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O discurso da mídia das instituições privadas de Ensino Superior e a produção do sujeito universitário1 1 Apoio: Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES)

Resumo

Neste artigo, tomam-se como materialidade as campanhas publicitárias, as postagens e as palestras de três instituições privadas de Ensino Superior, dispostas no facebook e no youtube no período de 2008 a 2015, para identificar o que se nomeia discurso da mídia universitária. Também interessa saber como a mídia universitária age em relação ao estudante do Ensino Superior privado. Para isso, inicialmente, retoma-se a noção de discurso em Michel Foucault e defende-se que o discurso da mídia tem a função de produzir e assimilar capacidades técnicas, induzir efeitos de poder e disponibilizar verdades. A partir das discussões de Foucault sobre o neoliberalismo, argumenta-se que esse funcionamento se dá por meio de uma teia discursiva que associa pelo menos três discursos: mercado, política e aprendizagem. Ao analisar a materialidade à luz das teorizações aqui referidas, constata-se que o discurso da mídia universitária produz um tipo específico de sujeito universitário: o sujeito empreendedor de si.

Palavras-chave
discurso; mídia; sujeito universitário

Abstract

In this article, we take as materiality the publicity campaigns, postings and lectures of three private higher education institutions, arranged on facebook and youtube during the period from 2008 to 2015, to identify what we call the university media discourse. We were also interested in how the university media acts on the private higher education student. For this, initially, we return to the notion of discourse in Michel Foucault, arguing that the discourse of the media has the function of producing and assimilating technical capacities, inducing effects of power and making truths available. From Foucault's discussions on neoliberalism, we argue that this work takes place through a discursive network that associates at least three discourses: market, politics and learning. Analyzing the materiality, we find that the discourse of the university media produced a type of university subject: The self-entrepreneur.

Keywords
discourse; media; university subject

Introdução

É pouco provável que qualquer pessoa que tenha acesso à internet, à televisão ou simplesmente caminhe pelas ruas de uma cidade de porte mediano não se depare com algum tipo de informação relativa ao estudante do Ensino Superior.

Essa disseminação massiva, essa vontade incessante de falar sobre o Ensino Superior perpassa atualmente diversas instâncias da vida. No âmbito cultural, por exemplo, vemos emergir um estilo musical denominado “sertanejo universitário”; as novelas também retratam histórias de estudantes universitários, seu dia a dia, suas trajetórias;2 2 Um exemplo recente dessa imagem do universitário apareceu na novela Império, da Rede Globo, na qual a personagem Cristina (interpretada pela atriz Leandra Leal) fazia o papel da menina pobre que buscava se formar e aparecia em diversas cenas falando da vontade de terminar a faculdade para se realizar profissionalmente. Um dos capítulos mostra Cristina como oradora da turma, momento em que aparece o merchandising de uma instituição privada. os documentários acompanham a saga dos universitários em período de vestibular, destacando a vida de pessoas que trabalham, moram distante e estudam à noite; os programas televisivos de entretenimento, como o Show do Milhão, do SBT, oferecem aos participantes a alternativa de solicitar a ajuda dos universitários para responder perguntas de conhecimento geral; mais recentemente, os estádios de futebol têm comportado, lado a lado, merchandising de faculdades e de grandes empresas.

Se vamos às ruas, a representação do universitário na publicidade estará estampada na traseira de ônibus, em outdoors e cartazes em espaços diversos e até mesmo na camiseta de um aluno que informa o curso e a faculdade que frequenta.

Mas, além das ruas, dos espaços de entretenimento, dos bancos com suas contas específicas para universitários e dos muitos programas/revistas/jornais que não cessam de falar sobre o sujeito universitário, há um espaço privilegiado para essas produções: as mídias das instituições de Ensino Superior particulares (IESP).

Quem adentrar esse campo irá se deparar com espaços institucionais muito ricos em termos de produção de ideias, informações, formação e valores que circulam nas mídias sociais, por meio da utilização de múltiplos recursos, como blog. twitter. facebook. youtube. linkedin e Google+.

Para este artigo, escolhemos o facebook e o youtube como espaços privilegiados para guiar nossas reflexões. Dentro de um universo de instituições privadas que se utilizam desses recursos, optamos por investigar três delas, a saber, Anhanguera, Faculdade Pitágoras e Unopar, todas ligadas ao Grupo Kroton Educacional. Tal escolha foi definida especialmente pela multiplicidade de conteúdos publicados em suas mídias e por interessarem à pesquisa.

Estabelecendo um recorte temporal, buscamos, no youtube das três instituições, materiais publicados no período de 2008 a 2015.3 3 A escolha do período se justifica em razão de o conjunto de materiais disponíveis datar dessa época. Contudo, não é possível afirmar que essas materialidades tenham começado a circular naquele momento. Como os conteúdos virtuais podem ser “retirados do ar” a qualquer momento, organizamos uma espécie de banco de dados no qual estão compilados todos esses materiais. Da mesma maneira, fizemos o levantamento das postagens no facebook de 2011 a 2015.4 4 O mesmo movimento foi realizado com os materiais encontrados no Facebook. Nesses materiais, focamos, nos vídeos das campanhas publicitárias, palestras e postagens que falavam sobre o sujeito universitário.

Do youtube, foram analisados 58 vídeos publicitários, 03 palestras de professores, 16 vídeos produzidos por alunos dessas instituições ou que falavam sobre os trabalhos realizados por eles. Do facebook, foram analisadas 157 postagens dos anos mencionados. Cabe registrar que, neste artigo, não exploraremos sistematicamente a materialidade selecionada; faremos uma análise mais genérica sobre ela. Vale ainda dizer que tal materialidade ultrapassa centenas (talvez milhares) de produções, distribuídas nas mídias dessas três instituições. Todavia, o material aqui privilegiado serviu de base para a análise do discurso que pretendemos mostrar mais adiante.

Adiantamos que a análise do discurso que o presente texto privilegiará é aquela inspirada nos estudos foucaultianos, em razão de nos interessar saber como um determinado discurso se produz e, concomitantemente, produz instituições, saberes e sujeitos, a fim de atender certas exigências sociais, políticas e econômicas. Defendemos o argumento de que a mídia universitária já se constituiu em um discurso especializado, que age por meio de outros discursos associados (mercado, política e aprendizagem) e produz um sujeito específico: o universitário empreendedor de si.

Com o propósito de discutir essas questões, este texto pretende, primeiramente, recuperar a noção de discurso em Michel Foucault, para estabelecer as conexões teóricas necessárias ao que estamos nomeando de discurso da mídia universitária. Em seguida, pretende revelar, por meio da materialidade investigada, como a mídia universitária age sobre o estudante universitário do Ensino Superior privado. Por fim, tentaremos mostrar a formação do sujeito que ela inventa: o universitário empreendedor de si.

A noção de discurso em Michel Foucault

O discurso, em Michel Foucault, diz respeito a relações de poder historicamente constituídas, produtoras de saberes, instituições e sujeitos. Quando Foucault estudou as prisões, por exemplo, ele descreveu e analisou como relações de poder historicamente localizadas sobre os prisioneiros retiraram deles um saber (o direito penal), uma instituição (a prisão) e, ao mesmo tempo, produziram um sujeito (o delinquente); formava-se, então, o discurso da disciplinarização dos corpos. Quando pesquisou a loucura, ele nos mostrou como se retirou dos corpos dos enfermos um saber (a psiquiatria), uma instituição (o hospital) e um sujeito (o doente mental); formava-se o discurso psiquiátrico. Ele identificou que o mesmo processo ocorreu com a medicina moderna e com a sexualidade.

O filósofo francês, em seu livro Arqueologia do saber (2000aFoucault, M. (2000a). A arqueologia do saber. Rio de Janeiro: Forense Universitária.), nos diz, de maneira muito generosa, o que o discurso não é: ele não é uma sentença que constitui uma frase, uma oração, uma proposição ou uma anunciação; não é algo que vem da força de uma tradição, evolução ou influência de uma coisa sobre outra. Não se trata de justificar as coisas pela sua causalidade ou transcendência. Pelo contrário, trata-se, antes, de mostrar as práticas e as batalhas com os sujeitos envolvidos e sobre eles.

Além disso, para Foucault (2000a)Foucault, M. (2000a). A arqueologia do saber. Rio de Janeiro: Forense Universitária., o discurso também não se encerra dentro das grandes verdades tão aplaudidas na atualidade: ciência, religião, literatura, filosofia, arte, razão pela qual ele diz que o discurso não está encerrado em um livro e nem pertence a um autor. O discurso também não é um “já dito” e nem um “jamais dito”. Não é um “já dito”, porque não é a repetição de algo que desde sempre está aí e volta inadvertidamente. Não podemos dizer, por exemplo, que a luta de classes existia desde o mundo grego e que ela se reatualiza permanentemente até os dias de hoje. Também não é um “jamais dito”, ou seja, um mistério que o sujeito ou o mundo trazem consigo.

Se for possível, então, nos libertarmos de todos esses temas que têm circundado o que se chama de discurso, se for possível realizar esse trabalho de negação, poderemos, enfim, atribuir-lhe outras marcas, dentre elas a mais importante: o princípio da finitude.

Para Foucault (2010a)Foucault, M. (2010a). Resposta a uma questão. In M. Foucault, Ditos e escritos VI-Repensar a política. Rio de Janeiro: Forense Universitária., tal princípio diz respeito ao fato de que um discurso é próprio de cada tempo e de certas relações de poder e saber que o constroem. Por exemplo, só é possível falar de discurso médico no século XIX; antes não se pode atrever a dizer isso. O mesmo podemos dizer em relação ao discurso da loucura ou ao discurso pedagógico, ou seja, não podemos falar desses discursos em qualquer momento da história. Esse mesmo entendimento vale para o discurso midiático, que só pode ser citado a partir da passagem para o século XX. Antes era impossível dizê-lo, uma vez que as condições de possibilidade para tal não existiam.

Dessa maneira, o princípio da finitude exige outro princípio, o da individualização (ou isolamento) do discurso. Isolar um discurso não significa ofertar-lhe uma unidade, mas, no máximo, unidades provisórias (no plural), uma vez que ele é poroso e constituído por redes ou constelações discursivas. Contudo, os discursos possuem pontos de ancoragem que evidenciam a sua existência, mas elas não são exatamente os conceitos, as noções, as disciplinas científicas, nem os temas que se repetem num certo tempo. Mais do que isso, as ancoragens de um discurso são os enunciados, que são múltiplos e dispersos, e, por meio das relações de poder e saber, produzem acoplamentos entre si.

Nessa direção, Foucault parece, então, nos propor duas pistas para adentrar o mundo dos discursos: a formação dos enunciados e as relações de poder-saber. No que tange aos enunciados, podemos dizer que eles são atos de verdade, produzidos por forças endereçadas, que funcionam no interior de certa prática social, oferecendo sua existência. Por exemplo, quando se escuta dizer, no campo da educação, que se deve educar a partir do interesse da criança, é claro que isso nos parece familiar e, ao mesmo tempo, nos exige ser colocado em prática. A existência de um enunciado como esse integra todas as orientações pedagógicas desde o início do século XX.

Quanto às relações de poder-saber, notamos, em primeiro lugar, que elas são nomeadas no plural porque Foucault se afasta do entendimento comum de que o poder é uma unidade maciça e o saber, um a priori transcendental. O poder, no singular, não existe para Foucault. Há uma multiplicidade de poderes, pois, não sendo uma unidade, o poder não é o Estado, nem a economia, nem a classe, nem a propriedade, nem a repressão, etc.; ele circula entre essas unidades e produz realidades específicas. O saber, por sua vez, é o resultado das relações de poder. Porém, saber e poder mantêm relação perpétua: enquanto um é a ação sobre o indivíduo, o outro é a subjetividade em exercício. “Não é possível que o poder se exerça sem saber, não é possível que o saber não engendre poder” (Foucault, 2000bFoucault, M. (2000b). Microfisica do poder. Rio de Janeiro: Graal., p. 142).

Descrever as relações de poder-saber e seus enunciados nos ajuda a chegar aos próprios discursos, localizá-los e verificar o seu funcionamento, seus saberes, suas instituições e seus sujeitos; é, também, por assim dizer, o meio pelo qual se localiza a própria dispersão dos discursos, uma vez que, ao descrever e analisar os enunciados, percebemos que eles provêm de múltiplos lugares. A dispersão assim localizada pode mostrar de onde vem certa prática e quais são as relações discursivas possíveis. Ora, neste caso específico, como foi possível a mídia ter sido conduzida para o interior das instituições de ensino?

A esta altura, já percebemos que o discurso é o conjunto geral das relações que os enunciados mantêm com outros enunciados, sustentados por relações de poder e saber específicas, verificadas nas práticas dos sujeitos. O discurso, assim entendido, se ocupa com os ditos devidamente pronunciados ou praticados pelos sujeitos, vindos das mais variadas situações da prática social, política, econômica e cultural, formalizando diversas filiações, enquanto nega outras. Esta é a razão pela qual, como já dissemos, o discurso não se ocupa com o “já dito” nem com o “jamais dito”, e sim com os “ditos” efetivamente pronunciados, a fim de construir os limites seguros com os quais será capaz de negociar.

Segue-se a isso seu reverso, ou seja, as instabilidades sofridas pelos discursos, uma vez que “onde há poder há resistências” (Foucault, 1988Foucault, M. (1988). História da sexualidade I: a vontade de saber. Rio de Janeiro: Graal., p. 91), embora, diga-se de passagem, elas nunca estejam em “posição de exterioridade em relação ao poder” (p. 91). Isso significa que, contra os discursos, há uma série de resistências e de lutas que podem ser intensas, brutais, mas também espontâneas e sutis. Elas podem vir das mais distintas direções e não eliminam o discurso; antes, o colocam em relação estratégica com o poder.

Na medida em que os enunciados se constituem e produzem saberes, poderes e sujeitos, estabelecendo relações possíveis e também resistências, podemos chamá-los de discursos propriamente ditos. Partindo dessa premissa, podemos afirmar que, nos últimos séculos, vários discursos se constituíram: o discurso médico, o discurso psiquiátrico, o discurso da sexualidade, o discurso pedagógico e, no nosso caso, o discurso midiático.

O discurso midiático

De antemão, podemos dizer que as condições de possibilidade do discurso midiático estão circunscritas às relações de poder sobre as populações. Elas são inúmeras, e não temos espaço neste artigo para sua discussão. Porém, basta lembrar as lições de Benjamin (1994)Benjamin, W. (1994). Magia e técnica, arte e política-ensaios sobre literatura e história da cultura. Obras Escolhidas. São Paulo: Brasiliense. e Umberto Eco (2016)Eco, U. (2016). Cinco escritos morais. Lisboa: Relógio D'Água., quando descrevem a divulgação dos eventos políticos pelas mídias, em especial no que diz respeito às guerras, mas também às doenças, às campanhas de saúde, às descobertas científicas, sem esquecer as formas de entretenimento que os governos utilizaram para controle das populações, sobretudo a partir de meados do século XIX.

Foucault (2002, p. 224)Foucault, M. (2002). Vigiar e punir: nascimento da prisão. Petrópolis: Vozes. afirma que essas foram as condições que habilitaram o jornalismo do século XIX a inventar uma forma poderosa de olhar as populações: as media (para nós, as mídias5 5 Trata-se, portanto, de um tipo de organizador da linguagem, um medium, no qual e pelo qual se instaura uma “disciplina do diálogo pelo poder” (Cabral, 1997, p. 16). ), isto é, os meios pelos quais se passou a conduzir a conduta das massas. Inicialmente, no século XVIII, as tecnologias de comunicação de massa utilizadas para esse fim foram a imprensa e as edições (os livros). Nos séculos XIX e XX, contudo, foram o cinema, o rádio e a televisão. A comunicação do século XVIII, diz Foucault, ignorava o fato de que os “media [da época] seriam [no segundo tempo] necessariamente comandados por interesses econômico-políticos” (p. 224); não seriam meios livres de controle, posto que são “uma materialidade que obedece aos mecanismos da economia e do poder...” (p. 224).

Ocorre que, se as mídias obedecem à economia e ao poder, elas, por outro lado, compõem uma dinâmica mais complexa do que mera subordinação. Em seu texto O sujeito e o poder, Foucault (2010b)Foucault, M. (2010b). O sujeito e o poder. In H. Dreyfus, & P. Rabinow, Michel Foucault-uma trajetória filosófica-Para além do estruturalismo e da hermenêutica. Rio de Janeiro: Forense Universitária. diz haver poderes exercidos sobre as coisas (capacidades técnicas, trabalho); poderes exercidos entre os indivíduos (ação dos homens e ação sobre os homens); e poderes exercidos por meio da comunicação (signos, comunicação, sentidos). Demonstra que esses três poderes (de capacidade, de ação sobre os homens e de comunicação) não são redutíveis uns aos outros, mas não são separados; pelo contrário, estão imbricados. De maneira que uma instituição escolar, por exemplo, como o próprio autor a caracteriza, do ponto de vista das coisas, organiza-se espacial e temporalmente; do ponto de vista dos indivíduos, ela vigia, ordena, disciplina; do ponto de vista da comunicação, ela dispõe saberes, programas e lições. Na compreensão do autor, a especificidade do poder moderno é ajustar esses três tipos de exercício de poder, isto é, ajustar “atividades produtivas, redes de comunicação e relações entre os indivíduos” (p. 286).

Se esses poderes não são redutíveis e estão imbricados, é porque eles “se apóiam reciprocamente e servem mutuamente de instrumentos” (Foucault, 2010bFoucault, M. (2010b). O sujeito e o poder. In H. Dreyfus, & P. Rabinow, Michel Foucault-uma trajetória filosófica-Para além do estruturalismo e da hermenêutica. Rio de Janeiro: Forense Universitária., p. 284). Exemplifica o filósofo que a aplicação de capacidades técnicas específicas (sobre as coisas) implica relações de comunicação e de informações e liga-se a relações de poder por tarefas obrigatórias, como as subdivisões de tempos e espaços. As relações de comunicação, por sua vez, implicam capacidades técnicas e induzem efeitos de poder porque modificam o campo de informação dos outros; por seu turno, as relações de poder se dão pela produção e pela troca de informações e se materializam e se divulgam por meio de capacidades técnicas específicas. Foucault diz, ainda, que não há uma coordenação uniforme e constante sobre essas três relações, nem equilíbrio possível; diante dos acontecimentos políticos, históricos, culturais, sociais, é possível ver a constituição de blocos nos quais o ajuste entre essas relações pode constituir “sistemas regulados e concordes” (p. 285). Assim, as capacidades técnicas (poderes sobre as coisas), a comunicação e as relações de poder são recíprocas, específicas e simultâneas.

Se tivermos que pensar a mídia a partir desses três exercícios do poder, podemos dizer o seguinte: a mídia é um dos elementos que constituem as relações de comunicação e se tornou um bloco distinto e relacionado aos demais poderes, por isso mantém íntimas relações com a comunicação em geral, com o governo das pessoas e com a produção dos aparatos tecnológicos. Sua função é: 1) produzir e assimilar capacidades técnicas sofisticadas (desde jornais, rádio, televisão, depois computadores e, hoje, internet, laptop. smartphones, etc.); 2) induzir efeitos de poder, à medida que modifica o campo de informação entre pessoas e grupos; 3) disponibilizar as verdades por meio das quais os sujeitos se ligam em função de seus interesses. Dito de outra maneira, a mídia congrega técnicas diversas, isto é, capacidades tecnológicas sofisticadas, tanto para produzir a informação quanto para instruir as pessoas no uso dessas mesmas tecnologias e informações; oferece a comunicação propriamente dita, por meio de publicidades e propagandas que modificam ou alteram as informações das pessoas; e, dados os diferentes interesses dos sujeitos, da política e dos mercados, ela se tornou o locus privilegiado a ser buscado para fins de dominação ou contradominação política, econômica, cultural e social.

Enfim, a mídia é um dispositivo técnico, comunicacional e de poder. Age, como podemos deduzir, a partir das relações que mantém com o discurso pedagógico, na medida em que tem a pretensão de ensinar; com o discurso tecnológico, porque necessita das tecnologias e de seu consumo; com o mercado, porque participa da construção de ofertas e demandas tecnológicas e de trabalho; com o discurso político, porque se atribui a tarefa de governar a população. Decomposto esse discurso, podemos dizer que os outros nomes da mídia são, pelo menos, aprendizagem, mercado e governo de população; podemos, enfim, dizer que esses são os enunciados com os quais a mídia se constrói e negocia.

Dito isso, nos perguntamos: como a mídia age especificamente nas Instituições de Ensino Superior Privadas (IESP) e que sujeito ela configura? O nosso argumento é que, dentre outras possibilidades, ela age, por um lado, inventando um estudante universitário baseado na figura do artista e, por outro lado, produzindo, a partir de noções como interesse, aprendizagem e sucesso, um universitário empreendedor de si.

A invenção do sujeito universitário artista

Para melhor delimitação, dividimos este tópico em dois: o primeiro é formado por um conjunto de figuras visíveis, ou seja, figuras que têm prestígio no espaço midiático e social em função de uma carreira bem-sucedida ou por ocuparem espaços/cargos de importância na sociedade. O segundo é constituído por um conjunto de figuras em busca de visibilidade, que são aquelas pessoas que, apesar de aparecerem na mídia, não desfrutam, a rigor, de visibilidade e prestígio social. As figuras visíveis são os famosos, os desportistas, os apresentadores de televisão e os administradores/empresários. As figuras em busca de visibilidade são os alunos e os professores das próprias IESP.

Figuras visíveis da iteração artística universitária

A mídia universitária convida os artistas famosos para falarem em diversos momentos institucionais, mas, sobretudo, utiliza sua imagem em suas publicidades. Essa prática foi mais bem localizada nas faculdades Anhanguera e Unopar. A Anhanguera foi a precursora na utilização dessa estratégia: nas campanhas de 2008 já contava com os apresentadores da TV Record Ana Hickmann, Brito Jr. e Edu Guedes. Em uma peça publicitária, eles aparecem narrando os mais diversos scripts, por exemplo:6 6 Para facilitar a localização dos dados, utilizamos uma descrição que segue três elementos: a inicial do nome da instituição (Anhanguera, Unopar, Pitágoras), o ano da publicação e as abreviações “Yt” para Youtube e “Fb” para Facebook. “livros com até 80% de desconto é só aqui” (A/2008-1/Yt)7 7 Recuperado em 10 de maio de 2015, de < https://www.youtube.com/watch?v=3-sK2VESjPk >. ; “aqui os laboratórios têm as maiores notas da avaliação do MEC. Já pensou você estudando aqui?” (A/2008-2/Yt).8 8 Recuperado em 10 de maio de 2015, de <https://www.youtube.com/watch?v=7Go1MzlW6Fg>.

A Unopar, por sua vez, utiliza a imagem de atores globais desde 2011, especificamente os galãs de novelas. Nesse mesmo ano, por exemplo, o ator Malvino Salvador apareceu afirmando que “o sucesso não tem fronteiras” e que “você é soma de tudo que aprende”. Em 2013, o garoto propaganda passou a ser Reynaldo Gianecchini, que repetia incessantemente frases como: “a hora de ter o seu diploma é agora... porque ela é diferente, ela é próxima” ou “Unopar, mais próxima pra você ir mais longe” (U/2013-1/Yt).9 9 Recuperado em 25 de agosto de 2015, de < www.youtube.com/watch?v=pg5HOoVR3E4>.

Mas não é só nas peças publicitárias que essa figura do ator famoso emerge; eles também estão presentes em palestras, seminários e eventos diversos. Muitas vezes, são recebidos presencialmente em um dos polos de educação dessas faculdades, e a visita é transmitida para outras unidades. Além da transmissão, há também a gravação de falas que, posteriormente, são disponibilizadas nos ambientes virtuais, como o youtube. Foi o caso da palestra intitulada Segredos de uma carreira de sucesso, proferida pelo ator e apresentador Rodrigo Faro, da TV Record. Em um pequeno vídeo postado no facebook, o palestrante foi apresentado da seguinte maneira: “Com talentos múltiplos, Rodrigo Faro começou a carreira ainda na infância como ator e cantor e é considerado um dos maiores apresentadores da TV brasileira na atualidade” (A/2015-1/Fb).10 10 Recuperado em 25 de janeiro de 2015, de <facebook.com/pg/AnhangueraEdu/posts/?ref=page_internal>. São notórias e recorrentes as ideias de tamanho, grandeza e sucesso daquele que vem falar ao público discente. No caso específico da referida palestra, o tema girou em torno da vida pessoal de um artista que havia atingido o reconhecimento do público e que deixou um recado para os alunos: “Faça diferente! Estude e se aperfeiçoe!” (A/2015-1/Fb).11 11 Recuperado em 25 de janeiro de 2015, de<facebook.com/pg/AnhangueraEdu/posts/?ref=page_internal"facebook.com/pg/AnhangueraEdu/posts/?ref=page_internal">facebook.com/pg/AnhangueraEdu/posts/?ref=page_internal>.

Quanto à figura de desportistas, a Unopar foi a precursora nesse recurso, colocando atletas olímpicos nas publicidades desde 2008. Para se ter uma ideia de como isso ocorre, em uma dessas campanhas aparecia o atleta Diogo Silva12 12 Diogo Silva era aluno da Unopar na época da propaganda. Ganhou medalha de ouro no taekwondo nos Jogos Pan-americanos de 2007. caminhando por um laboratório de informática, vestido com um uniforme verde e amarelo e com uma medalha no peito, enquanto dizia: “Você sabia que a Unopar é uma das maiores universidades do País, com 35 anos de tradição?” (U/2008-1 f1/Yt).13 13 Recuperado em 25 de agosto de 2015, de < https://www.youtube.com/watch?v=VfPNscRsE9w >. No ano seguinte, o mesmo cenário e roteiro se repetiram, apenas trocando o rapaz pela medalhista Natália Falavigna,14 14 Natália Falavigna era aluna da Unopar na época da propaganda. Ganhou medalha de prata no taekwondo nos Jogos Pan-americanos de 2007. que dizia: “Um grande futuro começa com um ensino de qualidade...” (U/2009-1/F1/Yt).15 15 Recuperado em 25 de agosto de 2015, de < https://www.youtube.com/watch?v=VfPNscRsE9w>. A imagem dos desportistas é empregada como recurso para a certificação da qualidade institucional; eles servem como avalistas de uma marca. Um exemplo bem claro dessa situação aconteceu no finalzinho de uma campanha do Pitágoras, quando apareceu o jogador Pelé, dizendo: “Faça Pitágoras!” (P/2012-?/f1).16 16 Recuperado em 25 de agosto de 2015, de <https://www.youtube.com/watch?v=ra2GT0TvJB4>. Na mesma condição de avalista, Pelé havia sido, em 2009, o patrono da Rede de Ensino Desportivo Kroton/Pitágoras, que oferta cursos específicos para a área desportiva.

Além das campanhas publicitárias, desportistas também são convidados como palestrantes, caso de Giba e Virna (ambos jogadores da seleção brasileira de vôlei), Amyr Klink e Lars Grael, dentre outras personagens de sucesso no esporte. Essa prática foi verificada nas três faculdades estudadas, contudo não exploraremos esse aspecto, posto que, em geral, o enredo se repete; trata-se sempre de histórias de vida, superação e sucesso.

Outra figura recorrente é a do administrador/empresário, nomeação genérica para personalidades como Geraldo Alckmin, Max Gehringer, Graça Foster (à época, presidente da Petrobrás) e Jadir Pelia (então Secretário de Estado da Ciência e Tecnologia), que, em 2013, abriram o Congresso Pitágoras de Iniciação Científica, intitulado “Desenvolvimento Sustentável: desafios e oportunidades profissionais”. Na Semana de Pós-Graduação da Anhanguera, Idalberto Chiavenato, uma das referências nacionais na administração e coordenador dos cursos de MBA da mesma instituição, afirmou em sua palestra: “O sucesso está em você! Olhe pra frente e crie seu futuro!” (A/11-03-14/Fb).17 17 Recuperado em 25 de maio de 2015, de <https://www.facebook.com/AnhangueraEdu/photos/a.677646862273422.1073741834.263926226978823/677646878940087/?type=3&theater>. No mesmo evento, Bruna Dias, gerente de carreiras da empresa Cia. De Talentos, disse: “Quem aproveita as oportunidades vai alcançar uma carreira de sucesso!” (A/11-03-14/Fb).18 18 Recuperado em 25 de maio de 2015, de <https://www.facebook.com/AnhangueraEdu/photos/263926226978823/677647302273378/?type=3&theater>.

Todos esses personagens procuram dizer aos estudantes o tamanho do esforço que deve ser investido para que eles cheguem ao lugar em que os palestrantes se encontram. Eles são utilizados pelas instituições para incitar o estudante, futuro profissional, a se espelhar neles, mas também para alimentar a ideia de felicidade e sucesso, associada às noções de interesse, curiosidade e vontade, todas devidamente sustentadas, como era de se esperar, pela noção de aprendizagem.

Aliás, a noção de aprendizagem utilizada pela mídia universitária é, na verdade, uma velha conhecida. Nas palavras de Marín-Díaz e Noguera-Ramírez (2014), trata-se da “sociedade da aprendizagem” (p. 57), própria do século XX, que tem: na psicopedagogia o seu mais importante saber, porque procura dar status de verdade à experiência e ao interesse do aluno; no enunciado “aprender a aprender” ( p. 57) a forma concreta da subjetividade do aluno atual, que os autores nomeiam homo discens ( p. 57), que nada mais é do que o estudante, ou melhor, o sujeito aprendente, sujeito exercitante ou inacabado; e, no sucesso individual, a única maneira de alcançar a felicidade. A pretensão desse tipo de sociedade é que o sujeito seja conduzido a tomar sua experiência como causa da sua própria aprendizagem e felicidade. Segundo os autores, ocorrem “o ajuste e a articulação de um conjunto de práticas para produzir um sujeito ativo, um sujeito aprendente, esse indivíduo que, por sua própria experiência, por sua própria atividade, aprende o que precisa para viver e ser feliz” (Marín-Díaz & Noguera-Ramírez, 2014Marín-Díaz, D. L., & Noguera-Ramirez, C. E. (2014, maio/agosto). O efeito educacional em Foucault. O governamento, uma questão pedagógica? Pro-Posições. 25(2) (74), 47-65., p. 06, citados por Marín-Díaz, 2012Marín-Díaz, D. L., & Noguera-Ramirez, C. E. (2014, maio/agosto). O efeito educacional em Foucault. O governamento, uma questão pedagógica? Pro-Posições. 25(2) (74), 47-65.).

Por fim, esse sujeito aprendente não é mais aquele que busca um eu definitivo; pelo contrário, ele “é um permanente exercitante, um unfinished cosmopolita (Popkewitz, 2009) que, como agente, responsável único do seu próprio futuro, está compelido a aprender e a se autoajudar, se quiser atingir o sucesso e, finalmente, a felicidade” (Marín-Díaz & Noguera-Ramírez, 2014Marín-Díaz, D. L., & Noguera-Ramirez, C. E. (2014, maio/agosto). O efeito educacional em Foucault. O governamento, uma questão pedagógica? Pro-Posições. 25(2) (74), 47-65., p. 62).

Figuras em busca de visibilidade na iteração artística universitária

Certamente, quando ocupam a condição de artistas de uma publicidade universitária, os alunos não gozam da mesma visibilidade dos artistas famosos, tanto por serem pessoas comuns, desconhecidas, quanto pelo fato de sua participação na publicidade ser menos glamourosa. Contudo, o que mais importa é que essas instituições deram um salto espantoso na constituição de subjetividades, quando tornaram seus próprios alunos os protagonistas de suas publicidades.

O que parecem desejar é que o aluno passe a ser colaborador real na construção da imagem da instituição e de si mesmo, tornando-se um tipo de garoto propaganda que, entre outras coisas, afirma a magnitude e a atualidade da instituição escolhida. Os estudantes que participam das campanhas publicitárias dessas instituições as apresentam como uma espécie de energético que lhes fornece forças sobrenaturais: “Cara, minha capacidade aumentou muito depois que eu entrei aqui na Anhanguera” (A/2008-?/ Yt).19 19 Recuperado em 10 de maio de 2015, de <https://www.youtube.com/watch?v=3-sK2VESjPk>. Ou ainda: “Cara, aqui tudo é moderno e organizado, eles se preocupam com a gente” (A/ 2008-1/Yt).20 20 Recuperado em 10 de maio de 2015, de <https://www.youtube.com/watch?v=3-sK2VESjPk>.

São várias as aparições de estudantes com esse foco (ou “com esse objetivo”), como o vídeo intitulado Receita de Sucesso de Vanessa Vilela, ex-aluna do Pitágoras, que apresenta uma jovem de olhos verdes, cabelo loiro e liso, vestida com um terninho, sentada em uma cadeira-presidente, dentro do que parece ser o seu escritório. Na inscrição abaixo da imagem aparecem o nome dela e a função: empresária. Ela é a protagonista em todo o vídeo, seja selecionando grãos de café ou vestida de branco em um laboratório, dando orientações aos funcionários:

Meu nome é Vanessa Vilela, sou sócia fundadora de uma marca de cosméticos à base de café, reconhecida internacionalmente. O que a faculdade tem a ver com meu sucesso? Bom, o modelo acadêmico do grupo em que me formei e que o Pitágoras faz parte é especializado e inovador. E isso me proporcionou uma visão diferenciada e atualizada. E levar isso tão a sério e com resultados consistentes como o Pitágoras faz, poucas conseguem. Isso é fato. Faculdade Pitágoras.

(P/25-07-13/Yt)21 21 Recuperado em janeiro de 2015, de <https://www.youtube.com/watch?v=LEqEpKD1BlM>.

Outra aparição foi a do Repórter Giro,22 22 Repórter Giro é constituído por um conjunto de webvideos com pautas diversas, nos quais os alunos de diferentes unidades são entrevistados por alunos do curso de Comunicação e Jornalismo. programa em que alunos de diversas unidades entrevistam professores e outros alunos, que são solicitados a discorrer sobre coisas diversas, como dicas para passar na prova da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), para superar as dificuldades de ser estudante e ter que trabalhar; a falar das vantagens de se obter o FIES, dentre outros assuntos pertinentes à vida profissional e acadêmica.

Entre as três instituições pesquisadas, a que mais vem utilizando a figura do aluno – e do aluno real – é a Anhanguera. Encontramos várias publicidades, entre elas um vídeo de um reality show nomeado Meu sonho olímpico, promovido pelo Canal Interativo e pela Anhanguera Educacional, que narra a competição dos alunos do Curso de Comunicação Social por uma vaga para integrar a equipe do Canal Interativo durante a cobertura das Olimpíadas em Londres.

Também chama atenção a criação de webséries23 23 Um exemplo interessante de websérie é a do aluno Juan, que em oito capítulos protagoniza seu projeto de sucesso. Recuperado em agosto de 2013, de < youtube.com/watch?v=vbNSu7KUhBs>. , ou seja, alunos reais postam nas páginas institucionais do facebook seus projetos e seus caminhos de sucesso. Além disso, está disponível uma série da Faculdade Anhanguera, denominada Mais uma história de transformação, na qual os alunos, na maioria dos vídeos, estão sozinhos, com a câmera enquadrada em primeiro plano (do busto para cima) e, em 30 segundos, apresentam textos, que parecem espontâneos, sobre a experiência com a graduação:

O estudo é a coisa mais importante... sem estudo a gente não chega a lugar nenhum e você nunca vai ser ninguém na vida.

(A/2013-1/Yt)24 24 Recuperado em agosto de 2013, de < https://www.youtube.com/watch?v=TtIySZc7Z_s>.

E a faculdade ajudou muito... o fator primordial: lidar com pessoas. Desenvolvimento pessoal. Você, como você tratar um colaborador seu... a garantia, ela tá nas pessoas. Então uma coisa que a faculdade vem me ajudando a desenvolver como pessoa e como empresário é principalmente isso.

(A/2014-1/Yt)25 25 Recuperado em fevereiro de 2015, de <https://www.youtube.com/watch?v=R9R0yXkyPos>.

Tem uma pessoa que ela se inspirou em mim e... no próprio trabalho... e até hoje ela pega e ela conversa comigo, ela fala assim: olha, eu me inspirei em você. Os cursos que você me instruiu eu fiz agora eu vou começar a minha faculdade, e eu quero seguir o que você faz, entendeu? Eu quero fazer a produção... eu quero fazer engenharia de produção, eu quero ter a mesma chance que você teve, o mesmo... a mesma qualidade de vida que você tá mostrando... que você tá tendo.

(A/2014-01/Yt)26 26 Recuperado em fevereiro de 2015, de <https://www.youtube.com/watch?v=fSIw6zbfj7s>.

Em geral, as falas têm em comum o testemunho positivo de entrevistados ou protagonistas que foram ou ainda são estudantes dessas instituições. Eles não apenas testemunham o efeito positivo que a instituição causa (ou causou) na vida deles, como também oferecem pequenos conselhos para que os demais alunos possam atingir o mesmo patamar que eles. Geralmente, esses conselhos propõem um pequeno e repetitivo esquema de atitudes aos alunos, que devem: valorizar os estudos, saber lidar com as pessoas, organizar a sua aprendizagem e obter qualidade de vida (que se resume a sucesso).

Sobre isso, vale a pena destacar uma websérie da Anhanguera, que apresenta um projeto para acessibilidade de cegos, desenvolvido por Juan, um jovem de 18 anos, estudante do curso de engenharia. O narrador da websérie assim se refere ao jovem: “A história do Juan, o aluno da Anhanguera com um projeto que pode transformar a vida de muita gente” (narrador/ep. 1/Juan/Yt).27 27 Recuperado em fevereiro de 2015, de < https://www.youtube.com/watch?v=vbNSu7KUhBs >. O aluno relata: “me senti muito feliz, muito feliz em saber que um projeto de vida meu ia se tornar realidade...” (Juan/ep. 1/Juan/Yt).28 28 Recuperado em fevereiro de 2015, de < https://www.youtube.com/watch?v=vbNSu7KUhBs >. Nas cenas iniciais, o estudante é recebido, pelo coordenador do curso e por um professor, com apertos de mãos e tapas nas costas. Eles lhe dão as devidas orientações. Tanto Juan quanto os professores são enfáticos, ao afirmar que o sentido da teoria é sua destinação prática:

Nessas últimas semanas que eu tenho me dedicado bastante ao estudo eu consigo visualizar o projeto sobre outro ponto de vista, né? Eu posso desenvolver ele com mais certeza, né? Menos tentativa, mais acerto ... a teoria serve pra isso.

(A /Ep. 2/Juan/Yt)29 29 Recuperado em fevereiro de 2015, de < https://www.youtube.com/watch?v=Mv_PKXhgkdE >.

O coordenador ainda afirma: “A Anhanguera tem essa ... essa preocupação e a responsabilidade de dar cidadania para o aluno. Ele começa a pensar e agir” (A/coordenador/Ep. 6/Juan/Yt).30 30 Recuperado em março de 2015, de < https://www.youtube.com/watch?v=pyuVqYTgxjo >.

A última cena é destinada à testagem do protótipo desenvolvido com base no projeto. Para encurtar a trama, deu tudo certo; Juan conseguiu comprovar a sua teoria na prática. Eis a fala de Juan que acompanha o feito: “meu pai entrou na loja; daqui a pouco ele sai com aquela camisa amarelo-ouro e levanta pra mim, foi um sinal de sucesso, aquilo lá foi uma bandeira de que meu projeto pode ajudar uma pessoa” (A/Ep.08/Juan/Yt).31 31 Recuperado em março de 2015, de < https://www.youtube.com/watch?v=8mc4kIJ-5xg >.

De fato, inserir os estudantes no interior mesmo das campanhas publicitárias foi um lance de mestre. O estudante fala em nome dos colegas, fala com eles. Se os famosos persuadem os estudantes, esses, por sua vez, se incitam mutuamente, na medida em que falam a mesma língua, a saber, “aqui a teoria funciona na prática”. No fundo, podemos inferir que essas campanhas têm como inimigas as universidades públicas, às quais atribuem um caráter de instituições teóricas, tecnologicamente atrasadas, afastadas das novidades de mercado e que pouco ou nada ajudam a impulsionar o empreendedorismo dos alunos. Essas campanhas produzem um sujeito desejante de sucesso e felicidade, o que, neste momento, ao que tudo indica, só é possível de ser alcançado com um misto de práticas de ensino em ambientes artificiais (laboratórios) e reais (empresas), com aprendizagens estandardizadas (do tipo Power Point, esquemas didáticos ou mapas conceituais), com o auxílio de tecnologias móveis e com finalidades mensuráveis (transformar pequenas necessidades locais, observadas em um meio qualquer, em um valor de mercado, ou seja, ser empreendedor). O que essas campanhas desejam é a formação de um estudante-empresário de si mesmo. Mas em que essa prática se sustenta? É o que veremos a seguir.

O empreendedorismo como economia do sujeito universitário

Há quem diga que hoje a vida é chata porque não tem sentido, os valores estão alterados e as pessoas estão perdidas em seus projetos. Diz-se, também, que o excessivo valor atribuído ao consumo põe em xeque a humanidade. De fato, essa conclusão é possível. Contudo, para as mídias universitárias das instituições privadas de Ensino Superior, quanto mais neoliberais forem as relações sociais, mais produtivas elas serão.

Essa situação se encaixa perfeitamente na análise sugerida por Foucault (2008)Foucault, M. (2008). Nascimento da biopolítica. São Paulo: Martins Fontes., em . nascimento da biopolítica, obra onde o filósofo demonstra como se deu a passagem do liberalismo clássico para o neoliberalismo na Europa do século XX. Amparando-se nas produções do ordoliberalismo alemão, na vertente francófona e na Escola de Chicago, ele afirma que, se a corrente clássica do liberalismo propunha uma divisão entre a racionalidade política e a racionalidade econômica, o neoliberalismo rompe com essas barreiras, propondo a economia para todas as esferas da sociedade.

Clarificando tais divisões, é como se o liberalismo clássico buscasse a limitação do poder do Estado, “fixar-lhe certo número de limites a fim de reservar um espaço ‘livre’ em que pudessem vigorar, sem coerções externas, os mecanismos de mercado” (Lagasnerie, 2013Lagasnerie, G. (2013). A última lição de Michel Foucault. São Paulo: Três Estrelas., p. 46), enquanto o neoliberalismo segue a premissa de que “é a economia que funda a política e determina as formas e a natureza da intervenção pública” (p. 49). A ideia de fundação, mais do que a de criação, reforça o entendimento da economia como energia motriz da política. Passa-se, portanto, de uma perspectiva de equalização – separar o que é da política e o que é do mercado – para a amplificação da ocupação da vida política pelo mercado. Situação inusitada, que desperta a atenção de Foucault (2008)Foucault, M. (2008). Nascimento da biopolítica. São Paulo: Martins Fontes. acerca do neoliberalismo:

Ora, que função tem essa generalização da forma “empresa”? [ênfase no original] Por um lado, claro, trata-se de desdobrar o modelo econômico, o modelo oferta e procura, modelo investimento-custo-lucro, para dele fazer um modelo das relações sociais, um modelo da existência, uma forma de relação do indivíduo consigo mesmo, com o tempo, com o seu círculo, com o futuro, com o grupo, com a família. (p. 332)

Dessa forma, mecanismos econômicos se alastram por todas as áreas sociais ou, mais ainda, por todas as áreas da vida. Conforme afirma Lagasnerie (2013)Lagasnerie, G. (2013). A última lição de Michel Foucault. São Paulo: Três Estrelas., “a utopia neoliberal consiste em inserir o máximo de realidades na esfera de um mercado” (p. 47), não deixando que nada escape dessa racionalidade, nem a família, nem a ação governamental e nem o crime.

O neoliberalismo, antes de qualquer coisa, é resultado dos problemas políticos e econômicos reais postos às sociedades europeias da primeira metade do século XX, para os quais alguns grupos buscavam solução. Por exemplo: na Alemanha do final dos anos 1940, segundo Foucault, os ordoliberais procuravam uma forma de impedir a ação nefasta do Estado nazista, encontrando na liberação dos mercados o efeito desejado, ou seja, “deixando as pessoas agir, a instituição neoliberal alemã as deixa falar” (Foucault, 2008Foucault, M. (2008). Nascimento da biopolítica. São Paulo: Martins Fontes., p. 115). Isso resolvia dois problemas: 1) sinalizava para os americanos que a Alemanha era uma parceira confiável e 2) tranquilizava o restante da Europa em relação aos feitos de um estadicídio. Já no caso dos americanos, não se tratava de limitar a força do Estado por meio do mercado, e sim de se livrar da política de bem-estar social, que forçava a economia à exaustão; nesse caso, subvertiam a ideia de salário para a ideia de renda, assunto que veremos mais adiante.

O conjunto geral desses neoliberalismos nascentes, que eram distintos e não se efetivaram sem resistências, vai se opor, segundo Foucault (2008)Foucault, M. (2008). Nascimento da biopolítica. São Paulo: Martins Fontes., a tudo aquilo que visava a manter o Estado separado da economia, ou seja, vai se opor aos valores do liberalismo dos séculos XVIII e XIX, aquele que ainda se preocupava em corrigir os efeitos da desigualdade, socializar o consumo e manter o crescimento econômico. No neoliberalismo, a preocupação passou a ser com uma política de sociedade em que seja reconstituído o homo oeconomicus, não como o homem da troca ou do consumo, mas como o “homem da empresa e da produção” (p. 201).

Não se trata de uma sociedade de mercado ou de um governo econômico restrito ao dilema da oferta e da demanda, mas de um governo que passa a se dedicar à condução das populações por meio de um modelo político ou de uma arte de governar que transforma meros indivíduos em homens que produzem. De fato, reconstruir a noção de empresa é central no neoliberalismo, mas não a empresa à qual a nossa imaginação remete, aquela representada pelo grande edifício cinza e frio, e sim, bem ao contrário, aquela empresa do tipo artesanal, aquela de pequenas unidades, que faz da casa e da família o locus mais importante da produção. Contudo, essa forma-empresa, individual, familiar, deslocada para as pequenas produções, deve voltar-se para as necessidades modernas dos homens, e isso se torna o objeto da ação de governo. Ao fim, trata-se de expandir “essa multiplicação da forma ‘empresa’ no interior do corpo social” (Foucault, 2008Foucault, M. (2008). Nascimento da biopolítica. São Paulo: Martins Fontes., p. 203). Engana-se, sugere a interpretação foucaultiana, quem pensa que criticar as formas de consumo de massa, sugerindo substituí-las pelo consumo alternativo, seja uma crítica ao neoliberalismo. O que permite a ação do neoliberalismo não é indexar a sociedade à mercadoria ou ao mercado, mas indexá-la à “multiplicidade e [à] diferenciação das empresas” (p. 204).

Se, em Adam Smith, a prática de mercado no liberalismo clássico assemelhava-se ao laissez-faire, no sentido de que o Estado somente deveria intervir nos momentos imprescindíveis, enquanto o mercado liderava a livre concorrência, o que ocorre no neoliberalismo é que o sujeito fica “liberado” do Estado (ou autorizado pelo Estado), visto que a forma-mercado se estende para todas as áreas da vida.

Mas, atenção, pois, com a instituição dessa forma-mercado pela ação política estatal, produz-se uma economia política do sujeito:

Em primeiro lugar, observa-se um deslocamento mediante o qual o objeto de análise (e de governo) já não se restringe apenas ao Estado e aos processos econômicos, passando a ser propriamente a sociedade, quer dizer, as relações sociais, as sociabilidades, os comportamentos dos indivíduos, etc.; em segundo, além do mercado funcionar como chave de decifração (“princípios de inteligibilidade”) do que sucede à sociedade e ao comportamento dos indivíduos, ele mesmo generaliza-se em meio a ambos, constituindo-se como (se fosse a) substância ontológica do “ser” social, a forma (e a lógica) mesma desde a qual, com a qual e na qual deveriam funcionar, desenvolver-se e se transformar as relações e os fenômenos sociais, assim como os comportamentos de cada grupo e de cada indivíduo [ênfases no original].

(Gadelha, 2013Gadelha, S. (2013). Biopolítica, governamentalidade e educação. Belo Horizonte: Autêntica., p. 144)

Dois aspectos aí se apresentam: o de uma forma específica de análise sobre as sociabilidades entre os indivíduos e o do mercado como “substância ontológica do ser”. Para nós, é exatamente isso que está em jogo quando se trata da mídia universitária e seus sujeitos, ou seja, esse movimento indivíduo-mercado ou indivíduo capaz de produção, indivíduo-empresa, nada mais é do que aquilo que chamamos de empreendedorismo, isto é, a oferta ao indivíduo das condições para que ele mesmo seja capaz de produzir.

Mas como fazer do indivíduo uma unidade produtiva? Foucault (2008)Foucault, M. (2008). Nascimento da biopolítica. São Paulo: Martins Fontes. parte do pressuposto que, desde Adam Smith até as produções teóricas no início do século XX, pouco se modificou o olhar sobre os fatores de produção, que giravam em torno da terra, do capital e do trabalho. Ocorre que, sobre a terra e sobre o capital, muito se produziu teoricamente, porém, sobre o trabalho entendido como uma conduta econômica quase nada foi dito. Na teoria econômica clássica, diz Foucault, incluindo aí a leitura de Marx, colocou-se a questão do trabalho no interior da questão do tempo (e não como conduta, como prática), de maneira que o trabalho foi visto como a venda da força de trabalho de cada um. Nesse sentido, obviamente, muito se teorizou sobre a questão do trabalho, uma vez que ele se encontrava circunscrito a questões do tipo “a quanto se compra o trabalho, ou o que é que ele produz tecnicamente, ou qual valor o trabalho acrescenta” (Foucault, 2008Foucault, M. (2008). Nascimento da biopolítica. São Paulo: Martins Fontes., p. 307). Todavia, para Foucault, a sociedade neoliberal – nesse caso, a americana, que foi o modelo mais generalizado mundo afora e, portanto, o exemplo mais aproximado do “imaginário econômico brasileiro” (com todas as aspas que pudermos colocar aí) – não irá se ocupar com o valor do trabalho, mas buscará entender de que maneira poder-se-á colocar o trabalho em termos econômicos, por quem trabalha. Diz o autor: “será preciso estudar o trabalho ...como conduta econômica praticada, aplicada, racionalizada, calculada por quem trabalha” (p. 307). Não se trata mais de saber o que é o trabalho e como se retira do trabalhador um sobrevalor, mas, a partir da ótica de quem trabalha, perguntar: “o que é trabalhar, para quem trabalhar, e a que sistema de opção, a que sistema de racionalidade essa atividade de trabalho obedece?” (p. 307). Desconfia o filósofo que a sociedade neoliberal americana é aquela que, pela primeira vez, por uma série de razões e justificativas econômicas, políticas, sociais, culturais, comportamentais, coloca o trabalhador não como objeto de troca e venda, e sim como “um sujeito econômico ativo” (p. 308).

Segundo Michel Foucault (2008)Foucault, M. (2008). Nascimento da biopolítica. São Paulo: Martins Fontes., para a sociedade neoliberal americana, quem trabalha não está meramente em busca de um salário, mas sim de renda. Na ótica desse neoliberalismo, o salário do trabalhador é uma renda e, como tal, não é o resultado da venda da força de trabalho. A renda, na visão neoliberal americana, é “simplesmente o produto ou o rendimento de um capital” (p. 308), de maneira que um capital é tudo que pode ser fonte de renda futura; é apenas nesse sentido que se pode dizer que “um salário é uma renda” (p. 308). Mas ele é renda de quê? De todo um conjunto de esforços ou “fatores físicos e psicológicos que torna uma pessoa capaz de ganhar este ou aquele salário” (p. 308). Ora, a fonte de sua renda é a sua energia, a sua aptidão e a sua competência. O trabalhador é uma máquina de produção de renda, embora possa ser um fluxo de salários, conclui Foucault (2008)Foucault, M. (2008). Nascimento da biopolítica. São Paulo: Martins Fontes..

Para Foucault (2008)Foucault, M. (2008). Nascimento da biopolítica. São Paulo: Martins Fontes., esse tipo de análise nos exige considerar imediatamente a novidade de que, no neoliberalismo americano de meados do século XX, o capital e o dono do capital são indissociáveis. Trata-se, portanto, de um capital especialmente novo, uma vez que a competência de quem trabalha, a energia e as aptidões do trabalhador são incorporadas mutuamente. O trabalhador, nesse sentido, é uma máquina, mas não porque o capitalismo o transformou em uma máquina, e sim porque todo esse conjunto de competências faz dele uma máquina de produzir fluxos de rendimentos. Diz-se fluxo porque a sua competência não tem um preço fixo; como ela está incorporada em quem trabalha e pode ser uma necessidade social altamente requisitada, terá uma duração variável e incerta, talvez até a morte, o que pode proporcionar diferentes ganhos à pessoa ao longo da vida.

Acredita Foucault (2008)Foucault, M. (2008). Nascimento da biopolítica. São Paulo: Martins Fontes. que o que a sociedade neoliberal americana faz é uma espécie de retorno ao homo oeconomicus, porém não mais na dimensão da troca, como já foi dito. O novo homo oeconomicus “é um empresário, mas um empresário de si mesmo” (p. 311). Em que isso consiste? No fato de que o consumo deixa de ser um produto consumido, alheio a quem consome, e passa a ser um consumo produzido, ou seja, o homem do consumo atual é um produtor do consumo em geral. E o que ele produz? Diz Foucault (2008)Foucault, M. (2008). Nascimento da biopolítica. São Paulo: Martins Fontes.: “produz sua própria satisfação” (p. 311).

Na verdade, o empresário de si produz satisfações para si mesmo e para os outros, essa é sua atividade empresarial atual. Ele é uma máquina de fluxo de rendimentos e de satisfações. Ironicamente, Foucault (2008)Foucault, M. (2008). Nascimento da biopolítica. São Paulo: Martins Fontes. mostra que a ideia de capital humano – que tantas vezes foi vista como atributo em si do capitalismo porque transforma o humano em um capital – passa a ser entendida, a partir das práticas neoliberais, como as forças produtivas disponíveis, inatas e/ou aprendidas pelas pessoas e colocadas à disposição da renda sob a forma de competência, aptidão e interesse. Para isso, obviamente, a educação passa a ter papel fundamental, ao ajudar a construir pequenas máquinas-fluxos de rendimentos.

É aqui, particularmente, que a mídia universitária assume sem piedade a sua posição discursiva. Ela promete ao estudante que ele não perderá tempo com teorias desnecessárias e improdutivas. Para isso, orienta que ele se concentre no seu interesse de formação e desfrute dos equipamentos tecnológicos e do campo de influências que a instituição pode lhe favorecer, a fim de construir suas relações capitais ou suas formas de rentabilidade. Ela promete ao estudante que não o abandonará em seu processo de aprendizagem; desde que ele esteja consciente do que deseja (o mercado), ela o acompanhará em todos os momentos.

Nessa direção, os professores, mais do que ensinar, serão profissionais que mostram para os alunos os caminhos do sucesso ou da rentabilidade. São, no jargão empresarial, os chamados coaching. Discursivamente, eles serão contratados pelo reconhecimento de seus feitos profissionais e, se possível, que sejam ganhadores de prêmios importantes. Isso garante que o capital desses humanos/estudantes irá crescer e proliferar, uma vez que eles serão guiados por professores cujos capitais adquiridos são de competências comprovadas. Além disso, a competência e a credibilidade atribuídas à instituição pelo mundo artístico e empresarial incitam os alunos a fazer da instituição o lugar privilegiado do sucesso que buscam.

A mídia universitária também promete que o estudante de instituições de Ensino Superior privadas terá uma espécie de passaporte válido no mundo do trabalho e para esse mundo. Ao diploma que ela fornecerá parece que será agregada uma espécie de senha ou de cartão fidelidade para que o recém-formado, ao conseguir um emprego ou se meter num negócio, tenha forças especiais ou privilegiadas para obter sucesso no empreendimento desejado.

Porém, o que é mais interessante notar é que a mídia universitária oferece ao estudante um capital humano irresistível, qual seja: uma formação a favor da inovação. O discurso da inovação passa a ser o maior capital. Quanto mais o aluno se empenhar em inovar, mais renda ele terá; quem mais ganha é quem mais inova. Um humano capitalizado é aquele capaz de criar novas técnicas, novas operações, novos conceitos, novos modos de proceder nos mercados.

Foucault (2008)Foucault, M. (2008). Nascimento da biopolítica. São Paulo: Martins Fontes. afirma que o problema da inovação, de fato, é retomado pelo neoliberalismo americano, mas não mais como uma ação surpreendente provocada por um capitalismo abstrato, e sim no nível dos homens mesmos. Diz que, quando os americanos analisaram o caso dos japoneses, concluíram que a inovação não veio das

variáveis clássicas, isto é, da terra, o capital e o trabalho ... [e sim] da maneira como esse capital humano foi aumentado, dos setores nos quais ele foi aumentado e dos elementos que foram introduzidos a título de investimento nesse capital humano. (p. 319)

O capital humano como “conjunto dos investimentos que foram feitos no nível do próprio homem” (p. 318) não é visto pelos neoliberais americanos como uma maneira de coisificar o homem, petrificá-lo ou aliená-lo, mas como forma de dotá-lo de equipamentos de aprendizagem para fins de renda.

Não possuímos mais espaço para a continuação dessa análise, de maneira que, para finalizar, nos moldes de Foucault, procuraremos resumir as coisas: nosso trabalho visou elucidar, na medida do possível, a racionalidade política das mídias universitárias, os seus enunciados, os campos de saberes associados e os sujeitos que ela se propõe a criar. Sem dúvida, tal mídia, como se pode ver, age por meio de uma racionalidade quase primária, isto é, ela lança mão de um contingente considerável de pessoas jovens que não estão na universidade pública, que comungam ou passam a comungar da ideia de empresariamento de si, que se veem diante do desafio de transformar necessidades em mercados. Lança mão de artistas famosos, de desportistas pobres que alcançaram o sucesso, de empresários que também se dizem batalhadores de sua sobrevivência, tudo isso para sustentar uma atmosfera de luta e superação. As mídias universitárias acreditam fazer com que os estudantes passem a se empenhar seriamente para transformar suas necessidades em aprendizagem e essas em sucesso pessoal e profissional.

Entretanto, falta ainda um estudo aprofundado dos processos de interação aluno-instituição, a fim de saber as formas de resistências ao discurso midiático. Por ora, em termos de resistências, o que vimos foi simplesmente a utilização do espaço virtual para a apresentação de queixas de cunho pessoal ou coletivas referentes ao valor das mensalidades, à baixa qualidade do atendimento ao aluno e a uma infinidade de demandas administrativas. Infelizmente, não realizamos um estudo nessa direção, mas tal empreitada nos demandaria saber se essas resistências se reduzem a queixas sobre os processos administrativos dessas instituições ou se abarcam também a crítica à lógica do empresariamento de si.

Tudo que aqui foi dito não serve para pautar as críticas ao Ensino Superior privado; antes, serve para ser conhecido, para explicitar como as mídias universitárias atuam diante da problemática geral que envolve jovens, aprendizagem, trabalho e a produção da sobrevivência individual e social em tempos contemporâneos.

Referências

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    04 Jul 2019
  • Data do Fascículo
    2019

Histórico

  • Recebido
    03 Jul 2017
  • Revisado
    02 Nov 2017
  • Aceito
    20 Dez 2017
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