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Dramatização de contos filosóficos na formação do educador1 1 Apoio: Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP).

Resumo

No presente artigo o foco é a utilização da dramatização de contos filosóficos com mitema iniciático no cultivo de mestria na formação inicial de educadores. A pesquisadora colocou em prática suas propostas na condução de vivências curriculares entre 2012 a 2016 com estudantes de Pedagogia e licenciandos. O âmbito de uma educação de sensibilidade – que nem por isso exclui a racionalidade, mas não se restringe à racionalidade ocidental de caráter aristotélico, cartesiano, iluminista e protestante – tem possibilitado uma leitura mais crítica (contra ideológica), reflexiva (constructos) e sensível (perceptos) dos participantes, levando-os a ter, como opção pessoal, a tarefa de assumir como projeto profissional e existencial a busca mais coerente de modulações do ser.

Palavras-chave
dramatização; contos filosóficos; mitema iniciático; formação de educadores

Abstract

This article focuses on the use of the dramatization of philosophical stories with initiation mytheme in the cultivation of mastery in the initial education of educators. The researcher put her proposals into practice in the conduction of curricular experiences between 2012 and 2016 with Pedagogy and Teaching-degree undergraduates. The scope of an education of sensibility—which does not exclude rationality but is not restricted to the Western rationality of Aristotelian, Cartesian, Illuminist, and Protestant nature—has enabled a more critical (counter-ideological), reflexive (constructos) and sensitive (perceptos) reading from the participants, leading them to have, as a personal option, the task of assuming—as a professional and existential project—the more coherent search for the modulations of being.

Keywords
dramatization; philosophical stories; initiation mytheme; education of educators

Prólogo

Este artigo deriva da pesquisa de Doutoramento (financiamento CAPES 2011-2013/ FAPESP 2013-2015) e Pós-Doutoramento (financiamento FAPESP 2016-2018), ambos na Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo, sob orientação/ supervisão do prof. Dr. Marcos Ferreira-Santos. No presente artigo o foco é a utilização dos contos filosóficos (Carrière, 2004Carrière, J.-C. (2004). O círculo dos mentirosos: contos filosóficos do mundo inteiro. São Paulo: Ediouro., 2008Carrière, J.-C. (2008). Contos filosóficos do mundo inteiro. São Paulo: Ediouro.) com mitema (Durand, 1988Durand, G. (1988) A imaginação simbólica. São Paulo: Edusp., 1996) iniciático (Eliade, 2004Eliade, M. (2004). Ritos de iniciação e sociedades secretas. Portugal: Ésquilo., 2010;Eliade, M. (2010). O sagrado e o profano: a essência das religiões. São Paulo: WMF Martins Fontes. Gusdorf, 2003Gusdorf, G. (2003). Professores para quê? Para uma pedagogia da pedagogia. São Paulo: Martins Fontes.) como instrumentos para vivências curriculares no cultivo de mestria (Gusdorf, 2003Gusdorf, G. (2003). Professores para quê? Para uma pedagogia da pedagogia. São Paulo: Martins Fontes.) na formação inicial de educadores.

Eu, como pesquisadora, tive a oportunidade de colocar em prática minhas propostas de vivência curricular na formação inicial de educadores por meio da condução de estágios no núcleo de dramatização de contos do Laboratório Experimental de Arte Educação & Cultura –Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (Lab_Arte). O Lab_Arte é um laboratório didático e diretório de pesquisa de pós-graduação e atividade permanente de cultura e extensão, com visada antropológica e ação formadora interdisciplinar numa perspectiva de vivência curricular. Com funcionamento oficial desde 2006, conta com a articulação da formação inicial de professores com investigação em nível de pós-graduação (mestrados, doutorados e pós-doutorados) com financiamento por várias agências (CAPES, CNPq, FAPESP e convênios internacionais). O Lab_Arte2 2 Para saber mais, acesse: https://www.labarte.fe.usp.br/. Recuperado em 22 de janeiro de 2019. está estruturado atualmente em vários núcleos de vivência e experimentação em cada linguagem artística, sob monitoria de um graduando (a) ou pós-graduando (a) com sobeja experiência na área. Dentre as atividades regulares, o núcleo de dramatização de contos esteve em funcionamento entre 2012 e 2016 e foi o principal lócus da pesquisa empírica relatada no presente artigo.

Essas vivências curriculares ocorreram em 4 semestres não consecutivos, entre 2012 e 2016, com frequência semanal de 1 hora e 30 minutos de duração, completando em média de 18 horas por semestre. Aproximadamente cerca de 15 estudantes de Pedagogia e outras Licenciaturas da instituição e outros vindos da comunidade universitária – educadores em formação continuada – com idades entre 18 e 50 anos, frequentaram assídua e pontualmente os encontros de vivências curriculares a cada semestre, sendo que somente uma estudante de Pedagogia seguiu frequentando fielmente os 4 semestres oferecidos. Os demais participantes frequentaram apenas 1 dos semestres oferecidos.

Os estágios de vivência curricular foram conduzidos, utilizando a dramatização (Cabrera, 2015Cabrera, T. (2015). A ético-poética do trabalho sobre si por meio da dramatização de contos filosóficos de mitema iniciático na formação inicial de educadores. Tese de Doutorado, Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo, 2015., 2017Cabrera, T. (2017). Dramatização de contos filosóficos na formação de educadores como campo de experiência. Cadernos GIPE-CIT- UFBA, Ano 21, 38.) de contos filosóficos (Carrière, 2004Carrière, J.-C. (2004). O círculo dos mentirosos: contos filosóficos do mundo inteiro. São Paulo: Ediouro., 2008) com mitema (Durand, 1988Durand, G. (1988) A imaginação simbólica. São Paulo: Edusp., 1996) iniciático (Eliade, 2004Eliade, M. (2004). Ritos de iniciação e sociedades secretas. Portugal: Ésquilo.,; Gusdorf, 2003Gusdorf, G. (2003). Professores para quê? Para uma pedagogia da pedagogia. São Paulo: Martins Fontes.) como instrumentos no cultivo de mestria (Gusdorf, 2003Gusdorf, G. (2003). Professores para quê? Para uma pedagogia da pedagogia. São Paulo: Martins Fontes.) na formação inicial de educadores. Mais adiante neste artigo serão apresentados os conceitos enumerados e as articulações entre eles.

Como condutora das práticas de dramatização, eu previa um conto filosófico por encontro, sendo que o grupo inteiro trabalhava sobre este mesmo conto. Uma vez ou outra selecionava duas versões de um mesmo conto para trabalhar num mesmo encontro. O que tentei garantir foi que, para os educadores em formação inicial, cada encontro tivesse uma unidade própria. Em paralelo, no planejamento do trabalho em um semestre, testava sequências diferentes para os contos selecionados, buscando que o “tema central” da mestria pudesse se complexificar e se desdobrar até uma espécie de “pergunta intrigante” como “conclusão”. A cada semestre, utilizando na maior parte diferentes contos filosóficos ou, algumas poucas vezes, contos repetidos, mas com diferentes sequências entre eles, as tentativas foram que uma narrativa interior permeasse os vários contos selecionados, cada encontro tecendo um aspecto da tessitura urdida dialogicamente entre os contos filosóficos dramatizados com as indagações dos próprios participantes.

Acompanhando as questões contemporâneas postas pela interdisciplinaridade e pelo pensamento da razão complexa (Morin, 2007Morin, E. (2007). Introdução ao pensamento complexo. Porto Alegre: Sulina.), compreendo que a educação é um modo de proporcionar ao Ser o exercício de realizar o seu potencial humano, sua humanitas, levando em conta sua neotonia (Ferreira-Santos & Almeida, 2012Ferreira-Santos, M., & Almeida, R. (2012). Aproximações ao imaginário: bússola de investigação poética. São Paulo: Képos.) – seu inacabamento – e sua capacidade de autopoiesis (Maturana & Varela, 1997Maturana, H., & Varela, F. (1997). De máquinas a seres vivos - Autopoiese: a organização do vivo. Porto Alegre: Artes Médicas.) – autodestinação e recriação de si. A investigação priorizou o “aprender a ser”, sobretudo através da experiência e da experimentação como instâncias formadoras.

Prefiro a composição de um currículo de formação inicial de educadores pautado numa ideia não linear de tempo, o tempo kairológico (em referência a kairós, do grego antigo, que significa “momento oportuno”, momento indeterminado em que algo especial acontece). Trata-se do tempo da oportunidade, do fruir do momento presente. Não é nem o tempo do saudosismo de um passado glorioso, como nos mitos da Idade de Ouro, em que se trata do “eterno antes” (Ricoeur, 2013Ricoeur, P. (2013). Amor e justiça. São Paulo: WMF Martins Fontes.). Nem tampouco a espera de um futuro redentor dos mitos messiânicos, o eterno “ainda não” (Ricoeur, 2013Ricoeur, P. (2013). Amor e justiça. São Paulo: WMF Martins Fontes.). O momento oportuno é o momento da epifania, do “agora-já”, de aproveitar-se das oportunidades que surgem, das perguntas, dos conflitos, das dificuldades vivenciadas pelos aprendizes e pelo mestre e entre eles, como estímulos para a composição de propostas e de encaminhamentos. Aprendendo a jogar enquanto se joga, criando regras de jogo, ao se depararem com a necessidade delas, liberarem-se de convenções de outrora que não servem ao propósito de agora.

De forma extraordinária, podemos, às vezes, sob certas condições artificialmente reunidas, vivenciar, ainda, instantes raros do tempo aiônico. Essa noção de tempo está relacionada à intensidade do momento da experiência, não à sua duração. É o tempo-acontecimento intensivo, tempo sagrado e eterno, sem uma medida precisa, um tempo da criatividade em que as horas não passam cronologicamente. É o “tempo em que não havia tempo, o lugar onde não havia lugar”, como diria a contadora de histórias e livre-docente da USP, Regina Machado (informação verbal, 2006)Machado, R. (2006). Acordais: a arte de contar histórias - Paço do Baobá. Curso, São Paulo/ SP.. Quanto à vivência deste tempo, só nos resta esperar que “me passe” (Larrosa, 2016Larrosa, J. (2016). Tremores. Belo Horizonte: Autêntica.), colocando-me disponível.

Além disso, priorizo o saber da experiência (Larrosa, 2016Larrosa, J. (2016). Tremores. Belo Horizonte: Autêntica.), de expor-me aos riscos, aos perigos, numa travessia no desconhecido, que me forma e transforma à medida que aceito e consinto que a experiência “me trabalhe”. É uma possibilidade de itinerário de formação (Ferreira-Santos & Almeida, 2012Ferreira-Santos, M., & Almeida, R. (2012). Aproximações ao imaginário: bússola de investigação poética. São Paulo: Képos.) de cunho existencial (sem ser existencialista) e poiética (sem pretensões estetizantes). O saber da experiência me im-pressiona por instantes fugidios. Propostas em que se evitam o “excesso de informação”, o “excesso de opinião”, a “falta de tempo” e o “excesso de trabalho” (Larrosa, 2016Larrosa, J. (2016). Tremores. Belo Horizonte: Autêntica.), visando oferecer uma perspectiva subversiva e, ao mesmo tempo, ancestral.

Uma perspectiva de educação que não ignora ou menospreza a importância da questão do imaginário e sua repercussão na formação do aprendiz, mas sim uma das iniciativas que reconhece a influência do imaginário e utiliza essa potência a favor de uma ético-poética humanística.

Parto da observação de que atualmente na sociedade dita ocidentalizada os meios de comunicação de massa propagam continuamente para milhões de pessoas impressões pobres e grosseiras (Durand, 1988Durand, G. (1988) A imaginação simbólica. São Paulo: Edusp.) e assim é parcialmente atendida, de maneira desviada, uma necessidade humana real: a de alimentar-se de impressões refinadas, provenientes dos símbolos, da dimensão invisível e inefável que, paradoxalmente, nos exige o esforço fenomenológico da expressão para tentar designá-la (Merleau-Ponty, 1992Merleau-Ponty, M. (1992). O visível e o invisível. São Paulo: Perspectiva.).

A ausência dessas impressões ou o recebimento delas de modo empobrecido ocasiona inúmeros prejuízos à saúde integral dos indivíduos, em que cada pessoa acaba vivendo solitariamente sua angústia, mas poderia ter na arte uma ajuda para suportar “essa insuportável indigência e a atravessar esta ‘noite do mundo’ que é o dia tecnológico” (Haar, 2000Haar, M. (2000). A obra de arte: ensaio sobre a ontologia das obras. Rio de Janeiro: Difel., p. 96) dos tempos contemporâneos. Compreendo assim que uma educação de sensibilidade (Duarte-Junior, 2010; Ferreira-Santos, 2005Ferreira-Santos, M. (2005). Crepusculário: conferências sobre mitohermenêutica & educação em Euskadi (2a ed.). São Paulo: Zouk.; Ferreira-Santos & Almeida, 2012Ferreira-Santos, M., & Almeida, R. (2012). Aproximações ao imaginário: bússola de investigação poética. São Paulo: Képos.) do educador em formação inicial seja um modo de favorecer o acesso ao “alimento sagrado” que a arte “pode expressar e, talvez, preservar” (Haar, 2000Haar, M. (2000). A obra de arte: ensaio sobre a ontologia das obras. Rio de Janeiro: Difel., p. 96). Diante das barreiras internas e externas que me parecem tão grandes, às vezes busco pistas que me vitalizem para fazer frente a elas, estratégias de “sobrevivência da alma” diante destas angústias vividas no cotidiano. É no questionamento e na busca de soluções no cotidiano que se dá a possibilidade de relacionamento entre os níveis macro e microssociológico (Epinay citado por Ferreira-Santos & Almeida, 2012Ferreira-Santos, M., & Almeida, R. (2012). Aproximações ao imaginário: bússola de investigação poética. São Paulo: Képos.). Creio que é na vida cotidiana que poderia reconhecer os produtos da lógica de hierarquização do sistema social e dos paradigmas em educação vigentes. É também aí, no cotidiano, que teria uma fortuita oportunidade de romper (ou suspender por alguns instantes) estes mecanismos alienantes, por meio de uma “reflexão ativa e de uma ação reflexiva” (Ferreira-Santos, 2005Ferreira-Santos, M. (2005). Crepusculário: conferências sobre mitohermenêutica & educação em Euskadi (2a ed.). São Paulo: Zouk., p. 77), numa conduta ético-poética de viés hermenêutico-fenomenológico.

Mais do que a proposição de mais um “novo”, “inédito” e “salvador” currículo na formação inicial de educadores, trata-se de uma abordagem em que a produção do saber é vista como um processo indireto sem a pretensão de um resultado previsto de antemão (projeto) e nenhuma finalidade externa ao ato de aprender (instrumentalização). Só há respostas possíveis diante da experiência que cada um vive, quando acompanhado dos outros, diante dos outros e diante de si mesmo. “A educação como ato que nunca termina e que nunca se ordena. A educação como poiesis, quer dizer, como um tempo de criatividade e de criação” (Skliar, 2010Skliar, C. A. (2010). Entre a diferença e os diferentes: retorno do outro ou poética de um Eu que hospeda? In Ferreira-Santos, & E. S. L. Gomes (Orgs.), Educação & Religiosidade: imaginários da diferença (pp. 185-215). João Pessoa: Editora Universitária UFPB., p. 154), ou seja, designa um percurso formativo do sujeito como sujeito no mundo.

Vislumbro a possibilidade de orientar o ato de ensinagem, isto é, “indissociabilidade entre ensino e aprendizagem como processos simultâneos” (Ferreira-Santos & Almeida, 2012Ferreira-Santos, M., & Almeida, R. (2012). Aproximações ao imaginário: bússola de investigação poética. São Paulo: Képos., p.54), numa direção em que mestre e aprendiz se descobrem e descobrem muitas coisas a aprender que lhe interessam e passam a empreender seus próprios caminhos de formação. Partilha-se uma experiência em comum, mas cada um potencialmente experienciando certo nível de realização de si mesmo. Aprendendo a pertencer ao coletivo, enquanto exerce sua singularidade, se encantando pelos outros, ao reconhecer a semelhança de humanidade do qual se é portador. É muito mais uma busca de “vibração com o outro”, “da experiência viva” de uma “irrupção (inesperada) do outro, do ser-outro-que-é-irredutível-em-sua-alteridade” (Skliar, 2010Skliar, C. A. (2010). Entre a diferença e os diferentes: retorno do outro ou poética de um Eu que hospeda? In Ferreira-Santos, & E. S. L. Gomes (Orgs.), Educação & Religiosidade: imaginários da diferença (pp. 185-215). João Pessoa: Editora Universitária UFPB., p.149). Isto pede uma conduta ético-poética não reducionista do outro e do outro a uma de suas funções, um caminho em diálogo e confrontação com a alteridade. Pede um exercício de construção de si e de seu itinerário de formação em companhia dos outros tais como são: “fazer-se inteiramente para cada um segundo os caminhos de cada um” (Mounier citado por Ferreira-Santos & Almeida, 2012Ferreira-Santos, M., & Almeida, R. (2012). Aproximações ao imaginário: bússola de investigação poética. São Paulo: Képos., p.130).

Desse modo compreendo currículo muito mais como princípios de trabalho, como preceitos e procedimentos (vivência curricular) do que como um roteiro ou grade definidos de antemão. É importante levar em conta as pessoas, o lugar, o tempo e a experiência vivida para que, no encontro entre mestre e aprendiz, se componha um itinerário de formação inicial de educadores.

A formação inicial de educadores

Desde o início de seu funcionamento oficial em 2006, o Lab_Arte tem recebido grande procura pelos cursos por parte dos estudantes em Pedagogia, licenciandos e comunidade em geral. Para os estudantes, as atividades no Lab_Arte não são obrigatórias, ainda que contem como horas de estágio e/ ou atividades orientadas. O Lab_Arte apresenta-se como uma oportunidade do graduando em Pedagogia e Licenciatura para tomar contato com práticas de cultivo das linguagens artísticas em arte-educação.

Em contato com as práticas no núcleo de dramatização de contos do Lab _Arte entre 2012 e 2016, vários estudantes de Pedagogia e licenciandos em formação inicial relataram (Cabrera, 2015Cabrera, T. (2015). A ético-poética do trabalho sobre si por meio da dramatização de contos filosóficos de mitema iniciático na formação inicial de educadores. Tese de Doutorado, Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo, 2015.) que grande parte de uma formação inicial como educadores só lhes estimula suas faculdades verbo-racionais e que as atividades de dramatização de contos filosóficos ampliam sua formação, agregando-lhes percepções que provêm de outras formas de aquisição do conhecimento, como sensações, sentimentos e intuições. Esta prática de dramatização de contos filosóficos sugeriu aos estudantes itinerários de formação (Ferreira-Santos & Almeida, 2012Ferreira-Santos, M., & Almeida, R. (2012). Aproximações ao imaginário: bússola de investigação poética. São Paulo: Képos.) complementares àqueles de cunho escolarizante iluminista, protestante aristotélico-cartesiano eurocêntrico:

O curso de dramatização foi tão divertido quanto possível, mantendo uma leveza e uma fluidez que deixaram passar quase despercebido o caráter didático presente nele, ou antes, é a própria essência da forma didática por ele desenvolvida.

(Guilherme, licenciando em História, Universidade de São Paulo) 3 3 Dados coletados durante o processo da pesquisa. Os nomes são fictícios para atender os princípios da Comissão de Ética da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo.

A experiência viva de ter participado desse processo foi extremamente significativa para mim, em vários sentidos. Eu, que costumava ser uma pessoa “de falar e escrever bastante”, ultimamente tenho sido uma pessoa “de sentir bastante”, e a oportunidade de explorar intensamente o “sentir” veio muito ao encontro desse período da minha vida[ênfases no original].

Até algum tempo, eu idealizava o aprendizado como algo bastante concreto, sem me dar conta de que, na verdade, eu estava tratando-o como algo completamente abstrato. Explico: para mim, aprender era sinônimo de verbalizar e raciocinar, ou seja, eu só aprendia quando conseguia (ou achava que conseguia) teorizar sobre um assunto. Esse processo era tão habitual, que julgava viver uma experiência objetiva enquanto, na verdade, eu vivia uma abstração ou até mesmo fantasias. Aos poucos, essa percepção foi fazendo-se mais clara para mim e, durante esse processo, o lugar da escrita foi ficando mais afastado em relação ao lugar da sensação. Comecei, lentamente, a não precisar mais escrever longos textos narrando minhas (supostas) impressões ou (supostas) experiências. Devagar, essa habilidade de realmente vivenciar o momento foi tomando uma importância muito maior. Hoje sei que estou só começando a compreender a dimensão dessa forma de estar no mundo, aliada às outras formas que eu conheço até então.

Esse quadro geral sobre como me percebo e como estou me encaixando na realidade cotidiana me ajudou a captar com muita sensibilidade os ensinamentos transmitidos durante a dramatização dos contos, ao mesmo tempo em que a dramatização construía em mim, lentamente a cada encontro, a possibilidade de afinar essa percepção, revelando um processo de retroalimentação mútua.

(Sarah, estudante de Ciências Moleculares, Universidade de São Paulo)

Ao se depararem com práticas alternativas à sua formação escolar anterior, os estudantes passaram a refletir e questionar também os paradigmas de sua formação acadêmica atual. “Acho que, de tantos professores que já tive na vida, quase nenhum perguntava a opinião dos alunos ao fim do curso, ninguém pedia um feedback, então é algo com o qual não estou acostumada...” (Mayumi, estudante de Pedagogia, Universidade de São Paulo).

Os educadores em formação começaram a pensar sobre opções profissionais, questionando o mercado e as relações de trabalho como educadores. O relato a seguir é um fragmento de carta de uma estudante de Pedagogia, participante do núcleo. Por meio de sua carta podemos conhecer nas entrelinhas uma realidade de mercado, vista do ponto de vista de uma estagiária numa escola particular de Educação Infantil e que já se depara com as contradições entre uma “pedagogia ideal” e as condições às quais tem de se submeter no trabalho cotidiano. E também como a práxis proposta no núcleo serviu como contraponto ao paradigma vivenciado pela estagiária:

por toda a situação, pela falta de interação que essa criança tem com outras de sua idade, enfim, tinha muita impressão de que junto com ela, eu tinha me perdido como criança, como educadora, como professora. Eu estava presa dentro do meu corpo, como as crianças, parecia que eu apenas estava ali, mas não existia. Não tinha aquele brilho, aquela vontade de brincar, correr, pular, pois sempre fiz isso com meus alunos. Quando eu ia aos encontros [do núcleo], sabia que ali encontraria uma forma de me encontrar dentro de mim. De me sentir. De saber que a criança que sempre existiu em mim de alguma forma ainda estava ali e isso me fazia extremamente feliz.

Pois por mais exausta que eu estivesse eu sabia que me dedicar a esse momento me faria sair mais leve.

(Rebeca, estudante de Pedagogia, Universidade de São Paulo)

Para Jaci, participante do núcleo, o questionamento sobre as condições de trabalho como estagiária em educação fundamental lhe trouxe elementos para chegar a uma direção:

Quando questionei minha capacidade como professora e me culpei por fazer um trabalho desinteressado e forçado devido a um esgotamento extremo em relação a crenças que não são minhas, tive uma “pedra preciosa em minhas mãos”4 4 Referência ao conto “A pedra na mão” (Carrière, 2004, pp.158-159), ponto de partida de uma das vivências curriculares no núcleo de dramatização de contos. por tempo suficiente para perceber que se eu não conhecer bem e aprender a amar aquilo que desejo como profissão, nunca poderei ser uma profissional segura e realizada com aquilo que escolhi exercer [ênfases no original].

(Jaci, estudante de Pedagogia, Universidade de São Paulo)

Verifico o quanto é importante o cultivo equilibrado das funções motora, instintiva, intelectual e emocional (Ouspensky, 2009Ouspensky, P.D. (2009). Psicologia de uma evolução possível ao homem. São Paulo: Pensamento.), ou mais simplesmente diríamos: corpo, mente e sentimento trabalhando em harmonia. Essas funções, trabalhando em harmonia, poderiam permitir o pleno exercício de características ontológicas humanas que estão negligenciadas, adormecidas ou esquecidas no homem urbano, ocidentalizado e dito desenvolvido. Essas características cultivadas pelo educador poderiam vir a ser um chamado para que os aprendizes também desejassem positivamente algo de melhor qualidade para si e para os demais.

A percepção de ausências e lacunas que provém da formação inicial dos educadores parceiros nesta pesquisa, talvez possa lhes gerar a necessidade de buscar. A necessidade advinda da percepção gera um desejo genuíno de buscar, de tentar, de experienciar modulações do ser (Merleau-Ponty, 1992Merleau-Ponty, M. (1992). O visível e o invisível. São Paulo: Perspectiva.). Uma das inúmeras maneiras de exercitar essas modulações do ser é por meio do contato do educador em formação inicial com as personagens, as características dos mestres de tradições e iniciadores que recorrentemente aparecem em certos contos filosóficos.

Dramatização

Há muitas formas de composição teatral que privilegiam a improvisação. No final do século XIX e em todo o século XX, a improvisação cênica ressurgiu sob formas variadas e com finalidades múltiplas. Ela pode ser utilizada como base para a construção ou desconstrução do texto teatral, mas também como exercício que serve de veículo para variadas formas de comunicação e expressão. Interessa-me, especialmente, aquela modalidade de improvisação que “parte de um princípio claro: o fazer teatral traz em seu próprio bojo os elementos que podem contribuir para o crescimento do homem” (Pupo, 2005Pupo, M. L. de B. (2005, julho/dezembro). Para desembaraçar os fios. Educação e realidade, 30, 217-228., p. 227).

Em minha abordagem à improvisação teatral, privilegio um trabalho de autoformação e autodesvendamento do educador em formação inicial por meio da dramatização (Cabrera, 2015Cabrera, T. (2015). A ético-poética do trabalho sobre si por meio da dramatização de contos filosóficos de mitema iniciático na formação inicial de educadores. Tese de Doutorado, Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo, 2015., 2017Cabrera, T. (2017). Dramatização de contos filosóficos na formação de educadores como campo de experiência. Cadernos GIPE-CIT- UFBA, Ano 21, 38.) de contos filosóficos. Trata-se de práticas de uma educação de sensibilidade (Duarte-Junior, 2010; Ferreira-Santos, 2005Ferreira-Santos, M. (2005). Crepusculário: conferências sobre mitohermenêutica & educação em Euskadi (2a ed.). São Paulo: Zouk.; Ferreira-Santos & Almeida, 2012Ferreira-Santos, M., & Almeida, R. (2012). Aproximações ao imaginário: bússola de investigação poética. São Paulo: Képos.).

A partir de uma razão sensível, do exercício da imaginação, da experimentação poética e valorização do imaginário para lidar com a alteridade sem mecanismos etnocêntricos....A educação de sensibilidade [ênfase no original] considera a educação como um fim em si mesma e não como meio para se atingir finalidades instrumentais.

(Ferreira-Santos & Almeida, 2012Ferreira-Santos, M., & Almeida, R. (2012). Aproximações ao imaginário: bússola de investigação poética. São Paulo: Képos., p. 69)

Por tratar-se de uma prática de educação de sensibilidade, a abordagem não é instrumentalista: não se trata da formação de multiplicadores, os educadores em formação inicial não são incentivados nem cobrados da multiplicação das vivências curriculares com seus possíveis educandos. Também não se prevê a multiplicação das aprendizagens relativas às especificidades da linguagem cênica ou dos processos estratégicos para a busca da compreensão dos contos filosóficos. Também não se trata de uma educação profissionalizante para a formação de atores, contadores de histórias, palestrantes, oradores, terapeutas ocupacionais, psicodramatistas, sociodramatistas, psicólogos da área de recursos humanos, arte-terapeutas ou afins.

As vivências curriculares do núcleo de dramatização de contos se apresentam no contexto de arte-educação. Adotando a expressão genérica de arte-educação, não me aterei às inúmeras nomenclaturas que também dão conta da intersecção entre educação e arte em suas respectivas trajetórias históricas e cujo contexto não é o objeto deste artigo. Entendo que a arte-educação pode propiciar experiências e vivências experimentais na linguagem cênica, para o exercício de si mesmo, no processo de autoformação dos educadores em formação inicial. São vivências curriculares relacionadas ao jogo.

Adoto aqui a definição de Huizinga para jogo: é uma situação temporária, regrada, convencional, “que cria ordem e é ordem” (Huizinga, 1999Huizinga, J. (1999). Homo ludens: o jogo como elemento de cultura. São Paulo: Perspectiva., p. 13). E me refiro a um tipo específico de jogo, o jogo de categoria mimicry (Caillois, 1990Caillois, R. (1990). Os jogos e o homem: a máscara e a vertigem. Lisboa: Cotovia.): um jogo que pede a aceitação temporária de uma ilusão na encarnação de um comportamento, portanto dando ao jogo caráter de mímica, disfarce, simulação, simulacro.

Caillois (1990)Caillois, R. (1990). Os jogos e o homem: a máscara e a vertigem. Lisboa: Cotovia. reconhece o jogo como fenômeno antropológico e aponta que, nas várias categorias deles, incluindo a de mimicry, existem diferentes gradações de jogo desde paidia (menos regrados, mais caóticos) até ludus (mais regrados, mais sistematizados). No contexto do teatro-educação, verificamos que os jogos de categoria mimicry contemplam desde gradações mais simples, como as brincadeiras dramatizadas das crianças pequenas (brincadeiras dramatizadas de faz-de-conta), até as apresentações mais organizadas e complexas em torno do espetáculo teatral na escola. Longe de hierarquizar ou pretender dar um juízo de valor, cada uma dessas gradações tem seu valor intrínseco.

Minha opção ético-poética tem sido nos últimos anos pela dramatização (Cabrera, 2015Cabrera, T. (2015). A ético-poética do trabalho sobre si por meio da dramatização de contos filosóficos de mitema iniciático na formação inicial de educadores. Tese de Doutorado, Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo, 2015., 2017), práxis do jogo de categoria mimicry, que não se encaixa na categoria de jogo dramático (Pupo, 2005Pupo, M. L. de B. (2005, julho/dezembro). Para desembaraçar os fios. Educação e realidade, 30, 217-228.) – em suas acepções inglesa e francesa – e muito menos na de jogo teatral (Pupo, 2005Pupo, M. L. de B. (2005, julho/dezembro). Para desembaraçar os fios. Educação e realidade, 30, 217-228.). A dramatização se insere dentro destas gradações possíveis como forma “intermediária” entre a brincadeira dramatizada (Lopes, 1989Lopes, J. (1989). Pega teatro. Campinas: Papirus.) – a que jovens e adultos também poderiam ter acesso – e possíveis encaminhamentos do jogo dramático. Vista como forma intermediária, a dramatização não precisa nem deve se esgotar em si mesma, pode ser uma base para um trabalho teatral concomitante ou posterior: pode ser uma preparação e/ou uma complementação a outras técnicas e poéticas já consagradas, como o jogo dramático e o jogo teatral.

A dramatização se propõe a ser uma experiência poética de jogo de atuação de papéis, em que o atuante se dispõe a jogar como se fosse um outro diferente daquele habitual do cotidiano. Como todos os demais jogos de categoria mimicry, mesmo dentro da dramatização há gradações neste envolvimento (ou não) do atuante diante da situação ficcional que se apresenta, há um percurso artístico-pedagógico a ser buscado pelo atuante no cultivo de sua capacidade de metamorfose (Lopes, 1989Lopes, J. (1989). Pega teatro. Campinas: Papirus.). Lopes (1989)Lopes, J. (1989). Pega teatro. Campinas: Papirus. afirma que a capacidade de metamorfose do jogador

aparecerá como resposta genuína do jogador interessado em transformar-se num outro, o que significa ampliar seu universo de comunicação, capacidade de expressão e criatividade. A metamorfose é o momento em que o indivíduo ultrapassa a si mesmo para elaborar a circunstância e a personalidade de um outro que independe da determinação de sua vontade ideal, interesse e características pessoais, físicas, éticas, morais, econômicas e políticas. No exercício dramático, a metamorfose como fenômeno básico requer um crescimento da capacidade de abstração, conceituação e descentralização individual, ou seja, um crescimento em direção à comunicação. Diríamos que quanto mais o indivíduo se distancia das evoluções em torno de seu umbigo, mais aumenta seu raio de ação e de sua interferência. (pp. 61-62)

A dramatização é, portanto, um modo autoral de incentivar o atuante ao cultivo de sua capacidade de metamorfose (Lopes, 1989Lopes, J. (1989). Pega teatro. Campinas: Papirus.), propondo-lhe experiências direcionadas “à descoberta das relações entre a vida interior e a expressão física” (Santos, 1975Santos, A. (1975). Persona: o teatro na educação, o teatro na vida. Rio de Janeiro, Eldorado Tijuca., p. 69), num universo em que as sensações, as emoções, os movimentos e as sonoridades são recursos para receber impressões tanto de si como dos outros. Na dramatização, tal como a propomos, receber impressões é a base da expressão. “Toda reação autêntica tem início no interior do corpo. O exterior é somente o fim desse processo”, diz Grotowski em Grotowski e Flaszen (2010, p. 172)Grotowski, J., & Flaszen, L. (2010). O teatro laboratório de Jerzy Grotowski 1959-1969 (B. Rauliono, Trad.). São Paulo: Perspectiva: Edições Sesc SP; Pontedera, IT: Fondazione Pontedera Teatro.. E ao expressar-se, seguir impressionando-se de si e dos outros. Como expressa a fórmula hermesiana de Delsarte:

Não há verdade na expressão, se a uma modalidade expressiva exterior não corresponder um impulso interior. ... Não pode, portanto, existir “verdade” [ênfase no original] na expressão humana, se a manifestação, o movimento expressivo exterior não corresponder a um respectivo impulso ou movimento interior (e vice-versa). Cada entonação, gesto ou palavra que não obedecer a esta fundamental Lei de Correspondência será, portanto, falsa, afetada ou convencional.

(Delsarte citado por Cabrera, 2004Cabrera, T. (2004). Uma aprendizagem de sabores: a palavra cênica construída a partir da conexão entre movimento, emoção e voz. Dissertação de Mestrado, Instituto de Artes da Universidade Estadual de Campinas, 2005., p. 21)

Qualquer expressão será falsa ou convencional, se não houver um sentir (-se). Por meio de movimentos e ações, o jogador é levado a descobrir “as dimensões vividas e não vividas do seu mundo interior” (Santos, 1975Santos, A. (1975). Persona: o teatro na educação, o teatro na vida. Rio de Janeiro, Eldorado Tijuca., p. 111). Sempre com a clareza de que a formação técnica vem das necessidades de elaboração de um discurso (Ryngaert, 2009Ryngaert, J.-P. (2009). Jogar, representar: práticas dramáticas e formação. São Paulo: Cosac & Naif.), e não a precede, especialmente com não profissionais.

Optei por me ater à etimologia de drama: “drama no seu sentido original, da palavra grega drao- ‘eu faço, eu luto’” (Slade, 1987Slade, P. (1987). O jogo dramático infantil. São Paulo: Summus., p. 18). Este “fazer, buscar e lutar são tentados por todos. Todos são fazedores [ênfase no original]” (p. 18) é um princípio de trabalho em toda a parte empírica desta pesquisa.

Dramatizar não significa, necessariamente, prescindir do olhar do outro. Mas trata-se de jogar um jogo de representação de papéis, de simulação, diante de um público mais íntimo. Nas dramatizações pode ou não haver pessoas que assistam às improvisações, mas muitas delas, logo em seguida, poderão vivenciar processos similares. E isto altera o como se olha, a partir de onde se olha, para quê e o porquê se olha. O jogador, neste contexto, compartilha seu processo com testemunhas, na tentativa de tocá-las por ressonância. “Neste jogo para si, com o outro, para o outro ou os outros” (Barret & Landier, 1994Barret, G., & Landier, J.-C. (1994). Expressão dramática e teatro. Porto: Edições ASA., p. 15), assistir à improvisação do outro significa receber as impressões sentidas por ele, para, quem sabe, retroalimentar sua própria busca. “Conhece-se melhor alguém depois de ter jogado com ele” (p. 15). Acrescentaria também que se conhece melhor a si próprio enquanto se joga com os outros. E, ao conhecer-se melhor, é possível estar em contato com os outros de forma mais intensa, mais vertical, mais viva.

Contos filosóficos

Contos filosóficos é uma expressão para designar contos tradicionais e de ensinamento (Grillo, 1993Grillo, N. (Org.). (1993). Histórias da tradição sufi. Rio de Janeiro: Dervish.; Grillo & Grillo, 2014Grillo, N., & Grillo, J. G. de Q. (2014). O guerreiro invisível e outros contos do tempo: uma antologia da tradição viva. Rio de Janeiro: Jaguatirica.; Machado, 2004Machado, R. (2004). Acordais: fundamentos teórico-poéticos da arte de contar histórias. São Paulo: Editora DCL., 2006; Shah, 2010Shah, I. (2010). Histórias dos dervixes: histórias de ensinamento dos mestres sufis dos últimos mil anos: selecionadas de textos clássicos sufis. Rio de Janeiro: Roça Nova.; Varella, 2009Varella, F. (Org.). (2009). 99 contos de Nasrudin. Rio de Janeiro: Caravana de Livros.), contos filosóficos (Carrière, 2004Carrière, J.-C. (2004). O círculo dos mentirosos: contos filosóficos do mundo inteiro. São Paulo: Ediouro., 2008: contos de tradição oral e histórias de várias tradições culturais (zen, sufi, hassídica, indiana). Contos concisos que transmitem de forma direta o conhecimento acumulado pelos seres humanos em seu processo civilizatório, numa leitura de suas camadas e dimensões verticais mais profundas. Como na ‘Fábula sobre a Fábula’ (Tahan, 2002Tahan, M. (2002). Minha vida querida. Rio de Janeiro: Record.), a verdade se traveste de fábula para poder penetrar no palácio e, só assim, pode ser aceita.

Existentes em inúmeras culturas, os contos filosóficos são um veículo para conter e transmitir ensinamentos preciosos, literalmente extra-ordinários, no sentido de extrapolarem o caráter ordinário das experiências cotidianas. Ouvir e narrar estas histórias é, ancestralmente, um modo de educar crianças, jovens e adultos.

Neste conceito, dentro desta tradição, não se incluem os contos de fada, relatos míticos, contos fantásticos, fábulas moralizantes, parábolas ou histórias edificantes; que, normalmente, se pautam pelos seres e tempos primordiais (atemporais) como nos mitos de origem. Na Antropologia do Imaginário não se considera que as narrativas simbólicas como os mitos ou os contos filosóficos estejam circunscritas “aos povos primitivos”, “irracionais” e “atrasados”. Há uma “invariância antropológica”, no universo simbólico “não há efetivamente progresso, não há superação dos dados antropológicos, mas seu eterno retorno” (Ferreira-Santos & Almeida, 2012Ferreira-Santos, M., & Almeida, R. (2012). Aproximações ao imaginário: bússola de investigação poética. São Paulo: Képos., p. 72).

Ainda que os contos filosóficos contenham humor, e muitos deles façam sorrir e rir, não se trata de piadas ou anedotas. Os contos filosóficos são férteis de força regenerativa. Parece-me que os ensinamentos contidos neles penetram ainda mais profundamente no ouvinte à medida que ele ri.

Os contos filosóficos narram sempre encontros, transformações, surpresas, geralmente em contextos cotidianos; algo que “desarma” (Carrière, 2004Carrière, J.-C. (2004). O círculo dos mentirosos: contos filosóficos do mundo inteiro. São Paulo: Ediouro.), e deixa em “estado de atenção”. Muitas destas narrativas não permitem ao leitor/ ouvinte chegar a uma conclusão, ainda que sejam inquietantes perante nossas convenções morais.

Nos contos filosóficos estão encobertos conhecimentos que dependem do empenho em aprender de quem os ouve, do esforço consciente de quem os expõe, das circunstâncias e contextos em que acontece a experiência do duplo evento narrativa e escuta.

Compreendo que os contos tradicionais são a matéria-prima para sensibilizar e desenvolver uma razão sensível (Ferreira-Santos, 2005Ferreira-Santos, M. (2005). Crepusculário: conferências sobre mitohermenêutica & educação em Euskadi (2a ed.). São Paulo: Zouk.), ajudam a lidar com situações aparentemente impossíveis, propiciam a oportunidade de rir dos próprios problemas, colocando-os em escala, fenomenologicamente; perceber figura e fundo, evitando o hiperdimensionamento da figura (informação verbal, Grillo, 2012Grillo, N. (2012, setembro). Oficina. O processo criativo na arte de contar história. Boca do Céu. In Encontro Internacional de contadores de histórias. São Paulo: Oficina Cultural Oswald de Andrade.). O conto de tradição oral é prenhe de uma concepção do cosmos que situa o ser humano dentro de uma escala na qual ele não ocupa a posição hierarquicamente mais superior, mas ele “compõe” com outras naturezas de ser. Por meio do duplo evento escuta e narrativa do conto de tradição oral, podemos constatar que cada experiência de vida é única. Ao menos para cada um de nós, que vivencia pela primeira vez o que é ancestral ou arcaico.

Os contos são “transformadores de energia psíquica” (Bachelard, 1996Bachelard, G. (1996). A poética do devaneio. São Paulo: Martins Fontes., citado por Ferreira-Santos, 2012Ferreira-Santos, M., & Almeida, R. (2012). Aproximações ao imaginário: bússola de investigação poética. São Paulo: Képos., p.17), ou melhor, são o choque necessário para que se acessem energias psíquicas (numa perspectiva antropológica e distante de psicologismos) com as quais não se está em contato ordinariamente.

Como artista-educadora e narradora de histórias, um modo de realizar-me” é trabalhar, hermeneuticamente, com esses contos. A realização de si próprio entendida em termos socráticos: conhecer-se e tornar-se quem se é. Assim sendo, experimento o caráter altamente educativo, indiretamente “curativo” das narrativas. Curativo como pharmakon, como remédio ou, mais precisamente, como re-mediação, que reestabelece tramas cujos fios foram anteriormente cortados em nós mesmos (Ferreira-Santos, 2010Ferreira-Santos, M. (2010, julho/dezembro). Fundamentos antropológicos da arte-educação: por um pharmakon na didaskalia artesã. Revista @mbienteeducação, 3(2), 59-97.).

Os contos tradicionais refletem uma cosmogonia interior (informação verbal, Grillo, 2012Grillo, N. (2012, setembro). Oficina. O processo criativo na arte de contar história. Boca do Céu. In Encontro Internacional de contadores de histórias. São Paulo: Oficina Cultural Oswald de Andrade.), eles não têm uma ideologia espaço-temporal predominante (como poderiam supor perspectivas mais sociologizantes), pois estão a serviço, entre outras metas, de ensinar a auto-observação.

Nos contos filosóficos todas as personagens são facetas potenciais de nós mesmos, como uma espécie concisa e direta de monodrama (Mostaço, 2011Mostaço, E. (2011). Evreinóv, o homem teatro. In A. Cavalière, & E. Vássina (Orgs.), Teatro russo: literatura e espetáculo. São Paulo: Ateliê Editorial., pp. 149-156). Monodrama como proposto e teorizado pelo simbolista russo Nikolai Evreinov (1879-1953): como uma representação dramática em que todas as personagens são facetas ou desdobramentos da identidade do protagonista, de acordo com um estado alterado de percepção em que essas facetas discutem, negociam e interagem num curto lapso de tempo e num mesmo cenário.

O duplo evento, escuta e narrativa desses contos, propicia uma vivência do jogo de forças que atuam continuamente no ser humano, explicita conflitos interiores em situações exteriores. Nos contos filosóficos cada personagem corporifica um “eu” diferente que atua dentro de nós. Diante de uma mesma situação, cada faceta interna reage de uma forma, há tendências diversas e muitas vezes contraditórias. Os contos filosóficos expõem a dualidade do querer e não querer que coabitam e se alternam continuamente em nós a todo o momento.

Esses contos ligam gerações, pois descrevem processos interiores que são comuns a pessoas de várias idades e que vivem em várias partes do mundo. Eles tocam a dupla estruturação imaginária (Durand, 1997Durand, G. (1997). As estruturas antropológicas do imaginário. São Paulo: Martins Fontes.; Ferreira-Santos & Almeida, 2012Ferreira-Santos, M., & Almeida, R. (2012). Aproximações ao imaginário: bússola de investigação poética. São Paulo: Képos.), isto é, a existência concomitante de uma estruturação profunda invariante de natureza antropológica subjacente à espécie humana e, ao mesmo tempo, a variabilidade dos conjuntos de imagens que a preponderância espaço-temporal e cultural nos apresenta na multiplicidade das culturas humanas; convergente com a noção renascentista de unitas multiplex, hoje atualizada no pensamento interdisciplinar e complexo (Ferreira-Santos & Almeida, 2012Ferreira-Santos, M., & Almeida, R. (2012). Aproximações ao imaginário: bússola de investigação poética. São Paulo: Képos.; Morin, 2007Morin, E. (2007). Introdução ao pensamento complexo. Porto Alegre: Sulina.).

Pouco compreendida é a função dos personagens ditos “maus” ou de atos aparentemente amorais na ação de certas personagens nos contos tradicionais, pois eles têm como propósito corrigir um “pensamento mágico” (ou ingênuo) de que tudo é conquistado sem maiores esforços. Certos personagens ou ações tomadas por eles são “compelidores”; ou seja, eles nos mostram na desenvoltura da narrativa que é preciso haver muito esforço voluntário e sofrimento consciente, para que se desenvolva a astúcia do protagonista e a superação de si mesmo pelo confronto (informação verbal, Grillo, 2012Grillo, N. (2012, setembro). Oficina. O processo criativo na arte de contar história. Boca do Céu. In Encontro Internacional de contadores de histórias. São Paulo: Oficina Cultural Oswald de Andrade.). Esses compelidores são a expressão exterior de inimigos internos. Os contos tradicionais sugerem o enfrentamento de grandes desafios com engenho e arte, pois, ao ouvir uma história, sub-repticiamente se tem como referência a própria história viva do ouvinte e seu repertório existencial.

“Fale com cada pessoa de acordo com o seu grau de entendimento. ... Demonstre o desconhecido com palavras que os ouvintes chamam de ‘conhecidas’”[ênfase no original] (Shah, 2010Shah, I. (2010). Histórias dos dervixes: histórias de ensinamento dos mestres sufis dos últimos mil anos: selecionadas de textos clássicos sufis. Rio de Janeiro: Roça Nova., p. 31). Essas indicações nos fizeram refletir sobre a natureza e a função dos contos de ensinamento e dos contos filosóficos, compreendendo que os conhecimentos obtidos nessas narrativas têm um modo próprio de ser ensinado: “Porque na verdade nada que mereça a pena ser feito pode efetuar-se sem o emprego de uma dose mínima de esforço. Cada coisa requer uma dose adequada de empenho” (p. 47).

A ressignificação de si mesmo por meio da fabulação depende de quem recebe os contos, como e quando os recebe (Shah, 2010Shah, I. (2010). Histórias dos dervixes: histórias de ensinamento dos mestres sufis dos últimos mil anos: selecionadas de textos clássicos sufis. Rio de Janeiro: Roça Nova., p.47). Ou ainda, é importante o contexto, “o tempo, o lugar, as pessoas e o talento”5 5 Em alusão ao conto “O dervixe e o cantor famoso” (Carrière, 2004, pp. 164-167; Shah, 2010, pp. 125-128). no duplo evento escuta e narrativa. O encontro entre a narrativa e o ouvinte se dá quando há ressonância das narrativas nas pessoas que dela se servem.

Os contos filosóficos “falam” com cada pessoa de acordo com o seu grau de entendimento, mas têm a força suficiente para, ao menos, deixar cada um intrigado ou curioso com o diálogo estabelecido com seu próprio repertório vivido. No contato com estas narrativas, pode acontecer algo de extraordinário, indefinível em palavras, mas materialmente perceptível pelos sentidos: uma eletricidade, um magnetismo, uma impressão de algo não habitual, que tem um sabor muito específico. Um silêncio de uma qualidade rara e não habitual se faz. É como se algo mental, associativo, fosse silenciado e, paradoxalmente, algo sábio dentro de nós pudesse ser ouvido.

Os contos filosóficos pertencem a outro tempo, estão além e aquém da contagem do tempo cronológico, do tempo mecânico, do tempo homogêneo dos afazeres cotidianos. E os contos filosóficos só podem ser processados, quando se está em contato com este tempo-espaço atemporal e a-espacial. Essas narrativas só podem ser fruídas e compreendidas, quando se entra num ritmo extracotidiano.

Os contos filosóficos utilizados durante a investigação pertencem a tradições e sistemas filosóficos que possuem também, por sua vez, sua simbologia e terminologia própria. Confiando na potencialidade direta e precisa desses contos, é que ousei narrá-los aos participantes do núcleo ao longo das vivências curriculares, ora ao início, ora ao fim dos encontros. Com a esperança que estes contos tocassem não somente suas orelhas e suas associações mentais, mas também sua escuta mais profunda, aquela do coração; a capacidade dos educadores em formação inicial de estabelecer conexões intuitivas, analógicas, silenciosas, vivas.

Mitema iniciático

No caso desta investigação, os contos filosóficos exercem esta função de narrativa simbólica que cristaliza em palavras o que outrora foram ações, ritos. Fui me dando conta de que nos contos filosóficos escolhidos para serem base dos encontros do núcleo de dramatização de contos era recorrente o reaparecimento das personagens de mestre e discípulo e do ato de aprender e ensinar. Contos com diferentes origens, advindos de tradições “secretas” que, numa linguagem acessível até mesmo para os não iniciados, expressavam a questão da transmissão de um ensinamento e da continuidade da tradição. Mais do que isto: nos contos filosóficos selecionados, num primeiro momento, por acordo poético das imagens (Bachelard, 1996Bachelard, G. (1996). A poética do devaneio. São Paulo: Martins Fontes.), reaparecia a figura do velho sábio.

Nos contos filosóficos selecionados, esse velho sábio toma atitudes desconcertantes, inesperadas, que muitas vezes resultam numa comicidade e num estranhamento. Longe de serem “baluartes da verdade e das certezas”, os mestres que aparecem nos contos filosóficos selecionados nem sempre são pessoas socialmente aceitas, dotadas de renome ou de um “mandato” para transmitir algum ensinamento. Às vezes são personagens que causam até mesmo certa repulsa ou escárnio.

São contos cujo mitema iniciático está presente. Mitema é a unidade mínima significante de um mito, a estrutura mais básica que o compõe (Durand, 1988Durand, G. (1988) A imaginação simbólica. São Paulo: Edusp., 1996Durand, G. (1996). Campos do imaginário: textos reunidos por Danièlle Chauvin. Lisboa: Instituto Piaget.). Ao estilo mitodológico durandiano (Durand, 1996Durand, G. (1996). Campos do imaginário: textos reunidos por Danièlle Chauvin. Lisboa: Instituto Piaget.) na decomposição de um mito (ou conto, nessa investigação) em mitemas, a recorrência foi do mitema da iniciação. Iniciação aqui entendida como rito de passagem ou mudança de regime ontológico e estatuto social (Eliade, 2004Eliade, M. (2004). Ritos de iniciação e sociedades secretas. Portugal: Ésquilo., 2010). Mas não tratei diretamente dos ritos de nascimento, casamento ou morte. Talvez a iniciação presente nos contos filosóficos selecionados seja uma espécie de iniciação a uma responsabilidade que advém do contato com o conhecimento. Ao conhecer, o sujeito torna-se responsável por atuar de acordo com esse conhecimento. É por meio da experiência viva de uma série de ritos de passagem que se pode atingir uma maturidade e se pode chegar a uma plenitude da existência (Eliade, 2004Eliade, M. (2004). Ritos de iniciação e sociedades secretas. Portugal: Ésquilo., 2010). Ritualizar uma passagem é um modo de evitar o esquecimento das provações que foram superadas, da capacidade ontológica de enfrentá-las. Lembrar-se é fundamental para preservar o conhecimento conquistado ou recebido e levá-lo adiante, fazendo jus a uma cadeia de transmissão da qual passamos a fazer parte. Ritualizar uma iniciação é também um modo de divulgar ao coletivo que um processo de mudança já se passou no iniciando, põe luz sobre algo germinado às escuras nas profundezas do ser.

Foi por isso que, de todas as iniciações possíveis, me interessou tratar especificamente da iniciação à mestria (Gusdorf, 2003Gusdorf, G. (2003). Professores para quê? Para uma pedagogia da pedagogia. São Paulo: Martins Fontes.). Cabe distinguir: “O professor ensina a todos a mesma coisa; o mestre anuncia a cada um uma verdade particular e, se é digno de seu trabalho, espera de cada um uma resposta particular, uma resposta singular e uma realização[ênfase adicionada]” (Gusdorf, 2003Gusdorf, G. (2003). Professores para quê? Para uma pedagogia da pedagogia. São Paulo: Martins Fontes., p. 70).

É inegável a importância da relação mestre-aprendiz no processo de desvelamento do conhecimento, essa relação de ser humano a ser humano, na aceitação da contingência radical do processo iniciático em que o mestre necessita do discípulo para que se torne de fato mestre; e o discípulo precisa de alguém que o ajude a constatar que já se iniciou, mas ainda não sabe que se iniciou. Uma relação em que o mestre tem sua responsabilidade como aquele mais experiente, mas nem por isso deixa de ser aprendiz do discípulo, pois, ao ensinar, aprende. E o aprendiz ensina ao perguntar, questionar, transgredir.

A relação mestre-discípulo é mais aceita e desenvolvida em formas educacionais ligadas à tradição dos filósofos gregos, das culturas orientais, eslavas, africanas e ameríndias, às experiências de educação popular e de educação sem escola.

As vivências curriculares de dramatização de contos filosóficos com mitema iniciático foram um modo de colocar em contato jovens licenciandos e pedagogos com esta possibilidade de iniciação no ofício de mestre, um mestre de feições orientais, à moda socrática, mas que pode – desde que com bastante empenho – ser atualizado na contemporaneidade e nas condições escolares brasileiras com seus matizes afro-ameríndios.

Esta iniciação à mestria significa uma “mudança de direção- uma conversão [ênfase no original]” (Gusdorf, 2003Gusdorf, G. (2003). Professores para quê? Para uma pedagogia da pedagogia. São Paulo: Martins Fontes., p. 74), na relação desigual entre mestre e aprendiz se desvenda “a medida da humanidade, uma medida insuspeita” (p. 74).

Buscando meios para que os educadores em formação inicial pudessem vivenciar papéis de mestres e discípulos dos contos filosóficos selecionados, interessava que pudessem vivenciar o sabor peculiar que resulta do encontro mestre-discípulo: “Quem encontra seu mestre descobre, ao mesmo tempo, sua vocação” (Gusdorf, 2003Gusdorf, G. (2003). Professores para quê? Para uma pedagogia da pedagogia. São Paulo: Martins Fontes., p. 78).

Em um encontro do núcleo de dramatização de contos em que fizemos uma “roda de Nasrudin”, isto é, em que foram lidos em leitura compartilhada vários contos selecionados em que o personagem Nasrudin era recorrente, foi-nos possível conhecer um pouco mais das múltiplas facetas desse personagem que condensa tão bem o papel de um mestre-aprendiz desconcertante, um “idiota” que revela nossos hábitos mais arraigados e que, surpreendentemente, é também capaz de ensinar por meio da ação. Para um dos participantes da investigação, licenciando em Filosofia, impactou-lhe a semelhança de estratégias entre Nasrudin e Sócrates:

A única coisa que posso dizer de Nasrudin é que ele é a representação de um homem sábio. Ele, para mim, se parece muito com Sócrates. Sócrates dizia: ‘A única coisa que sei é que nada sei’. Nasrudin pensa de forma semelhante. ... O verdadeiro sábio não quer ensinar alguma coisa às pessoas, o verdadeiro sábio é aquele que desperta o conhecimento nas pessoas. Sócrates se considerava um “parteiro” pois ajudava o conhecimento interior “nascer” nas pessoas.

(Adriano, licenciando em Filosofia, Universidade de São Paulo)

Para outra estudante, foi surpreendente a faceta do Nasrudin impaciente, do homem “idiota” do cotidiano, espelho de nós mesmos, que causa riso e que, por instantes, nos permite nos distanciarmos um pouco de nossa situação ordinária:

Paralelamente, lia e relia meu conto sobre a paciência. Surgia um riso de identificação. Como não?! Eu, tão ansiosa, não me identificaria com o Nasrudin pedindo paciência AGORA?! [ênfase no original]Paciência com a licenciatura (que de início me gerou muitas crises), com o restabelecer-se em casa depois de um ano fora, com o último e decisivo ano da faculdade e com todos os longos e incompreensíveis processos da vida e da escrita!

(Therese, estudante de Pedagogia, Universidade de São Paulo)

A história do Nasrudin que me foi endereçada foi muito conveniente, visto que coincidiu com perguntas e pesquisas que eu fazia a respeito de mim mesmo. Tive a impressão que você captou o que eu sentia ou expressava naqueles dias, ou imaginei isso. Ainda não sou capaz de compreender... me permitiu sair do intelecto e sentir-me em relação a ela.

(Murilo, licenciando em Filosofia, Universidade de São Paulo)

Para outra participante, impactou-lhe um conto em que Nasrudin admitia seu “não saber” diante de algo, no reconhecimento de que, quando não se sabe algo, se abre a possibilidade de aprendê-lo:

O conto que trabalhei diretamente, Perguntas difíceis. veio bastante a calhar, pois, na minha constante tentativa de responder às coisas por meio de teorias, me percebi engendrada em uma rede de mecanismos prontos, que me limitavam a certas escolhas, não me propondo mais nada de novo. Algo como se eu tivesse fórmulas para cada tema que eu me deparava e essas fórmulas se prestavam adequadamente para cada um deles, não sendo mais necessário reavaliar ou até mesmo considerar a necessidade dessas fórmulas. Isso me impedia claramente de abrir espaço para a possibilidade do desconhecido e, sequer, da dúvida. Diante da postura de Nasrudin em relação às perguntas de seu filho, me surpreendi com a genuína sinceridade do seu “não saber” [ênfase no original], bem como da extasiante colocação a respeito da abertura de possibilidades para aprender diante de situações para as quais não se tinham respostas. Um fato tão simples, que ficou empoeirado em algum canto de meu ser durante a construção do meu gigantesco edifício racional imaginário.

(Sarah, estudante de Ciências Moleculares, Universidade de São Paulo)

Acredito que os ensinamentos contidos nos contos filosóficos escolhidos foram bastante pertinentes a uma compreeensão mais ampla, por parte dos educadores em formação inicial, do que é o ofício da docência escolhido por eles. Um dos comentários dos educadores em formação dá indícios nesta direção:

Quando começamos os contos sobre o mestre e o aprendiz o primeiro personagem que fiz foi o aprendiz e eu acho que é o que mais me identifico até hoje. Estou sempre muito angustiada por aprender as coisas, quero que tudo aconteça muito rápido e esse conto me fez entender que não é assim, que para tudo, há seu tempo. Acho que sempre estamos aprendendo com o outro e com as situações. Tenho a consciência de que ensinamos também, mas para mim é muito mais presente e significativa a sensação do aprender. O conto sobre paciência me fez pensar muito em tudo que estava acontecendo comigo, sobre como ser aprendiz, como esperar, como ter calma, pois em tudo, até nas situações que não são tão boas nós podemos aprender. Comecei a prestar mais atenção em mim, no meu corpo e mesmo com toda a limitação de espaço na escola onde estagio, tentei fazer com que as crianças também pudessem prestar mais atenção nelas e pudessem se expressar de alguma forma.

(Rebeca, estudante de Pedagogia, Universidade de São Paulo)

(In)Conclusões

No núcleo de dramatização de contos do Lab_Arte, tenho constatado que, assim como nos vários outros núcleos de vivência e experimentação, o fulcro comum de uma perspectiva antropológica e de alteridade tem possibilitado o desenvolvimento do projeto de maneira muito significativa e satisfatória, evidenciando sua eficácia simbólica e pertinência formativa nesta concepção de vivência curricular.

O feedback dos participantes, tanto nas conversas finais de avaliação dos semestres como na produção textual, nos tem servido de estímulo para a continuidade da experiência com outros grupos em formação, ampliando ainda mais o escopo dos dados que confirmam, até o presente momento, o caráter benéfico e ampliador de repertório da prática com os estudantes.

A vivência da prática e da experimentação consolida uma ensinagem (Ferreira-Santos & Almeida, 2012Ferreira-Santos, M., & Almeida, R. (2012). Aproximações ao imaginário: bússola de investigação poética. São Paulo: Képos.) assaz significativa que, para muito além dos recursos apenas teóricos, os prepara para uma escuta atenta (Ferreira-Santos & Almeida, 2012Ferreira-Santos, M., & Almeida, R. (2012). Aproximações ao imaginário: bússola de investigação poética. São Paulo: Képos.) e para uma prática mais coerente com outras possibilidades educativas alternativas (e, contraditoriamente, mais ancestrais), quando estiverem, eles próprios, no desempenho de suas funções como educadores e educadoras, sejam situações formais ou não formais, sistêmicas ou de conotação social ou mesmo de educação popular.

O âmbito de uma educação de sensibilidade (Duarte-Junior, 2010Duarte-Junior, J. F. (2010). O sentido dos sentidos: a educação (do) sensível. Curitiba: Criar.; Ferreira-Santos, 2005Ferreira-Santos, M. (2005). Crepusculário: conferências sobre mitohermenêutica & educação em Euskadi (2a ed.). São Paulo: Zouk.; Ferreira-Santos & Almeida, 2012Ferreira-Santos, M., & Almeida, R. (2012). Aproximações ao imaginário: bússola de investigação poética. São Paulo: Képos.) – que nem por isso exclui a racionalidade, mas não se restringe à racionalidade ocidental de caráter aristotélico e cartesiano –, como exercitado nas vivências curriculares por meio de contos filosóficos (Carrière, 2004Carrière, J.-C. (2004). O círculo dos mentirosos: contos filosóficos do mundo inteiro. São Paulo: Ediouro., 2008), também tem possibilitado uma leitura mais crítica (contraideológica), reflexiva (constructos) e sensível (perceptos) dos participantes, levando-os a ter, como opção pessoal, a tarefa de assumir como projeto profissional, pessoal e existencial a busca mais coerente de modulações do ser (Merleau-Ponty, 1992Merleau-Ponty, M. (1992). O visível e o invisível. São Paulo: Perspectiva.).

  • 1
    Apoio: Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP).
  • 2
    Para saber mais, acesse: https://www.labarte.fe.usp.br/. Recuperado em 22 de janeiro de 2019.
  • 3
    Dados coletados durante o processo da pesquisa. Os nomes são fictícios para atender os princípios da Comissão de Ética da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo.
  • 4
    Referência ao conto “A pedra na mão” (Carrière, 2004Carrière, J.-C. (2004). O círculo dos mentirosos: contos filosóficos do mundo inteiro. São Paulo: Ediouro., pp.158-159), ponto de partida de uma das vivências curriculares no núcleo de dramatização de contos.
  • 5
    Em alusão ao conto “O dervixe e o cantor famoso” (Carrière, 2004Carrière, J.-C. (2004). O círculo dos mentirosos: contos filosóficos do mundo inteiro. São Paulo: Ediouro., pp. 164-167; Shah, 2010Shah, I. (2010). Histórias dos dervixes: histórias de ensinamento dos mestres sufis dos últimos mil anos: selecionadas de textos clássicos sufis. Rio de Janeiro: Roça Nova., pp. 125-128).

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    18 Abr 2019
  • Data do Fascículo
    2019

Histórico

  • Recebido
    26 Abr 2017
  • Revisado
    13 Nov 2017
  • Aceito
    20 Dez 2017
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