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Lendo proposições: um olhar para o arquivo da produção nos campos Filosofia e Filosofia da Educação nos 30 anos da revista Pro-Posições1 1 Normalização, preparação e revisão textual: Leda Farah (farahledamaria@gmail.com) e Vera Bonilha(verabonilha@yahoo.com.br) 2 2 Texto integrante do dossiê especial: “Pro-Posições 30 anos”, organizado pelo Prof. Dr. André Luiz Paulilo. Editor Associado responsável: Prof. Dr. André Luiz Paulilo.

Resumo

O artigo reúne e comenta a produção nos campos da Filosofia e da Filosofia da Educação publicada durante os 30 anos da revista Pro-Posições. Organiza em três blocos temáticos um conjunto de incidências temáticas que se faz presente, ao mesmo tempo, em três décadas de publicações. Na primeira década, de 1990 a 1999, destaca-se a temática da educação, com ênfase no pensamento crítico, na redemocratização brasileira e seu valor republicano; a segunda década, entre os anos 2000 e 2009, traz à tona uma série de análises acerca dos desafios milenares para o campo da Educação, sobretudo acerca da problematização ético-política da sociedade em geral; a última década, de 2010 até 2018, evidencia a explosão da presença da Filosofia e da Filosofia da Educação na área da Educação, encampando temas como diferenças, inclusão e subjetividades. Além de evidenciar que Filosofia e Filosofia da Educação são campos marcantes ao longo dos 30 anos da revista, o artigo sustenta que as mesmas problematizações de 3 décadas de publicações são urgentes como retomada de uma luta de pensamento crítico em defesa da educação republicana e democrática, além de convocar a urgência do lugar das diferenças e das multiplicidades para a área da Educação.

Palavras-chave
Filosofia; Filosofia da Educação; Educação; pensamento; arquivo

Abstract

In this article we aim to collect and comment on the production in the fields of Philosophy and of Philosophy of Education published during the 30 years of the Pro-Posições journal. To do so, we organized into three thematic parts a set of thematic occurrences that are present, at the same time, in three decades of publications. The first decade covers the years from 1990 to 1999, highlighting the theme of Education and its republican value in the Brazilian redemocratization, with emphasis on critical thinking; the second decade, between 2000 and 2009, brings to light a series of analyses concerning the millenary challenges for the field of Education, mainly the ethical-political problematization of society in general; the last decade, from 2010 to 2018, evidences the increase of the presence of Philosophy and Philosophy of Education in the field of Education, entailing themes such as differences, inclusion, and subjectivities. Besides observing that Philosophy and Philosophy of Education are remarkable fields over the 30 years of the Pro-Posições journal, we argue that the same problematizations of all three decades of publication are urgent for reiterating one of the struggles of critical thinking in the defense of the republican Education and of its democratic principles, in addition to drawing attention to the urgency of the place of differences and multiplicities in the field of Education.

Keywords
Philosophy; Philosophy of Education; Education; thought; archive

Introdução

Em nossos trabalhos no campo da Filosofia da Educação, operamos com a noção de Filosofia apresentada por Gilles Deleuze e Félix Guattari (1992)Deleuze, G., & Guattari, F. (1992). O que é a filosofia?. Rio de Janeiro: Editora 34., que afirma que é próprio desta disciplina do pensamento a atividade de criação conceitual, diferenciando-a da Ciência, que cria funções; e da Arte, que cria perceptos e afectos. Segundo esses autores, é inerente à Ciência produzir proposições: “A ciência não tem por objeto conceitos, mas funções que se apresentam como proposições nos sistemas discursivos. Os elementos das funções se chamam functivos. Uma noção científica é determinada não por conceitos, mas por funções ou proposições” (Deleuze, & Guattari, 1992Deleuze, G., & Guattari, F. (1992). O que é a filosofia?. Rio de Janeiro: Editora 34., p. 153).

No entanto, há outras perspectivas de compreensão da Filosofia que afirmam sua intrínseca relação com as proposições lógicas. Inclusive, uma das mais importantes concepções do século XX afirma a Filosofia como uma atividade de análise lógica da linguagem ou mesmo de análise lógica das proposições, cabendo estabelecer seus critérios de verdade e de validade. Daí a brincadeira do título: olhando a produção da revista Pro-Posições em seus 30 anos de atividades, encontramos proposições filosóficas?

A revista foi criada na Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas em 1990, 18 anos depois da implantação desta Faculdade, que se deu em 1972. Desde sua criação, a Faculdade conta com um Departamento de Filosofia e História da Educação (Defhe), tendo reunido um conjunto de filósofos cujas atividades foram e são orientadas para pensar o campo educativo. Em sua trajetória, o Defhe foi marcado pela fenomenologia e pelo marxismo, visto que vários de seus docentes produziam neste campo, além de orientar pesquisas de mestrado (a partir de 1975) e de doutorado (a partir de 1980) nessas áreas. Porém, o departamento foi sempre espaço de uma visão plural e múltipla da Filosofia, acolhendo pesquisas das mais diversas orientações teóricas. Não é de se estranhar, pois, que docentes do Defhe tenham se envolvido ativamente com a revista Pro-Posições, enviado artigos para publicação, proposto dossiês e estimulado pós-graduandos a também submeter seus textos para serem aí publicados, bem como atraído pesquisadores do campo da Filosofia da Educação de instituições brasileiras e estrangeiras para participar da revista com seus textos. Dada a tradição de trabalho com a Filosofia na FE, era de se esperar, pois, que a revista publicada pela Faculdade trouxesse em suas páginas produções deste campo.

Por outro lado, a criação da revista deu-se em um momento de consolidação das pesquisas em Filosofia da Educação no Brasil. Paulatinamente, as pesquisas realizadas, de modo especial nos programas de pós-graduação em Educação, com enfoque filosófico, foram constituindo a Filosofia da Educação como um campo disciplinar. Entendemos campo disciplinar a partir dos trabalhos de Michel Foucault (1996)Foucault, M. (1996). A ordem do dicurso (2a ed.). São Paulo: Loyola., ao afirmar a disciplina como um princípio ordenador dos discursos:

A disciplina é um princípio de controle da produção do discurso. Ela lhe fixa os limites pelo jogo de uma identidade que tem a forma de uma reatualização permanente das regras.

Tem-se o hábito de ver na fecundidade de um autor, na multiplicidade dos comentários, no desenvolvimento de uma disciplina, como que recursos infinitos para a criação dos discursos. Pode ser, mas não deixam de ser princípios de coerção; e é provável que não se possa explicar seu papel positivo e multiplicador, se não se levar em consideração sua função restritiva e coercitiva. (p. 36)

Neste movimento de sua constituição como campo disciplinar de pesquisas, a Filosofia da Educação foi se consolidando, ao definir as fronteiras daquilo que pode e daquilo que não pode ser dito em termos filosóficos sobre a problemática educativa. Tal percurso tem a década de 1990 por referência e como marcador histórico a criação, na Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação (Anped), do Grupo de Trabalho Filosofia da Educação, cujas atividades se iniciaram em 1994.6 6 Para uma análise deste processo de constituição da Filosofia da Educação como campo disciplinar, ver Gallo (2007). De modo que identificar a presença de artigos de Filosofia da Educação ou com temática/aporte filosóficos nas páginas de Pro-Posições é também uma maneira de testemunhar a emergência e a consolidação deste campo no Brasil, sendo esta revista um dos veículos que possibilitaram tal processo.

Analisando a produção da revista Pro-Posições desde seu primeiro número, publicado em 1990 (v. 1, n. 1), até o último número, no ano 2018 (v. 29, n. 3), identificamos um total de 146 artigos que, de algum modo, relacionam-se com a Filosofia e/ou com a Filosofia da Educação. A busca foi feita através dos títulos e das palavras-chave e, num segundo momento, dos resumos dos textos publicados. Optamos por não nos limitar a artigos que estivessem estritamente no campo da Filosofia da Educação, alcançando também aqueles que, mesmo não se atendo a este campo, fazem uso de instrumentais filosóficos em seus esforços analíticos. Desse modo, encontramos artigos de variadas subáreas da grande área Educação que, de alguma forma, dialogaram com a Filosofia para a construção de seus argumentos teóricos, bem como artigos específicos do campo Filosofia da Educação.

Cumpre destacar que optamos, neste mapeamento, por circunscrever-nos aos artigos de submissão espontânea e àqueles que compõem dossiês. Deixamos de lado resenhas e comentários de leitura. Dada sua relevância, localizamos também alguns Editoriais de números com especial enfoque filosófico, bem como alguns textos na seção “Diverso e Prosa”, que publica traduções de escritos inéditos no Brasil e outros materiais teóricos, como entrevistas. Quando essas publicações trouxeram perspectivas filosóficas, nós as incluímos no rol de nosso material de análise.

Para apresentar esta vasta produção e tecer alguns comentários analíticos, resolvemos organizá-la por décadas, em três grandes blocos. No período de 1990 a 1999, localizamos 36 artigos; entre 2000 e 2009, 34; e no período final, de 2010 a 2018, embora mais curto temporalmente, 76 artigos foram publicados, mais do que a soma das duas décadas anteriores, o que mostra uma considerável ampliação da presença da Filosofia/Filosofia da Educação na revista Pro-Posições. Nas seções seguintes, apresentaremos uma tabela com informações básicas sobre os artigos localizados e teceremos alguns comentários.

Primeira década: uma certa endogenia, mas com diversificação teórica e temática

Se em seu número inaugural, publicado no primeiro semestre de 1990, a revista Pro-Posições não trazia nenhum artigo de Filosofia da Educação ou no qual pudesse ser identificado um aporte central da Filosofia, já em seu segundo e terceiro números, publicados ainda naquele primeiro ano da revista e privilegiando textos que abordavam a educação republicana, eles se fizeram presentes: dois artigos no número 2 e outros três no número 3. A partir daí, em quase todas as publicações seguintes, artigos com esse perfil apareceram. Apresentamos a seguir a Tabela 1, que permite a visualização de informações gerais sobre os 36 artigos publicados na primeira década de atuação da revista.

Tabela 1
artigos relacionados a Filosofia/Filosofia da Educação publicados em Pro-Posições entre 1990 e 1999

Um primeiro aspecto que chama a atenção, ao olharmos para esta tabela, é a endogenia característica dos primeiros tempos da revista, ao menos nesta área que recortamos para nossa análise. Dos 36 artigos publicados, 28 foram oriundos da Universidade Estadual de Campinas, sendo um de autoria de docente do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas e os demais 27, provenientes de autores da Faculdade de Educação, unidade responsável pelo periódico. Desses 27 artigos, 19 são de autoria de diferentes docentes e pesquisadores da FE e os demais foram escritos por pós-graduandos que faziam à época sua formação na Faculdade. Os 8 artigos que foram submetidos por autores externos à Unicamp mostram já uma certa diversidade territorial: 3 deles foram provenientes de outras universidades paulistas, 2 vieram de autores vinculados a instituições do Paraná e 1 do Mato Grosso do Sul. Dois artigos foram publicados por autores estrangeiros: um da University of North Caroline at Greensboro, dos Estados Unidos, e outro da Universidade Nacional Autônoma do México.

Esta endogenia inicial pode ser compreendida pelo esforço dos docentes do Departamento de Filosofia e História da Educação da FE em colaborar com a revista, de modo a consolidá-la, seja canalizando para ela parte de sua produção intelectual, seja estimulando orientandos do doutorado a submeter seus artigos à revista. Porém, como não restringimos o escopo da análise ao campo Filosofia da Educação, outros docentes e pesquisadores da FE, de outros departamentos, mas que trabalham com aspectos filosóficos, também se fizeram presentes. A endogenia persistiu, de modo mais ou menos estável, ao longo da primeira década de publicação, com certa diminuição nos últimos anos. Em 1990, foram publicados três artigos de autores ligados à FE, sejam docentes ou pós-graduandos; em 1991, seis artigos; em 1992, três; em 1993, novamente três; em 1994, uma queda – apenas um artigo publicado; em 1995, três; em 1996, um; em 1997, cinco;; em 1998, nenhum artigo de autoria ligada à FE foi publicado; e em 1999, foram dois artigos de autores da FE publicados em Pro-Posições. Após esta primeira década, este aspecto endógeno da produção em Filosofia/Filosofia da Educação cairia drasticamente, como veremos mais adiante.

Outro aspecto que queremos destacar nessa primeira década é a imediata presença de uma variedade de temas e perspectivas filosóficas. Vários autores da tradição filosófica e/ou do pensamento pedagógico aparecem como protagonistas neste conjunto de artigos. Destacamos, em ordem alfabética: Adorno; Arendt; Escola de Frankfurt; Francesc Ferrer i Guàrdia; Habermas; Illich; Lyotard; Marcuse; Marx; Platão; Reich; Ricoeur; e Robert Owen, que foram tomados como protagonistas pelos autores dos artigos publicados na primeira década de Pro-Posições, porém inúmeros outros pensadores foram citados ao longo dos artigos. Chamamos a atenção para esses que aparecem como ferramentas teóricas centrais, para destacar que, desde seus primeiros tempos, a revista apostou no pluralismo de abordagens filosóficas e na diversidade teórica, e não optou por uma linha única ou mesmo central de pensamento, mas abriu espaço para qualquer perspectiva teórica, desde que trabalhada com seriedade e competência acadêmica.

Essa diversidade evidencia-se também nos temas dos artigos. Neste conjunto de 36 textos marcados pela Filosofia/Filosofia da Educação publicados na primeira década de atividades da Pro-Posições foram abordados os seguintes temas: positivismo e educação; educação republicana; pensamento de esquerda na educação brasileira; marxismo e educação; pedagogia histórico-crítica; anarquismo e pedagogia libertária; liberdade, autogestão e educação; ideologia e aspectos ideológicos da educação; valores e valoração; igualitarismo e justiça social; universidade e ensino superior; extensão universitária; educação comparada no Brasil e na América Latina; ensino da filosofia na educação média e na infância; pensamento, consciência e ação educativa; antropologia filosófica e a problemática da natureza e da condição humanas; educação e politecnia; problemas e metodologias de pesquisa; bioética, feminismo e pensamento feminista; modernidade e pós-modernidade; emancipação; educação e alteridade; aspectos epistemológicos da educação; educação e liberalismo; utopismo e educação; indústria cultural e semiformação; currículo.

Se pudéssemos traçar uma linha que atravessasse essa multiplicidade temática, ela estaria circunscrita ao aspecto político das análises. Nesta primeira década, em que pese a diversidade temática e teórica, a preocupação política parece ter sido uma constante. Artigos publicados nas páginas de Pro-Posições analisaram os aspectos da educação republicana no Brasil em seus múltiplos vieses, desvendando suas bases filosóficas, estudaram as principais perspectivas pedagógicas presentes na educação brasileira e suas relações com partidos políticos e movimentos sociais, fizeram diagnósticos do presente e pensaram formas de atuação no cotidiano escolar, construíram críticas políticas da educação institucionalizada, procuraram desvendar aspectos ideológicos da educação, preocuparam-se com a filosofia ensinada na escola básica e seus aspectos políticos.

Segunda década: diversificação e consolidação

O período intermediário de nossa análise marca uma mudança fundamental, que denota a consolidação da revista e a ampliação de seus horizontes. Na segunda década de atuação, compreendendo os anos de 2000 a 2009, identificamos a publicação de 34 artigos de Filosofia da Educação ou com temáticas filosóficas, número muito próximo dos 36 publicados na década anterior.

A Tabela 2 apresenta os artigos que localizamos, indicando a autoria, a instituição a que pertencem os autores, a temática do texto e o(s) filósofo(s) que lhes servem de ferramenta analítica, bem como o número da revista em que foram publicados.

Tabela 2
artigos relacionados a Filosofia/Filosofia da Educação publicados em Pro-Posições entre 2000 e 2009

Neste conjunto de textos, a tendência endogênica que identificamos no período anterior desaparece. Dos 34 artigos, apenas 4 foram de autoria de pesquisadores da Faculdade de Educação da Unicamp: 3 docentes (2 do Departamento de Filosofia e História da Educação) e 1 estudante de pós-graduação. Dois outros artigos foram provenientes da Unicamp: um da Faculdade de Educação Física e outro do Instituto de Estudos da Linguagem. Convém ainda registrar a publicação de 2 artigos de autoria de docentes aposentados da FE-Unicamp, mas à época filiados a outras universidades. Do rol de 34 artigos publicados nesta década, com o recorte da temática em Filosofia/Filosofia da Educação, 28 foram provenientes de outras instituições de ensino e de pesquisa. Registramos a publicação de 5 artigos provenientes de instituições estrangeiras: Universidade de Winchester, Estados Unidos; Universidade de Coimbra, Portugal; Universidade de Sevilla, Espanha; Universidade Pedagógica Nacional/Universidade Javeriana, da Colômbia; Universidade de Buenos Aires, Argentina. Os demais 23 textos chegaram de diversas instituições brasileiras, com certa concentração em São Paulo: oito artigos abrangendo USP, Unesp, Ufscar, Uniso, Unisal e Unimep, e os demais, de diversos estados: Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Pernambuco, Goiás, Paraná, Bahia, Minas Gerais e Rio Grande do Norte. Só não tivemos, neste período, artigos provindos de instituições da região norte, o que não deixou de firmar uma grande representatividade nacional. A maior concentração nas regiões sudeste e sul explica-se pela concentração de universidades e programas de pós-graduação nessas regiões.

Evidencia-se, assim, que a partir da década dos anos 2000, a revista Pro-Posições ganhou projeção nacional no campo da Filosofia/Filosofia da Educação, tendo deixado de ser um veículo de publicação de artigos dos pesquisadores da instituição que a edita para acolher a produção da comunidade acadêmica brasileira que atua na área, eventualmente publicando resultados de pesquisa de autores da casa.

Não temos condições de analisar, aqui, se tal processo de consolidação nacional corresponde ao movimento geral da revista, em suas diversas subáreas de publicação. Para isso, teríamos que analisar o conjunto das publicações, o que escapa ao escopo deste artigo. Mas é nítido que, no tocante à produção relativa à Filosofia/Filosofia da Educação, a segunda década de atuação da revista foi o momento de sua efetiva consolidação nacional, diversificação regional e maior abrangência na inserção internacional, contando com maior número de artigos oriundos de instituições estrangeiras.

Em termos das temáticas abordadas pelos artigos, bem como de seus referenciais filosóficos, percebemos também uma ampliação e diversificação, se comparamos com a década anterior. Identificamos uma ênfase em temas e debates contemporâneos, ainda que aspectos clássicos tenham aparecido. Um artigo dialogou com Sócrates, outro com Rousseau, um texto tratou das origens da Filosofia da Educação nas epopeias literárias de Homero e Hesíodo. Filósofos do século XIX apareceram como referencial ou como temática, destacando-se Hegel, Marx e o marxismo, o anarquista Mikhail Bakunin em diálogo com Elisée Reclus, e o positivismo. Mas pensadores e escolas do século XX predominaram como referencial deste conjunto de artigos. Encontramos diálogos com Herbert Read, o pensador britânico das artes; com Husserl e a fenomenologia; com a filosofia da linguagem; com Hannah Arendt; com a Escola de Frankfurt, em vários de seus representantes: Adorno, Horkheimer, Benjamin, Marcuse, Fromm, Habermas; fez-se presente também o pensamento francês, com Foucault, Deleuze e Deleuze e Guattari. Autores contemporâneos também apareceram como referência para os artigos publicados: Marc Augé, David Le Breton, Andrew Feenberg.

Os temas dos artigos foram bastante diversificados: holocausto e história do cotidiano; desafios para pensar a pós-modernidade e suas repercussões na educação; problemática da inclusão e da exclusão nas práticas educativas; processos de governamentalidade e subjetivação; ética e cidadania; comunicação e normatividade em educação; corpo e indústria cultural; corpo e singularização, permeados pelos exercícios de clown; corpo e individualidade e corpo virtual; estética e alteridade; estética e Anarquismo; imagem e representação; imagem e sensação; mito e Paideia na constituição da educação; subjetividade e humanismo; ensino da filosofia; interfaces entre história da filosofia e história da educação; educação e revolução numa perspectiva anarquista; epistemologia e teorias da educação; sociedade do conhecimento e seus desafios; experiência e sala de aula; epistemologia social; fenomenologia, conhecimento e educação; linguagem e cultura; rizoma e educação; cartografia e rizoma nos processos educativos; teoria crítica da tecnologia; tecnologia e sociedade contemporânea; televisão e educação; sexualidade e indústria cultural.

Parece-nos interessante destacar que, neste período, Pro-Posições começou a publicar dossiês temáticos. O primeiro deles, organizado por pesquisadores da UFRGS e publicado em 2001, teve por tema “Educação Especial e Políticas Inclusivas”. Embora não estivesse diretamente orientado para a Filosofia da Educação, construiu uma problematização filosófica da temática e apresentou dois artigos com forte perspectiva filosófica. Já em 2007, no número 1 do volume 18, foi publicado o dossiê “Epistemologia e Teorias da Educação no Brasil: balanços e perspectivas”, organizado por docente da FE-Unicamp e composto por uma apresentação e nove artigos, com autores de diversas universidades brasileiras. Este foi o primeiro dossiê com temática estritamente articulada com a Filosofia da Educação a marcar presença nas páginas de Pro-Posições.

Terceira década: multiplicidade

Na terceira década de publicação de Pro-Posições, ainda que contabilizemos um ano a menos, visto que nosso levantamento se estendeu de 2010 a 2018, foram localizados 76 artigos em Filosofia da Educação ou com temáticas filosóficas, significando um aumento muito expressivo, uma vez que este número excede o total publicado nos 20 anos anteriores (70 artigos). Ainda que a adoção de publicação exclusivamente eletrônica nos últimos anos tenha implicado em um significativo aumento do número de artigos a cada número, uma vez superada a limitação da publicação em papel, tal aumento se consolidou apenas em 2018 e explica apenas em parte o crescimento expressivo de artigos no campo aqui focado. Em nosso entender, esse crescimento deveu-se à consolidação de uma dupla visibilidade: aquela alcançada pelo periódico que, avaliado no extrato A1 do Qualis Capes desde 2009 e pertencente à biblioteca SciElo desde 2008, referenciou-se como atrativo para a publicação de demanda qualificada na área de Educação; e, de outro lado, a visibilidade que a própria área de Filosofia da Educação tem alcançado no Brasil nos últimos anos.

A Tabela 3 lista as informações básicas sobre este conjunto de artigos.

Tabela 3
artigos relacionados a Filosofia/Filosofia da Educação publicados em Pro-Posições entre 2010 e 2018

Dando continuidade ao comentário dos períodos anteriormente avaliados, relativamente à filiação dos autores dos artigos publicados, destacamos que essa terceira década consolida a pluralidade, e não a endogenia em Pro-Posições. Do total de 76 textos publicados, 12 foram provenientes da Universidade Estadual de Campinas – 3 deles da Faculdade de Educação Física e outros 9 da Faculdade de Educação. Porém, destes 9, 5 foram publicados como Editoriais ou Apresentações da seção “Diverso e Prosa”; portanto, como atividade editorial, e não como artigos submetidos. Dos 4 artigos submetidos, aprovados e publicados, 2 são de autoria de docentes da FE e outros 2, de pesquisadores que, à época da publicação, eram doutorandos no Programa de Pós-Graduação em Educação. Seis dos artigos dessa edição são de autores estrangeiros de instituições do exterior: 2 da França (Universidade de Rouen), 1 da Itália (International Gramsci Society), 1 da Espanha (Universidade Complutense de Madri) e 2 da América Latina (1 da Flacso, Argentina, e 1 da Universidade Pedagógica Nacional, da Colômbia). Os textos de autores de instituições brasileiras vieram de 12 estados da federação, de todas as regiões: Rio de Janeiro, São Paulo, Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Espírito Santo, Minas Gerais, Bahia, Pernambuco, Mato Grosso do Sul, Paraná, Ceará e Pará. Ainda que continue chamando a atenção uma concentração da produção no eixo sul-sudeste, conforme ressaltado também nos períodos anteriores, destaca-se aqui um movimento de maior dispersão, dada a proliferação de programas de pós-graduação em Educação nas demais regiões brasileiras, e é de se esperar que nos próximos anos tal tendência seja ainda mais acentuada. Mas o que nos mostra a análise desta produção é que Pro-Posições se consolidou também como um veículo de publicação na temática Filosofia/Filosofia da Educação, em meio à multiplicidade teórica e temática, talvez a principal marca deste periódico.

Passando às principais temáticas abordadas nesta última década, fazemos 4 destaques iniciais. O primeiro é que, por iniciativas editoriais, foram publicados alguns textos com aportes filosóficos para pensar a educação. Em 2012, no volume 23, número 3, a revista fez uma homenagem a Jean-Jacques Rousseau, na efeméride dos 300 anos de seu nascimento e 250 anos da primeira publicação de seu tratado Emílio, ou da Educação. Na seção “Diverso e Prosa” foi publicada uma apresentação (Gallo, 2012Gallo, S. (2012, setembro/dezembro). Jean-Jacques Rousseau: uma dupla comemoração. Pro-Posições, 23(3), 217-222. Diverso e Prosa. Recuperado em 20 de julho de 2019, de http://dx.doi.org/10.1590/S0103-73072012000300013.
https://doi.org/10.1590/S0103-7307201200...
), escrita por um dos editores associados, e duas cartas de Rousseau (2012), inéditas no Brasil, retiradas de suas obras completas e traduzidas para o português especialmente para aquela edição. Em 2015, o volume 26, número 1, reproduziu uma entrevista inédita com o filósofo francês Michel Serres, realizada em Paris pela doutoranda Maria Emanuela Esteves dos Santos. Nessa entrevista (Santos, 2015Santos, M. E. E. dos. (2015, janeiro/abril). Educação e Contemporaneidade em Michel Serres. Pro-Posições 26(1), 239-257. Diverso e Prosa. Recuperado em 20 de julho de 2019, de http://dx.doi.org/10.1590/0103-7307201507615
https://doi.org/10.1590/0103-73072015076...
), foram destacados não apenas aspectos de sua “filosofia mestiça” e seu pensamento educacional, pensado como travessias de um “terceiro instruído”, trabalhado especialmente em um livro publicado em 1991 e aqui traduzido em 1993, mas também as suas reflexões mais recentes sobre o impacto da tecnologia na educação das novas gerações, em obra publicada na França em 2012 e aqui traduzida em 2013. Diante da quase ausente produção no Brasil no campo da Educação em relação ao pensamento deste filósofo contemporâneo, esta entrevista reveste-se de especial interesse, pelas perspectivas analíticas que abre. Michel Serres viria a falecer em junho de 2019, aos 88 anos de idade.

Neste período de análise foram publicados dois dossiês diretamente relacionados com o campo Filosofia da Educação. No volume 21, número 1, de 2010, apareceu o dossiê “Ensino de Filosofia e Cidadania”, organizado por docente da FE-Unicamp e com autores de diversas instituições, inclusive com um artigo de Giorgio Baratta, pesquisador italiano, presidente da International Gramsci Society. Essa publicação centrou-se no debate sobre o ensino de Filosofia na educação média, tornado obrigatório no Brasil por dispositivo legal em 2008, explicitando suas relações com as questões da cidadania em uma sociedade democrática. Já em 2015, no volume 26, número 1, apareceu o dossiê “Didáticas para as diferenças”, organizado por docente da Unifesp e com colaboração de autores brasileiros e estrangeiros, da Espanha, da França, da Argentina. O foco desse conjunto de textos foi pensar alguns aspectos didáticos do trabalho educativo, quando a escola é marcada pela alteridade das diferenças de toda ordem. As análises foram realizadas a partir das filosofias da diferença, perspectiva filosófica que vem ganhando destaque no pensamento educacional brasileiro.

Dois outros dossiês publicados no período merecem especial destaque. O comitê editorial da revista resolveu comemorar 2 efemérides do ano de 2014 (os 50 anos da experiência de Angicos e os 30 anos do desaparecimento de Michel Foucault) com 2 dossiês a serem produzidos por chamadas públicas de textos que, após análise por pares, seriam avaliados pelo comitê. Cada uma das produções significou mais de 1 ano de trabalho do comitê, mas resultou em 2 publicações importantes. “O ‘efeito Foucault’ na Educação” (v. 25, n. 2, 2014) teve um perfil mais diretamente filosófico, reunindo 9 artigos e 1 Editorial, sendo 1 artigo de autor francês e outro de autores colombianos, dando um caráter internacional mais amplo às análises feitas a partir da realidade brasileira. Já o dossiê “Paulo Freire e o debate educacional contemporâneo” (v. 25, n. 3, 2014) trouxe 2 textos de perspectiva filosófica. Um deles, debatendo a produção de subjetividades democráticas em Freire; outro, pensando um currículo crítico-emancipatório a partir do pensador brasileiro.

Por fim, destacamos a publicação, no último número de 2018, na seção “Diverso e Prosa”, de um texto do filósofo Jacques Rancière que, embora publicado na França em 1988, continuava inédito em português. Intitulado “Escola, produção, igualdade”, discute os meandros das relações da escola e dos processos educativos com as políticas e a economia do neoliberalismo, permanecendo, pois, atualíssimo. O texto foi traduzido do francês e recebeu uma introdução por Aimberê Guilherme Quintiliano Rocha do Amaral, professor de Filosofia da Educação na Universidade Federal de Juiz de Fora.

Para além desses destaques, o conjunto dos artigos publicados nesta última década reforçam a diversidade de temáticas e inspirações filosóficas que povoam as páginas de Pro-Posições. Uma vez mais, o foco foi em autores do século XX, ainda que alguns clássicos permaneçam inspiradores: Sócrates, Montaigne, Espinosa, Emerson, Kant. Do século XIX, destacamos: Max Stirner e, sobretudo, Marx e Nietzsche, provavelmente as duas matrizes referenciais mais importantes do pensamento contemporâneo. Do século XX, frequentam essas páginas: Gramsci, Mészáros e Lukács, pela tradição marxista; Benjamin, Adorno e Habermas, representando o pensamento frankfurtiano; na tradição fenomenológica, Heidegger, Merleau-Ponty, Buber; Simone de Beauvoir compõe com Hannah Arendt a voz feminina, ainda bastante tímida neste universo machista da filosofia; juntam-se a esses, Mauss, Dewey, Ricoeur, Bergson, Ortega y Gasset e Winnicott, ampliando o universo das referências; o pensamento da diferença continuou marcado pelos pensamentos de Foucault, Deleuze e Guattari, além de Deligny; dentre os pensadores do contemporâneo, apareceram Edgar Morin, Christoph Türcke e Michel Onfray.

O rol de temáticas multiplica a já diversa complexidade das décadas anteriores. Filosofia e cidadania; tempo, realidade e subjetivação; hipermodernidade, cidadania e linhas fuga; liberdade de ensino; comunicação e (in)tolerância na educação; educação do corpo e natureza; educação e engajamento dos intelectuais; multiculturalismo intercultural e processos educativos; experiência estética e subjetivação; formação humana e educação política; cartografia e pesquisa em educação; corporeidade e educação; natalidade e processos educativos na educação das novas gerações; Ferrer Guàrdia e a Escola Moderna; semiformação e contemporaneidade: os processos digitais; educação e clínica dos sujeitos; progresso e domínio da natureza; ética do cuidado de si na filosofia da educação brasileira; crianças, infância, educação infantil e memória; corpo e educação dos sentidos; conscientização e cultura popular; pedagogias alternativas e liberdade de aprender e ensinar; violência e educação; filosofia e interdisciplinaridade: desafios ao ensino; perspectivas filosóficas da educação em enfermagem; políticas educativas e neoliberalismo; idiotia, ontologia e formação humana; noção de tempo no pensamento de Freire; heterotopia nas aulas de educação física; heterotopia, imagens e educação; cinema, educação e filosofia.

Considerações finais

O reconhecimento conquistado pela revista Pro-Posições no decorrer de seus 30 anos de existência advém da soma de uma série de fatores: o apoio institucional, a dedicação de seu corpo editorial, as inúmeras contribuições de pesquisadores brasileiros e estrangeiros empenhados em publicar suas pesquisas, a capilaridade de seus leitores e sucessivamente.

Mas, como vimos neste artigo, poderíamos sustentar que o campo Filosofia e Filosofia da Educação desenhou indeléveis marcas no registro da herança dialógica para a área da Educação tal como se alastrou na Pro-Posições. Deste ponto de vista, é irrecusável que as leitoras e os leitores da revista não poderiam ignorar a vasta fortuna de proposições filosóficas em torno das mais distintas temáticas e problematizações para a Educação. É que, de fato, como a tradição do pensamento educacional acabou salientando, Filosofia e Filosofia da Educação são bases incontornáveis dos fundamentos da educação.

Neste sentido, os artigos angariados nestas três décadas não buscaram apenas percorrer os propósitos e as consequências dos fundamentos teóricos filosóficos para a educação, mas procuraram também problematizar e colocar na pauta do dia a necessidade crítica e revisional dos próprios fundamentos da educação. Em outros termos, na revista Pro-Posições há fazeres filosóficos cuja intenção não é a de fechar o círculo do pensamento educacional sobre si mesmo; ao contrário, porém, trata-se de buscar pensar diferentemente as nossas próprias condições históricas em mutação.

Tal perspectiva é muito curiosa, pelo fato de nos implicar na própria arqueologia do pensamento educacional, no sentido foucaultiano. Como Foucault (1980)Foucault, M. (1980). L’archéologie du savoir. Paris: Gallimard. traçou, a arqueologia é um exercício crítico de um pensamento que não dá conta de apreender todo o seu sentido e toda a sua transição histórica, além de ser impossível para nós alcançar a totalidade e os fluxos de continuidades e descontinuidades históricas de nosso próprio arquivo histórico. Sendo assim, ao retomarmos o conjunto de publicações do campo Filosofia e Filosofia da Educação tal como se dispuseram entre 1990 e 1999, 2000 e 2009, 2010 até 2018, dar-nos-emos conta de que as inquietações dispostas ali para a área da Educação não alcançaram repouso. Em outros termos, vivemos sobre a pungente latência de um arquivo que precisa, incansavelmente, ser prospectado, problematizado, dado à luz, considerado como feição pertencente ao nosso próprio rosto histórico.

Se estamos argumentando nesta direção é porque entendemos que na presente atualidade na qual escrevemos, este ano de 2019, notadamente no cenário histórico-político-social brasileiro, a Educação se vê impelida aos mesmos desafios pontuados desde o início dos anos noventa. Os artigos filosóficos e filosófico-educacionais consideravam, àquele tempo, o imprescindível cuidado com o recente processo de redemocratização brasileira e de reafirmação da escola republicana– universal em seus direitos, laica e de qualidade – algo ainda para ser zelado, tal qual um infante que precisa de todo acompanhamento de um indivíduo emancipado. Não obstante, é constrangedor verificar como aquela pauta é urgente nos dias atuais.

Mais do que nunca, precisamos retomar as pesquisas que insistiam nos marcadores fundamentais de uma sociedade livre e com direitos assegurados em sua ampla garantia para o livre pensamento, a livre expressão e as abordagens educacionais – claro está –, considerando a complexidade humana inerente a todos que compõem a sociedade. É assustador, contudo, depararmo-nos com retrocessos aviltantes àquelas pesquisas instauradas entre os anos 1990 e 1999. Atualmente, não deixamos de presenciar a subvalorização da educação pública como elemento emancipador e de formação crítica. Por exemplo, se os termos da crítica, da emancipação, da escola popular, da superação da alienação dos indivíduos, da luta contra a ditadura e os fantasmas da censura e da perseguição ainda precisavam ser ali reconsiderados, supreendentemente, vemos essa mesma tomada de obstáculos como uma corrida que não foi finalizada e cujos mesmos obstáculos se interpõem a nós como umbral histórico a ser compreendido, analisado, investigado, problematizado e diante do qual devemos nos posicionar. Poderíamos destacar, nesta dimensão, apenas com um exemplo atual: o modo como Paulo Freire vem sendo taxado de educador impróprio aos interesses políticos do status quo. Não é apenas ignorância, no sentido filosófico, ou seja, daquilo que não se sabe. Trata-se, mais ainda, de má-fé com as condições históricas outrora consolidadas para a Educação destinada a formar indivíduos que possam compor uma sociedade mais justa, democrática, de plenos direitos; sociedade guarnecida pela crítica como limite aos excessos de toda governança que intenta minimizar o alcance dos direitos de seus cidadãos, seja em que esfera for; sociedade essa impossível de ser alcançada sem a educação de seus pares.

Com efeito, a trama tecida a partir dos anos 2000 até 2009, vislumbrando a plena sustentação do Estado de direito, a universalização da educação pública somada à abertura do pensamento crítico e às experimentações com a Educação, punha à prova novas utopias e projeções para as ações educacionais. Os temas milenares, em suas mais vastas pluralidades, consideravam as novas tecnologias para a Educação, as problemáticas cartografadas pelo debate ao redor da pós-modernidade, a necessidade do desenvolvimento econômico como condição redistributiva para os investimentos públicos nas escolas, assim por diante. Mas, no mesmo sentido da inflexão temática da década anterior, testemunhamos na contemporaneidade uma subtração das tendências que visavam avançar na qualidade educacional, em todas as suas possibilidades. Se a partir dos anos 2000 era fundamental questionar a neoliberalização político-econômica brasileira que pudesse comprometer a qualidade educacional garantida desde a Constituição Federal de 1988, reincidindo no quadro problematizador dos artigos de 2000 até 2009, não podemos deixar de notar que a mesma questão retorna como eixo analítico desafiador nos tempos atuais.

Sob tal horizonte, Filosofia e Filosofia da Educação são chamadas a redimensionar o lugar político-histórico de suas investiduras investigativas. É muito importante considerar tal elemento, pois o arquivo de nossa história atual tem produzido uma incansável discursividade que solapa a própria relevância dos fundamentos da educação: é que pensar vem se tornando algo muito perigoso, além de alvo de perseguição. Não obstante, a leitura dos artigos publicados entre 2000 e 2009 é imprescindível para nos darmos conta de que os limites até então denunciados para a consecução da educação milenar, ou seja, visando à superação das distorções e das injustiças do século anterior, são mais do que persistentes, são ressurretos.

Não seria, então, assustador ter a consciência de que as temáticas da Filosofia e da Filosofia da Educação desdobradas desde 2010 até 2018 mal engatinharam como pulsação vital de uma história que ainda precisa ser escrita à base de muita luta, superação e persistência de novas proposições educacionais. Se as diferenças, como pauta de inclusão educacional abrangente, emergiam, levando em consideração demandas de corporeidade, de deficiência, de sexualidade, de minorias étnicas e raciais; se as subjetividades, como gradiente de multiplicidade da expressão humana, buscavam se firmar como presença inegociável à educação brasileira, por exemplo, pautadas pelos termos “heterotopia”, “singularidade” e “experimentação”; se o próprio termo “diferença” havia se tornado lugar analítico-filosófico e subcampo da Filosofia da Educação, ou seja, Filosofia das Diferenças, tudo isso se dava pela maturação de uma série de pesquisas cujo apoio do Estado era irrefutável, a partir do momento em que transigia por tais demandas, por exemplo, presentificadas numa série de políticas públicas de inclusão educacional.

Mas tal cenário, entretanto, mais uma vez emerge a contrapelo das atuais tendências históricas de nossa sociedade. Cada vez mais, e poderíamos dizer, em um tom distópico e inacreditável, vemos serem zombados e descreditados os temas das diferenças, das minorias, das multiplicidades humanas, em sua potencialidade tanto ética quanto estética; e solapadas as estratégias educacionais que se destinavam a pensar, a investigar e a propor ações com o pensamento ou com empiricidades considerando tais temáticas.

Outrossim, em momento algum a revista Pro-Posições deixou de ser uma cartografia que dá publicidade a todo esse arquivo que, ao mesmo tempo, faz emergirem as condições históricas com as quais chegamos até aqui. Entretanto, somos também por elas desafiados a tecer outros fios com os quais podemos nos guiar para outras conexões de um fazer histórico exigente com a sua própria transformação.

Em suma, se em 30 anos de publicação, Filosofia e Filosofia da Educação compuseram o arquivo desta complexa arqueologia da educação brasileira, tal como a revista Pro-Posições testemunha, é porque ambas jamais deixaram de produzir as suas proposições originais para a educação. Tais proposições não se encerram nestas três décadas – ao contrário, latejam como exercício incansável diante dos acontecimentos históricos que nos impelem na busca de outras proposições em uma época de ritmo monocórdico e viciado em proposições circulares. Mas, seguramente, não é para isto que a revista Pro-Posições continua a existir, e nem é para tanto que Filosofia e Filosofia da Educação continuarão por ela a transitar.

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    Normalização, preparação e revisão textual: Leda Farah (farahledamaria@gmail.com) e Vera Bonilha(verabonilha@yahoo.com.br)
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    Texto integrante do dossiê especial: “Pro-Posições 30 anos”, organizado pelo Prof. Dr. André Luiz Paulilo. Editor Associado responsável: Prof. Dr. André Luiz Paulilo.
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    Para uma análise deste processo de constituição da Filosofia da Educação como campo disciplinar, ver Gallo (2007)Gallo, S. (2007, julho/dezembro). Filosofia da Educação no Brasil do Século XX: da crítica ao conceito. Eccos – Revista Científica, 9(2), 261-284..

Referências

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  • Foucault, M. (1980). L’archéologie du savoir Paris: Gallimard.
  • Foucault, M. (1996). A ordem do dicurso (2a ed.). São Paulo: Loyola.
  • Gallo, S. (2007, julho/dezembro). Filosofia da Educação no Brasil do Século XX: da crítica ao conceito. Eccos – Revista Científica, 9(2), 261-284.
  • Gallo, S. (2012, setembro/dezembro). Jean-Jacques Rousseau: uma dupla comemoração. Pro-Posições, 23(3), 217-222. Diverso e Prosa. Recuperado em 20 de julho de 2019, de http://dx.doi.org/10.1590/S0103-73072012000300013.
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  • Rousseau (2012, setembro/dezembro). Duas cartas (Dorothée de Bruchard, Trad.). Pro-Posições, 23(3), 223-225. Diverso e Prosa. Recuperado em 20 de julho de 2019, de http://dx.doi.org/10.1590/S0103-73072012000300014.
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  • Serres, M. (1993). Filosofia mestiça – Le tiers-instruit Rio de Janeiro: Nova Fronteira.
  • Serres, M. (2013). Polegarzinha Rio de Janeiro: Bertrand Brasil.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    28 Nov 2019
  • Data do Fascículo
    2019

Histórico

  • Recebido
    30 Jul 2019
  • Aceito
    29 Ago 2019
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