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Apropriações da teoria histórico-cultural na educação física

Appropriations of the cultural-historical theory in physical education

Resumo

O objetivo deste trabalho é analisar as apropriações da teoria histórico-cultural na compreensão da cultura corporal, na especificidade da ginástica, em pesquisas científicas de educação física. Selecionamos seis periódicos nacionais – Movimento. Motriz. Revista da Educação Física/UEM. Revista Brasileira de Ciências do Esporte. Revista Brasileira de Educação Física e Esporte e Pensar a Prática –, publicados entre 1990 e 2014, e os catalogamos e analisamos a partir da teoria histórico-cultural. Foram encontrados 132 manuscritos sobre ginástica, e apenas três deles fizeram referência à teoria histórico-cultural. Essas pesquisas agregaram pressupostos contrários à teoria de Vigotski, combinando o materialismo histórico de Marx com o construtivismo e o escolanovismo. Os estudos psicológicos de Vigotski podem contribuir para a aquisição da cultura humana e para o ensino e a aprendizagem da cultura corporal. Todavia, pressupõem a apropriação rigorosa de suas raízes teórico-filosóficas e uma perspectiva crítica perante as relações e práticas sociais e pedagógicas vigentes.

Palavras-chave
teoria histórico-cultural; ginástica; educação física escolar

Abstract

The aim of this study is to analyze the appropriations of the cultural-historical theory in the understanding of the corporeal culture, considering the specificity of gymnastics, in the scientific research on physical education. Six Brazilian periodicals have been selected: Revista Movimento. Revista Motriz, Physical Education Journal of the State University of Paraná/UEM, Brazilian Journal of Sports Science, Brazilian Journal of Physical Education and Sports – USP, and Revista Pensar a Prática, which were published between the years of 1990 and 2014, and were catalogued and analyzed through the cultural-historical theory. 132 manuscripts were found on gymnastics, out of which only three referenced the cultural-historical theory. Those studies have summed up assumptions that opposed Vygotsky’s theory, while mixing Marx’s historical materialism with constructivism and progressive education. Vygotsky’s psychological studies may contribute to the appropriation of human culture and for the teaching and learning of the corporeal culture. Those studies, however, demand a strict appropriation of their theoretical and philosophical roots, as well as of their critical perspective against the current social and pedagogical relations and practices.

Keywords
cultural-historical theory; gymnastics; school physical education

Introdução

A cultura corporal compreende as atividades físicas e corporais e seus produtos, criados pelos humanos ao longo de seu desenvolvimento histórico e transmitidos de geração em geração. A apropriação da produção das gerações precedentes propiciou às novas gerações o desenvolvimento de suas potencialidades humanas (Leontiev, 2004Leontiev, A. (2004). O desenvolvimento do psiquismo (2ª ed.). São Paulo: Centauro.), do mesmo modo que o surgimento de outras necessidades sociais possibilitou novos conhecimentos da cultura corporal. Portanto, as atividades físicas e corporais contribuíram para a constituição do ser humano (Mello, 2004Mello, R. (2004). A necessidade da educação física na escola: impasses atuais. São Paulo: Instituto Lukács.) e de sua genericidade (Lukács, 2010Lukács, G. (2010). Prolegômenos para uma ontologia do ser social. São Paulo: Boitempo.).

Concebemos a ginástica, a dança, a mímica, os jogos e os esportes como manifestações da cultura corporal e, por isso, produções da cultura humana. A ginástica, por sua vez, “é uma prática corporal historicamente produzida pelos homens e, em cada momento histórico, teve características próprias, de acordo com as necessidades sociais, políticas e econômicas e os interesses de classe” (Martineli, Fugi, & Mileski, 2009Martineli, T. A. P., Fugi, N. C., & Mileski, K. G. (2009). A valorização do brinquedo na teoria histórico-cultural: aproximações com a educação física. Revista Semestral da Associação Brasileira de Psicologia Escolar e Educacional. 13(2), 251-259., p. 255).

Segundo Soares et al. (1992)Soares, C. L. et. al. (1992). Metodologia do ensino de educação física. São Paulo: Cortez., nos séculos XVII e XVIII a ginástica tinha como função o entretenimento e estava presente em festas, eventos, praças e ruas, como arte da cultura popular, por meio da comicidade e da sátira, com acrobatas, mímicos, bailarinos etc. No século XIX, com a ascensão da sociedade burguesa, nasceu o Movimento Ginástico Europeu, que rompeu com o divertimento, assumindo como objetivo a educação corporal e moral, com caráter ordenativo, disciplinador, de saúde, necessário ao mundo do trabalho. Esses métodos ginásticos europeus, depois de consolidados, logo adentraram nos sistemas de ensino e se disseminaram pelo mundo.

A introdução da educação física no currículo escolar respondeu a demandas sociais que surgiram no fim do século XVIII, período de construção e consolidação da sociedade capitalista na Europa. A nova forma de sociabilidade e de trabalho da sociedade burguesa exigia homens fortes e corpos saudáveis. Essa necessidade fez que a ginástica, praticada até então em associações livres, fosse sistematizada, constituindo a base de uma educação física para a escola (Soares et al., 1992Soares, C. L. et. al. (1992). Metodologia do ensino de educação física. São Paulo: Cortez.). No século XX, após a Segunda Guerra Mundial, surge o movimento tecnicista, que impulsiona a desportivização da ginástica, bem como as ginásticas compensatórias e de condicionamento físico, na tentativa de sanar as mazelas do sistema produtivo e do mercado.

Dessa forma, por sua influência histórica, a ginástica tornou-se um conhecimento clássico da educação física e, sobretudo, um elemento da cultura corporal. Na contemporaneidade, diversas formas de exercitações gímnicas criadas pelo homem se manifestam – ginásticas artística, rítmica, acrobática, ginásticas suaves e estéticas, entre outras. A dança, a mímica, as atividades ou práticas circenses também fazem parte da vasta e rica produção humana, representando, na concepção vigotskiana, a capacidade reprodutora e criadora do homem.

Soares et al. (1992)Soares, C. L. et. al. (1992). Metodologia do ensino de educação física. São Paulo: Cortez. reforçam que a educação física foi disseminada historicamente sob a influência de uma concepção biológica, tal como a ciência moderna propunha, a fim de atender demandas sociais concretas. Na consolidação da sociedade burguesa, a educação física teve papel de destaque, pois se fazia necessário construir um novo homem, mais forte e mais ágil, adaptado aos novos modos de produção. A educação física desse novo homem era baseada na ginástica, sistematizada pelos métodos europeus, considerados instrumentos para o “aprimoramento físico dos indivíduos que, ‘fortalecidos’ pelo exercício físico, que em si gera saúde, estariam mais aptos para contribuir com a grandeza da indústria nascente, dos exércitos, assim como com a prosperidade da pátria” (Soares et al., 1992Soares, C. L. et. al. (1992). Metodologia do ensino de educação física. São Paulo: Cortez., p. 35).

Estudos e pesquisas sobre educação física e ginástica parecem fundamentar-se em teorias cujas raízes filosóficas estão pautadas em análises que divergem da realidade concreta. Essas interpretações, hegemônicas na sociedade capitalista, produzem e propagam ideias e princípios dessa mesma sociedade. Os estudos sobre psicologia ou sobre a teoria histórico-cultural na área da educação física vêm sendo desenvolvidos e apresentados à comunidade científica timidamente nos últimos anos, uma vez que pesquisas com esse viés são recentes no Brasil. Surgidos no país na década de 1980, os estudos histórico-culturais ganharam força e fundamentaram discussões críticas no âmbito da educação, especialmente no processo brasileiro de redemocratização.

Compreendemos que a teoria histórico-cultural pode contribuir para uma atividade educativa além das perspectivas hegemônicas. Assim, o estudo dos fundamentos da teoria histórico-cultural e do materialismo histórico no tocante à educação, particularmente à educação física, torna-se relevante na medida em que se consideram as importantes contribuições dessa perspectiva para o ensino, para o desenvolvimento humano e para a cultura corporal na especificidade da ginástica, pois concebe o humano como ser social, e a cultura como sua produção histórica.

Vale destacar, entretanto, que as apropriações dessa teoria no Brasil, especialmente nas áreas de psicologia e educação, distanciaram-na de sua raiz teórico-filosófica devido à tentativa de aproximá-la do ideário neoliberal e pós-moderno, o que foi criticamente denunciado por Duarte (2004)Duarte, N. (2004). Vigotski e o “aprender a aprender”: crítica às apropriações neoliberais e pós-modernas da teoria vigotskiana (3ª ed.). Campinas: Autores Associados. e outros pesquisadores que se dedicam à compreensão rigorosa e à disseminação da teoria histórico-cultural em nosso país. Essas apropriações neoliberais implicaram equívocos relacionados à compreensão do desenvolvimento humano e dos processos de ensino e aprendizagem. Esses equívocos, por conseguinte, refletiram nos documentos educacionais e nas atividades pedagógicas.

Em face dessa realidade e das inquietações que dela emergiram, surgiu a necessidade de investigar como ocorre a apropriação dessa teoria na área da educação física, questionando se essa apropriação segue a mesma lógica de interpretação da teoria histórico-cultural nos campos da educação e da psicologia. Assim, o objetivo da pesquisa ora apresentada foi analisar as apropriações da teoria histórico-cultural em pesquisas científicas na educação física, tomando como referência a especificidade da ginástica.

Esta pesquisa é parte de um estudo que busca subsídios para compreender a cultura corporal e os processos de ensino, de aprendizagem e de desenvolvimento à luz da teoria histórico-cultural. O estudo abrange o levantamento e a catalogação da produção científica na área da educação física, na especificidade da ginástica, cuja perspectiva teórica é histórico-científica, a análise de sua apropriação e possíveis contribuições.

Para a seleção dos periódicos e dos artigos, recorremos ao sistema WebQualis, utilizado pela Capes para estratificar a qualidade da produção intelectual dos programas de pós-graduação, aferindo a qualidade das publicações. O sistema WebQualis disponibiliza uma lista de classificação em estratos: A1, A2, B1, B2, B3, B4, B5 e C, sendo A1 o nível mais elevado, e C o mais baixo.

Dada a grande quantidade de periódicos indexados e considerando o fator de impacto da classificação, filtramos a busca por área de avaliação e procuramos por periódicos nacionais vinculados a programas de pós-graduação em educação física com estratos entre A1 e B2. Até julho de 2014, foram encontrados sete periódicos classificados como A2; 58 como B1; e 41 como B2. Nenhum periódico A1 foi encontrado.

Tendo em vista o elevado número de periódicos encontrados (106), utilizamos como critérios de seleção: tempo de criação e indexação da revista, projeção e influência na área da educação física e vinculação a programas de pós-graduação com tradição acadêmico-científica e a entidades representativas e reconhecidas. Por fim, selecionamos seis periódicos nacionais: Movimento (A2), Motriz (A2), Revista da Educação Física/UEM (B1), Revista Brasileira de Ciências do Esporte (B1), Revista Brasileira de Educação Física e Esporte (B1) e Pensar a Prática (B2).

Na década de 1980, após o processo de redemocratização do país, iniciou-se um intenso debate acadêmico quanto ao ensino da educação física, sobretudo como crítica ao método de ensino tecnicista. Esses debates resultaram, no início da década de 1990, na elaboração de novas concepções pedagógicas, tais como a de ensino aberto, de Hildebrandt e Laging (1986)Hildebrandt, R., & Laging, R. (1986). Concepções abertas no ensino da educação física. Rio de Janeiro: Ao Livro Técnico.; a desenvolvimentista, de Tani et al. (1988)Tani, G. et al. (1988). Educação física escolar: fundamentos de uma abordagem desenvolvimentista. São Paulo: Edusp.; a construtivista e cognitivista, de Freire (1989)Freire, J. B. (1989). Educação de corpo inteiro: teoria e prática da educação física. São Paulo: Scipione.; a cultural, de Daolio (1994)Daolio, J. (1994). Da cultura do corpo. São Paulo: Papirus.; a sociológica, de Betti (1991)Betti, M. (1991). Educação física e sociedade. São Paulo: Movimento. e Bracht (1992Bracht, V. (1992). Educação física e aprendizagem social. Porto Alegre: Magister., 1997)Bracht, V. (1997). Sociologia crítica do esporte: uma introdução. Vitória: CEFD.; a crítico-emancipatória, de Kunz (1994)Kunz, E. (1994). Transformação didático-pedagógica do esporte. Ijuí: Unijuí.; e a crítico-superadora, de Soares et al. (1992)Soares, C. L. et. al. (1992). Metodologia do ensino de educação física. São Paulo: Cortez.. Em virtude dessas novas concepções pedagógicas, após a seleção das revistas delimitamos o período de 1990 a 2014 para o levantamento dos artigos, na tentativa de delinear a influência dessas teorias e seus desdobramentos na produção acadêmica, na especificidade das manifestações gímnicas.

Posteriormente estabelecemos os critérios de exclusão1 1 Foram excluídas as edições que traziam anais de congressos, dada a amplitude e variabilidade de materiais em relação ao tempo para a execução da pesquisa. Optamos por utilizar o termo “manuscritos” para tratar dos trabalhos encontrados, pois os periódicos pesquisados não publicam apenas artigos, mas também relatos de experiência, resumos de dissertações, ensaios, resenhas etc. e selecionamos, em todas as edições de 1990 a 2014 das revistas elencadas, os manuscritos cujo tema, título ou resumo tivessem relação com a ginástica. Após essa etapa, realizamos a leitura dos manuscritos e analisamos as apropriações da teoria histórico-cultural por parte de seus autores. A análise permitiu definir categorias de apropriação da teoria histórico-cultural encontradas nos trabalhos selecionados para, por fim, tecer as considerações finais da pesquisa.

A teoria histórico-cultural na produção científica da educação física

Ao longo de 25 anos (1990-2014), os seis periódicos da área de educação física que consideramos os mais relevantes do país somaram 4.972 publicações, 132 delas relacionadas a manifestações gímnicas. Desse total, 30 manuscritos foram publicados pela revista Motriz; 30 pela Revista Brasileira de Ciências do Esporte; 23 pela Revista Brasileira de Educação Física e Esporte; 19 pela revista Pensar a Prática; 17 pela Revista da Educação Física/UEM; e 13 pela Revista Movimento. Apenas três trabalhos fizeram referência à teoria histórico-cultural, um na Revista Movimento, um na Revista Brasileira de Ciências do Esporte e um na Revista da Educação Física/UEM.

Os trabalhos que relacionaram a teoria histórico-cultural e a ginástica se situaram no âmbito educacional, ou seja, no ensino da ginástica na escola. Constatamos que nenhum dos manuscritos analisados utilizou a teoria histórico-cultural como fundamentação metodológica da pesquisa, pois apenas fizeram menção à teoria de Vigotski em algum momento do texto.

Na Revista da Educação Física/UEM foi publicado, no segundo semestre de 2002, o artigo “Produção do conhecimento em ginástica escolar: a prática pedagógica reflexiva em ação” (Martineli, 2002Martineli, T. A. P. (2002). Produção do conhecimento em ginástica escolar: a prática pedagógica reflexiva em ação. Revista da Educação Física/UEM, 13(2), 157-167.)2, resultado da investigação de mestrado A formação inicial em educação física e a histórico-cultural e sua relação com o materialismo histórico; portanto, essa pesquisa configura-se como objeto de autocrítica neste artigo.

preparação de um profissional reflexivo (Martineli, 2001Martineli, T. A. P. (2001). A formação inicial em educação física e a preparação de um profissional reflexivo (Tese de mestrado). Recuperado de http://cev.org.br/biblioteca/a-formacao-inicial-educacao-fisica-e-preparacao-um-profissional-reflexivo/
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). Esse trabalho foi subsidiado teórica e metodologicamente pela investigação-ação, proposta por John Elliott e mediada pela prática reflexiva de Donald Schön, constituída pela tríade da reflexão-na-ação (reflexão-na-ação, reflexão-sobre-a-ação e reflexão-sobre-a-reflexão-na-ação).

A epistemologia da prática reflexiva proposta por Donald Schön, Kenneth Zeichner e outros pensadores norte-americanos – levada por autores europeus como Isabel Alarcão, Marcelo Gárcia, John Elliott e Antônio Nóvoa ao âmbito da formação de professores reflexivos – ganhou força nos anos de 1990, rompendo com a racionalidade técnica e buscando articular teoria e prática por meio da reflexão-na-ação, sobre-a-ação e sobre a reflexão-na-ação. Conforme Martineli (2001)Martineli, T. A. P. (2001). A formação inicial em educação física e a preparação de um profissional reflexivo (Tese de mestrado). Recuperado de http://cev.org.br/biblioteca/a-formacao-inicial-educacao-fisica-e-preparacao-um-profissional-reflexivo/
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, a reflexão-na-ação é o momento em que o professor, consciente, mas sem exprimir palavras, analisa e interpreta a própria atividade, possibilitando a intervenção na ação; a reflexão-sobre-a-ação é o processo de avaliação retrospectiva de situações importantes provenientes da prática pedagógica e sobre a reflexão-na-ação; e a reflexão-sobre-a-reflexão-na-ação trata do processo reflexivo a fim de definir ações futuras e solucionar problemas – é a abordagem mais distante da ação, e dela pode se originar um novo ensino reflexivo, um novo conhecimento. Dessa forma, os conhecimentos adquiridos na prática reflexiva possibilitam aos professores novos saberes e técnicas, guiando o seu fazer para além das técnicas e procedimentos metodológicos tradicionais.

Essa perspectiva tem em sua raiz o conceito de reflexão de John Dewey, especialmente em seu livro How we think, propondo uma prática pedagógica de orientação liberal, baseada em uma concepção construtivista de desenvolvimento humano. Ademais, a proposta de Schön buscava superar a fragmentação do conhecimento e a dissociação entre teoria e prática (própria da predominância da racionalidade técnica no ensino) por meio de uma epistemologia da prática reflexiva.

Baseando-se nos pressupostos de Schön, Martineli (2002)Martineli, T. A. P. (2002). Produção do conhecimento em ginástica escolar: a prática pedagógica reflexiva em ação. Revista da Educação Física/UEM, 13(2), 157-167. interveio em aulas de educação física no ensino fundamental, em uma escola do município de Maringá (PR). Após a intervenção, a estudiosa constatou avanços no aprendizado dos alunos, especialmente no que se refere à superação do método de ensino encontrado na escola, indo além da simples prática corporal. Por compreender a convergência desses pressupostos com o pensamento de Vigotski, nesse trabalho a autora se fundamentou na teoria de formação de conceitos, discutindo a aprendizagem dos alunos e problematizando a importância da aquisição do conhecimento escolar, desde a formação do conceito cotidiano ao científico.

Na Revista Brasileira de Ciências do Esporte foi localizado um trabalho publicado em janeiro de 2007, “Dança e ginástica nas abordagens metodológicas da educação física escolar”, de Lara, Rinaldi, Montenegro e Seron (2007)Lara, L. M., Rinaldi, I. P. B., Montenegro, J., & Seron, T. D. (2007). Dança e ginástica nas abordagens metodológicas da educação física escolar. Revista Brasileira de Ciências do Esporte. 28(2), 155-170., que fazem um levantamento das seguintes abordagens metodológicas da educação física: desenvolvimentista, construtivista, ensino aberto, crítico-superadora, crítico-emancipatória, sistêmica e plural. Por meio de um questionário passado a pesquisadores de referência nessas metodologias, as autoras buscaram compreender o significado de suas proposições teóricas e os saberes a serem ensinados nas aulas de educação física, com foco na dança e na ginástica.

Segundo as autoras, a concepção construtivista tem como referencial teórico o psicólogo suíço Jean Piaget e, na área da educação física, o professor João Batista Freire. Em resposta ao questionário, Freire afirma que, apesar de sua concepção pedagógica partir de ideias construtivistas, ele nunca assumiu tal metodologia, por acreditar que “uma educação física baseada em qualquer corrente teórica não se concretiza na prática”. O que pode haver é “uma educação física em que autores e professores tomem como referência algumas ideias construtivistas, como as de Piaget, Vigotski ou Wallon” (Lara et al., 2007Lara, L. M., Rinaldi, I. P. B., Montenegro, J., & Seron, T. D. (2007). Dança e ginástica nas abordagens metodológicas da educação física escolar. Revista Brasileira de Ciências do Esporte. 28(2), 155-170., p. 161). Desse modo, entendemos que Freire compreende a teoria de Vigotski como uma concepção construtivista.

Por fim, o artigo publicado na edição de setembro de 2007 da revista Movimento, intitulado “A ginástica vai à escola” (Schiavon & Nista-Piccolo, 2007Schiavon, L. M., & Nista-Piccolo, V. I. (2007). A ginástica vai à escola. Movimento. 13(3), 131-150.), foi baseado na dissertação de mestrado O projeto Crescendo com a Ginástica: uma possibilidade na escola (Schiavon, 2003Schiavon, L. M. (2003). O projeto Crescendo com a Ginástica: uma possibilidade na escola (Tese de mestrado). Recuperado de http://repositorio.unicamp.br/jspui/handle/REPOSIP/275438
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) . Trata-se de uma pesquisa-ação que utilizou “o método de ensino dos ‘três momentos’, desenvolvido no projeto Crescendo com a Ginástica, com suporte teórico em Vygotsky” (Schiavon & Nista-Piccolo, 2007Schiavon, L. M., & Nista-Piccolo, V. I. (2007). A ginástica vai à escola. Movimento. 13(3), 131-150., p. 137). Ao examinar o artigo observamos que ele não descreve o método de ensino nem o motivo de sua relevância ou escolha, entretanto, as autoras citam em nota de rodapé que o detalhamento do método pode ser consultado na dissertação de mestrado Metodologia de ensino em educação física: contribuições de Vygotsky para as reflexões sobre um modelo pedagógico, de Velardi (1997)Velardi, M. (1997). Metodologia de ensino em educação física: contribuições de Vygotsky para as reflexões sobre um modelo pedagógico (Tese de mestrado). Recuperado de http://repositorio.unicamp.br/jspui/handle/REPOSIP/274815
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.

Nas dissertações de Schiavon (2003)Schiavon, L. M. (2003). O projeto Crescendo com a Ginástica: uma possibilidade na escola (Tese de mestrado). Recuperado de http://repositorio.unicamp.br/jspui/handle/REPOSIP/275438
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e Velardi (1997)Velardi, M. (1997). Metodologia de ensino em educação física: contribuições de Vygotsky para as reflexões sobre um modelo pedagógico (Tese de mestrado). Recuperado de http://repositorio.unicamp.br/jspui/handle/REPOSIP/274815
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encontramos a descrição do método utilizado na pesquisa, o qual enfatiza a exploração dos movimentos antes que eles sejam ensinados de maneira específica e direcionada pelo professor, valorizando os conhecimentos anteriores e os desconhecimentos dos alunos, pois se o objetivo é conduzi-los “à formação de conceitos científicos sobre a atividade e o conteúdo, é determinante a utilização dos conhecimentos que os alunos já possuem, seus conceitos cotidianos” (Velardi, 1997Velardi, M. (1997). Metodologia de ensino em educação física: contribuições de Vygotsky para as reflexões sobre um modelo pedagógico (Tese de mestrado). Recuperado de http://repositorio.unicamp.br/jspui/handle/REPOSIP/274815
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, p. 130). A autora intitula tal abordagem de “método dos três momentos”, pois se divide em três partes, que podem acontecer em uma ou mais aulas, de acordo com o nível de desenvolvimento, motivação e prazer dos alunos.

Schiavon (2003)Schiavon, L. M. (2003). O projeto Crescendo com a Ginástica: uma possibilidade na escola (Tese de mestrado). Recuperado de http://repositorio.unicamp.br/jspui/handle/REPOSIP/275438
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, por sua vez, explica que o primeiro momento ocorre na exploração do tema da aula por meio de ações motoras e materiais disponíveis, valorizando conhecimentos e criações dos alunos, sem o direcionamento por parte do professor. No segundo momento, o professor direciona a aula como mediador, instigando os alunos a ações mais complexas, desafiando-os para que solucionem problemas e incitando-os a refletir sobre o que está sendo realizado. Velardi (1997)Velardi, M. (1997). Metodologia de ensino em educação física: contribuições de Vygotsky para as reflexões sobre um modelo pedagógico (Tese de mestrado). Recuperado de http://repositorio.unicamp.br/jspui/handle/REPOSIP/274815
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reitera que nesse momento se inicia o processo de formação do conceito científico, sendo preciso, portanto, centrar-se nas potencialidades emergentes e fornecer pistas ou perguntas-guias, em conformidade com o método de Vigotski. Por fim, no terceiro momento, o professor direciona as atividades necessárias para atingir completamente o objetivo da aula, sugerindo ações pertinentes e que não apareceram até então, fornecendo informações técnicas detalhadas e aumentando a complexidade dos movimentos executados anteriormente. Segundo Velardi (1997, p. 66)Velardi, M. (1997). Metodologia de ensino em educação física: contribuições de Vygotsky para as reflexões sobre um modelo pedagógico (Tese de mestrado). Recuperado de http://repositorio.unicamp.br/jspui/handle/REPOSIP/274815
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Vygotsky é atualmente um dos mais pesquisados autores nas áreas relacionadas ao desenvolvimento e à pedagogia. Embora seus estudos tenham sido realizados entre aos anos 20 e 30, sob forte influência do pensamento marxista, seus conceitos são considerados fundamentais para aqueles que estão envolvidos no estudo do desenvolvimento humano e que procuram abordagens sociais para explicá-lo, e mais, para compreendê-lo.

No início de sua conclusão, Velardi relata que não consegue imaginar sua proposta metodológica presa a qualquer teoria. Desse modo, o interesse da autora está nos pressupostos vigotskianos para a pedagogia, e não em seus fundamentos e ideologia.

Após apresentar os três manuscritos de nosso corpus, que de alguma maneira utilizam os pressupostos vigotskianos, definimos como base para esta análise três categorias centrais de apropriação da teoria histórico-cultural por autores da educação física, quais sejam: (1) a radicalidade de seus pressupostos no contexto revolucionário; (2) as bases da difusão da teoria de Vigotski no Brasil e sua descontextualização; e (3) implicações pedagógicas das apropriações neoliberais da teoria de Vigotski na educação física.

A radicalidade de seus pressupostos no contexto revolucionário

É necessário destacar que a psicologia de Lev Semenovitch Vigotski (1896-1934) está alicerçada no marxismo. Conforme aponta Duarte (2004, p. 13)Duarte, N. (2004). Vigotski e o “aprender a aprender”: crítica às apropriações neoliberais e pós-modernas da teoria vigotskiana (3ª ed.). Campinas: Autores Associados., Vigotski embasou-se na globalidade do método de Marx para construir uma psicologia focada nos “processos psíquicos como processos histórica e socialmente produzidos”, de modo a afirmar que o homem só se desenvolve e humaniza ao se apropriar dos conhecimentos historicamente produzidos pelo ser social.

A teoria histórico-cultural elaborada por Vigotski e seus colaboradores, entre os mais destacados Alexander Romanovich Luria (1902-1977) e Alexei Nikolaevich Leontiev (1903-1979), é resultado de um processo histórico ocorrido durante a revolução socialista na Rússia, antiga União Soviética (URSS). No fim do século XIX, a Rússia, diferentemente de alguns países ocidentais, encontrava-se em processo de transição do sistema feudal para o capitalismo. A população campesina era expropriada violentamente pelos latifundiários, a base econômica do país era subsidiada basicamente pela agricultura e o desenvolvimento industrial e das forças produtivas ainda não havia ocorrido (Tuleski, 2008Tuleski, S. C. (2008). Vygotski: a construção de uma psicologia marxista (2ª ed.). Maringá: Eduem.).

O ímpeto da Internacional Comunista, associado à crise gerada pela Primeira Guerra Mundial e ao descontentamento dos camponeses e operários, conduziu à Revolução de 1917, que derrubou o governo do czar Nicolau II. Após a queda do czar, instituiu-se um governo provisório que mantinha interesses burgueses e o fomento à guerra imperialista, o qual foi derrubado pela força revolucionária de camponeses e operários em outubro do mesmo ano. O Partido Bolchevique então assumiu o governo, esperando que outros países mais desenvolvidos entrassem no processo revolucionário, abolindo a propriedade privada e adotando medidas para o desenvolvimento rápido das forças produtivas e industriais do país, o que possibilitou a reestruturação e o crescimento econômico soviético. A sociedade russa, no entanto, ainda estava submersa nas relações burguesas de produção. As contradições das relações sociais nesse processo de reconstrução da sociedade suscitaram a necessidade de uma nova concepção de homem, e foi isso que conduziu Vigotski em seus estudos, na busca por construir “uma nova psicologia que fosse capaz de explicar o funcionamento mental desse novo homem” (Tuleski, 2008Tuleski, S. C. (2008). Vygotski: a construção de uma psicologia marxista (2ª ed.). Maringá: Eduem., p. 104).

Segundo Zanella (1994)Zanella, A. V. (1994). A psicologia de Vygotski: resgatando a história de uma contribuição atual. Revista de Ciências Humanas. 12(16), 43-61., as correntes de psicologia existentes, tanto as ocidentais quanto as desenvolvidas por psicólogos soviéticos como Ivan Pavlov, Vladimir Bekhterev, Georgi Chelpanov, entre outros, não eram suficientes para compreender a nova concepção de homem nessa nova forma societária. Assim, no Primeiro Congresso Panrusso de Psiconeurologia, sediado em Moscou, em 1923, Konstantin Kornilov apresentou a reactologia como uma psicologia marxista, o que lhe rendeu a direção do Instituto de Psicologia de Moscou e a reestruturação do grupo de colaboradores do instituto, dentre eles Alexei Leontiev e Alexander Luria. No ano seguinte, no Segundo Congresso Panrusso de Psiconeurologia, sediado em Leningrado, Lev Vigotski, por meio da comunicação “Os métodos de investigação reflexológicos e psicológicos”, opôs-se à reactologia e à reflexologia, argumentando que para a construção da nova psicologia era necessário conhecer as concepções de psicologia existentes e superá-las, o que resultou no convite de Kornilov para unir-se a ele e a seus colaboradores no Instituto de Psicologia de Moscou.

Vigotski trouxe para o cerne da psicologia, sob a filosofia de Marx e Engels, uma concepção histórica do homem, que se constituiria por meio da relação social. Embasado nessa ideia, o autor tentou explicar o desenvolvimento das funções psíquicas humanas (Zanella, 1994Zanella, A. V. (1994). A psicologia de Vygotski: resgatando a história de uma contribuição atual. Revista de Ciências Humanas. 12(16), 43-61.). Nesse sentido, Tuleski (2008)Tuleski, S. C. (2008). Vygotski: a construção de uma psicologia marxista (2ª ed.). Maringá: Eduem. ressalta que a psicologia histórico-cultural é fruto da busca por uma psicologia marxista e comunista, cujo intuito era estudar a relação entre homem e natureza numa perspectiva histórica, em que o homem é produto e produtor de si e de sua própria natureza. Portanto, é um equívoco afastar a teoria histórico-cultural do materialismo histórico de Marx, Engels e seus continuadores. É isso que fazem, contudo, as produções de nosso corpus ao levarem a teoria histórico-cultural para a educação física na especificidade da ginástica, utilizando os pressupostos de Vigotski de forma descontextualizada. Tal equívoco pode ser explicado pelo processo inicial da difusão do pensamento vigotskiano no Brasil e suas implicações políticas e pedagógicas, como destacamos na sequência.

As bases da difusão da teoria de Vigotski no Brasil

Segundo Duarte (2004)Duarte, N. (2004). Vigotski e o “aprender a aprender”: crítica às apropriações neoliberais e pós-modernas da teoria vigotskiana (3ª ed.). Campinas: Autores Associados., as primeiras publicações de Vigotski no Brasil eram traduções de edições americanas e da Europa Ocidental, as quais não traziam o texto integral do psicólogo, mas versões resumidas em que eram omitidos alguns conceitos que aproximam a teoria histórico-cultural do materialismo histórico de Marx. Pode-se observar isso no livro Pensamento e linguagem (Vigotski, 2005Vigotski, L. S. (2005). Pensamento e linguagem (3. ed.). São Paulo: Martins Fontes.) com 132 páginas na versão norte-americana3 4 A Editora Martins Fontes publicou no Brasil, a partir da tradução dessas versões americanas, as primeiras edições dos livros A formação social da mente, em 1984, e do livro Pensamento em linguagem, em 1987. , e 337 na versão espanhola, bem como no livro A formação social da mente (Vigotski, 2003Vigotski, L. S. (2003). A formação social da mente (6. ed.). São Paulo: Martins Fontes.) que foi redigido livremente, como declarado pelos organizadores.

Esses desacertos resultaram em apropriações neoliberais e pós-modernas da teoria histórico-cultural, desvinculando-a do marxismo e aproximando-a da epistemologia e psicologia genética de Piaget, em uma mistura das ideias vigotskianas com concepções naturalizantes do ser humano. Assim, sob a ideologia da classe dominante e para a manutenção do pensamento hegemônico, o discurso pedagógico escolanovista, do lema “aprender a aprender”, apropriou-se da teoria de Vigotski, o que trouxe diversas implicações pedagógicas.

Nos artigos analisados foram utilizadas algumas das edições resumidas e traduzidas indiretamente das obras de Vigotski: A formação social da mente. Pensamento e linguagem. Aprendizagem e desenvolvimento na idade escolar e Estudos sobre a história do comportamento: o macaco, o primitivo e a criança. A referência a essas edições permite compreender as divergências teóricas observadas, uma vez que tais publicações dissociam a teoria histórico-cultural e o marxismo, ignorando o contexto revolucionário da Rússia no momento em que Vigotski e seus colaboradores produziam. A apropriação e reprodução dessas versões da teoria histórico-cultural resultou em profundas implicações para as interpretações e práticas pedagógicas na educação, particularmente na educação física, como foi possível observar nas produções analisadas.

Implicações pedagógicas das apropriações neoliberais da teoria de Vigotski na educação física

A associação da teoria de Vigotski ao construtivismo de Piaget trouxe profundas implicações pedagógicas, uma vez que, para Piaget, não há diferença entre os processos psicológicos, biológicos e sociais do homem, ao passo que a psicologia marxista de Vigotski parte do pressuposto de que o modelo biológico não consegue explicar todos os processos especificamente humanos. No que se refere à educação, Duarte (1996, p. 45)Duarte, N. (1996). A escola de Vigotski e a educação escolar: algumas hipóteses para uma leitura pedagógica da psicologia histórico-cultural. Psicologia USP, 7(1-2), 17-50. considera “os processos psíquicos formados de maneira planejada como qualitativamente superiores àqueles formados espontaneamente”, de modo que a criança pode se desenvolver desde que lhe ofereçam um conhecimento que ela não pode atingir sozinha. O autor critica as pedagogias baseadas no escolanovismo e no construtivismo, as quais, por acreditarem no desenvolvimento espontâneo da criança, relegariam a transmissão do saber historicamente acumulado a segundo plano – isto é, o saber da criança e as relações intersubjetivas seriam mais importantes que o direcionamento do professor, em uma perspectiva contrária à de Vigotski.

Além disso, em sua obra intitulada Vigotski e o “aprender a aprender”: crítica às apropriações neoliberais e pós-modernas da teoria Vigotskiana, Duarte (2004)Duarte, N. (2004). Vigotski e o “aprender a aprender”: crítica às apropriações neoliberais e pós-modernas da teoria vigotskiana (3ª ed.). Campinas: Autores Associados. aponta o pragmatismo teórico como meio de diluição do confronto entre autores e teorias, de forma que educadores e pesquisadores não utilizam um referencial específico, mas contribuições de diversas concepções teóricas. Esse ecletismo acaba por desvalorizar os referenciais teóricos, propalando o fim da ideologia e, ao mesmo tempo, fortalecendo a ideologia dominante, como preconizado pelo neoliberalismo. Os estudos analisados, ao utilizarem autores distintos e expressarem o viés neoliberal e pós-moderno nas apropriações da teoria histórico-cultural, apresentam essa característica eclética apontada por Duarte.

Os estudos aqui analisados se valem de elaborações teóricas cujos fundamentos caminham em uma perspectiva filosófica deweyana. A pesquisa de Martineli (2002)Martineli, T. A. P. (2002). Produção do conhecimento em ginástica escolar: a prática pedagógica reflexiva em ação. Revista da Educação Física/UEM, 13(2), 157-167. fundamenta-se na epistemologia da prática reflexiva de Schön, autor que se embasa no pragmatismo de John Dewey, idealizador do lema “aprender a aprender” (escolanovista). Seu método de aprendizado, learning by doing (aprender fazendo), baseia-se no contato da criança com um meio rico e nutritivo intelectualmente, em que ela espontaneamente se engajará em atividades para conhecê-lo e produzir conhecimentos. De acordo com Duarte (1996Duarte, N. (1996). A escola de Vigotski e a educação escolar: algumas hipóteses para uma leitura pedagógica da psicologia histórico-cultural. Psicologia USP, 7(1-2), 17-50., 2004)Duarte, N. (2004). Vigotski e o “aprender a aprender”: crítica às apropriações neoliberais e pós-modernas da teoria vigotskiana (3ª ed.). Campinas: Autores Associados., a aproximação entre as teorias de Vigotski e os elementos escolanovistas aparece nas discussões sobre interação intersubjetiva e a questão semiótica; na concepção escolanovista, porém, secundariza-se a mediação por parte do educador e a transmissão do conhecimento historicamente acumulado.

Ao analisar as diferenças entre as formas educacionais em uma perspectiva da história da educação, no livro História da educação: da Antiguidade aos nossos diasManacorda (1992)Manacorda, M. A. (1992). História da educação: da Antiguidade aos nossos dias (3ª ed.). São Paulo: Cortez. relata que a pedagogia de John Dewey se apresenta por meio de premissas teóricas e opções práticas, compreendendo a escola como uma instituição social que progride pela ação social, de modo que o contato ativo com uma grande quantidade de materiais permitiria ao indivíduo alcançar os recursos da ciência. As indicações pedagógicas de Dewey unem a instrução e o trabalho, mas em uma perspectiva diferente da visada por Marx (união entre instrução e trabalho produtivo), pois o primeiro acredita na “adequação dinâmica da escola à vida produtiva real, dinâmica no sentido de que a escola pode ser chamada a colaborar para a mudança” (Manacorda, 1992Manacorda, M. A. (1992). História da educação: da Antiguidade aos nossos dias (3ª ed.). São Paulo: Cortez., p. 320) e, portanto, “falta-lhe aquela análise dialética do real e de suas contradições, cujas explosões, segundo Marx, provocariam as mudanças” (Manacorda, 1992Manacorda, M. A. (1992). História da educação: da Antiguidade aos nossos dias (3ª ed.). São Paulo: Cortez., p. 320).

A pesquisa de Lara et al. (2007)Lara, L. M., Rinaldi, I. P. B., Montenegro, J., & Seron, T. D. (2007). Dança e ginástica nas abordagens metodológicas da educação física escolar. Revista Brasileira de Ciências do Esporte. 28(2), 155-170. associa a teoria histórico-cultural de vigotski à corrente pedagógica construtivista. Sobre essa associação, Sampaio (2013)Sampaio, J. O. (2013). A educação física e a perspectiva histórico-cultural: as apropriações de Vigotski pela produção acadêmica da área (Tese de mestrado). Recuperado de http://repositorio.unb.br/handle/10482/15744
http://repositorio.unb.br/handle/10482/1...
, ao analisar as apropriações da teoria histórico-cultural pela educação física, esclarece que a obra de Freire estabeleceu um amplo diálogo entre diferentes matrizes teóricas, como a fenomenologia, o positivismo e o materialismo histórico, e que a maior parte de seus pressupostos são de Piaget. No que diz respeito a Vigotski, são utilizados conceitos que tratam apenas da cognição e da avaliação, apresentados nos capítulos 6 e 11 de seu livro Educação de corpo inteiro para explicar questões ausentes em Piaget, como a mediação e a zona de desenvolvimento proximal. Ademais, é um equívoco relacionar a teoria histórico-cultural ao construtivismo sem observar que a psicologia marxista está pautada no paradigma histórico do psiquismo humano, segundo o qual a relação entre sujeito e objeto é histórica, enquanto as concepções construtivistas e interacionistas se baseiam em correntes da psicologia que abordam o psiquismo humano a partir do modelo biológico de interação entre organismo e meio ambiente.

No trabalho de Schiavon e Nista-Piccolo (2007)Schiavon, L. M., & Nista-Piccolo, V. I. (2007). A ginástica vai à escola. Movimento. 13(3), 131-150., embora busquem solucionar problemas específicos do ensino da ginástica por meio das contribuições de Vigotski, as autoras acabam por dissociar a teoria vigotskiana de seu projeto histórico, econômico e político e de seu posicionamento de classe, desconsiderando que a teoria histórico-cultural é uma psicologia marxista.

Portanto, os estudos analisados aproximam-se do construtivismo piagetiano baseado no ensino por meio da interação, tornando o ensino da cultura corporal esvaziado de conteúdo, anistórico, e consequentemente afastando os fundamentos da psicologia de Vigotski do materialismo marxiano.

Considerações finais

Embora tenham se intensificado nos últimos cinquenta anos, os estudos sobre a teoria histórico-cultural ainda são escassos. Na educação física esses estudos são mais recentes, mas também apresentam crescimento nos últimos anos, assim como nas outras áreas. As apropriações da teoria vigotskiana verificadas nos periódicos de educação física reproduzem uma concepção pragmática, associada às perspectivas escolanovistas e construtivistas, assim como nos primeiros estudos nessa área, em virtude de traduções e interpretações equivocadas difundidas no Brasil.

Essas apropriações desconsideram a radicalidade da teoria histórico-cultural, que emerge no contexto histórico revolucionário do início do século XX, associando-a a bases teórico-filosóficas divergentes da perspectiva crítica de Vigotski, de seus colaboradores e continuadores. A desconsideração do contexto histórico da teoria vigotskiana trouxe consequências para a apropriação de seus pressupostos no Brasil, tanto em relação à forma quanto ao conteúdo, o que pode ter suscitado e determinado reflexões pedagógicas de perspectiva neoliberal e pós-moderna, reproduzida nas pesquisas sobre ginástica, como constatamos neste estudo.

As consequências mais evidentes dessa equivocada apropriação podem ser observadas em documentos elaborados no final dos anos 1990 – os Parâmetros Curriculares Nacionais da educação física (1998), bem como as diretrizes curriculares de estados e propostas municipais – e, mais diretamente, na atividade pedagógica dos professores de educação física que atuam na educação básica. Portanto, faz-se necessário considerar o tempo em que a produção foi elaborada e avaliá-la com o intuito de colaborar para o desenvolvimento da teoria histórico-cultural no Brasil.

Ressaltamos que os esforços de Vigotski se centraram na elaboração de uma teoria psicológica marxista, segundo a qual o psiquismo humano é uma produção histórica e social. Em seus estudos, Vigotski reconhece a importância do trabalho para o desenvolvimento das funções psicológicas do ser social, enfatizando a apropriação da cultura humana como principal meio para que o homem continue a se desenvolver.

A cultura corporal em suas diferentes formas, dentre elas a ginástica, contribui para o desenvolvimento cultural pleno do homem e de suas funções psicológicas. Assim, esse elemento da cultura humana deve ser ensinado em sua totalidade a fim de promover a apropriação de todas as manifestações da cultura corporal existentes no momento atual.

Muitas são as dificuldades encontradas na educação escolar, de modo que a apropriação das aquisições históricas da humanidade, para a maioria das pessoas, ocorre dentro de limites miseráveis. Isso não acontece, porém, por diferenças biológicas, mas pela desigualdade econômica, que é fruto da exploração do homem pelo homem, da sociedade de classes (Leontiev, 2004Leontiev, A. (2004). O desenvolvimento do psiquismo (2ª ed.). São Paulo: Centauro.). No entanto, o papel da educação e da educação física escolar, pela mediação do professor e pelo ensino intencionalmente organizado, é propiciar a aprendizagem ao aluno no intuito de que ele se desenvolva ilimitadamente.

  • 1
    Foram excluídas as edições que traziam anais de congressos, dada a amplitude e variabilidade de materiais em relação ao tempo para a execução da pesquisa. Optamos por utilizar o termo “manuscritos” para tratar dos trabalhos encontrados, pois os periódicos pesquisados não publicam apenas artigos, mas também relatos de experiência, resumos de dissertações, ensaios, resenhas etc.
  • 2
    Destaca-se que entre os achados encontra-se essa pesquisa, realizada em 2002, que refere-se as primeiras incursões da autora sobre o tema, que suscitaram novas discussões e a necessidade de aprofundamento acerca da teoria
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    A Editora Martins Fontes publicou no Brasil, a partir da tradução dessas versões americanas, as primeiras edições dos livros A formação social da mente, em 1984, e do livro Pensamento em linguagem, em 1987.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Sep-Dec 2018

Histórico

  • Recebido
    13 Jan 2017
  • Revisado
    18 Jul 2017
  • Aceito
    30 Set 2017
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