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A dessegregação de Little Rock a partir de Hannah Arendt

Little Rock’s desegregation based on Hannah Arendt

Resumo

Investigam-se neste texto os conflitos educacionais e políticos entre a escola e a questão negra norte-americana, presentificados na dessegregação de Little Rock, uma escola do Arkansas, no ano de 1957. O ensaio “Reflexões sobre Little Rock”, publicado em 1959, de autoria da filósofa Hannah Arendt, é analisado passo a passo, por conta de suas elucidações consideradas à época polêmicas e pouco avançadas para o contexto. Após 60 anos do evento que marca a dessegregação das escolas norte-americanas, avaliam-se o ensaio de Arendt e suas propostas para pensar a educação em tempos de crise. Usa-se a metodologia de pesquisa bibliográfica em fontes primárias da autora e fontes secundárias de comentadores do pensamento arendtiano, relacionadas à política e à educação. O resultado esperado é uma versão dos fatos que auxilie a pensar o papel da escola nos dias atuais.

Palavras-chave
dessegregação de Little Rock; questão negra norte-americana; crise da educação; Hannah Arendt; amor mundi

Abstract

This paper investigates the educational and political conflicts between the school and the African-American question, as present in the desegregation of an Arkansas school in Little Rock in 1957. The 1959 “Reflections on Little Rock” essay by the philosopher Hannah Arendt is analyzed step by step on account of its elucidations considered at that time controversial and not very advanced for the context. After 60 years of the event that marks the desegregation of American schools, this paper evaluates Arendt's essay and its proposals to think about education in times of crisis. The research used the methodology of bibliographical research in primary sources of the author and secondary sources of commentators of Arendtian thought related to politics and education. The expected result is a version of the facts which helps us think about the role of school in the present day.

Keywords
Little Rock’s desegregation; African-American question; education crisis; Hannah Arendt; amor mundi

O problema: o racismo e a escola de Little Rock

A pergunta que gerou nossa investigação é: qual a conceituação de Hannah Arendt acerca do papel da escola e do racismo nos Estados Unidos da América no período de discussão sobre a questão negra e a dessegregação?

O tema é discutido no ensaio chamado “Reflexões sobre Little Rock”, publicado em 1959 e considerado um referencial obrigatório para os estudos da educação no pensamento arendtiano.

Nesse sentido, a metodologia utilizada para nossa investigação foi uma pesquisa bibliográfica acerca do contexto histórico e político da dessegregação norte-americana e, em especial, a problematização do ensaio “Reflexões sobre Little Rock” e sua confrontação com seus comentadores. Por isso, nossa metodologia pretende criar, para a compreensão da questão negra norte-americana e a dessegregação da escola de Little Rock, uma versão dos fatos ampliada, em que a política e a educação se entrecruzam.

Origens de Little Rock: segregação racial sulista e os resultados da luta pela igualdade

A fundação da nação norte-americana iniciou-se com os colonos ingleses estabelecidos nas Treze Colônias, na costa Leste. O desenvolvimento econômico foi diferente no Norte e no Sul. Ao Norte, predominou o modelo da pequena propriedade privada, baseada no trabalho livre e assalariado e na industrialização. Ao Sul, o modelo adotado foi o da monocultura, com o predomínio dos latifúndios e o uso da mão de obra escrava africana.

A Guerra Civil Americana (1861-1865) colocou em disputa os estados do Norte e do Sul. Uma guerra, contudo, não termina sem deixar marcas. A vitória do Norte fez com que se abolisse a escravidão em todo o território nacional. Em razão da rejeição ao projeto do Norte, já nos anos finais da década de 1860, surgiram as primeiras tentativas de efetivação das políticas segregacionistas do Sul, derrotado. O projeto separatista sulista foi derrotado, e após a guerra deu-se início à refundação norte-americana, com a progressiva reincorporação dos estados derrotados. O problema que se colocava nessa época era em relação a quem comandaria a reconstrução, qual seria a legislação que regulamentaria a volta dos estados reincorporados à nação. Uma reconstrução depois da guerra nunca é um processo sem ecos no futuro.

Em 1865 apareceram os chamados Códigos Negros, que tiravam a liberdade dos negros nos mais diversos setores da vida social. Os Black Codes (1800-1866) determinaram o crime de vadiagem, obrigando os negros a qualquer trabalho, sem escolher seus contratantes. Limitavam as reuniões, os casamentos inter-raciais, a ingestão de álcool, a posse de armas de fogo ou mesmo a permissão para atuar em ofícios mais especializados. Diante da crise em relação à cidadania dos ex-escravos e de todos os temas racistas envolvidos, em 1866 o Congresso aprovou a Décima Quarta Emenda Constitucional, estendendo a cidadania a todas as pessoas nascidas ou que se naturalizaram no país nos anos seguintes à denominada reconstrução radical. Assim, “leis de segregação racial haviam feito breve aparição durante a reconstrução, mas desapareceram até 1868 (Karnal, Purdy, Fernandes, & Morais, 2017Karnal, L., Purdy, S., Fernandes, L. E., & Morais, M. V. de. (2017). História dos Estados Unidos: das origens ao século XXI (3a ed.). São Paulo: Contexto., p. 145)”. Elas

ressurgiram no governo de Grant, a começar pelo Tennessee, em 1870: lá, os sulistas brancos promulgaram leis contra o casamento inter-racial. Cinco anos mais tarde, o Tennessee adotou a primeira lei Jim Crown e o resto do Sul o seguiu rapidamente”. (p. 145)

A segregação racial norte-americana prosseguiu pelo século XX. A convivência social foi marcada pela separação entre negros e brancos nos mais diversos espaços. A partir das lutas sociais e da resistência dos movimentos sociais, o governo ampliou a dessegregação. Em 1954, a decisão da Suprema Corte sobre o caso Brown v. Board of Education of Topeka foi emblemática. Os pais de uma criança de sete anos, Linda Brown, protestaram judicialmente contra a segregação escolar e tiveram sucesso. O sucesso da petição é considerado decisivo para a ampliação dos direitos civis dos segregados com “um lugar destacado na literatura da liberdade”.

(Kluger, 2004Kluger, R. (2004). Simple Justice: The History of Brown v. Board of Education and Black America's Struggle for Equality. New York: Vintage Books., p. XII, tradução nossa)

Por causa dele, as divisões raciais entre estudantes brancos e negros em escolas públicas passou a ser considerado inconstitucional afirmando-se que “instalações educacionais separadas são inerentemente desiguais”.

(Kluger, 2004Kluger, R. (2004). Simple Justice: The History of Brown v. Board of Education and Black America's Struggle for Equality. New York: Vintage Books., p. 793, tradução nossa)

A segregação racial chegou formalmente ao fim com a Lei dos Direitos Civis, promulgada em 2 de julho de 1964, assinada pelo presidente Lyndon B. Johnson. De maneira geral, podemos afirmar que o movimento dos direitos civis compreendeu o período que vai de 1954 a 1980. Já o movimento dos direitos civis dos negros dos Estados Unidos da América teve sua efervescência entre 1955 e 1968, conseguindo reformas para a abolição da segregação racial e ampliando direitos com o surgimento de movimentos negros, como o Black Power e os Panteras Negras. Não houve uma mudança social sem luta ou resistência.

O ensaio “Reflexões sobre Little Rock” passo a passo

Hannah Arendt escreveu o ensaio “Reflexões sobre Little Rock” em 1957-1958. Ela já havia publicado uma das mais importantes obras sobre o totalitarismo na Alemanha em 1951, intitulado Origens do totalitarismo, seguido da coletânea de ensaios Entre o passado e o futuro, de 1954, e de A condição humana, de 1958. Era uma autora conhecida por suas opiniões políticas dadas em mais de 40 artigos para revistas alemãs e norte-americanas até 1959.

Contudo, o artigo “Reflexões sobre Little Rock” (1959) e o livro Eichmann em Jerusalém (Arendt, 2006Arendt, H. (2006). Eichmann em Jerusalém. Um relato sobre a banalidade do mal. São Paulo: Companhia das Letras.), publicado em 1963, lhe renderam as maiores críticas e estão entre os seus escritos mais polêmicos no conjunto de sua obra. Em Eichmann em Jerusalém, Arendt foi acusada de ser insensível com a questão judaica e, mesmo, de incentivar uma visão negativa em relação aos judeus na Segunda Guerra Mundial (Young-Bruehl, 1997Young-Bruehl, E. (1997). Por amor ao mundo: a vida e a obra de Hannah Arendt. Rio de Janeiro: Relume-Dumará., pp. 310-334). Sobre os eventos em Little Rock, Arendt escreveu o artigo com suas opiniões e tentou publicar na revista judaica Commentary, mas teve seu pedido negado. Somente em 1959 a revista Dissent publicou o artigo, com a seguinte nota introdutória:

As circunstâncias em que Miss Arendt escreveu pela primeira vez, mas não publicou seu artigo são descritas em sua introdução. Nós o publicamos não porque concordemos com ela - muito pelo contrário!, mas porque acreditamos na liberdade de expressão, mesmo para pontos de vista que nos parecem totalmente equivocados. Por causa da estatura intelectual da Sra. Arendt, a importância de seu assunto e o fato de que uma oportunidade anterior para imprimir seus pontos de vista havia sido retirada, sentimos que é um serviço permitir que sua opinião, e as refutações a ela, agora sejam dadas livremente. Pedimos a atenção de nossos leitores para os comentários críticos após a leitura do artigo da Sra. Arendt. Na próxima edição, ela terá, naturalmente, a oportunidade de responder aos seus críticos; e dentro dos limites do espaço, comentários fundamentados dos leitores serão impressos. – EDITORES.

(Arendt, 1959Arendt, H. (1959). Reflections on Little Rock. Dissent, 1(6), 45-56., p. 45, tradução nossa)

Depois de um esclarecimento dessa natureza, o leitor do texto arendtiano deve ter se sentido muito pouco confortável para ler imparcialmente e entender minimamente o que ela escreveria. É uma advertência que parece induzir o leitor a uma visão de que Arendt é contrária à dessegregação racial norte-americana. Por essa advertência inicial dos editores da Dissent já se percebe a complexidade da questão negra naquele contexto social.

A controvérsia do artigo arendtiano se situa na moldura da questão negra (Negro Question) norte-americana, em que as emoções estavam à flor da pele. Arendt nunca foi a favor da segregação racial. Era contrária à discriminação racial. Contudo, quando particulariza suas reflexões e seus julgamentos sobre o caso de Little Rock e a decisão da Suprema Corte no caso Brown vc. Board of Education of Topeka, é acusada de parecer “antipática e até mesmo insensível” (Young-Bruehl, 1997Young-Bruehl, E. (1997). Por amor ao mundo: a vida e a obra de Hannah Arendt. Rio de Janeiro: Relume-Dumará., p. 278) com as causas da dessegregação.

Nesse sentido, o artigo de Arendt tornou-se

objeto de incompreensão, de indignação e de condenação em que análises de Little Rock pareciam contraintuitivas numa América que era cada vez mais confrontada com a “questão negra” e as demandas da NAACP - National Association for the Advancement of Colored People.

(Bentouhami, 2008Bentouhami, H. (2008). Le cas de Little Rock Hannah Arendt et Ralph Ellison sur la question noire. Tumultes. 30(1), 161-194., p. 162, tradução nossa)

Além do mais, Hannah Arendt “foi criticada por sua ‘cegueira’ ao significado sociopolítico da raça e do racismo no Ocidente [ênfase no original]”, advinda de uma rigidez na “aplicação das categorias filosóficas” do “público, o privado e social aos eventos de Little Rock”. Ademais, por omitir “os esforços políticos dos afro-americanos” e de “sua compreensão errônea do significado sociopolítico da raça e do racismo nos Estados Unidos”. Alguns dos críticos atuais acusam-na de “ignorância branca”, pois o artigo sobre Little Rock constituiria “um erro epistêmico fundamental na obra de Arendt e, como tal, fortalece as atuais explicações da ‘cegueira’ de Arendt à história e aos esforços políticos dos afro-americanos [ênfase no original]” (Burroughs, 2015Burroughs, M. D. (2015). Hannah Arendt, “Reflections on Little Rock” and white ignorance. Critical Philosophy of Race, 3(1), 52-78., p. 52).

Contudo, uma leitura atenta e disposta a relacionar o artigo sobre Little Rock ao conjunto da produção política arendtiana pode nos levar a conclusões interessantes para os movimentos sociais, uma vez que “os conceitos desenvolvidos... para definir o exercício político são bastante ricos”, desde que “as pessoas se ajuntem para discutir uma situação comum e decidir agir em conjunto para mudar esta mesma situação” (Duval, 2008Duval, M. (2008). L’action collective pensée par Hannah Arendt: comprendre l’agir ensemble pour le favoriser. Service Social, 541, 83-96., p. 84), tornando possível uma intervenção nessas condições.

A discriminação contra as crianças e os jovens negros nos Estados Unidos acabou por criar uma noção de que era possível conviver com o racismo a partir do lema “separados, mas iguais”. Trata-se, evidentemente, de uma hipocrisia, no sentido que já apontamos, e precisa ser desmacarada. No ano de 1897, por exemplo, a Suprema Corte garantiu que 17 estados do Sul e do Distrito de Columbia mantivessem escolas separadas, mas iguais, para negros. A separação acontecia, mas a igualdade, jamais. Esse “duplo sistema escolar” era retratado da seguinte maneira pelo governo da capital norte-americana, Washington D. C., no ano de 1947 (Fise, 1956Fise – Federação Internacional Sindical de Ensino. (1956). A educação norte-americana em crise. Rio de Janeiro: Editorial Vitória.): “as escolas para negros são inferiores às dos brancos em quse todos os aspectos. Os edifícios escolares para brancos têm a capacidade 27% maior do que a matrícula atual”; já, nas escolas para negros, “a matrícula excede a capacidade dos prédios em 8%. As classes nessas escolas são consideravelmente maiores e o trabalho dos professores negros muito mais pesado”, sendo que “menos de 1% dos alunos brancos, mas acima de 15% dos negros, recebem apenas ensino de tempo parcial”. Dessa forma, “desigualdades semelhantes existem nos edifícios escolares, no equipamento, quanto aos livros, jardins de infância e instalações de educação física e recreação”. Por tudo isso, “por causa do ambiente de segregação estabelecido como um modelo para a juventude nas escolas e nos sistemas de recreação, foram organizados concursos separados para negros e brancos” (p. 36).

O contexto de segregação racial social chegava à escola das mais diversas maneiras. Na maioria dos estados norte-americanos a lei de segregação era usada como se desejava. Alguns estados autorizavam a segregação racial escolar, em outros era proibida a entrada de negros em escolas públicas ou privadas. Por isso, “a segregação escolar não é absolutamente limitada aos vinte e um estados que têm leis escolares”, já que “em quase todos os outros estados, além das consequências que pode ter sobre a frequência escolar a segregação residencial, as autoridades locais impõem uma segregação escolar obrigatória por um dos meios seguintes”, que são: “divisão dos distritos escolares de tal maneira que a maioria dos não brancos da comunidade sejam separados dos brancos, regulamentos dos conselhos de administração escolar, poder discriminatório dos diretores de escola” e “pressões sociais para constranger os não brancos a frequentar certas escolas” (Kennedy, 1956Kennedy, S. (1956). O racismo na educação norte-americana. In Fise – Federação Internacional Sindical de Ensino, A educação norte-americana em crise (pp. 133-157). Rio de Janeiro: Editorial Vitória., pp. 135-136).

Portanto, o contexto social da questão negra norte-americana era propício às controvérsias. Compreender a visada arendtiana sobre Little Rock, alicerçada no conjunto de sua produção política, nos auxiliará na análise do evento e nas suas diversas possibilidades de narração.

A introdução publicada na Dissent

Há duas introduções do texto “Reflexões sobre Little Rock”. A versão que saiu na revista Dissent no inverno de 1959 e outra, que apareceu no livro Responsabilidade e julgamento, edição norte-americana de 2003, publicado no Brasil em 2004.

Uma hipótese plausível para as duas introduções: para publicar na Dissent, Arendt precisou abrir mão da introdução original para publicar um pedido de desculpas por algum mal-entendido como introdução, manifestando sua adesão à dessegregação, como vamos analisar mais à frente. Na versão de 2004, editada por Jerome Kohn, o professor manteve a versão original, como Arendt a entregou para a revista, em que a autora se remete à publicação, pelos jornais, da polêmica fotografia em que aparece a adolescente negra sendo hostilizada por um grupo de adolescentes e curiosos brancos em Little Rock.

Comecemos pela versão original publicada pela revista Dissent, em 1959.

A introdução tem apenas quatro parágrafos. Na primeira alínea, Arendt (1959)Arendt, H. (1959). Reflections on Little Rock. Dissent, 1(6), 45-56. explica em que condições escreveu o ensaio: “Este artigo foi escrito há mais de um ano sobre a sugestão de um dos editores da Commentary”. Tratava-se de um artigo pontual, “cuja publicação foi adiada por meses por causa da natureza polêmica de minhas reflexões que, obviamente, estavam em desacordo com a posição da revista sobre questões de discriminação e segregação”. Com o passar dos meses, ao que ela indica, “as coisas se acalmaram temporariamente”, e ela “tinha esperanças de que meus medos sobre a seriedade da situação pudessem se tornar exagerados e não desejassem publicar este artigo”. Contudo, ela continua, “desenvolvimentos recentes me convenceram de que tais esperanças são inúteis e que a repetição rotineira de clichês liberais pode ser ainda mais perigosa do que eu pensava há um ano”. Sendo assim, “eu, portanto, concordei em deixar Dissent publicar o artigo como estava escrito – não porque eu pensei que um ensaio tópico de um ano poderia esgotar o assunto ou até mesmo fazer justiça aos muitos problemas difíceis envolvidos”, mas o motivo era que havia uma “esperança de que mesmo uma tentativa inadequada pudesse ajudar a romper a rotina perigosa em que a discussão dessas questões está sendo realizada de ambos os lados” (Arendt, 1959Arendt, H. (1959). Reflections on Little Rock. Dissent, 1(6), 45-56., p. 45).

No segundo parágrafo, Arendt desenvolve a primeira desculpa por algum excesso no artigo. Ela cita um texto de Sidney Hook que saiu na revista New Leader sobre a legislação sobre os casamentos inter-raciais. Segundo Arendt (1959)Arendt, H. (1959). Reflections on Little Rock. Dissent, 1(6), 45-56., por conta de sua “afirmação de que as leis do casamento em 29 dos 49 estados constituem uma violação muito mais flagrante da letra e do espírito da Constituição do que a segregação das escolas”, ela reconsiderou sua opinião, afirmando que, de fato, os negros não estavam muito preocupados com essa probição. Citando Hook, Arendt também considera que “a proibição discriminatória contra os intercâmbios e a miscigenação é a última prioridade”. Para ela, talvez os estratos sociais que passaram pela escolarização tenham uma certa preocupação com a restrição das uniões civis, mas acredita que “é perfeitamente verdade que a opinião pública negra e as políticas da NAACP estão quase exclusivamente preocupadas com a discriminação no emprego, na habitação e na educação”. Isso se explica pela necessidade social: “as minorias nunca foram os melhores juízes na ordem das prioridades em tais assuntos e há muitos casos em que eles preferem lutar por oportunidades sociais ao invés de direitos humanos ou políticos básicos”. Mesmo assim, conclui que “isso não torna as leis do casamento mais constitucionais ou menos vergonhosas”, uma vez que “a ordem das prioridades na questão dos direitos deve ser determinada pela Constituição, e não pela opinião pública ou pelas maiorias” (Arendt, 1959Arendt, H. (1959). Reflections on Little Rock. Dissent, 1(6), 45-56., pp. 45-46).

No terceiro parágrafo, Arendt desenvolve a segunda desculpa. Ela está diretamente ligada à educação. Arendt responde a um suposto amigo, que lhe chamou a atenção para a questão de que a educação nos Estados Unidos poderia ser vista como inclusão social, como forma de acesso ao trabalho, ao mercado. É que Arendt questiona, no artigo, a dessegregação pela Suprema Corte a partir das escolas, sem uma mudança na legislação, que ocorreria apenas em 1965. Por isso, segundo ela, “esta crítica é inteiramente justa e eu teria tentado inserir uma discussão desse papel no artigo se eu não tivesse entretanto publicado algumas observações sobre a aceitação ampla e acrítica de um ideal rousseauiano na educação em outro contexto”, ou seja, “em um artigo publicado na edição de 1958 de Partisan Review, intitulada The Crisis in Education. Para não me repetir, deixei o artigo inalterado” (Arendt, 1959Arendt, H. (1959). Reflections on Little Rock. Dissent, 1(6), 45-56., p.46). A observação arendtiana tem muito sentido: sua reflexão sobre a crise da educação fundamenta sua visão sobre o papel da escola no mundo atual, em especial, nos Estados Unidos. Em razão de muitos dos leitores não terem em mente esse artigo ou não terem simplesmente lido, pelos mais diversos fatores, acaba-se por ter uma visão bastante parcial da educação em Arendt, apenas e somente lendo o artigo sobre Little Rock. Arendt alerta seu leitor que o ensaio sobre Little Rock é um prolongamento da análise da crise educacional.

No quarto e último parágrafo da introdução, Arendt (1959)Arendt, H. (1959). Reflections on Little Rock. Dissent, 1(6), 45-56. recorda seu leitor de que ela está escrevendo de fora, como uma forasteira em relação aos estados do Sul. Ela se considera, então, uma outsider, uma estrangeira em relação à situação de segregação do Sul. Assim, ela explica que “nunca vivi no Sul e até evitei viagens ocasionais aos estados do Sul porque eles me levariam para uma situação que eu pessoalmente acharia insuportável” e, por isso, “como a maioria das pessoas de origem européia, tenho dificuldade em entender, e muito menos em compartilhar, os preconceitos comuns dos americanos nessa área”. Por isso, desculpa-se, mais uma vez, assumindo que o texto pode “atrapalhar as pessoas boas e ser mal utilizado pelos maus”. Contudo, Arendt considera importante recordar sua origem: “gostaria de deixar claro que, como judia, tomo a minha simpatia pela causa dos negros, como para com todos os povos oprimidos ou sub-privilegiados” e, por certo, “deveria ser favorável e peço ao leitor faça o mesmo” (Arendt, 1959Arendt, H. (1959). Reflections on Little Rock. Dissent, 1(6), 45-56., p. 46).

A introdução original publicada em Responsabilidade e julgamento

A luta da estudante Elizabeth Eckford em Little Rock apareceu para Hannah Arendt através das fotografias dos jornais de Nova York. A adolescente “era perseguida por uma turba de crianças brancas, protegida por um amigo branco de seu pai, a face dando um testemunho eloquente do fato óbvio de que ela não estava precisamente feliz”. A situação aconteceu “por que aqueles que nela apareciam foram diretamente afetados pela ordem do tribunal federal, as próprias crianças” (Arendt, 2004bArendt, H. (2004b). Reflexões sobre Little Rock. In H. Arendt, Responsabilidade e julgamento (pp.261-281). São Paulo: Companhia das Letras., p. 261). A introdução desta versão contém sete parágrafos que são desenvolvidos a partir de duas perguntas básicas: e seu fosse uma mãe negra, e se eu fosse uma mãe branca? Este é o ponto de partida para as considerações arendtianas sobre Little Rock (Gines, 2014Gines, K. T. (2014). Hannah Arendt and the negro question. Bloominghton: Indiana University Press.; Margolick, 2011Margolick, D. (2011). Elizabeth and Hazel: Two women of Little Rock. New Haven: Yale University Press.).

Para compreender inicialmente o caso de Little Rock, Arendt buscou subjetivar o fato, perguntando-se (a) se fosse ela uma mãe negra ou (b) se fosse ela uma mãe branca do Sul.

Na primeira hipótese (a), afirma que “em nenhuma circunstância exporia meu filho a condições que dariam a impressão de querer forçar a entrada num grupo em que não era desejado”, agindo para manter o orgulho próprio, ou seja, “se eu fosse uma mãe negra do Sul, sentiria que a decisão da Suprema Corte, involuntária mas inevitavelmente, colocara o meu filho numa posição mais humilhante do que aquela em que ele se encontrava antes”. Assim,

“sentiria que a própria tentativa de começar a dessegregação na educação e nas escolas não tinha apenas deslocado, e muito injustamente, a carga da responsabilidade dos ombros dos adultos para os das crianças”. A escola seria um lugar indevido para se iniciar uma reforma do mundo, pois essa obrigação seria dos adultos. A questão passa pela positivação dos costumes na legislação. Por isso, “a questão real é a igualdade perante as leis do país, e a igualdade é violada pelas leis da segregação”, uma vez que essas leis “impõem a segregação, e não por costumes sociais e maneiras de educar crianças” (Arendt, 2004bArendt, H. (2004b). Reflexões sobre Little Rock. In H. Arendt, Responsabilidade e julgamento (pp.261-281). São Paulo: Companhia das Letras., pp. 261-263). Confundir o mundo dos adultos com a escola é um passo para politizá-la e acreditar que somente alterando suas regras o mundo será afetado, ou seja, com essa medida a segregação teria fim no futuro.

Na segunda hipótese (b), “novamente tentaria impedir que meu filho fosse arrastado para uma batalha política no pátio da escola” e “sentiria ser necessário o meu consentimento para quaisquer mudanças drásticas”. Evidenciando a distinção entre a vida privada (família) e a vida pública (mundo), Arendt (2004b)Arendt, H. (2004b). Reflexões sobre Little Rock. In H. Arendt, Responsabilidade e julgamento (pp.261-281). São Paulo: Companhia das Letras. afirma que “concordaria que o governo tem uma participação na educação do meu filho na medida que essa criança deve crescer e se tornar cidadã ”; no entanto, “negaria que o governo tenha o direito de me dizer em que companhia o meu filho deva receber a sua instrução”, uma vez que “os direitos de os pais decidirem essas questões para os filhos até eles se tornarem adultos só são questionados pelas ditaduras”. Mais uma vez Arendt insiste que a segregação está para além da escola, pois ela “é imposta pela autoridade governamental” (pp. 263-264).

Arendt explicita que o problema é a norma constitucional, uma vez que “a discriminação e a segregação sejam regra em todo o país, elas são impostas pela legislação apenas nos estados sulistas”. Assim, “essa não é em absoluto uma questão acadêmica”. Por isso, a relação entre política e educação em Little Rock está assentada na “ideia de que se pode mudar o mundo educando as crianças no espírito do futuro” (Arendt, 2004bArendt, H. (2004b). Reflexões sobre Little Rock. In H. Arendt, Responsabilidade e julgamento (pp.261-281). São Paulo: Companhia das Letras., pp. 264-265), quando, de fato, a escola é afetada diretamente pelo mundo que já existe no tempo presente.

A concepção de educação em Hannah Arendt nos auxilia a entender alguns de seus pontos de vista nas hipóteses (a) e (b). O tema da educação em Arendt é problematizado no ensaio “A crise da educação”, publicado originalmente em 1958 (Arendt, 1992Arendt, H. (1992). Entre o passado e o futuro (3a ed.). São Paulo: Perspectiva., p. 221-247). Ela percebeu que a crise da educação norte-americana era uma das cristalizações do mundo moderno (a mais radical é o totalitarismo), da ruptura política ocidental com a tradição, com uma certa teoria da ação, de autoridade e de liberdade. A adoção dos preceitos da pedagogia do pragmatismo para reformar a educação em uma sociedade em conflito espelhou a crise contemporânea em solo norte-americano.

O ensaio sobre Little Rock e seus argumentos

Como deixamos claro nos dois itens anteriores de nossa investigação, houve duas introduções para o mesmo ensaio arendtiano. Após considerar as duas introduções, podemos passar a alguns assuntos no interior do texto. O texto da Dissent apresenta, de maneira não explícita, uma divisão capitular do ensaio. Assim, a revista grafa com letras maiúsculas alguns parágrafos, indicando uma divisão interna em seis partes. Ou, então, em outra interpretação, uma introdução seguida de cinco partes e uma conclusão. Já a versão norte-americana e a tradução brasileira dividem em introdução e Parte I. Uma divisão difícil de compreender. Aceitamos a divisão da Dissent, mais próxima de uma metodologia científica.

Portanto, podemos aceitar como ponto de partida do texto em tela que Arendt discorda do pragmatismo de John Dewey e das repercussões do pensamento pedagógico dele na educação, muito pelo fato do aprender fazendo.

Para Dewey, a ênfase da educação é dada ao aluno e a suas experiências de vida. Arendt (1992)Arendt, H. (1992). Entre o passado e o futuro (3a ed.). São Paulo: Perspectiva. critica o pragmatismo, afirmando que “seja qual for a conexão entre fazer e aprender ... tende a tornar absoluto o mundo da infância” e “sob o pretexto de respeitar a independência da criança, ela é excluída do mundo dos adultos e mantida artificialmente no seu próprio mundo” (p. 242). Arendt afirmou que a questão fundamental da crise educacional norte-americana é a da responsabilidade dos adultos em relação às crianças e jovens, em suma, a crise do amor mundi. Esta responsabilidade define a mediação a ser realizada entre crianças e jovens e a escola, uma vez que “a educação é o ponto em que decidimos se amamos o mundo o bastante para assumirmos a responsabilidade por ele” e, também, “onde decidimos se amamos nossas crianças o bastante para não expulsá-las de nosso mundo e abandoná-las a seus próprios recursos” (p. 247).

Para Arendt, a educação tradicional ocidental tem como marca a responsabilidade pelas crianças e pelos jovens, a fim de colocá-los pouco a pouco em contato com o mundo dos adultos, aquela esfera pública que existe antes da chegada deles e que permanecerá depois da morte. A função da educação é a conservação do mundo pela mediação entre adultos, crianças e jovens, pois “faz parte da essência da atividade educacional, cuja tarefa é sempre abrigar e proteger alguma coisa: a criança contra o mundo, o mundo contra a criança, o novo contra o velho, o velho contra o novo” (Arendt, 1992Arendt, H. (1992). Entre o passado e o futuro (3a ed.). São Paulo: Perspectiva., p. 242).

Quando a educação antecipa as relações mundanas e centra-se nas poucas experiências das crianças e dos jovens que estão ainda em formação – crítica destinada ao pragmatismo –, evidencia-se uma crise. Por isso, a responsabilidade pela introdução dos recém-chegados ao mundo é da educação e de seus dispositivos.

No caso de Little Rock, a escola foi colocada no centro de uma ação judicial de dessegregação em um país com leis de segregação extremamente radicais e racistas. Por isso, Arendt discorda de que a escola deve ser a protagonista da dessegregação, pois implica em levar para a sala de aula um problema ainda não resolvido dos adultos, do governo, dos movimentos sociais. A escola tornou-se protagonista de problema do mundo comum. Assim, afirma Arendt (2004b)Arendt, H. (2004b). Reflexões sobre Little Rock. In H. Arendt, Responsabilidade e julgamento (pp.261-281). São Paulo: Companhia das Letras., “a fotografia me pareceu uma caricatura fantástica da educação progressista”, por negar e abolir “a autoridade dos adultos”, negando “implicitamente a sua responsabilidade pelo mundo em que puseram os filhos e recusa o dever de guiar as crianças por esse mundo” (p. 272). Mais uma vez, uma dura crítica arendtiana à instrumentalização política da educação.

Continuando a exposição dos argumentos arendtianos sobre Little Rock, apresentamos dois conceitos importantes. O primeiro diz respeito à norma constitucional da igualdade, e o segundo é sobre a responsabilidade pelo mundo comum.

1º) O evento de Little Rock se relaciona diretamente com a tradição cultural racista e a omissão da legislação norte-americana. Para Arendt (2004b)Arendt, H. (2004b). Reflexões sobre Little Rock. In H. Arendt, Responsabilidade e julgamento (pp.261-281). São Paulo: Companhia das Letras., “a atitude do país com a sua população negra está arraigada na tradição americana, e em nada mais”, já que “a questão da cor foi criada por um grande crime na história dos Estados Unidos e só tem solução dentro da estrutura política e histórica da República” (p. 266).

A república moderna, para Arendt (2004b)Arendt, H. (2004b). Reflexões sobre Little Rock. In H. Arendt, Responsabilidade e julgamento (pp.261-281). São Paulo: Companhia das Letras., “é baseada na igualdade de todos os cidadãos” e, “como tal, tem uma importância na vida política de uma república maior do que em qualquer outra forma de governo”. Contudo, há um problema na igualdade. Segundo Arendt, este princípio “não é onipotente”, ou seja, “não pode igualar características naturais, físicas”, uma vez que “esse limite só é atingido quando são eliminados os extremos das desigualdades da condição econômica e educacional”, derivando daí um ponto crítico, que é o fato de que, “quanto mais igualdade permeia toda a estrutura da sociedade, mais as diferenças provocarão ressentimento, mais evidentes se tornarão aqueles que são visivelmente e por natureza diferentes dos outros” (p. 268).

Sobre esse primeiro ponto, precisamos nos referir a outro contexto, em que também o racismo predominou. No livro Origens do totalitarismo, Arendt (2004a)Arendt, H. (2004a). Origens do totalitarismo. São Paulo: Companhia das Letras. já conceituava os problemas advindos do princípio regulador de que todos somos iguais perante a lei. Para ela, a ideia de igualdade universal entre os homens, cunhada pela Revolução Francesa em 1789 – e que foi decisiva para a formação do conceito de Estado-nação na Europa –, foi uma das “mais incertas especulações da humanidade moderna”. Para Arendt, quanto mais uma nação se aproxima da igualdade de condições, mais difícil se torna desvencilhar-se da inevitável explicação a respeito das diferenças entre as pessoas e os grupos (o que, a princípio, não é positivo nem negativo, mas poderia criar uma situação de conflito). Os grupos de iguais tendem a se fechar em relação aos outros e aprimorar suas diferenças. Para Arendt (2004a)Arendt, H. (2004a). Origens do totalitarismo. São Paulo: Companhia das Letras., “sempre que a igualdade se torna um fato social, sem nenhum padrão de sua mensuração ou análise explicativa”, são diminuídas as chances “de que se torne princípio regulador de organização política, na qual pessoas têm direitos iguais, mesmo que difiram entre si em outros aspectos” (p. 76).

A questão de fundo é que, no mundo comum, vivemos em pluralidade, não em igualdade. A norma da igualdade pode ser interessante formalmente falando, mas exige uma capacidade política avançada para lidar com os conflitos advindos da frieza da lei.

Os judeus europeus, por exemplo, quanto mais se aproximavam da igualdade, “mais surpreendentes se revelavam as ambivalências; de um lado, o ressentimento social contra os judeus, de outro – e ao mesmo tempo – uma atração peculiar por eles”. É que os sentimentos ambíguos de proteção/favorecimento e ressentimento/discriminação resultaram em antissemitismo, uma vez que “conseguiram envenenar a atmosfera social, perverter as relações sociais entre judeus e gentios e influenciar a conduta dos judeus” (Arendt, 2004aArendt, H. (2004a). Origens do totalitarismo. São Paulo: Companhia das Letras., p. 77).

Para Arendt, tanto a questão judaica na Europa quanto a questão negra norte-americana foram e são uma questão política, e não somente social. Por isso, a compreensão do antissemitismo europeu interferiu diretamente na compreensão arendtiana de Little Rock, uma vez que o assimilacionismo judaico é bastante semelhante ao caso em tela, por seu aspecto de violência contra a condição racial de um grupo social.

Talvez, nesse sentido, consigamos captar a noção arendtiana de que, primeiramente, há um problema no mundo comum que é transferido para a escola. Queremos ver a igualdade para todos, sem preocupação com o seu grau de violência inerente na padronização cultural. Está em jogo aqui a capacidade de resistência dos movimentos sociais em garantir, sim, seus direitos, mas de manter a sua identidade em prol da manutenção de suas características específicas.

Um problema colocado aos judeus – mas que se aplica por analogia à questão negra: o que fizeram eles para combater a discriminação social e política na Europa do século XIX e nas primeiras décadas do século XX? Segundo Arendt (2004a)Arendt, H. (2004a). Origens do totalitarismo. São Paulo: Companhia das Letras., o “destino social do judeu médio foi determinado por sua eterna falta de decisão”. Para os judeus, a questão judaica não era uma questão política – pois “havia perdido todo o significado político, mas obcecava suas vidas pessoais e influenciava suas decisões com redobrada tirania”. A condição política judaica na Europa “tornava-se uma amarga realidade”, em que “não era fácil deixar de se assemelhar ao ‘judeu’ e permanecer judeu; fingir não ser como os judeus e, contudo, demonstrar com suficiente clareza a sua judeidade” (p. 90).

Assim, a questão judaica foi vivenciada dramaticamente no interior de cada judeu, não na vida pública, não como reação a uma condição política imposta pela sociedade europeia. Podemos inferir que, no caso de Little Rock, a crítica de Arendt mantém-se inalterada em relação à questão judaica: a política é a capacidade de agir em concerto, em comum, e nos obriga a agir no espaço público coletivamente, através de uma decisão que trará consequências para o grupo.

2º) Uma questão importante para Arendt foi o fato de a escola pública ser o lugar onde a lei incidiu prioritariamente, obrigando as crianças e os jovens a resolver uma situação que nem mesmo a legislação ainda havia resolvido. De fato, a responsabilidade pelo mundo comum e suas leis é dos adultos, o que “sobrecarregaria as crianças, brancas e pretas, com a elaboração de um problema que os adultos por gerações se confessariam incapazes de resolver”, e, por isso, conclui Arendt (2004b)Arendt, H. (2004b). Reflexões sobre Little Rock. In H. Arendt, Responsabilidade e julgamento (pp.261-281). São Paulo: Companhia das Letras., “ninguém vai achar fácil esquecer a fotografia reproduzida nos jornais e revistas em todo o país” (p. 271).

O problema que surge com a decisão da Suprema Corte de dessegregar a escola de Little Rock é o que diz respeito a aceitar ou não o papel social da escola. E se a escola deve assumir ou não o protagonismo na luta racial. Para Arendt, a intervenção do governo é imprópria, uma vez que a integração racial das escolas deve vir depois da integração racial através da legislação, da mudança constitucional. Arendt não acredita que a educação constitua um recurso público para ampliar a dessegregação. A posição arendtiana é da verticalidade política em relação à escola e à dessegregação, ou seja, da norma constitucional para o mundo concreto. Por isso sua crítica às leis locais, horizontais.

Arendt sempre esteve comprometida com o projeto de igualdade política na sociedade norte-americana, mas difere daqueles que acreditam na legitimidade da integração forçada pelo governo federal, atingindo apenas um estado ou outro. Em relação à escola, Arendt julga que deve ser um lugar de proteção do mundo-mundo, como temos assinalado. Assim, uma integração ou dessegregação com o mandato do governo acaba por inserir crianças e jovens em atividades do mundo-mundo, para as quais elas ainda não estão preparadas de maneira adequada, pois vivem na ontologia da singularidade. O estado deve manter, segundo Arendt, a distinção entre vida pública e vida privada, entre vida política e social.

Esses limites são importantes, porque a política e a vida privada não se confundem: a política é definida pelo princípio da igualdade, em que todos os cidadãos gozam do mesmo direito de votar e ser votados, sem diferenças na sua capacidade de inserção no mundo comum, no espaço público.

No domínio do social, a característica básica é que haja o princípio da discriminação, em que as relações são socialmente constituídas por afinidade pessoal, de classe, de raça, de simetria comportamental e cultural.

O domínio da vida privada é regido pelo princípio da exclusividade: as famílias, por exemplo, são formadas por escolhas das pessoas, privativas, movidas pelo desejo de ter por perto pessoas determinadas, com exclusão de outras, consideradas indevidas ou indesejadas. A vida privada é regida pelo direito de agir com privação dos olhos externos, baseado no interesse estritamente pessoal, individual. Por isso, para Arendt, a ação de dessegregação pelo governo, pelo estado, pela federação, ataca o princípio da vida privada: cada família deve ter o direito de escolher onde vai educar seus filhos, inclusive segregando-os. Assim, Arendt é contrária aos pensadores que politizam a escola.

No caso de Little Rock, foi o governo que ditou as formas de associação e vida social no interior da escola, infringindo os direitos dos pais de criar seus filhos como julgarem

adequado. Por isso, Arendt (2004b)Arendt, H. (2004b). Reflexões sobre Little Rock. In H. Arendt, Responsabilidade e julgamento (pp.261-281). São Paulo: Companhia das Letras. conclui que “forçar os pais a mandar os filhos para uma escola integrada contra a sua vontade significa privá-los de direitos que claramente lhes pertencem em todas as sociedades livres”, ou seja, “o direito privado sobre seus filhos e o direito social à livre associação”. Em relação às crianças e aos jovens, “a integração forçada significa um conflito muito sério entre a casa e a escola, entre sua vida privada e a social”, o que é comum na vida dos adultos, mas “não se pode esperar que as crianças saibam lidar com esses problemas, e assim não se deveria expô-las a eles” (p. 280).

O mundo é um espaço coletivo de convivência, construído pela capacidade humana do trabalho e reconstruído continuamente pela ação, que é

a única atividade que se exerce diretamente entre os homens sem a mediação das coisas ou da matéria, corresponde à condição humana da pluralidade, ao fato de que homens, e não o Homem, vivem na Terra e habitam o mundo.

(Arendt, 2005Arendt, H. (2005). A condição humana (10a ed.). Rio de Janeiro: Forense Universitária., p. 15)

Assim, a conclusão arendtiana é de que somos todos responsáveis pelo mundo que construímos e reformamos pela ação, uma vez que “nenhum homem pode ser soberano porque a Terra não é habitada por um homem, mas pelos homens” (p. 246).

A responsabilidade pelo mundo comum exige que a educação seja um espaço de preparação das crianças e dos jovens para agir no mundo com autonomia. O amor mundi é a responsabilidade pelo que estamos fazendo, ao agir em liberdade. As gerações humanas se sucedem e deixam de herança, para os que estão adentrando no mundo pelo nascimento, o que foi feito. Assim, a qualidade da herança que deixaremos para as futuras gerações, leva à ideia de que “só podemos escapar a responsabilidade política e estritamente coletiva abandonando a comunidade, e como nenhum homem pode viver sem pertencer a alguma comunidade, isso significa simplesmente trocar uma comunidade por outra, e assim um tipo de responsabilidade por outro” (Arendt, 2004cArendt, H. (2004c). Responsabilidade e julgamento. São Paulo: Companhia das Letras., p. 217).

O caso Little Rock é emblemático nesse sentido, pois evidencia que há uma esperança vazia e imaginária no futuro, sem o comprometimento da ação no espaço coletivo ou, dizendo de outra maneira, para Arendt, os adultos se omitem na ação e deixam a cargo da educação e das crianças e dos jovens a resolução dos problemas do mundo comum.

Portanto, o caso Little Rock apresenta um problema político em relação à igualdade de direitos que Arendt acredita ser formalmente fundamental: ter sua garantida conquistada, mas isso pode levar a um assimilacionismo negador da identidade do grupo. É preciso ter capacidade de resistência para não perder a pluralidade, a diversidade. Outro problema é o da responsabilidade pelo mundo comum, o amor mundi, mundo que será herdado pelas futuras gerações e é uma construção coletiva, sujeita à pluralidade humana. O amor mundi em Arendt é o respeito ao tempo de maturação das crianças e dos jovens, na educação, pela escola, para agir no mundo (Almeida, 2011Almeida, V. S. de. (2011). Educação em Hannah Arendt: entre o mundo deserto e o amor ao mundo. São Paulo: Cortez., pp. 52-90).

Conclusões: a escola é uma esfera antemundana

Algumas considerações finais podem ser feitas a partir da leitura do ensaio de Arendt sobre a dessegregação de Little Rock.

Em primeiro lugar, a escola é o espaço preparatório para o pensamento, para o juízo e para o querer. Nesse sentido, a educação opera na interioridade do ser humano, presentificando, em suas relações institucionais, nas mais variadas interações que acontecem no cotidiano escolar, a preparação da vida do espírito para habilitar o sujeito à ação no mundo comum. Não se pode desvincular da escola essa realidade: ela não é o mundo, e os exercícios que inserem o mundo-mundo no quase-mundo que é a escola são apenas simulações éticas, morais, intelectuais, científicas, políticas, sociais.

A escola é uma esfera antemundana, não mais família, pois não se trata da vida privada, mas ainda não mundo, pois não é o mundo concreto para os quais as crianças e os jovens não estariam prontos para agir. Isso se torna evidente na legislação que pretende, pelo menos no Brasil, discriminar a participação no mundo comum com responsabilidade absoluta aos 18 anos e, em alguns casos, com 21 anos. Por isso, Arendt classifica a ontologia da singularidade como fundamental para antecipar o mundo, ensaiando-o em sala de aula, no pátio escolar, nos debates entre os alunos e os adultos.

Em segundo lugar, o pressuposto de que a ontologia da singularidade é um período de formação das crianças e dos jovens para o mundo se confirmou em Little Rock. Os adolescentes envolvidos no caso da dessegregação foram levados ao mundo pelos pais que os lançaram no mundo. Na análise da fotografia fica claro: eles são hostilizados no espaço do mundo, não no interior da escola. E a atuação do governador Faubus indica exatamente isso: ele não deixou as crianças entrarem na escola, onde estariam defendidas do mundo comum.

Ao exporem-se ao mundo, os adolescentes de Little Rock sofreram a opressão do mundo-mundo que a escola somente aos poucos vai atualizando e para o qual os vai preparando. A visibilidade dos adolescentes no mundo-mundo foi registrada pelos jornais da época, mostrando que a exposição deles – os hostilizados e os hostilizadores – extrapolou os muros da escola, e a escola não pôde fazer nada a favor deles: o mundo real, concreto pode ser muito mais cruel do que se imagina. Estavam as crianças e os adolescentes preparados para pensar, ajuizar e querer agir dessa ou daquela maneira, se foram expostos de maneira abrupta aos mecanismos mundanos, incluindo neles a imprensa?

Em terceiro lugar, é preciso assumir que a tarefa de estabelecer uma ontologia da singularidade a partir de acoplamentos de outras obras arendtianas ao tema da educação tem seus limites. Estamos na possibilidade de um exercício intelectual que não garante verificação em textos arendtianos sobre a educação. Nesse caso, ficamos com a sensação de que estamos no meio de um vendaval do pensamento, não apenas de um vento, uma brisa: vamos colhendo nos textos arendtianos as informações que ampliam nosso horizonte investigativo. Portanto, precisamos assumir que todo exercício está sujeito a reducionismo e acoplamentos que trafegam em contextos muito diferentes.

Em quarto lugar, precisamos esclarecer que neste capítulo investigamos um fato e uma atividade do espírito, o pensamento. Qual é a intenção, ao relacionar Little Rock e o pensamento? Pretendemos exercitar a compreensão de um caso específico, a dessegregação de Little Rock, com a definição de pensamento em Arendt, para concluir que o pensamento antecede a ação e é afetado por ela, que a singularidade é afetada pela pluralidade, que a escola é afetada pelo mundo – enfim, que não existe realidade humana, senso comum, sem o pensamento, sem a atividade de pensar ou de sua negativa, o que seria trágico. De fato, com os olhos de hoje, fica difícil entender, apesar de o pensamento poder nos mostrar isso, como uma sociedade pautada pela democracia permitiu a segregação racial. A questão negra norte-americana é outro exercício arendtiano derivado da questão judaica. A pergunta é a mesma: por que agimos dessa maneira com outros seres humanos com os quais compartilhamos o mundo comum?

Portanto, o sonho da educação, que é um mundo comum melhor, é um sonho que chega velho às crianças e aos jovens, uma vez que o currículo foi montado em situações históricas anteriores, e as experiências já foram vivenciadas. Cabe acreditar no futuro: não há outra forma. A escola não muda o mundo, pois o mundo tem suas próprias regras, mas ela pode preparar minimamente os que vão agir nele, povoando o pensamento com pontos seguros em que, por mais forte que seja a tempestade, a ventania imposta pela realidade, os singulares se possam segurar. Talvez a escola esteja do lado daqueles que acreditam que é possível fazer alguma coisa pelo mundo.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    18 Abr 2019
  • Data do Fascículo
    2019

Histórico

  • Recebido
    30 Set 2017
  • Aceito
    20 Dez 2017
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