Acessibilidade / Reportar erro

A normatividade da linguagem na atividade educativa: uma leitura hermenêutica

The normativity of language in educational activity: a hermeneutic reading

Resumo

Urdido no método fenomenológico-reconstrutivo, sobretudo na forma praticada na pós-modernidade, o artigo analisa as possibilidades interpretativo-epistêmicas presentes no debate cunhado por Hans-Georg Gadamer acerca da linguagem. A partir do diálogo com a hermenêutica gadameriana, o texto problematiza a possibilidade de instauração de sentido às práticas educativas através pressupostos filosóficos da linguagem. Nesta perspectiva, o artigo propõe pensar que os processos educativos não são processos puramente cerebrinos, mas, isto sim, um grande e complexo processo hermenêutico em que a linguagem tem vida própria. Posto isso, entende que é na linguagem que o mundo se mostra e é também na linguagem que se revela o ser da educação.

Palavras-chave
educação; linguagem; hermenêutica

Abstract

Elaborated in the phenomenological-reconstructive method, especially as it is understood in postmodernity, this article analyzes the interpretive-epistemic possibilities present in the debate proposed by Hans-Georg Gadamer about language. From the dialogue with the Gadamerian hermeneutics, the text problematizes the possibility of instituting meaning to the educational practices according to the philosophical assumptions of language. In this vein, the article proposes that educational processes are not purely cerebral, but rather a great and complex hermeneutic process in which language has a life of its own. With this in mind, the present study understands that it is in language that the world shows itself and it is also in language that the essence of education is revealed.

Keywords
education; language; hermeneutics

Introdução

Seguindo a perspectiva da descrição-reconstrução fenomenológica, na esteira do pós-moderno, o artigo aborda o tema da linguagem no diálogo com a educação. Essa dobradiça de análise entre linguagem e educação tem por objetivo trazer à luz (mesmo que tênue como a da aurora) algumas alavancas interpretativas que nos possibilitem (re)pensar as formas de justificação epistêmicas dos fenômenos educacionais, especialmente, a partir da hermenêutica gadameriana e de alguns dos principais interlocutores da matéria, com os quais o artigo dialoga. O cerne da discussão proposta está em analisar os efeitos da linguagem, mormente os sentidos que ela produz e como deles os professores podem se apropriar diante da ação educativa.

Para isto, divido a matéria em duas seções. A primeira: A linguagem como norma: o fio condutor do compreender e do interpretar versa sobre o funcionamento da linguagem na sua relação com processos de compreensão e interpretação. Aponta para a performatividade linguística presente na ação comunicativa ou, em outros termos, para a normatividade que a linguagem exerce sobre os processos educativos e, de um modo geral, sobre o diálogo homem-mundo. A segunda: O educar como um acontecimento de linguagem motivado no horizonte hermenêutico do perguntar e do responder discute a importância hermenêutica do perguntar e do responder em processos de ensino-aprendizagem. Expõe brevemente a essência da pergunta no processo de construção do conhecimento, sobretudo, no que diz respeito à possibilidade de compreensão e apropriação dos saberes através do movimento dialético presente na abertura de horizontes que a pergunta propicia.

A linguagem como norma: o fio condutor do compreender e do interpretar

Com Gadamer (1997)Gadamer, H-G. (1997). Verdade e método: traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. Petrópolis: Vozes. parto da ideia de que não somente o mundo é mundo porque e na medida em que vem à linguagem, como a linguagem só tem sua verdadeira existência no fato de que nela se representa o mundo1 1 É verdade que o conceito de mundo aparece em Gadamer, mas foi em Heidegger (2015) que o conceito de mundo adquiriu o sentido que este texto, e também Gadamer, procuram acompanhar. Heidegger, desde uma investigação sobre o conceito de cosmos, chega, a partir da cosmologia, ao seu conceito de mundo com duplo sentido. No primeiro sentido ele fala de um mundo como continente, no segundo fala do mundo como um mundo do homem. Desse último Heidegger extrai a ideia de homem mundano (que habita o mundo) e homem divino (que teme a Deus). No ponto de vista de Stein (2004), “Extraindo da cosmologia o duplo conceito de mundo e de homem, Heidegger chega, em sua análise, ao conceito de ser-no-mundo. Ocorre aí uma transformação do conceito de mundo enquanto a priori, transcendental, presente na posição kantiana” (p. 102). Heidegger tira da filosofia o espaço ocupado pela cosmologia e também pela teologia, operando por meio de um encurtamento hermenêutico, como se expressa Stein. Assim, “O conceito de mundo passa a ser abordado pelo filósofo através de um ponto de vista transcendental. Porém, não mais como um a priori da consciência, um a priori do eu penso, e sim como um conceito que surge desse capítulo da história da filosofia que foi Kant que, entretanto, pela interrogação heideggeriana, não depende mais do fato de estar ligado a uma filosofia da consciência, a uma teoria da representação, como em Kant. Tal conceito deve referir-se não mais a uma teoria da consciência, mas ao homem, no mundo” (103). É este horizonte de sentido que ganha o conceito de mundo na conjuntura deste estudo. . Desse modo, cumpre observar que a relação entre linguagem e mundo, linguagem e educação, ainda no sentido que lhe confere Gadamer, não significa, para todos os efeitos, que o mundo passa a ser mero objeto da linguagem ou que a educação também o seja. Pelo contrário. O que é objeto ou parte do conhecimento se efetiva e está sempre sitiado pelo horizonte do mundo da linguagem. Isto significa que a linguisticidade da experiência humana não é simplesmente a experiência da objetivação do mundo que fala através dela, mas é, genuinamente, a experiência que nos ata à finitude humana, a contingência. Para Stein (2004)Stein, E. (2004). Aproximações sobre hermenêutica (2a ed.). Porto Alegre: Edipucrs., é impossível sustentar um sentido puro e objetivo dos objetos estruturados no mundo, pois tal como Heidegger já havia reconhecido, a compreensão sempre se dá ligada às condições e ao modo de ser mundo, isto é, na mesma medida em que somos mundo, projetamos mundo. É assim que, para Stein (2004)Stein, E. (2004). Aproximações sobre hermenêutica (2a ed.). Porto Alegre: Edipucrs., se constitui a chamada estrutura da circularidade, esse processo hermenêutico dentro do qual nos damos conta de que só objetivamos coisas pela compreensão e só falamos delas pela linguagem. Assim, somos um modo de ser no mundo e não apenas descrevemos coisas no mundo (Stein, 2004Stein, E. (2004). Aproximações sobre hermenêutica (2a ed.). Porto Alegre: Edipucrs., pp. 66-67). Stein, em referência à Heidegger, chamará isto de hermenêutica da faticidade (em alemão: Facticitäd) para descrever o modo fático de sermos. Ou seja: o sentido dos objetos estruturados no mundo que se nos vem pela compreensão e que aparece na linguagem é, segundo Stein, trazido pelo Dasein. Se é, portanto, na linguagem que o mundo se mostra, é também na linguagem que se revela o ser da educação.

Assim, enquanto participante de um processo educativo, o homem participa também de um modo de ser mundo. Posto no horizonte desta compreensão, o homem, o aluno está sempre atravessado por uma situação histórica na qual não só se expressa a si mesmo, como fala e é falado como ser que tem na linguagem a mundanidade de seu próprio dizer. Na compreensão de Berticelli (2004)Berticelli, I A. (2004). A origem normativa da prática educacional na linguagem. Ijuí: Editora Ijuí., para tornar mais explícito este estar no mundo, no lugar de mundanidade poder-se-ia dizer intramundanidade, uma vez que não se está sozinho no mundo, mas com tudo e com todos. Nesse sentido, para o mesmo autor, a articulação essencial deste entendimento, bem como a possibilidade do compreender e do interpretar que, no medium da linguagem condicionam tal articulação, só ocorre ao passo que se está com e não apenas junto de. Nisto a única via de acesso é a linguagem, não só porque nos mantém livres, mas também pelo seu caráter variável. Ou seja, ela não é variável porque existem diferentes línguas; ela o é em si mesma variável, pois oferece inúmeras possibilidades de expressar-se sobre uma mesma ideia ou objeto. Isto torna, sem sombra de dúvida, o educar/a educação um diálogo2 2 Aqui, a noção de diálogo não hospeda uma condição intersubjetiva que visa se apropriar de uma significação oculta presente entre aquele que ensina e aquele que aprende, tal como é comum, por exemplo, na tradição freireana de pensamento. A noção de diálogo a que me refiro, diz respeito à forma de aderência às condições de uma significação. Ou seja: o diálogo não se dá por uma relação de pensamento, mas por uma produção de si. Assim, o diálogo não tem, aqui, um efeito libertador, pois dizer é sempre um ato de arbitrariedade. , uma conversação bem antes mesmo de ser uma intervenção autoritária daquele que sabe, ou que julga saber mais, ainda que pela via maior do conhecimento.

A linguagem, na acepção que aqui é tomada, não se restringe apenas à forma linguística como se tivesse sua justificação em suas próprias regras. Em outros termos, o que quero dizer é que a linguagem não é neutra, mas um espaço subjetivo e finito da argumentação que se pode instituir em virtude do acordo linguístico que se pode articular na correspondência entre falantes envolvidos no processo educativo, seja ele formal ou não. Se a linguagem está compreendida como um espaço finito é porque nela subjaz uma finitude de sentidos que se pode compreender e interpretar. No entanto, esta não neutralidade da linguagem se dá pelo fato de que a palavra da linguagem é, ao mesmo tempo, una e múltipla. Esta confirmação platônica mostra que é sempre uma a palavra que dizemos uns aos outros, mas essa palavra, quando dita, ganha novos desdobramentos na articulação do nosso falar, ela transcende a simples execução e supera a força (e a forma) do enunciado.

Em outros termos, Gadamer (2002)Gadamer, H-G. (2002). Verdade e método II: complementos e índice. Petrópolis: Vozes. nos dá pleno acesso a esta compreensão. Via hermenêutica, ele nos mostra que não apenas o processo de entendimento entre os seres humanos, mas também o processo de compreensão representa um acontecimento de linguagem. Com isso, o autor mostra que nossa relação de linguagem não consiste em impor ou introduzir palavras, mas em um acontecer fundamental da própria acidentalidade do nosso falar. Para ele, “uma palavra introduz-se a si mesma” (p. 231). Ela se torna uma palavra, quando é assumida pela comunicação. Isto acontece não porque alguém lhe introduz no ato de comunicar, mas porque ela se introduziu por conta própria. Palavras não são coisas que guardamos na gaveta da sala e de que lançamos mão quando nos é necessário, como se a linguagem estivesse sob gerência e uso daquele que nela vive. A linguagem, como disse Gadamer, “não depende de quem a usa” (p. 231), pois é a própria língua que articula o significado da palavra em uso. Ainda que no contexto geral da linguagem a palavra tenha um determinado significado, ela nunca é unívoca, isto é, a palavra possui uma amplitude em sua significação e é justamente essa amplitude oscilante que, para Gadamer, constitui o atrevimento característico do dizer. A linguagem não é um sistema de identidades, como reconhece Ferdinand de Saussure (1995)Saussure, F de. (1995). Curso de linguística geral (20a ed.). São Paulo: Cultrix., mas, justamente ao contrário: ela é um sistema de diferenças.

Portanto, é só na discursividade do dizer, na articulação de um contexto, que o significado da palavra se apresenta. Contudo, mesmo quando essa palavra se nos apresenta em um contexto de sentido, ela nunca o faz por completo. Sempre há nela um a ser conhecido, em sentido heideggeriano, que não se resume ao que está presente de modo concreto. Quando nos encontramos diante desta essência3 que se oculta na palavra, isto é, do sentido oculto que, segundo Flickinger (2014)Flickinger, H-G. (2014). Gadamer e a educação. Belo Horizonte: Autêntica., os gregos chamavam de hiponoia, como forma de sinalizar para aquilo que se esconde por trás do dito e que por isto fica no que o autor chama de clandestinidade, vemo-nos desafiados a perfurar sua unidade linguística para alcançar horizontes mais amplos de sua compreensão. Esta ausência é justamente o que provoca aquela admiração que, segundo a teoria platônica, nos convida a pensar e a deixar sempre em aberto a possibilidade do diálogo. A essência desse pensar, que é sempre um dizer para si, foi de modo muito elegante identificado por Platão como sendo o diálogo da alma consigo mesma, um diálogo que, no ponto de vista de Gadamer (2002)Gadamer, H-G. (2002). Verdade e método II: complementos e índice. Petrópolis: Vozes., é um constante superar-se em um eterno retorno a si mesmo.

3 Ao utilizar a palavra essência não estou me referindo a uma essência estática que nos remeteria, por assim dizer, a uma origem constitutiva do ser mesmo das coisas. Refiro-me a uma essência fluente que inscreve seu caráter constitutivo no plano da história. Trata-se, portanto, de uma essência no sentido não metafisico do termo.

Para o filósofo (2002), “se há algo que caracteriza bem nosso pensar humano, é justamente este diálogo infinito com nós mesmos, que não leva a nada definitivo” (p. 235). É justamente isto que nos difere daquele ideal de espírito infinito, diz Gadamer, “para o qual tudo que é e tudo que é verdadeiro se encontraria diante dele no abrir-se de um único instante vital” (p. 235). Nesta experiência de diálogo com nós mesmos e com os outros é que o mundo se mostra no âmbito de toda experiência possível. No entanto, o mundo que se faz possível é apenas aquele que se nos vem pela experiência da linguagem e que se efetiva na palavra discursivamente articulada e/ou implícita na linguisticidade do nosso dizer.

Com isso, não se pode perder de vista que cada palavra, no horizonte do mundo da linguagem, dispõe de uma dimensão intersubjetiva, pois ela emerge de um lugar, de um ponto, mas não deixa de estabelecer relação com todos os demais. Na palavra ecoa não só sua relação mais ampla com a linguagem de que faz parte, como também reverbera o mundo que lhe é inerente. Por isto é que a palavra, na acidentalidade fundamental da linguagem, para usar uma expressão de Gadamer (1997)Gadamer, H-G. (1997). Verdade e método: traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. Petrópolis: Vozes., em sua momentaneidade histórica reserva a dimensão do não dito, daquilo que não se pode esquematizar, mas que está implícito em nossa linguisticidade. Levar em consideração o espírito oculto da palavra, isto é, buscar roer a unidade de sentido do que se diz ou do que se nos apresenta à interpretação é justamente o que caracteriza a consciência hermenêutica. “Ou, dito nas palavras de Gadamer (em entrevista de 1997), a consciência hermenêutica implica o saber ‘do quanto fica de não dito quando se diz algo” (Flickinger, 2014Flickinger, H-G. (2014). Gadamer e a educação. Belo Horizonte: Autêntica., p. 15). Para Gadamer, esta ocasionalidade do falar humano não se trata de uma imperfeição em nossa capacidade de expressão, mas, isto sim, a expressão da virtualidade do falar que, mesmo sem dizer por inteiro o que quer dizer, põe em jogo todo um horizonte de sentido que tende à compreensão. Se pensada no medium da linguagem, entre o conhecimento e seu intérprete, existe um lugar de conversação.

E é justamente neste lugar de conversação que se constitui a dinâmica relacional tanto mais importante para os processos educativos. Para Maturana (1998)Maturana, R H. (1998). Emoções e linguagem na educação e na politica. Belo Horizonte: UFMG., é neste ambiente, nesta relação comunicativa, que o educando/educador constrói sua autoconsciência sobre o conhecimento. Dessa forma, “a autoconsciência não está no cérebro – ela pertence ao espaço relacional que se constitui na linguagem” (p. 28). O que é importante destacar neste processo é que esta autoconsciência não diz respeito à consciência de um eu centrado em si, como se dá no caso do cogito cartesiano, mas de uma consciência de si que emerge na relação com o outro. Aí, o conhecimento não está determinado de antemão como se tudo fosse pressuposto pela racionalidade. Nesse caso, o que determina e fundamenta o processo de apropriação do conhecimento, dos saberes presentes na relação educativa, não é, como ensina Maturana (1998)Maturana, R H. (1998). Emoções e linguagem na educação e na politica. Belo Horizonte: UFMG., um gesto puramente racional, mas sim os lances e os sentidos produzidos na coordenação de ações consensuais em linguagem.

Assim, podemos dizer que nem o intérprete, seja o educando ou o educador, é detentor único do conhecimento que chega até ele como palavra da tradição, e nem o conhecimento pode conter todo o conjunto e revelar por inteiro o ser da tradição que nos volta a falar, seja através da história, da arte, das poesias, etc. Quando a tradição volta a nos falar, ela mesma é absorvida pelo interpretar e ganha uma nova apropriação. Como entende Gadamer (1997)Gadamer, H-G. (1997). Verdade e método: traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. Petrópolis: Vozes., não há um ser em si que vai se mostrando quando a tradição se reapresenta, até porque, lembra o filósofo, “a interpretação não pretende pôr-se no lugar da obra interpretada” (p. 582) ou da própria tradição, mas o que acontece é uma verdadeira conversação em que surgem coisas que nem o educando e nem o educador abarcam por si sós. O que ocorre é que em todos os casos, seja na história, na arte, na poesia ou em qualquer outra forma de conhecimento que a tradição apresente, o que é transmitido entra de novo no curso da existência e se abre, na linguagem, aos sentidos do tempo presente.

Fica, pois, mais do que evidente que a tradição não é algo eminentemente sensível, tampouco seu modo de ser é imediato. O modo de ser da tradição é linguagem, um comportamento propriamente linguístico, por isto histórico, efetual. Tal como nos ensina Gadamer, esta comunicação linguística da tradição com o presente ou, se quisermos, do aluno e do professor com o conhecimento, é um acontecimento que em todo o compreender e o interpretar abre um novo caminho de conversação. Assim, a experiência educativa tem de assumir tudo o que se torna presente na experiência da linguagem, isso porque a linguagem é em si mesma a própria experiência do mundo e é, contudo, nela que o ser da educação está determinado como acontecimento do presente. Esta experiência educativa via linguagem difere muito da ideia metódica da ciência; tem seu horizonte de sentido na acidentalidade do próprio acontecer da linguagem.

Diante disso, tal como venho tentando demonstrar desde uma perspectiva hermenêutica, o acontecer da linguagem não constitui a experiência educativa porque e enquanto uma estrutura gramatical, léxica ou em função dessa sistematização, mas, como diz Gadamer (1997)Gadamer, H-G. (1997). Verdade e método: traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. Petrópolis: Vozes., “no vir à fala do que foi dito na tradição, que é ao mesmo tempo apropriação e interpretação” (p. 672). Ainda conforme o mesmo autor, podemos dizer que este acontecer não é nossa ação sobre a coisa, sobre a linguagem, mas a própria coisa em ação, a própria linguagem. É, portanto, mais preciso dizer que é a linguagem que nos fala, do que afirmar o contrário. Com a obra, ou com o texto de um modo geral, isso fica ainda mais claro, pois, ainda que o autor esteja ali, a linguagem vem primeiro, na medida em que a obra ou o próprio texto falam por conta própria, quando não, subvertendo as intenções do autor.

Com Gadamer isto se vê também presente na linguisticidade da interpretação. Para ele, é através da interpretação que o texto tem de vir à fala. Ou seja: nenhum texto ou conhecimento vem à fala, se não obtiver um horizonte de interpretação que absorva a linguagem que o leva de encontro e ao alcance do outro. Por isso é que não há uma interpretação literalmente correta. O que existe são aproximações interpretativas, na realidade, fusões de horizontes. Assim, interpretar é acessar um entre tantos outros caminhos que se nos são possíveis na arte da compreensão. Em educação, a importância dessa estrutura compreensiva é flagrante, pois a vinculação de uma situação interpretativa ao educar/educar-se/ser educado não é tão somente um comportamento pedagógico, senão a realização da própria compreensão. Essa compreensão não tem apenas como horizonte aquele objetivo em cujo benefício se interpreta, como, por exemplo, o de responder questões de uma problemática proposta pelo professor no contexto de uma aula, mas o próprio intérprete faz parte desse horizonte, na medida em que se envolve com o cenário de sua própria interlocução. Veja, isto que venho tentando dizer deve estar sempre situado no campo da filosofia da linguagem, o que não significa que a hermenêutica é, aqui, tema secundário, mas se trata tão somente de estabelecer o universo teórico em que tanto a linguagem quanto a hermenêutica estão sendo pensadas no percurso do texto e em sua relação com o fenômeno educativo.

A referência que vinha fazendo sobre o envolvimento do intérprete com o interpretado não determina, pura e simplesmente, a realização interpretativa da compreensão, como se esta fosse apenas uma adaptação pedagógica que se pode facilmente obter. A compreensão não é algo a que se pode chegar tão facilmente. Há que se interpretar corretamente, e essa realização, na compreensão de Gadamer, nada mais é do que a concreção do próprio sentido do texto ou do que está em jogo para o intérprete. Interpretar corretamente um texto não quer dizer apropriar-se de uma maneira correta de interpretação, que nos transfere para a estrutura espiritual do autor através de uma comunicação entre almas, para usar termos de Gadamer, mas quer dizer acompanhar minimamente o sentido e o intuito do texto ou da coisa interpretada ou, ainda, deixar valer aquilo que o texto diz a partir de si próprio. Compreender um texto, e aqui texto tem sempre um sentido que o remete ao amplo e complexo processo educativo, significa colocar seu horizonte de sentido sob o ângulo de uma determinada perspectiva. Isto significa que, diferente do romantismo de Schleiermacher, o esforço hermenêutico do compreender que vem de fonte gadameriana tem sempre um vínculo com a tradição e não com uma consciência universal. Para tal, colocar o texto sob o ângulo de uma perspectiva é um movimento que tem duplo sentido, isto é: a) compreendê-lo no âmbito de sua alteridade e historicidade e b) compreendê-lo a partir de sua vinculação com a tradição.

Em linhas gerais, ao longo dos últimos séculos o conceito de texto foi objeto de inúmeras discussões. Quer seja na área da linguística, quer seja na semiótica ou no horizonte geral da filosofia da linguagem, sobretudo, no âmbito da hermenêutica filosófica que vem de Heidegger e que passa por Gadamer, o texto “deixou de ser concebido sob uma base meramente gramatical, como frase complexa, para ser concebido sob uma perspectiva sociocognitivista, como lugar de interação” (Pinheiro, 2017Pinheiro, C L. (2017). Contexto e referência na análise textual. Cadernos de Estudos Linguísticos. 59(1), 229-243., p. 229). Portanto, o texto não pode ser desvinculado de suas condições de produção, das condições mínimas em que seu sentido está radicado. Para Pinheiro (2017)Pinheiro, C L. (2017). Contexto e referência na análise textual. Cadernos de Estudos Linguísticos. 59(1), 229-243., “as abordagens que situam o texto no seu contexto de produção se caracterizam pela abertura interdisciplinar e transdisciplinar, e, dessa forma, cada uma toma um conjunto específico de questões relativas ao texto e à própria noção de contexto” (p. 229). De todo modo, o que importa saber é que um texto tem sempre um horizonte de sentido, um lugar histórico efetual. Por isto é que a “noção de contexto é, pelo seu próprio caráter, multifacetada, e está ligada a vários outros conceitos, como os de discurso, fala, comunicação, processos conversacionais, interpretação, os quais, por sua vez, envolvem aspectos de natureza variada” (p. 229).

Assim, mesmo que isto seja essencial para o processo de compreensão, colocado em diferentes perspectivas de interpretação, o texto continua sendo o mesmo, só que, no caso particular de cada interpretação, ele se nos apresenta de modo diferente. Como toda a interpretação está situada no horizonte ontolinguístico do agir comunicativo do intérprete/educando/educador, o terreno que a compreensão conquista na interpretação não gera, como ensina Gadamer, um segundo sentido para além do foi compreendido e interpretado. No entendimento do mesmo autor, isso ocorre porque na compreensão os conceitos interpretativos não se estabelecem, mas, ao contrário, tais conceitos são determinados justamente por desaparecer (como fogos fátuos) em meio ao que eles fazem falar na interpretação. Mesmo que isso possa parecer contraditório, uma interpretação tende a ser correta quando tende, na mesma proporção, a esse desaparecimento. Ali a mais brilhante intuição se mostra para logo se esconder numa lassidão profunda. Sob o ponto de vista gadameriano, vale salientar que de modo algum este desaparecimento do conceito significa seu apagamento como dimensão interpretativa, ou seja, tal desaparecimento é apenas o sinal de que o conceito teve sua compreensibilidade alcançada pelo intérprete. Em sendo assim, é correto afirmar ainda que a interpretação “tem de vir à representação na sua qualidade de ser destinada a desaparecer” (pp. 579-580).

Neste contexto, o compreender dependerá sempre de uma interpretação mediadora. Aqui há de se ter cuidado, pois se se entende que a compreensão e a interpretação se mostram na linguagem, devemos, igualmente, entender que a linguagem também se mostra no discurso. E para Berticelli (2004)Berticelli, I A. (2004). A origem normativa da prática educacional na linguagem. Ijuí: Editora Ijuí., o jogo discursivo não se deixa domar tão facilmente. Dentro dele os sentidos percorrem caminhos sinuosos, complexos e minados de armadilhas para os incautos. É preciso, como alerta o autor, que o educador atente para a desconstrutividade desses discursos tanto quanto para a construtividade que lhe é possível no compreender e no interpretar educativo. Como comenta o autor, Flickinger sinaliza para a mesma direção na medida em que nos adverte sobre aquela lógica clandestina que perfaz não só os discursos como também o pensar e o compreender. Na visão de Berticelli (2004)Berticelli, I A. (2004). A origem normativa da prática educacional na linguagem. Ijuí: Editora Ijuí., essa lógica clandestina que rege os discursos pode, a todo o momento, subverter a intenção do autor, do texto e até mesmo do educador/educando em um jogo insidioso que subverte os termos do argumento por eles encetado. Mais uma vez está aí reforçada a ideia de que nem sempre educar demanda apenas a construção de discursividades. A desconstrução, segundo o que entende Berticelli, é parte fundamental do processo educativo. Esta atitude construtiva/desconstrutiva/reconstrutiva caracteriza o educar que se efetiva na linguagem. Todo este movimento hermenêutico se estabelece continuamente na conversação entre educando e educador, uma vez que seus horizontes estão sempre em fusão discursiva. Nesta fusão, todos os envolvidos, educandos e educadores, acabam por constituir, no fio condutor da linguagem, uma normatividade pedagógica. Nela “não há, pois, uma razão em si dos discursos compartilhados. A razão se atualiza comunicativamente na linguagem” (Berticelli, 2004Berticelli, I A. (2004). A origem normativa da prática educacional na linguagem. Ijuí: Editora Ijuí., p. 105).

Assim a linguagem, em seu traço normativo, abre uma via de instauração de sentido aos processos educativos. Esta normatividade da prática educacional que se busca na linguagem “corre por assim dizer, por dentro do processo educativo e não por fora, como uma imposição ou condição prévia e externa” (p. 107). A norma pode ser comparada a uma espécie de cimento que liga as diferentes partes do processo educativo em um todo discursivamente articulado. Pensar a linguagem como norma em nada tem a ver pensá-la como regra, pois ela está estribada intersubjetivamente em nossa mundanidade. Sim, a regra existe, mas opera na organização dos jogos de linguagem. Portanto, não se trata de estatuí-la como norma; ela já é normativa. Aliás, só é possível pensá-la, porque o pensado já esteve antes na linguagem.

Na filosofia da consciência, a linguagem não tem esta estrutura própria, ela é compreendida como um objeto que está à mercê de um sujeito que exerce sobre ela plena autonomia. Nas teorias do significado, especialmente na semântica intencional, fortemente fundamentada na filosofia da consciência, isso aparece de modo ainda mais claro, ou seja: é a intencionalidade do próprio sujeito autônomo que se presta ao esclarecimento do que por ele é dito. Ainda que caiba a Frege e a Peirce o mérito da transição da filosofia da consciência para a filosofia da linguagem, é, especialmente, com o segundo Wittgenstein4 4 Refiro-me à segunda fase de seu pensamento. , sobretudo, em âmbito anglo-saxão, e a partir de Bertrand Russell, que essa postura teórica ganha sentidos inteiramente novos. Foi, porém, com inúmeros desenvolvimentos que se pôde chegar a uma compreensão mais sutil da linguagem. De todo modo, o que mais importa nisso tudo é o entendimento de que a instauração da normatividade em educação, que é assunto aqui, se faz na linguagem. E tal normatividade põe em evidência sua performatividade linguística, que a distingue e a coloca na via de compreensão que se assume pela filosofia da linguagem.

Sobre a regra que circunda esta normatividade vale fazer a seguinte observação. Nos jogos de linguagem, que têm Wittgenstein como figura de proa, a regra é fundamental apenas na medida em que ela não cumpre um caráter privativo. Uma conversação, assim como um jogo, possui regras. Tais regras são essenciais para que se possa jogar tanto quanto para que se possa conversar. Na medida em que as regras coíbem ou se colocam fora e acima de qualquer possibilidade de diálogo, elas perdem seu sentido essencial. Em termos mais específicos, assim como os significados, os gestos e as inúmeras nuanças que se acham em processos de educação, as regras também se colocam como balizas para a possibilidade de um consenso mínimo acerca dos conteúdos educativos. No entanto, estar-se-á cumprindo uma regra, seja ela discursiva ou não, apenas no momento em que ela também se submete à possibilidade de crítica. Entende-se, a partir daí, que não só a regra é parte do discurso como acontecimento de linguagem, como a criticidade é parte essencial do processo educativo, isto, desde que essa criticidade não seja entendida como um discurso necessariamente mais competente que outro, a priori. Se bem entendemos o que se disse até aqui, não carece dúvida de que uma partida de futebol, mesmo daquelas de várzea, se constitui num permanente diálogo, mesmo que não houvesse uma só palavra articulada foneticamente, bastando, para tal, apenas os gestos, os movimentos, as expressões, os olhares. Que rico texto é uma bela partida de vôlei, de basquete, de futebol, de polo aquático, enfim, de qualquer modalidade esportiva realizada com qualidade definida pelas características inerentes a cada uma.

Berticelli (2004)Berticelli, I A. (2004). A origem normativa da prática educacional na linguagem. Ijuí: Editora Ijuí. se encarregou de mostrar como isso se efetiva de modo mais claro. Traduzindo a reflexão em termos didático-pedagógicos, ele mostra que na medida em que se está constantemente exposto à possibilidade de crítica, educandos e educadores se tornam mais capazes de substituir uma expressão de regra por outra. Com isso, a velha dicotomia seguir a regra/transgredir a regra, perde fôlego e perde também “sua pobreza de mera reprodução para assumir a riqueza do ser capaz de, com fundamento numa norma, numa regra, criar o novo a que Wittgenstein, se referindo à regra, denomina interpretar” (p. 109). Se pensado nestas bases, o educar se abre a um conhecer para além da simples reprodução do conhecimento. Conhecer significa romper a regra pelo interpretar (e pela crítica) que, de modo criativo, faz surgir um novo conhecer que não é sua mera imitação, mas a apropriação de um novo modo de saber. Isto não só põe em curso um novo entendimento sobre o papel da crítica na atividade educativa, como, e mais precisamente, realça a importância hermenêutica do perguntar e do responder no processo educativo. Ou seja, quando em uma conversação a proposição de um dos interlocutores é criticada pelo outro, atravessada por uma pergunta, não apenas surge uma nova possibilidade de diálogo, como também um novo horizonte de interpretação sobre o mesmo assunto é aberto. É justamente a estrutura desta abertura que caracteriza a essencialidade do perguntar. Este perguntar, para Gadamer (1997)Gadamer, H-G. (1997). Verdade e método: traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. Petrópolis: Vozes., significa colocar em aberto a questionabilidade do perguntado. O conhecimento sobre algo pressupõe, portanto, sempre uma passagem pela abertura da pergunta. Assim, aquele que quer compreender algo deve perfurar este algo através de uma pergunta. Do que se conclui que, em termos ainda mais específicos, para toda a tentativa de conhecer algo, ao menos como nos ensina Gadamer (1997)Gadamer, H-G. (1997). Verdade e método: traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. Petrópolis: Vozes., a pergunta toma a dianteira. É dessa relação hermenêutica que tratarei mais detidamente a partir de agora.

O educar como um acontecimento de linguagem motivado no horizonte hermenêutico do perguntar e do responder

A negatividade da pergunta, de que havia comentado rapidamente na seção anterior, mas sobre a qual volto a falar, mesmo que isto tome algum tempo, consumada na ideia do saber que não se sabe, a famosa docta ignorantia exposta por Nicolau de Cusa, é essencial para toda pergunta que tenha a motivação de querer saber, que tenha um sentido. Com isso, o perguntado tem de ser suspenso no sentido da pergunta, em sua questionabilidade. É só na medida em que a pergunta alcança essa suspensão, que ela produz uma abertura para um horizonte de entendimento. Se a pergunta não mobiliza tal abertura, se ela não chega realmente ao aberto, podemos dizer que esta não é uma boa pergunta. Não porque seja uma pergunta boba, mas porque fecha o horizonte na direção do qual a resposta poderia buscar sua adequação. Assim, “uma pergunta sem horizonte acaba no vazio” (Gadamer, 1997Gadamer, H-G. (1997). Verdade e método: traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. Petrópolis: Vozes., p. 536).

De todo modo, não podemos dizer que a pergunta que não se coloca no aberto é uma falsa pergunta, pois sempre há nela uma pergunta, uma intenção de abertura, ainda que de modo inexpressivo, no sentido em que o perguntar se coloca. Em educação isso é muito importante. Ou seja, não se pode subestimar aquelas perguntas que muitas vezes são colocadas pelo aluno em um horizonte aparentemente fechado de sua questionabilidade. É justamente nisso que está a primazia hermenêutica da pergunta. Cabe, pois, ao professor tomar seu horizonte de sentido, o da pergunta, no papel que lhe cabe como hermeneuta, e colocá-la em suspenso no horizonte do perguntado. À medida que se consegue trazer o sentido da pergunta para seu verdadeiro lugar, descobre-se a direção em que foi lançada no perguntar. É nisso que, para Gadamer (1997)Gadamer, H-G. (1997). Verdade e método: traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. Petrópolis: Vozes., está estribada a essencial relação entre pergunta e saber, uma vez que, segundo o entendimento do filósofo, a essência do saber não consiste em apenas apontar corretamente o que se sabe, mas excluir o incorreto a um só tempo, e pela mesma razão.

No entanto, em termos gadamerianos, “só se chega a saber a coisa mesma quando se resolvem as instâncias contrárias e quando a vista perpassa os contra-argumentos na sua incorrectura” (Gadamer, 1997Gadamer, H-G. (1997). Verdade e método: traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. Petrópolis: Vozes., p. 537). Essa forma de diálogo não só permite que educando e educador coloquem em fusão suas posições argumentativas, como também que possam alargar o horizonte de sentido em que seus argumentos estão localizados. Não se trata de uma disputatio em sentido medieval escolástico,5 5 Quem nunca se deparou com alguém que sempre se opõe a suas argumentações? Bem. Aprender por oposição é um exercício fecundo, mas apenas quando se tem a intenção de alcançar um horizonte de entendimento ou, de atingir os termos do que se está a discutir. Aquele que sempre entra em um diálogo com a intenção de ganhar na argumentação é derrotado antecipadamente por sua própria veleidade. Aquele que sempre se opõe pelos dois lados do argumento, com a intenção de tornar o outro mais fraco, é aquele que não consegue alcançar a potência e nem sustentar a força das razões que pretender afirmar. A beleza do diálogo, a essência dialógica do conversar, não está em enfraquecer o argumento do outro, mas, como vimos nos diálogos de Sócrates conservados por Platão em A república, em encontrar seu ponto forte para dar perspectiva à conversa. Quando não se sabe que dialogar é também ouvir e que ouvir significa buscar suspender-se no horizonte do que o outro diz, e não apenas colocar-se diante dele, então se é incapaz de andar junto na direção de um consenso mínimo, aliás, este nem se quer tem esta pretensão senão que o tremendo equívoco de querer provar a superioridade de seus argumentos. Portanto, o diálogo presidido por uma intenção de disputa já nasce morto, está sempre fadado ao fracasso, é estéril e imóvel, porque não nos leva a lugar algum. Assim, quando ao final de uma conversa um dos interlocutores se declara vencedor é porque o diálogo malogrou em meio à prepotência estropiada daquele que “focila” como um porco no lamaçal de sua vaidade, daquele que por isso não foi capaz de conduzir o diálogo para o aberto de sua questionabilidade. Para este, o que importa no diálogo é dar a última palavra.. mas, ao contrário, trata-se de uma forma de diálogo que estabelece uma relação interior entre perguntas e respostas ou, como definiu Gadamer, entre ciência e dialética6 6 Ainda que possa parecer um tanto óbvio, ao menos aos que se encontram minimamente familiarizados com a matéria, vale observar que, na esteira do pensamento hermenêutico que vem de Heidegger e que passa por Gadamer, a dialética é tomada numa perspectiva diferente daquela que vem de Marx. . Mesmo existindo uma relação, há sempre uma primazia da pergunta sobre a resposta. Isto porque só temos acesso ao saber pela via do perguntar. Ainda que a pergunta esteja na essência do saber, não há, como disse Gadamer, um método que nos ensine a perguntar ou a ver o que é questionável. A pergunta depende sempre de uma tomada de consciência do que não se sabe. Essa tomada de consciência é o dar-se conta dos pressupostos de uma interrogação que é sempre, e em primeiro lugar, um interrogar-se. Isto é, pressupor uma interrogação é já um perguntar-se, só que atingido pela indeterminação de um querer saber que ainda não é.

A meu alvitre esta é a essência do educar, o perguntar que desvela um estado de abertura e busca de sentido. Esse desvelamento é o próprio desencadear do processo educativo, o vórtice hermenêutico que arrasta o educar/educar-se/ser educado para o mais recôndito e essencial do conhecimento. A essência dialética da pergunta e da resposta abre precedência referencial ao próprio compreender e interpretar. Ou seja, a compreensão de uma matéria ou o aprendizado de uma lição é a compreensão da pergunta que está colocada no horizonte interpretativo do interlocutor. O interpretado, que pode ser um texto, é então posto, pelo interlocutor, sob um horizonte de entendimento cuja baliza é a própria pergunta. Esta mesma precedência é aberta em relação ao dito, isto é, dizer já é sempre a resposta para uma pergunta. Quando uma lição ou uma matéria transmitida se converte em coisa dita é porque a pergunta alcançou o

interlocutor que, a partir daí, passa a ocupar o lugar de intérprete, porque coloca a coisa dita no horizonte do interpretar.

Seria então a pergunta o óleo da interpretação? Sim. E não só da interpretação como do próprio educar que se desvela neste processo que tem seu evento na linguagem. Na verdade, diz Berticelli (2004)Berticelli, I A. (2004). A origem normativa da prática educacional na linguagem. Ijuí: Editora Ijuí., trata-se não só de um desvelamento, mas de um velamento que acompanha sucessivamente o ritmo dialético do perguntar e do responder. Para o autor, isso ocorre porque toda pergunta tem um segredo que pode ser desvelado no responder, mas igualmente, toda resposta contém um novo segredo que se desvela em um novo perguntar. Por isso há sempre um velar e um desvelar que acompanham o movimento hermenêutico do perguntar e do responder, que é sempre um interpretar. Assim, dirá Berticelli (2004)Berticelli, I A. (2004). A origem normativa da prática educacional na linguagem. Ijuí: Editora Ijuí., que “a clareira do ser [ênfase no original] em que a educação como um processo contingente se revela é o mostrar-se e o esconder-se na pergunta e na resposta” (p. 305).

A adequação da tarefa hermenêutica dispensa dúvida na medida em que lança sobre o educar uma fulguração que se mostra sempre destinada a desaparecer. É esse desaparecer que garante à curiosidade a admiração que nos acerta em cheio e nos provoca a procura. O resultado disso é a apropriação, uma dinâmica cujo resultado é o aprendido. O aprendido na forma hermenêutica da apropriação não é, para o caso específico da educação, o ponto de chagada, mas um ponto de passagem em que o saber toma fôlego para um novo perguntar. Aprender nunca é aprender por inteiro, sempre há o a ser conhecido que se nos mostra na pergunta que o conhecer determina. Aquele que aprende é aquele que mantém suas perguntas sempre em um horizonte aberto. Para Gadamer (1997)Gadamer, H-G. (1997). Verdade e método: traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. Petrópolis: Vozes. a beleza do perguntar está justamente na arte de continuar perguntando. É no continuum do perguntar que também se produz o conversar. Nesse ir experimentando que Gadamer utiliza para definir a arte de perguntar, a conversação vai colocando em suspensão o tema em torno do qual se orientam os interlocutores. No entanto, aquele que sabe perguntar e manter-se no horizonte aberto de sua questionabilidade saberá também se proteger tanto da sua própria veleidade, quanto da coação de um argumento dominante.

Por outro lado, Gadamer adverte-nos de que esse movimento dialético não consiste em buscar o ponto frágil do argumento do outro, mas sua potência. A grande questão é, evidentemente, que o ir experimentando pela conversação, pelo diálogo motivado na pergunta, não é a busca por uma superioridade argumentativa dos interlocutores, mas o que caracteriza este experimentar é, em sentido gadameriano, o olhar junto para o âmbito de uma perspectiva. Ainda que a atitude hermenêutica não nos leve a nada definitivo, (Hermann, 2002Hermann, N. (2002). Hermenêutica e educação. Rio de Janeiro: DP&A.) nos mostra que este movimento dialético do conversar nos possibilita condições de reflexão sobre um entendimento ainda não disponível, concedendo assim para os interlocutores a oportunidade de pôr em consideração suas posições em uma espécie de abertura hermenêutica, pela qual passa algo que vem a nosso encontro. Portanto, buscar a comunicação de sentido, perguntar-se por ele, é o que caracteriza o conversar em todas as circunstâncias da vida. Esse conversar, segundo o que entendo, caracteriza o ir junto na direção do entendimento, seja sobre o que se pode ou sobre o que não se pode concordar. No conversar há um dialogar que se dá na gratuidade, um mostrar-se aberto ao outro que é, a um só tempo, abrir-se para si mesmo. Portanto, este diálogo vivo anima o ânimo do espírito na medida em que, postados ali no meio, os interlocutores fazem parte do que produzem.

O que Berticelli (2004)Berticelli, I A. (2004). A origem normativa da prática educacional na linguagem. Ijuí: Editora Ijuí. afirma sobre isso é que o ato educativo como um ato de linguagem só alcança sua efetividade quando traz para o conversar a intenção do consenso mínimo que nada mais é do que a busca de sentido para o que está em jogo neste processo. Nada ocorre fora disso tudo, pois, como aponta Berticelli, em educação, não há nada fora da linguisticidade. Com isso, para o mesmo autor, a polaridade epistêmica do sujeito-objeto é rompida pela relação argumentativa que aí se consubstancia. No processo de ensino-aprendizagem é impossível pensar que educando e educador estejam fora desta realidade compósita, ou que façam parte de mundos diferentes. Ou seja, ao ensinar, o professor ocupa, ao mesmo tempo, o mundo objetivo da matéria que ensina e o mundo social vivido com seus alunos. Por mais que aquela velha e já carcomida ideia de objetivação do processo educativo, que põe sujeito de um lado e objeto de outro, ainda esteja presente, o professor vai sempre se deparar com uma força auto-organizativa que chega ao aluno sempre que lhe é dada a tarefa de interpretar algo objetivo.

Esta força auto-organizativa atesta a não neutralidade da linguagem, e a linguagem, por sua ver, traz à fala o compreendido na forma da apropriação. Aí, então, as nossas tentativas de apresentar para nossos alunos um mundo objetivo, desligado do mundo social/vivido, um mundo firmemente assente na visão da ciência desvanece como as nuvens se desvanecem no céu. O que é apresentado na forma de conhecimento objetivo para o aluno pode passar imediatamente pela moenda interpretativa e se converter em coisa própria. Isto acontece porque em muitas ocasiões a compreensão ocorre sem que se tenha uma interpretação manifesta. Nesse caso, um simples gesto, olhar ou expressão, pode significar a realização da compreensão, isto é, não uma compreensão puramente linguística, mas pressuposta na linguisticidade7 7 Para muitas áreas do conhecimento isto é quase uma profissão de fé. A ideia de que a experiência estética é também uma possibilidade de aprender/conhecer tão importante quanto as demais ainda resiste a uma compreensão mais ilibada. A subordinação do corpo, da cultura corporal de movimento, ao aprendizado que se dá pelo intelecto é flagrante. Pensar o processo educativo pelo horizonte da linguagem pode ser um esforço por demais importante na reconsideração do olhar que se tem sobre o papel do movimento, do gesto e de todas as expressões estéticas acopladas a cultura corporal de movimento, no processo educativo . Com Gadamer (1997)Gadamer, H-G. (1997). Verdade e método: traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. Petrópolis: Vozes., podemos compreender que isso ocorre porque a compreensão e a interpretação estão sempre subordinadas à tradição linguística ou, em termos ainda mais específicos, porque o compreender e o interpretar estão abrigados na própria linguisticidade do conhecer que, como vimos anteriormente, nunca é um conhecer inteiramente.

Em sentido amplo, o caráter oniabrangente da linguagem mostra que nem sempre a compreensão se dá de modo manifesto, puramente linguístico, literal, porque, para que se possa compreender o dito, o conhecimento objetivo de que vinha falando, há que se compreender também o não dito, o que se quis dizer. Para Flickinger (2014)Flickinger, H-G. (2014). Gadamer e a educação. Belo Horizonte: Autêntica., a grande questão aqui é, portanto, como compreender este algo de não dito que fica quando se diz algo. A meu ver, não há uma receita pedagógica que nos leva a essa compreensão, porém, parece-me que o movimento dialético do perguntar e do responder nos aproxima bastante daqueles sentidos que estão por trás do dito. Isto porque o diálogo que ali se encerra vai corroendo as camadas de sentido presentes no que se disse, permitindo-nos, assim, desfazer as incongruências que minam o entendimento que nos impede ver por entre as palavras. No entanto, esse é um processo que não se esvazia ipsis litteris, como se em um dado momento do diálogo tudo viesse à luz. Ao contrário, na mesma medida em que vai se ganhando a compreensão, vai-se também complexificando o avançar dos interlocutores, como se a compreensão mesma sobre o que de não dito ficou no que se disse fosse um horizonte que se afasta quanto mais pensamos dele estar nos aproximando.

Nisso não há nada de muito arcano que qualquer um que tenha se aventurado a percorrer o caminho da compreensão não possa entender. Porém, no diálogo junta-se a essa uma característica particularmente nova, mas igualmente importante, qual seja ela, a de que à medida que se está viajando, quanto mais se avança no percurso, novas paisagens vão se abrindo na amplitude circundante do horizonte. Ainda que essas paisagens nos seduzam, é provável que nos mantenhamos na rota de viagem. A experiência da caminhada ao longo de uma pesquisa ilustra em cada caminhante este fenômeno. Quanto mais se avança, mais se abrem os braços da parábola. No diálogo, uma qualidade nova aparece, isto é, quando a paisagem vai se abrindo em meio à prosa, perdidos que estamos em meio a ela, a língua nos leva e transforma uma simples paisagem em um novo caminho cujo acesso imediatamente nos é dado. Quem nunca, ao final de uma aula ou de um bate-papo, como se diz, ouviu a expressão: A conversa tomou outro rumo. A sensação de ter se perdido na conversa em torno do que se visa compreender é imediata. Mas isso não é uma imperfeição em nossa capacidade de expressar por inteiro o que se quer dizer. Trata-se, isto sim, do reconhecimento de que aquilo que se converte em coisa dita ganha vida própria na mundanidade do nosso dizer. O que está por trás do dito, em todos os casos, só se mostra como coisa não dita. Essa última sempre estará presente no falar humano e a cada vez que for tirada do anonimato uma nova é posta em seu lugar. O que nos cabe então é apenas compreender que o dito e o não dito, o dizível e o indizível fazem parte de uma mesma articulação discursiva em que um não subtrai o outro, mas é sua própria condição de acesso.

Assim sendo, compreender significa, então, colocar-se na direção do que é dito, seja em que forma linguística for, trazendo seu sentido para o âmbito do meu próprio dizer. Isto não significa subverter o sentido do que foi/é dito, mas mergulhar em seu horizonte para convertê-lo em coisa própria. Essa é a forma em que se materializa a compreensão mesma, porém, para que se chegue até ela, é indispensável que o intérprete encontre a motivação do que foi/é dito. Um dizer do qual não se sabe a motivação não pode ser compreendido. É só na medida em que essa motivação é encontrada, que o horizonte pelo qual se pode chegar a uma compreensão é aberto. Vale destacar que nem sempre a motivação aparece com tanta evidência. Ela pode estar, e quase sempre está, implícita e/ou pressuposta na linguisticidade do nosso dizer. Entender-se-á com isso que educar é mais do que um processo de aquisição imediata do conhecimento que se efetiva racionalmente em processos pedagógicos com validade em métodos didáticos. Ou seja, educar é uma conversação, um diálogo que se efetiva por diferentes vias de nossa linguisticidade. Se acolhermos esta perspectiva, a da linguagem, o educar passa a ser não um simples processo de ensino pela via daquele que ensina porque sabe mais, mas um espaço em que o simples pensado se converte em possibilidade de ser dito. Tornar o espaço educativo um espaço favorável a essa possibilidade é um esforço fundamental para aquele educador que quer ganhar a infinitude interna do diálogo que convém a todo compreender e interpretar. Este espaço do diálogo não só é fecundo para o processo educativo como espaço de entendimento e aprendizado, como é também salutar para a convivência humana e para o consenso mínimo que aí se consubstancia.

Muito oportunamente Berticelli (2004)Berticelli, I A. (2004). A origem normativa da prática educacional na linguagem. Ijuí: Editora Ijuí. argumenta que a linguagem é exatamente este espaço normativo compartilhado, em que a convivência, as convenções, os acordos e/ou consensos, bem como os conceitos e as práticas humanas recebem sua validação. Não há normatividade nem mesmo na ética, quando não há o compartilhar, mercê do que os discursos se tornam normativos, pois discurso algum é normativo em si. Tal como se refere o autor, os processos discursivos se desenvolvem dentro de uma conformidade interna que se articula linguisticamente. Tais processos não são simples resultado do puro pensamento, até porque é na linguagem que o pensamento adquire a materialidade pela qual se constitui e se transforma em coisa dita. Não há, contudo, um imperativo que determina o caráter normativo da linguagem, senão a contingência e a historicidade. Para Berticelli (2004)Berticelli, I A. (2004). A origem normativa da prática educacional na linguagem. Ijuí: Editora Ijuí., essa “normatividade, portanto, é situada na finitude, na contingência da ação” (p. 163). Assim, o dizível é o resultado de um todo discursivamente articulado que se mostra no gesto do dizer. No dizer, como já me referi anteriormente, se produz também o sentido do que não foi dito, “leva-se em conta, inclusive, aquele sentido que só o silêncio produz, mas que é parte, sim, do discurso” (167).

A normatividade que se produz no/pelo discurso ocupa o mesmo espaço da linguagem, pois a finitude e a contingência da ação discursiva acontecem em linguagem, ou seja, no espaço aberto da criação que se dá na constante tensão homem-mundo. A educação é justamente aquele processo que, segundo Berticelli (2004)Berticelli, I A. (2004). A origem normativa da prática educacional na linguagem. Ijuí: Editora Ijuí., “se interpõe nesta ‘contenda ôntica’ [ênfase no original] em que, na forma discursiva desfaz as tensões, num processo aberto e sempre sujeito à novidade, à invenção, à descoberta que nunca termina” (168). Para o mesmo autor, a efetividade do educar só aparece na linguagem, “no pensamento-linguagem que é sua acessibilidade” (p. 83). A linguagem, por sua vez, se faz uma luz que nos mostra tudo o que está no âmbito do pensável. Ela liberta e nos dá acesso à compreensão de tudo o que está preso no escuro do anonimato (no sentido etimológico do grego, em que ônoma é o nome, e anonimato é, então, não ter nome).

Com isto, podemos dizer que é sob a normatividade da linguagem, a normatividade que resultou do conversar (cum versare que, no latim, significa encontrar-se habitualmente num lugar compartilhado, conviver), e de suas leis internas, que se desenvolvem as discursividades que orientam o processo educativo, e não, como em geral se costuma entender: uma atividade puramente cerebrina de sucessivas racionalizações. Como explica Berticelli (2004)Berticelli, I A. (2004). A origem normativa da prática educacional na linguagem. Ijuí: Editora Ijuí., “é na linguagem em uso que se produz a normatividade do discurso e é, aqui, que devemos buscar a possibilidade efetiva do educar” (p. 158). Esta não é a única ocasião em que o autor deixa clara sua convicção de que com este entendimento e com esta concepção epistêmica da normatividade educativa pomo-nos distantes daquela pretensão de uma positividade normativa tal como a concebeu Descartes em relação ao cogito ou, melhor ainda: com o caráter do princípio ético formulado por Kant, com aquela pretensão de universalidade.

Bem por isso é que pensar tal normatividade implica, antes de mais, pensar processos históricos em que mundo, linguagem e sentido configuram-se em uma relação indissociável. Urge lembrar que diante da característica heterotópica que hoje a escola vem assumindo e com as quais também a pedagogia e as epistemologias educacionais se veem desafiadas a enfrentar, isto é ainda mais importante, especialmente pelo fato de que com a obliteração do tempo e do espaço, em seus usos tradicionais, as discursividades, que operam no compartilhamento de sentidos, foram acertadas em cheio pelas mesmas transformações e já se acham sob as mesmas características. Perante as transformações tão contundentes, não resta dúvida sobre o surgimento não só de novas discursividades como de uma nova linguagem cujo entendimento já não nos é possível a partir de recursos tradicionais. As transformações advindas do mundo da técnica, da telemática e da imagética fizeram emergir um contexto de novas demandas epistemológicas para que se possa compreender, sob enfoques mais consentâneos, a realidade em que hoje se encontram os processos educativos. O fato de já nos encontrarmos em meio a uma cultura em vias de formação intercontinental, em que tudo vem sendo trazido ao nível da globalização, nos afasta da possibilidade de falar com a mesma objetividade que até pouco se tinha sob a exclusividade de uma única filosofia ou epistemologia.

Para Berticelli (2004)Berticelli, I A. (2004). A origem normativa da prática educacional na linguagem. Ijuí: Editora Ijuí., grande parte de nós, acostumados com os ditames da ciência clássica, sentimos uma certa vertigem ao entrar nesta seara interpretativa. O campo teórico sobre o qual nossa compreensão estava firmemente apoiada começa a compor um quadro fragmentado que se contrapõe às tradicionais formas de compreensão sobre o fenômeno educativo. Ainda que isto possa parecer óbvio, o próprio linguistic turn ainda não se fez presente na educação com a intensidade que se poderia esperar. Pouco se percebeu o processo migratório da filosofia e também das epistemologias educacionais para campos de uma compreensibilidade mais consentânea sobre os processos educativos da criança, do jovem e do adulto destes nossos tempos. Ainda que com ampla hegemonia o materialismo histórico venha advogando na teoria educacional, movido especialmente pelas engrenagens do Iluminismo, sobretudo, estribados na pretensão salvacionista, prometeísta assente em conceitos tais como progresso, libertação e emancipação, há que se reconhecer um novo potencial explicativo que se expande, ainda que de modo incipiente, sob o auspicioso horizonte pós-metafísico, pós-estruturalista e pós-moderno da teorização educacional. Não auspicioso porque necessariamente melhor, mas porque quiçá nos ajude ao menos a amenizar os desencaixes, para usar um termo de Giddens, da sociedade atual.

Tal visão vem sendo posta em curso por inúmeras comunidades argumentativas. As pesquisas neste campo teórico crescem de modo exponencial, e sua relevância é flagrante. Este novo horizonte de investigação, que ascende gradatim, revela um campo aberto e produtivo a partir do qual se pode não só enfrentar os inúmeros desafios do nosso tempo, como buscar novas vias de instauração de sentido ao fazer docente. A correção de rumo, que encanta e atrai olhares (ainda que nem de todos), não deve (e não pode) ser entendida como uma proposta de censura ou abandono das perspectivas teóricas situadas em caminhos diferentes daquele que, aqui, se optou por percorrer. Pensar desta forma é, no mínimo, uma militância desnecessária daqueles que se veem contrariados pela ideia, mais um peso que tortura nossos ombros do que uma asa que nos permite voar, para usar termos de Nietzsche (2003, p. 121)Nietzsche, F W. (2003). Escritos sobre educação. São Paulo: Loyola.. Segundo o que entendo, não acredito que este gesto de ostracismo seja de muita valia. Sendo assim, esta busca de legitimidade epistêmica do fazer docente, ou esta correção de rumo, para ser mais especifico, é, na verdade, a busca de um alinhamento epistemológico com um mundo que se encontra em meio a rápidas e contundentes transformações.

Tentei demonstrar que a filosofia da linguagem é um caminho possível para enfrentarmos o cenário rizomático e fragmentado do mundo contemporâneo. O que cabe a nós, educadores e pesquisadores, é conduzir o debate ao plano da coletividade, pois, mesmo que não se chegue a um consenso mínimo, a linguisticidade do nosso conversar ainda é o lugar em que a alteridade tem lugar à mesa.

Considerações finais

Conversar é inevitável. A vida é em si mesma uma conversação. Não se pode não conversar, quando se está aí lançado na finitude humana. A vida animal, mormente a vida humana e a natureza de um modo geral, se ajusta na linguagem, ambas fazem parte da mesma realidade compósita, cada qual em sua singularidade. Todos estão constantemente em profunda metamorfose comunicativa. Em sendo assim, é possível inferir que tudo o que se pode ensinar e aprender entre educando e educador, tudo o que se pode compreender está alçado nos ombros da linguagem, na ação comunicativa que entre eles se pode estabelecer. Isto não porque temos a linguagem ou possuímos a faculdade da língua, mas porque somos linguagem. Do que se entende que tanto o compreender quanto o interpretar ocupam um horizonte bem mais amplo do que aquele presente numa visão estruturalista em que a linguagem apenas nos põe à mão possibilidades de expressão como se ela estivesse a serviço da racionalidade. Ao contrário disso, a linguagem empurra a nossa compreensão para além de qualquer expressão, palavra ou frase que se possa esquematizar dentro de coordenações consensuais de coordenações consensuais de ações, para utilizar uma expressão de Humberto Maturana, estabelecidas entre falantes.

Tal entendimento afronta a tradição pedagógica em que o processo educativo está representado por um processo puramente cerebrino, sequencial, linear e progressivo dentro do qual o aprendizado só é legitimado quando e na medida em que, de alguma forma, se possa encontrar um esquema, uma estrutura em que o aprendido possa ser objetivado. Nessa concepção não há espaço para o valorativo, transitório e singular, não há espaço para o incongruente, para as incertezas e para o contraditório. A estrutura, a disciplina e a governamentalidade estão todas em curso num projeto mesclado por verdades de toda sorte. Já no horizonte da filosofia da linguagem, oposta a isso, especialmente em seu traço pós-moderno, podemos concluir que o processo educativo está tangenciado pela contingência daquilo que é historicamente produzido, ou seja, do que é produzido na alteridade do fazer-se da história. Nessa perspectiva, as verdades são sempre verdades históricas. Por isto é que podemos, já com alguma razão, falar de um tempo líquido, de um tempo de incertezas em que o diálogo homem/mundo torna-se cada vez mais complexo. Entendo que uma melhor compreensão sobre o tema da linguagem à luz da hermenêutica pode contribuir, sobremaneira, na reconsideração do olhar epistêmico que professores e pesquisadores lançam sobre a educação. Se este artigo puder contribuir minimamente com isto, então, terá cumprido com seu objetivo.

  • 1
    É verdade que o conceito de mundo aparece em Gadamer, mas foi em Heidegger (2015)Heidegger, M. (2015). Ser e tempo. Petrópolis: Vozes. que o conceito de mundo adquiriu o sentido que este texto, e também Gadamer, procuram acompanhar. Heidegger, desde uma investigação sobre o conceito de cosmos, chega, a partir da cosmologia, ao seu conceito de mundo com duplo sentido. No primeiro sentido ele fala de um mundo como continente, no segundo fala do mundo como um mundo do homem. Desse último Heidegger extrai a ideia de homem mundano (que habita o mundo) e homem divino (que teme a Deus). No ponto de vista de Stein (2004)Stein, E. (2004). Aproximações sobre hermenêutica (2a ed.). Porto Alegre: Edipucrs., “Extraindo da cosmologia o duplo conceito de mundo e de homem, Heidegger chega, em sua análise, ao conceito de ser-no-mundo. Ocorre aí uma transformação do conceito de mundo enquanto a priori, transcendental, presente na posição kantiana” (p. 102). Heidegger tira da filosofia o espaço ocupado pela cosmologia e também pela teologia, operando por meio de um encurtamento hermenêutico, como se expressa Stein. Assim, “O conceito de mundo passa a ser abordado pelo filósofo através de um ponto de vista transcendental. Porém, não mais como um a priori da consciência, um a priori do eu penso, e sim como um conceito que surge desse capítulo da história da filosofia que foi Kant que, entretanto, pela interrogação heideggeriana, não depende mais do fato de estar ligado a uma filosofia da consciência, a uma teoria da representação, como em Kant. Tal conceito deve referir-se não mais a uma teoria da consciência, mas ao homem, no mundo” (103). É este horizonte de sentido que ganha o conceito de mundo na conjuntura deste estudo.
  • 2
    Aqui, a noção de diálogo não hospeda uma condição intersubjetiva que visa se apropriar de uma significação oculta presente entre aquele que ensina e aquele que aprende, tal como é comum, por exemplo, na tradição freireana de pensamento. A noção de diálogo a que me refiro, diz respeito à forma de aderência às condições de uma significação. Ou seja: o diálogo não se dá por uma relação de pensamento, mas por uma produção de si. Assim, o diálogo não tem, aqui, um efeito libertador, pois dizer é sempre um ato de arbitrariedade.
  • 3
    Ao utilizar a palavra essência não estou me referindo a uma essência estática que nos remeteria, por assim dizer, a uma origem constitutiva do ser mesmo das coisas. Refiro-me a uma essência fluente que inscreve seu caráterconstitutivo no plano da história. Trata-se, portanto, de uma essência no sentido não metafisico do termo.
  • 4
    Refiro-me à segunda fase de seu pensamento.
  • 5
    Quem nunca se deparou com alguém que sempre se opõe a suas argumentações? Bem. Aprender por oposição é um exercício fecundo, mas apenas quando se tem a intenção de alcançar um horizonte de entendimento ou, de atingir os termos do que se está a discutir. Aquele que sempre entra em um diálogo com a intenção de ganhar na argumentação é derrotado antecipadamente por sua própria veleidade. Aquele que sempre se opõe pelos dois lados do argumento, com a intenção de tornar o outro mais fraco, é aquele que não consegue alcançar a potência e nem sustentar a força das razões que pretender afirmar. A beleza do diálogo, a essência dialógica do conversar, não está em enfraquecer o argumento do outro, mas, como vimos nos diálogos de Sócrates conservados por Platão em A república, em encontrar seu ponto forte para dar perspectiva à conversa. Quando não se sabe que dialogar é também ouvir e que ouvir significa buscar suspender-se no horizonte do que o outro diz, e não apenas colocar-se diante dele, então se é incapaz de andar junto na direção de um consenso mínimo, aliás, este nem se quer tem esta pretensão senão que o tremendo equívoco de querer provar a superioridade de seus argumentos. Portanto, o diálogo presidido por uma intenção de disputa já nasce morto, está sempre fadado ao fracasso, é estéril e imóvel, porque não nos leva a lugar algum. Assim, quando ao final de uma conversa um dos interlocutores se declara vencedor é porque o diálogo malogrou em meio à prepotência estropiada daquele que “focila” como um porco no lamaçal de sua vaidade, daquele que por isso não foi capaz de conduzir o diálogo para o aberto de sua questionabilidade. Para este, o que importa no diálogo é dar a última palavra..
  • 6
    Ainda que possa parecer um tanto óbvio, ao menos aos que se encontram minimamente familiarizados com a matéria, vale observar que, na esteira do pensamento hermenêutico que vem de Heidegger e que passa por Gadamer, a dialética é tomada numa perspectiva diferente daquela que vem de Marx.
  • 7
    Para muitas áreas do conhecimento isto é quase uma profissão de fé. A ideia de que a experiência estética é também uma possibilidade de aprender/conhecer tão importante quanto as demais ainda resiste a uma compreensão mais ilibada. A subordinação do corpo, da cultura corporal de movimento, ao aprendizado que se dá pelo intelecto é flagrante. Pensar o processo educativo pelo horizonte da linguagem pode ser um esforço por demais importante na reconsideração do olhar que se tem sobre o papel do movimento, do gesto e de todas as expressões estéticas acopladas a cultura corporal de movimento, no processo educativo

Referências

  • Berticelli, I A. (2004). A origem normativa da prática educacional na linguagem Ijuí: Editora Ijuí.
  • Flickinger, H-G. (2014). Gadamer e a educação Belo Horizonte: Autêntica.
  • Gadamer, H-G. (1997). Verdade e método: traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica Petrópolis: Vozes.
  • Gadamer, H-G. (2002). Verdade e método II: complementos e índice Petrópolis: Vozes.
  • Heidegger, M. (2015). Ser e tempo Petrópolis: Vozes.
  • Hermann, N. (2002). Hermenêutica e educação Rio de Janeiro: DP&A.
  • Maturana, R H. (1998). Emoções e linguagem na educação e na politica Belo Horizonte: UFMG.
  • Nietzsche, F W. (2003). Escritos sobre educação São Paulo: Loyola.
  • Pinheiro, C L. (2017). Contexto e referência na análise textual. Cadernos de Estudos Linguísticos. 59(1), 229-243.
  • Saussure, F de. (1995). Curso de linguística geral (20a ed.). São Paulo: Cultrix.
  • Stein, E. (2004). Aproximações sobre hermenêutica (2a ed.). Porto Alegre: Edipucrs.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Sep-Dec 2018

Histórico

  • Recebido
    06 Jul 2017
  • Aceito
    06 Nov 2017
UNICAMP - Faculdade de Educação Av Bertrand Russel, 801, 13083-865 - Campinas SP/ Brasil, Tel.: (55 19) 3521-6707 - Campinas - SP - Brazil
E-mail: proposic@unicamp.br