotam uma postura mais ousada para lograr papéis e posições sociais mais exitosas. Os professores entendiam essa transformação como fruto de “má condução” educativa das adolescentes, principalmente na questão da sexualidade. Segundo eles, esta maior liberdade resultou em frouxidão na formação moral. “As meninas estão muito soltas”, e disso decorre o foco exacerbado na vivência da sexualidade. Sob essa ótica, a conquista de liberdade e participação social pelas mulheres teria gerado uma descompensação própria da inabilidade em lidar com o cabedal de possibilidades e âmbitos de ação ora disponíveis, tal como expõem Cecília e Patrícia5 5 Os nomes dos sujeitos participantes do estudo e das instituições de ensino citados neste artigo são fictícios para assegurar seu anonimato, de acordo com as normas de ética em pesquisa envolvendo seres humanos. , professoras da escola de São Paulo:

Cecília: É outra geração. É em toda a escola. Eu entrei pra a educação em 2005. Sabe o quê que eu acho? Tudo faz parte da mudança da sociedade. A mulher, ela lutou pra quê? Pra ser respeitada, pra ser tratada igual…

Patrícia: Eu acho que faz parte de um processo de liberação.

Cecília: Isso…

Patrícia: Vamos ocupar o nosso espaço. Chega agora de ser os meninos que pega todo mundo. Inverteu. E ficou essa coisa terrível.

Eu: Entendo… Elas dizem que os meninos são bestões.

Patrícia: Isso. Elas querem mostrar que a mulher pode também, e chegou a esse ponto extremo. Eu acho.

Cecília: Eu penso assim também. Eu acho que faz parte de um processo de mudança, tá rolando uma liberação, mas é aquela coisa: Você ficou um ano sem poder chupar sorvete. No dia que você pode, você toma cinco litros de uma vez.

Cecília: E é terrível né? Porque eu fico imaginando ter uma filha hoje assim. Na época que eu estudava o problema era os meninos. Aí eu pensava que problema é ter filho homem. Tenho um filho, ele tá com treze anos. Hoje a minha preocupação é com que menina ele vai se envolver. Porque ele vai ser o bobão na mão… se uma menina dessa pega ele. Porque é outra realidade. Não é mais a realidade da minha época que a gente era bobona…

Essa ideia de mudança comportamental também apareceu com frequência nas falas das adolescentes. Em diversas ocasiões elas afirmaram que “o mundo mudou e as meninas também estão mudando”. O discurso das “meninas de hoje”, tal como muitas delas se identificavam, traz um elemento novo na vivência da sexualidade. Há uma valorização do prazer e da conquista sexual em detrimento do afeto, e a primazia da experimentação e do hedonismo em detrimento do compromisso estabelecido em um relacionamento “sério”.

A sexualidade é significada como uma trajetória de vivências relacionais incorporadas do sentir, conhecer e ser/estar. Nessas experiências de si – incluindo o acesso a seus corpos, relacionamentos e contextos culturais – elas percebiam poder expressar e conhecer o que pensam e sentem. Prevalecia entre elas um sentido de direito ao próprio corpo, que também constituía um espaço de afirmação para lograr outros direitos, em direção à igualdade entre homens e mulheres. Dessa forma, exercer o direito ao desejo sexual parecia se estender a um anseio de liberdade de ser quem se quer. Enquanto parte do self, a sexualidade é descrita em termos de subjetividade e agência sexual. Tal como define Martin (1996)Martin, K. A. (1996). Puberty, sexuality and the self: Girls and boys at adolescence. New York: Routledge., a subjetividade sexual6 6 Por subjetividade sexual entendo a experiência e identidade de uma pessoa como ser sexual, que se sente com direito ao prazer sexual, capaz de fazer escolhas sexuais ativas, como definiu Tolman (2002). é um componente necessário da agência (sexual), que afeta a capacidade de atuar no mundo, sentir que pode agir e fazer as coisas acontecerem.

É interessante assinalar que, mesmo docentes como Patrícia, que afirmavam apoiar e conferiram grande importância ao “empoderamento” das garotas, significaram como comportamento descontrolado suas tentativas de autoafirmação. Essa busca por “se impor” para serem respeitadas pelos colegas foi interpretada como efeito adverso da liberação sexual feminina. A partir disso, outro elemento sobressai nesse discurso: a inversão de papéis entre meninas e meninos. A tenacidade e iniciativa das garotas contrastam com a parvoíce dos rapazes, significada pelos docentes como ingenuidade. Ou seja, a sagacidade das adolescentes constitui um perigo aos garotos que ainda são “crianças”. Nessa perspectiva, devido ao amadurecimento (sexual) precoce, as meninas se tornam capazes de ludibriar e ser maldosas a ponto de “enrolar” os garotos. Como sentenciou o professor Otávio, da escola de Salvador, “os meninos às vezes demoram pra perceber o que tá por trás das coisas”. Esta frase permite acessar a qualificação moral desse discurso, cujo cerne é a “sexualidade muito aflorada”, que torna as adolescentes “piores do que os meninos”. Entretanto, esse entendimento pode estar mais relacionado ao fato de que, ao contrário das meninas, os garotos não costumavam adotar condutas sexuais mais manifestas ou fazer comentários sobre sexo ou relacionamentos afetivo-sexuais na presença desses adultos.

Em perspectiva divergente, segundo as adolescentes ouvidas, os meninos-crianças “não têm nada na cabeça, não sabem conversar”, “não sabem tratar uma mulher com respeito”, “não se importam de fazer as meninas sofrer”, “gostam de ficar falando as coisas com os outros, de ficar tirando vantagem [publicizar terem ficado com alguma colega e/ou alegar feitos sexuais]”. Tais características (incômodas) remetem a virilidade, poder e ausência de comprometimento emocional, bases da imagem masculina hegemônica.

O problema do ponto de vista dos atores institucionais é convencionar a esperteza das garotas como um símbolo inequivocamente negativo, prejudicial. Em verdade, constatei uma aproximação com o ideário que fundamenta a concepção de maldade, contraposta à expectativa cultural de gentileza para meninas e mulheres. Essa ideia da garota malvada redefine as meninas como naturalmente maliciosas, mordazes e calculistas, conforme outras pesquisas já expuseram (Ringrose, 2006Ringrose, J. (2006). A new universal mean girl: Examining the discursive construction and social regulation of a new feminine pathology. Feminism & Psychology, 16(4), 405-424.; Simmons, 2011Simmons, R. (2011). Odd girl out: The hidden culture of aggression in girls. New York: Harcourt.).

Este tema vincula-se à discussão acerca da competição por popularidade entre meninas (Duncan, 2004Duncan, N. (2004). It’s important to be nice, but it’s nicer to be important: Girls, popularity and sexual competition. Sex Education: Sexuality, Society and Learning, 4(2), 137-148.; Guimarães, 2018Guimarães, J. (2018). Dinâmicas interacionais do bullying entre meninas: explorando as tramas do aprendizado de gênero. Exæquo, (38), 167-182.). As próprias adolescentes afirmavam haver “disputa para se aparecer”. Falar muito alto, xingar, afrontar professores chatos, criar boatos falsos de gravidez e arrumar brigas eram meios utilizados por muitas delas para ser tornarem conhecidas no colégio e lograr a atenção dos garotos. Tais formas de expressão mostram como a problemática da maldade das garotas articula-se à indisciplina, com o desejo de subverter as normas e a desobediência aos adultos para adquirir popularidade entre os pares, como explica Elias, diretor da escola paulistana:

Elias: Os meninos não causam problemas, os meninos são babacas, molecada muito tranquila de você chegar e conversar. Pode ser uma visão preconceituosa por conta do meu sexo, mas as meninas são ranhetas, as meninas são briguentas. É um caos, lidar com menina é muito mais difícil, do ponto de vista escolar é muito mais difícil.

Eu: Quando é preciso intervir, é diferente entre meninos e meninas?

Elias: Eu acho que a menina você precisa falar mais com ela, pra ter efeito. Com o cara é uma bronca, você coloca o cara na parede, coloca ele ali perto do chinelo, o cara entende. A menina não, você vai fazer isso uma vez, duas vezes, três vezes, pra ela sacar que o barato tá ficando louco pra o lado dela.

A professora Regina, da escola de Salvador, também declarou “ter mais reações de descontrole por parte das garotas”. “Os meninos são light”; quando o professor repreende, eles tendem a concordar, num instante desanuviam o clima e ficam amigos. Menina? É um problema pra umas três, quatro aulas, talvez pro ano todo”. Para ilustrar o fato, Regina narrou um caso ocorrido em uma turma do oitavo ano. O tema da aula era sustentabilidade ambiental, e a docente usou como exemplo o desperdício de papel pelos estudantes, quando uma menina descartava uma folha de caderno. Uma amiga reprovou o comentário e indagou: “Professora, o que é que tem ela arrancar folha? A mãe dela trabalha em dois lugares, elas podem comprar quantos cadernos ela quiser”. Apesar de Regina ter explicado o teor de sua fala, não adiantou; formou-se “uma bola de neve, uma avalanche”: sempre que ela chegava na sala as duas garotas a olhavam de “alto a baixo com a cara feia, falavam palavras de baixo calão e outras provocações pra ver se eu ia me descontrolar”.

O valor de axioma contido na sentença “as meninas são encrenqueiras” desvela o que esses profissionais consideram uma importante característica diferenciadora dos gêneros masculino e feminino. Tal diferença condiciona um olhar superficial sobre modos de interação e de relacionar-se, além das peculiaridades, que seriam inerentes à constituição da heterossexualidade por garotos e garotas, como exemplifica essa fala de Elias:

Eu considero uma desculpa, mas falam que: “ela vai roubar meu namorado” ou “ela disse que eu fiquei com o namorado dela”. Elas brigam por qualquer coisa, porque uma olha para outra, aí essa considera um olhar feio, invocado e já vai tomar satisfação, já a indaga de modo confrontativo, por questões de interesse comum por um menino. Esbarrões propositais, provocações, faz parte do cotidiano das meninas.

A incompreensão da natureza e das motivações dos conflitos envolvendo garotas relaciona-se a essa essencialização e naturalização de determinadas características como “coisa de menina”. Negligenciam-se os âmbitos da socialização (escola, família, comunidade, entre pares) e, por conseguinte, os níveis e expressões de contexto cultural, circunstância, pressões e recursos sociais envolvidos em seu desenvolvimento e erupção, além das sutis complexidades de experiências da constituição identitária de gênero.

Também é preciso levar em conta o papel do bullying7 7 O bullying entre meninas inclui ameaças de expulsão do grupo; isolamento sistemático, como medida de retaliação; retirada intencional da amizade para magoar e demonstrar poder; e propagação de rumores difamatórios para fomentar a rejeição grupal a determinada garota. como conjunto de práticas interacionais agressivas de aprendizagem e construção dos códigos de comportamento de gênero socialmente convencionados. Neste estudo foi possível observar que muitas adolescentes se empenhavam na regulação sexual umas das outras. Quando se entendia que alguma potencial rival poderia se sobressair em relação às demais, conflitos eram mobilizados para disciplinar uma conduta rotulada como sexualmente agressiva.

A vulgaridade no linguajar e o comportamento sexualizado acintoso foram apresentados como justificativa da natureza danosa da mudança das meninas. A exposição da sexualidade apareceu como uma situação muito difícil para o docente lidar, o que se mostra na dificuldade de aceitar o vestuário usado nas festas e as danças sensuais, citados como “algo que choca”. A fala de Irina, professora da escola de Salvador, é ilustrativa: “‘Você não pegou como eu’; outro dia vi uma menina esculhambar a outra assim. E três meninos atrás dela, protegendo. Eles também esculhambaram a menina, como quem diz ‘ela é a rainha mesmo’, ‘a poderosa’, quem mais pega é poderosa”.

Contudo, deve-se atentar que essa dinâmica relacional está igualmente inserida na construção das identidades de gênero masculina e feminina. A capacidade de arbitrar e conduzir sua sexualidade constitui uma forma de protagonismo significativa na fase da vida em que essa dimensão do ser se torna elemento essencial da sociabilidade e da construção da identidade. Garotos e garotas buscavam se afirmar no âmbito sexual e, assim, autoproclamar-se “melhor do que os outros” por “ficarem” com mais colegas do que os pares.

O reconhecimento da menina como poderosa aponta uma sequência lógica na qual quanto mais se é desejada pelos garotos, maiores são seu status e sucesso pessoal. A personagem em disputa era a “menina experiente”, que “sabe fazer o que os meninos gostam”, como disse Marcela, de 13 anos, estudante da escola de São Paulo. A prevalência dessa concepção entre elas indica o quanto os elementos de resistência às normas heterossexuais são intrinsecamente contraditórios. Em que pese o intento de “usar os meninos”, vale retomar Tolman (2002)Tolman, D. (2002). Dilemmas of desire: Teenage girls talk about sexuality. Cambridge: Harvard University Press. quando assevera que as adolescentes aprendem a perceber a si mesmas através da perspectiva dos garotos. Nessa dinâmica, fica evidente o risco de perderem o contato com seus próprios desejos corporais, tornando-se potenciais objetos usados por outros em suas próprias experiências.

No que diz respeito aos entraves à vivência de uma sexualidade proativa, o sistema de divisão de garotas entre boas e más e a ação do poder regulatório e punitivo (dos pares e adultos) permanecem intactos. Havia uma permanente ameaça de difamação moral entre as adolescentes. A rotulação como “puta” constituía um poderoso mecanismo disciplinar, já que condicionava suas posições na hierarquia social. Interpretada pela literatura feminista como indicativo da opressão internalizada (Hey, 1997Hey, V. (1997). The company she keeps: an ethnography of girls' friendship. Buckingham: Open University press.; Ringrose & Renold, 2012Ringrose, J., & Renold, E. (2012). Slut-shaming, girl power and “sexualisation”: Thinking through the politics of the international slutwalks with teen girls. Gender and Education, 24(3), 333-343.), essa prática de moralização entre garotas é condicionada por interesses pessoais e sociais – geralmente razões alheias ao comportamento sexual –, como a própria ascensão social ou o rebaixamento moral de rivais em disputa sexual.

Assim, mesmo quando expressavam resistência aos acordos heteronormativos, as adolescentes continuavam a ter que negociá-los. Simultaneamente, elas desafiavam e cumpriam de modo particular o padrão heterossexual e os arranjos desiguais de gênero. Essa negociação assume uma composição sui generis com a circulação por várias categorias de menina: as poderosas resistiam aos scripts da “boa” garota, mas executavam tanto performances hipersexuais quanto as ditas “normais”, ao se descreverem como “direitas”, refletindo assim uma adequação ao discurso de negação de sentimentos sexuais.

Entre atos encobertos e explícitos, a concorrência sexual traz como desdobramento uma preocupação fulcral entre os atores institucionais: a precocidade sexual. É importante localizar as vivências escolares aludidas pelos docentes enquanto fio condutor para melhor compreender sua visão alarmista acerca do desenvolvimento das adolescentes. Nas observações nas salas dos professores foi possível ouvir algumas narrativas sobre atos grosseiros e despropositados cometidos por estudantes de unidades de ensino fundamental I em que esses docentes trabalhavam; não foram relatados casos envolvendo garotos. Os professores costumavam afirmar que as garotas menores “são mais fogosas do que as do fundamental II”. Certa vez, uma professora de Salvador comentou que uma menina chegou na sala batendo a mão na vagina e perguntando “Quem quer, quem quer?”. Outra docente contou ter impedido uma garota de 8 anos que queria baixar a calça para mostrar a vagina. Aos casos relatados seguiam-se considerações que pontuam dois elementos estruturantes desse processo: a influência da mídia na formação e no despertar da sexualidade infantil; e a comparação geracional, entre atores institucionais e estudantes, acerca das vivências da sexualidade.

A exposição exacerbada ao sexo e a conteúdos dessa natureza fomentaria em crianças e adolescentes um anseio por reproduzir tais modelos. “Daqui uns dias, com dez anos o povo já tá [fazendo sexo]…”, sintetizou Eleonor, inspetora da escola de São Paulo. A percepção desses atores institucionais é de ruptura precoce com os códigos culturais infantis, que em verdade se confundem com a característica idealizada da pureza assexual da menina. Como assinalou Rita, inspetora soteropolitana:

Quando eu era adolescente, eu ainda brincava. Adolescente hoje em dia não quer nada, só quer namorar. Com 11 anos, eu já vi alunas de paquera. Com 11 anos. E elas que chegam mais nos meninos, ficam sentando no colo dos meninos. Aí a gente manda elas sair, demora um pouquinho elas sentam de novo… às vezes chega mesmo a pegar [no pênis]…

A inocência infantil relaciona-se e é sustentada pela ignorância (falta de informações ou insulamento) quanto a temas sexuais. Nesse caso, a ignorância desempenha uma função protetiva contra comportamentos considerados impróprios para a idade (Felipe, 2000Felipe, J. (2000). Infância, gênero e sexualidade. Educação e Realidade, 25(1), 54-87.). Britzman (2010)Britzman, D. (2010). Curiosidade, sexualidade e currículo. In G. Louro (Org.), O corpo educado: Pedagogias da sexualidade (pp. 83-112). Belo Horizonte: Autêntica. assevera que o discurso dominante da sexualidade sempre se fundamentou na ameaça do pânico moral, na suposta proteção da inocência infantil, no eugenismo da normalização e nos perigos advindos das representações explícitas de sexualidade. No cumprimento de sua função disciplinadora, a instituição escolar atua controlando manifestações ou estímulos de prazer (mesmo brincadeiras, riso e alegria) que possam “despertar” interesse erótico ou atitudes viciosas (Ribeiro, Souza, & Souza, 2004Ribeiro, P., Souza, N., & Souza, D. (2004). Sexualidade na sala de aula: Pedagogias escolares de professoras das séries iniciais do Ensino Fundamental. Estudos Feministas, 12(1), 109-129.), como interpretado no caso relatado. Em verdade, amiúde foi possível presenciar nessa escola meninas e meninos sentando-se no colo uns dos outros, abraçando-se ou mesmo “brincando de putaria” como gestos de amizade.

Quando questionados acerca do que diferenciaria as atitudes sexualizadas de garotas e garotos, os profissionais recorreram a uma “explicação biológica”. As explanações de Martim, vice-diretor, e da professora Regina, ambos da escola de Salvador, sintetizam a percepção corrente:

… o adolescente demora mais de amadurecer do que a menina. A menina quando chega a menstruação por volta dos onze, doze anos, ela começa a ter interesses diferentes da infância. A maturidade chega com mais rapidez. Aqui tem meninas da quinta série com doze anos que já tão namorando, eu fico sabendo nos corredores…

(Martim)

Eu vi no ano passado uma menina que era pequenininha, nem conversava muito na sala, mas que tinha um potencial, a mãe trazia aqui e tudo. No final do ano [passado], chegou aqui toda diferente, com sombra azul, toda arrumada. [N]a sétima série, é uma idade que os hormônios tão evoluindo, tão borbulhando. É a saída da puberdade pra a adolescência, tá tudo acontecendo dentro deles, então, vem tudo de vez. Eles ficam um pouquinho desnorteados com tudo isso. Quando chega na oitava, exatamente no meio do ano, eles amadurecem mais. Todo ano os professores notam a diferença, é uma fase que acontece tudo de vez, fisiologicamente. E aí vêm as confusões por causa de menino, por causa de menina, e as competições. Mas eu acho que tem diferença sim, que tá vindo muito rápido, eles querem incorporar tudo ao mesmo tempo, tudo já. Essas mudanças são radicais, antes eu via as coisas acontecendo com mais tranquilidade, mais lentamente, agora eu vejo parecendo um tsunami mesmo

(Regina)

Os docentes e diretores sempre pontuavam a importância da participação educativa dos pais nesse processo de formação da sexualidade, destacando seu papel como referências para preparar os filhos para essa dimensão da vida. Alguns entrevistados comentaram que os adolescentes com “estrutura familiar”, “apoio e presença dos pais” passam por essas transformações de modo “mais sereno”. Habitualmente esses profissionais associavam a “sexualidade mais aflorada”, “à flor da pele” com a ausência educativa e falta de comunicação entre pais e filhos. Por isso pautavam a necessidade de um trabalho conjunto entre família e escola. “A escola não consegue educar sozinha”, sentenciou Martim.

De fato, conversas com as meninas permitiram constatar que, dadas as rotinas tediosas e minha postura aberta, suas narrativas mais entusiasmadas tinham como mote fofocas e questões relacionadas à sexualidade (ficantes, namorados e relações sexuais). A centralidade da temática sexo revela a amplitude e importância que as adolescentes conferem às vivências da iniciação da vida sexual, mas também relaciona-se à falta de espaços para um diálogo horizontal que subtraia o medo, a vergonha e a avidez de saber/entender a si próprias, suas relações e corpo em mudança.

Ao longo da investigação observei como os professores atuavam no controle e cerceamento das mais variadas expressões de sexualidade pelos adolescentes, majoritariamente as garotas. A própria forma como se mostravam pouco flexíveis com atos de indisciplina, interpretados como desrespeito à pessoa, e o enquadramento tradicional das aulas configuravam parcas oportunidades para os estudantes exercerem sua autonomia e capacidade de escolha. O professor Antônio, da escola de Salvador, destacava as palavras “jocosas, agressivas e vulgares” utilizadas pelos estudantes nas aulas da disciplina de eixo temático “A ciência a serviço da sexualidade humana”. O objetivo do docente era fazer com que os alunos debatessem, perguntassem, “até usando as palavras vulgares pra gente transformar em palavras científicas e explicar dentro de uma norma mais científica”. Ele acreditava que “ia ser algo pulsante”, mas o desinteresse foi geral. As perguntas eram pouco usuais, e a maioria dos estudantes conversava durante a aula.

No relato de Antônio, ficou patente sua tentativa de higienizar as condutas dos discentes em relação à sexualidade. “Eles tratam sexo muito mal, o sexo é lixo. Mesmo os que não fazem, falam como se fosse degradação”, afirmou. Em sala, o professor fazia observações em tom de repreensão e usava uma linguagem biológica pouco accessível, alinhada a um discurso moralizante, que tendia a não promover interesse dos alunos nem a sensibilizá-los. O maior problema dessa abordagem escolar reside na negação do desejo, do prazer e da curiosidade, da descoberta dos adolescentes, desconsiderando a influência e a interlocução com os amigos, a pressão social e a insegurança que afirmavam sentir. Os adolescentes são sujeitos, têm vontades e percepções próprias, e são avessos a posturas autoritárias e que os subestimem. Em diversas conversas, eles afirmaram que as “brincadeiras” em sala eram retaliação a esse tipo de conduta adotada por determinados docentes. Portanto, o emprego de verbos como “convencer”, “proibir” e “obrigar” deveras dificulta a aproximação pessoal necessária ao ato que se pretenda educar em sexualidade.

A literatura sobre sexualidade juvenil já argumenta há algum tempo que incutir o medo de doenças e/ou gravidez indesejada e discordar continuamente do interesse dos jovens pelo assunto, reiterando que eles “estão muito novos para pensar nessas coisas”, não são estratégias de educação sexual profícuas nem atraentes para os adolescentes (Knauth, Heilborn, Bozon, & Aquino, 2006Knauth, D., Heilborn, M. L., Bozon, M., & Aquino, E. M. (2006). Sexualidade juvenil: Aportes para as políticas públicas. In M. L. Heilborn, E. M. Aquino, M. Bozon, & D. Knauth (Orgs.), O aprendizado da sexualidade: Reprodução e trajetórias sociais de jovens brasileiros (pp. 399-417). Rio de Janeiro: Garamond/Fiocruz.; Louro, 2008Louro, G. (2008). Gênero, sexualidade e educação: Uma perspectiva pós-estruturalista. Petrópolis: Vozes.; Cabral & Heilborn, 2010Cabral, C. S., & Heilborn, M. L. (2010). Avaliação das políticas públicas sobre educação sexual e juventude: da Conferência do Cairo aos dias atuais. In Brasil, Secretaria de Política para Mulheres (Org.), Rumos para Cairo + 20: Compromissos do governo brasileiro com a plataforma da Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento (pp. 101-128). Brasília, DF: Cidade Gráfica.). O enfoque biologizante comumente assumido pelos professores nas interações (coercitivas) constitui um entrave para o diálogo aberto e interessado com os estudantes.

É importante que as experiências, expectativas e os interesses dos estudantes sirvam de lastro para a discussão de temas da sexualidade. Não se trata de minorar a importância do aprendizado sobre o próprio corpo que a perspectiva biológica oferece, mas de defender que esta se complemente com os aspectos psíquicos, sociais, relacionais e culturais que conformam as construções de identidades sexuais e de gênero.

Entre cenários, atores e relações: as posições de sujeito dentre as possibilidades de ser menina

A realização de etnografias em duas unidades de ensino propiciou atentar para o modo como a gestão disciplinar incide nos relacionamentos e interações entre estudantes, podendo flexibilizar e/ou enrijecer a consideração valorativa de determinados aspectos normativos e modelos de conduta feminina heterossexual. As especificidades contextuais e abordagens disciplinares empreendidas pela direção afetam de distintas formas as relações estabelecidas entre docentes, inspetoras e adolescentes, seja delineando modos de atuação, seja alterando a correlação de forças entre esses sujeitos.

Em São Paulo havia um sistema de policiamento institucionalmente consolidado. O espaço físico reduzido, com poucas salas de aula e um grupo menor de discentes, facilitava a conformação de uma vigilância rigorosa e constante. Nem mesmo no intervalo os estudantes tinham liberdade de ação, já que estavam sob o olhar atento das inspetoras, da coordenadora pedagógica e do diretor. Permanentemente eram indagados sobre o que fariam ao sair da sala, tanto que muitos alunos já prontamente se justificavam. No início de cada ano letivo, eram informados das regras de convívio, disciplina, circulação nos espaços e horários da entrada. “Aqui eles sabem de tudo, se aprontarem não tem choro, não tem nem o que alegar. E ele [o diretor] não abre mão mesmo. Infringiu a regra, acabou. E tem que ser assim”, afirmou Eleonor.

As inspetoras de disciplina Eleonor e Carmen desempenhavam papel fundamental nessa engrenagem, monitorando cotidianamente as interações dos estudantes. Ambas atuavam como linha de frente na resolução de problemas de indisciplina e microviolências em geral, tendo autonomia para resolver querelas mais ordinárias e de menor gravidade. Contudo, adotavam posturas distintas no trato com os estudantes, diferença cuja raiz está em suas concepções morais. Carmen utilizava-se de intervenções mais avaliativas, com críticas de fundamento moral conservador; estabelecia diferenciações entre as meninas “mais certinhas”, com as quais era permissiva por considerá-las moralmente notáveis, e as meninas “atiradas”, que costumava prejulgar e repreender com severidade. Já Eleonor era mais aberta e liberal, assumindo uma atitude de escuta que acarretava uma relação mais fluida e próxima com as estudantes: trocava experiências, oferecia carinho, conselhos e “um ombro amigo”. Não obstante, essa prática de escuta assumia uma forma de exame de consciência: suas observações traziam verdades, imputavam à aluna o reconhecimento da conduta como um erro cometido (precocidade do “pensar em meninos”, “saliência” com garotos, idas ao Pistão (baile funk); e os conselhos anunciavam caminhos e atitudes para que a menina “se dê valor”. Esse modo de convencimento remete ao que Foucault (2009)Foucault, M. (2009). História da sexualidade I: A vontade de saber. São Paulo: Graal. concebe como “prática confessional”, que visa modificar práticas de si mediante a sujeição da subjetividade daqueles levados a se conscientizar de falhas que escondem de si mesmos.

A escola possuía um projeto pedagógico próprio, implantado pelo diretor, que definia o diálogo e a presença/disponibilidade como lastros da relação professor-discente. Em conversas, os professores demostravam conhecimento aprofundado dos problemas pessoais, da história de vida de seus educandos, prestavam apoio contínuo e trocavam experiências. Todavia, é preciso dissociar tal postura de uma visão de mundo mais liberal: prevaleciam concepções tradicionalistas de feminilidade e a repreensão às meninas consideradas “problemáticas”, “maldosas” ou “atiradas”. Havia, inclusive, uma diferença quanto ao modus operandi dos docentes: em casos de indisciplina como perturbação da aula, eles empreendiam várias tentativas de resolução negociada com os estudantes; já os conflitos que envolviam condutas sexuais eram informados às inspetoras para que encaminhassem os envolvidos à diretoria. Quando questionados a respeito, alguns docentes afirmaram que essa distinção se devia ao grau de seriedade ou gravidade do comportamento perturbador na prossecução das aulas.

É mister salientar a figura imperativa do diretor Elias. Ele se comunicava com uma linguagem jovem, e sua sala estava sempre aberta aos estudantes. Não adotava punições exemplares, todavia, expressava autoridade e inspirava admiração e receio. À parte questões internas, o diretor mora na comunidade, que é pequena, e por ser amplamente conhecido, tinha acesso a informações de atividades pessoais potencialmente reprováveis das estudantes. Na entrevista, ele relatou uma conversa com o pai de uma discente que pode ajudar a compreender o temor das meninas diante dele:

Elias: Quando eu tava com um pai na segunda-feira que não sabia nada da filha, o que ela faz… Falei “A sua filha frequenta o Pistão, o senhor sabe disso?”.

Ele disse: Ela veio comigo.

Elias: Mas eu não perguntei se ela veio com o senhor, quero saber se o senhor sabe disso, porque o senhor não faz nada.

E ele: Mas eu não sei o que fazer.

Elias: O senhor não sabe o que fazer? O senhor tem que proibi-la.

Ele: Mas ela não mora comigo.

Elias: Mas alguém tem que proibi-la, o senhor é o pai, alguém tem que mandar numa garota de 12 anos. O senhor sabe o que ela tá fazendo no baile funk? O senhor sabe como vão as mulheres pro baile funk? Como vão as moças? Elas vão sem calcinha, elas vão preparadas.

Este trecho ilustra como a vigilância sobre a conduta das meninas é norteada por concepções estereotipadas de elementos culturais juvenis, como o citado baile funk. O Pistão era constantemente descrito pelo diretor e pelas inspetoras como um perigo ao desenvolvimento profícuo das meninas, um espaço desvirtuante com sexo fácil e degradante para as mulheres. Em conversas, várias participantes mencionaram o Pistão como uma festa de rua, sem se referir a este tipo de prática. Para elas, o baile constituía um ensejo de expressividade juvenil, mais concatenado com seus gostos pessoais. Quando obtinham tal permissão, mesmo as que não apreciavam esse estilo musical frequentavam o Pistão pela oportunidade de estar com amigos e outras pessoas da mesma idade, de modo mais livre, sem o olhar dos adultos.

O controle impingido aos estudantes resultava em um ambiente marcadamente conservador. Como reflexo, havia um nítido distanciamento de corpos entre meninas e meninos, com pouca fluência interacional, o que acentua a fronteira de gênero. A fleuma das meninas e a agitação dos meninos constituíam fundamentos básicos de diferenciação entre a feminilidade e a masculinidade, acionados e requeridos. A repressão moral infligida condicionava uma visão de menina “normal”, atrelada às qualidades femininas mais idealizadas como ser “calma”, “educada” e “gentil”. Essas avaliações de conduta operam na reprodução e naturalização do caráter distintivo do gênero e dos arranjos institucionais que o sustentam. À medida que demandam o reposicionamento de acordo com a crítica, constituem um trabalho contínuo de aprendizagem de normas e valores tradicionais ligados ao gênero.

Muitas vezes o diretor, a coordenadora pedagógica e a inspetora Carmen usavam as palavras “mocinha” e “lady” para se referir ao bom comportamento das garotas. A agressividade, indisciplina e certa lascívia por meninas eram fortemente condenadas. Disso decorre a busca das meninas por se precaver de possíveis situações embaraçosas ou de serem rotuladas como “alunas problemáticas”. O destaque conferido a esse tipo de conduta ecoava no acirramento da oposição constitutiva da feminilidade (boa/má), terminando por atrofiar as possibilidades de modo de ser das adolescentes, limitando-as a essas representações polares. Como Youdell (2006)Youdell, D. (2006). Impossible bodies, impossible selves. Dordrecht: Springer. apontou, as subjetividades disponíveis para meninas nos contextos escolares tendem a se caracterizar pela proscrição de comportamentos.

Esse binarismo marcou os discursos de meninas e meninos, influenciando suas condutas perante os modos de feminilidade produzidos neste contexto. Em geral, as meninas assumiam um discurso mais conservador, com centralidade do componente moral na construção de assimetrias entre elas. Prevalecia o polimento e a censura pública de atos e falas que excediam o padrão normativo feminino. Igualmente, entre os garotos imperava a defesa de alinhamento das garotas ao modelo social idealizado (estereótipo criado) de feminilidade, o que resultava na cobrança intensa de uma conduta pudica. Segundo eles, a menina que “serve para namorar” deve ser “reservada, educada e delicada”, critérios que lembram os atributos socialmente convencionados de uma boa esposa.

Em contraste, na instituição soteropolitana sobressaía maior liberdade de ação e expressividade dos estudantes. A direção adotava uma relação dialógica e postura mais complacente não apenas na resolução de conflitos, mas sobretudo no entendimento do ser adolescente em suas questões existenciais, familiares, comunitárias e sociais. É o que demonstra esta fala do diretor Matias:

Em sua casa, você tem um filho, tem um sobrinho na fase da adolescência, alguma coisa acontece, você larga de mão? Você expulsa? Você manda pra fora de casa? Por que é que a escola tem que tomar essa decisão? Essa é a grande divergência que eu tenho [com os professores]. Eu antes de chegar ao extremo procuro conversar, ouvir, entender, chamo a família, vamos partilhar, vamos dar condições de [o estudante] mudar… Têm uns meninos que chegam aqui que a gente só precisa dar um abraço, conversar e ele chora.

Nos diálogos com os professores foram recorrentes as críticas a esse modelo de gestão, considerado moroso na resolução dos casos de indisciplina e “muito favorável aos estudantes”. Eles se sentiam desautorizados com a prática de escuta aos discentes, que deveriam tentar resolver o conflito junto com o professor. Apontando falta de rigor e do cumprimento das regras punitivas pela direção, os professores defendiam que o correto seria aplicar punições disciplinares mais rigorosas: “na primeira vez, chama a atenção do aluno, na segunda vez, suspende logo, sem deixar pra depois, sem passar a mão pela cabeça dos estudantes”, sentenciou Candela, coordenadora pedagógica.

A divergência no trato com os estudantes ecoa também na diferença de acessos e relações estabelecidas entre eles, os professores e a direção. Os frequentes olhares de reprovação, encaminhamentos para a diretoria e reprimendas verbais dos docentes geravam entre as garotas uma contraofensiva de escárnio e indisciplina. As interações com o diretor Matias e o vice-diretor Martim costumavam ser mais fluidas, resultando em desfechos de conflito mais eficazes. Os casos de indisciplina relacionados à sexualidade não costumavam integrar o escopo de atuação disciplinar da direção, que se centrava na prevenção à violência. Ainda que julgasse “algumas atitudes excessivas”, Matias considerava a afirmação sexual das meninas um fato cultural que a instituição escolar precisa aprender a assimilar. Não se trata, portanto, de um problema posto ou situação a ser remediada. Às ocorrências encaminhadas, seguia-se um conselho para que as adolescentes buscassem estabelecer uma relação mais aberta com as mães, compartilhando dúvidas e experiências em prol de um desenvolvimento sexual mais salutar.

Assim, apesar de muitos professores exercerem controle sobre os comportamentos das discentes considerados indisciplinados e/ou sexualizados, sua ação era relativizada por esse estilo de gestão disciplinar. Ademais, verifiquei que eles restringiam o contato com os estudantes a lecionar em sala de aula, pois havia claro distanciamento interpessoal entre professores e alunos. Em clima de desmotivação profissional, vários deles faltavam ao trabalho com regularidade. Além do absenteísmo, tinham como prática recorrente aproveitar aulas vagas em turmas que dariam aula na sequência para passar atividades a serem desenvolvidas pelos estudantes (sozinhos) na sala. Estes se dispersavam, faziam bagunça e movimentavam-se com liberdade pela escola.

Aliás, os estudantes costumeiramente “filavam aula” no pátio ou saíam da aula e passavam largo tempo fora. As atribuições das inspetoras como “auxiliares de disciplina” envolviam vigiar e mediar conflitos. Entretanto, pesava a condição delas como funcionárias terceirizadas, vinculadas a empresas que constantemente atrasavam pagamento, chegando a ficar meses sem receber salários. Essa dinâmica gerou um sentimento de desvalorização profissional, convertido em desmotivação e desinteresse pelo trabalho. Tal circunstância possibilitava mais momentos de interação entre os adolescentes, que não se sentiam sob uma fiscalização diligente. As inspetoras, que não exerciam controle regular, apenas observavam as interações entre eles.

Esses referenciais localmente convencionados são importantes, pois ensejam a inteligibilidade de significações de gênero e performances admiráveis e bem realizadas para as adolescentes em cada contexto. Em Salvador, a condução da disciplina escolar oscilava entre situações de cerceamento, mas principalmente de desregramento e atuações mais liberais, propiciando aos estudantes estabelecerem relações de proximidade e uma conduta sexual mais aberta. Essa perspectiva conferia maior leveza no trato da sexualidade, que aparecia mais articulada com a sua dimensão lúdica e de poder de expressão.

Desse modo, as normas de etiqueta feminina mencionadas pelos garotos paulistas não foram referidas pelos soteropolitanos, que salientavam o comedimento sexual. Neste ambiente, as interações heterossociais permeadas de “gaiatice” demandavam maior desinibição por parte de meninas e meninos. A aparência doce ou pura remetia a “chatice”, dificuldades de construir “boas amizades” e “curtir” o momento. Essa forma de relacionamento parecia afrouxar a exigência (ou os contornos) da conduta feminina idealizada, que demanda das garotas certo nível de seriedade e lealdade.

Em decorrência, há um cenário onde as adolescentes dispõem de maiores possibilidades de manipular os significados imputados às categorias de menina e de negociar diversas composições de comportamento, a partir da leitura que faziam da situação ou do interesse em voga. Cada posição de sujeito apresentava práticas e condutas marcadamente ambíguas e/ou ambivalentes. A menina “normal” afirmava a conformidade a uma conduta feminina normativa, mas sem inocência; era preciso demonstrar astúcia, assertividade e valentia para não ser rotulada como “boba”. A quietude era percebida como um qualificativo potencialmente arriscado em um ambiente onde o conflito é forma comum de interação social. Trata-se de uma espécie de preceito nas relações homossociais: parecer fraca é ser fraca. Como disse Isabel, de 13 anos, “se uma coisa acontece, você resolve, senão montam em você”. Já a menina “atirada” afirmava o direito à iniciativa e expressão do desejo no âmbito sexual, enquanto a “evoluída” buscava sobrevalorizar sua independência, atitude e capacidade de agir. Esta representação põe em evidência um discurso de poder sobre si, que, por sua vez, relaciona-se à vivência da sexualidade. Visando transgredir a noção de feminino apropriado, as garotas evoluídas estabeleceram um binário de oposição passividade/coragem, conferindo à “atitude” e à “coragem” um senso moral de valor superior. Entre as adolescentes mais velhas, a alcunha “plantada” realçava a maturidade daquelas que já haviam se descolado de códigos culturais da infância, tornando-se jovens “assentadas”.

Essas posições de sujeito menina mostram a dimensão da agência delas no espectro de possibilidades contextuais que delimitam as experiências de construção da identidade de gênero. Vislumbrar os prismas da agência na internalização de normas sociais objetivamente manifesta como esse processo de socialização é dinamizado pela maior expressão da subjetividade das meninas, com a elaboração de performances e a habilidade de ressignificar discursos e práticas heterossexuais.

De fato, performances não são monádicas, mas relacionais e constantemente transversalizadas por outras divisões e projetos, configurando relações complexas de aderência, rejeição e manipulação. As subjetividades disponíveis às meninas podem ser alargadas e flexibilizadas, mas sob as referências restritivas de estereótipos femininos. A regulação da sexualidade relaciona-se à internalização de riscos implicados nos comportamentos inadequados. O discurso centrado na reputação sexual não fornece meros rótulos descritivos, mas posições de sujeito que convidam as adolescentes a olhar e compreender seu mundo social de maneiras específicas. A exibição de atributos da feminilidade convencional está associada à aceitação social. Nesse sentido, não se deve articular a questão de sua agência a uma discussão simplista de escolha.

Considerações finais

Em um fluxo oscilante, ideais e exigências de comportamento e corporeidade femininos são continuamente negociados e rearranjados. O controle exercido pelos adultos da escola se assenta no juízo de que a vivência da sexualidade pelas adolescentes é um problema e no constrangimento que eles tentam impor, com suas convicções sobre o que é certo ou errado, ao conjunto dos estudantes.

Os discursos desses atores institucionais parecem calcados na ideia de manter as meninas como crianças ingênuas, despojadas de sexualidade. A expressão do interesse sexual por parte das adolescentes é algo difícil de lidar, por ser considerado perigoso e obsceno. Dessa forma, a sexualidade feminina é subjetivamente construída entre prazer, desejo, medo e risco, particularmente da gravidez e da perda de reputação.

Ao passo que em décadas anteriores as mulheres se casavam muito jovens, hoje é esperado que elas obtenham educação formal e ingressem no mercado de trabalho antes de contraírem matrimônio e terem filhos. A extensão da infância até a adolescência foi acompanhada por uma reconfiguração do sexo e da sexualidade para os jovens. Esses temas se tornaram controversos, especialmente quanto à idade em que uma menina é considerada madura o suficiente para praticar relações sexuais. Essa noção etária de consentimento se baseia na suposta incapacidade dos adolescentes de fazerem uma escolha informada sobre o início da vida sexual.

Em verdade, a visão distinta acerca dos desempenhos sexuais de meninos e meninas insere-se nas normas culturais sobre sexualidade, refletindo estereótipos de gênero e expectativas comportamentais. De acordo com os atores institucionais participantes deste estudo, nota-se certa transgressão dos papéis femininos tradicionais quando as adolescentes priorizam a autonomia e a assertividade em scripts sexuais centrados no corpo, que aludem a ações dirigidas para a satisfação do próprio prazer e concebem a sexualidade proativa como um meio de constituir-se sujeito de direitos.

Em geral, a sexualidade das adolescentes era reconhecida nos contextos observados, mas negava-se sua subjetividade e agência sexual. O silenciamento de quaisquer debates sobre prazer e desejo sexual contrasta com as maciças discussões sobre gravidez e contracepção. Apesar dos ganhos reais do feminismo nos direitos reprodutivos e na libertação sexual, as táticas de silenciar e difamar o desejo e a agência sexual das mulheres permanecem profundamente enraizadas. Nessas tramas relacionais, o gênero é cotidianamente constituído. Em movimentos de ação e reação, a socialização inculca as expectativas culturais que orientam o permitido e o proibido, o próprio e o impróprio à feminilidade e à masculinidade normativas, tornando-as inteligíveis.

  • 1
    A pesquisa contou com financiamento do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), mediante bolsa de doutorado, e da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) com bolsa de doutorado sanduíche.
  • 2
    Normalização, preparação e revisão textual: Mônica Silva (Tikinet)
  • 3
    De acordo com Attwood (2006)Attwood, F. (2006). Sexed up: Theorizing the sexualization of culture. Sexualities, 9(77), 77-94., a sexualização da cultura tem como lastro: o papel dos mass media na disseminação de linguagem e estilos considerados obscenos e “sujos”, resultando na aparente quebra de regulamentos e categorias morais; as transformações das relações afetivo-sexuais, que assumem formas mais fluidas, líquidas; a maior permissividade do espaço público às atitudes sexuais, reestruturando a noção de intimidade; e o lugar mais central ocupado pelo sexo nos “projetos de si”.
  • 4
    O pós-feminismo é caracterizado como uma apropriação do discurso feminista pela ideia de libertação sexual das mulheres. O posicionamento das mulheres como livres e empoderadas opera uma mudança radical em um discurso outrora centrado na dominação masculina (Gill, 2007Gill, R. (2007). Postfeminist media culture: Elements of sensibility. European Journal of Cultural Studies, 10(2), 147-166.).
  • 5
    Os nomes dos sujeitos participantes do estudo e das instituições de ensino citados neste artigo são fictícios para assegurar seu anonimato, de acordo com as normas de ética em pesquisa envolvendo seres humanos.
  • 6
    Por subjetividade sexual entendo a experiência e identidade de uma pessoa como ser sexual, que se sente com direito ao prazer sexual, capaz de fazer escolhas sexuais ativas, como definiu Tolman (2002)Tolman, D. (2002). Dilemmas of desire: Teenage girls talk about sexuality. Cambridge: Harvard University Press..
  • 7
    O bullying entre meninas inclui ameaças de expulsão do grupo; isolamento sistemático, como medida de retaliação; retirada intencional da amizade para magoar e demonstrar poder; e propagação de rumores difamatórios para fomentar a rejeição grupal a determinada garota.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    16 Set 2019
  • Data do Fascículo
    2019

Histórico

  • Recebido
    05 Jul 2017
  • Revisado
    22 Nov 2017
  • Aceito
    14 Fev 2018
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