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Infância e promessa: notas baseadas no pensamento de Theodor Adorno1 1 Apoio: Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo - FAPESP

Childhood and promise: notes based on the thought of Theodor Adorno

Resumo

Com base no pensamento de Theodor Adorno, o artigo busca relacionar a concepção de infância com as de processo civilizacional e educação. Tendo em vista o principal diagnóstico da assim chamada “teoria crítica” da sociedade – qual seja, aquele do entrelaçamento entre mito e esclarecimento ao longo do processo de desenvolvimento da civilização ocidental –, a intenção é demonstrar como a infância, por meio de suas dinâmicas específicas, pode ser vislumbrada como uma espécie de promessa que acena para a possibilidade de uma “vida certa” em meio à constatação de que “não existe vida certa na falsa”. Essa reflexão deve servir também para apontar algumas consequências da percepção da infância para a ideia adorniana de educação.

Palavras-chave
infância; educação; civilização; sociedade; natureza

Abstract

Based on the thought of Theodor Adorno, this article aims to relate the concept of childhood with those of civilizational process and education. In view of the main diagnosis of the so-called “critical theory” of society – i.e., the one of the interlacing between myth and enlightenment throughout the process of development of the Western civilization – the intention is to demonstrate how childhood, through its specific dynamics, can be seen as a kind of promise that beckons to the possibility of a “right life” amidst the understanding that “there is no right life in the false one”. This reflection should also serve to point out some consequences of the perception of childhood in the Adornian idea of education.

Keywords
childhood; education; civilization; society; nature

Em um breve excerto, respondendo à pergunta “por que você retornou” à Alemanha, Adorno (2003b)Adorno, T.(2003b). Auf die Frage: Warum sind Sie zurückgekehrt [Sobre a pergunta: por que o senhor voltou]. In Vermischte Schriften (pp. 394-395). Suhrkamp: Frankfurt a. M. argumenta, entre outras coisas, o seguinte: “Eu queria simplesmente voltar para o lugar onde tive minha infância, no limite, por causa do sentimento de que, na vida, não realizamos nada diferente do que a tentativa de recuperar a infância de maneira transformada” (p. 395, tradução nossa). Atestando a assertiva, o tema da infância é uma constante no pensamento adorniano, embora não seja objeto de tratamento sistemático. Em Minima moralia, por exemplo, escrito no mesmo período em que Adorno formulava, junto com Max Horkheimer, a Dialética do esclarecimento, a temática é recorrente. Que relações podemos estabelecer entre o retumbante diagnóstico desse último livro acerca da civilização ocidental, aquele do “entrelaçamento entre mito e esclarecimento”, e a ideia de infância presente, de maneira esparsa, por vezes aforística, no pensamento de Theodor Adorno? A reflexão que segue será feita com base nessa questão, procurando entender suas relações com o complexo imperativo adorniano de uma educação para a emancipação. Tal reflexão pode oferecer pistas para a compreensão de como, em consonância com o pensamento de Adorno, a infância pode ser concebida como uma porta rara que acena para a possibilidade da “vida certa” em meio à inexorável “vida danificada”, que é própria da moderna sociedade capitalista.

Ainda introdutoriamente, vale lembrar que a forma de Adorno conceber a infância deve muito ao contato com a obra de Walter Benjamin. Ao menos desde 1932, Adorno já tomava conhecimento dos textos de Infância berlinense por volta de 1900 (Benjamin, 2010Benjamin, W. (2010). Berliner Kindheit um 1900 [Infância berlinense por volta de 1900]. Frankfurt a. M.: Suhrkamp.) e discutia, por meio de cartas, alguns de seus motivos. Grosso modo, os trabalhos benjaminianos que comporiam posteriormente o livro consistem precisamente em retomar experiências da infância, indicando

potencialidades perdidas com a passagem para o mundo adulto2 2 Um outro traço compartilhado por ambos em suas respectivas reflexões é a marca autobiográfica, que, no caso de Adorno, nem sempre é explicitada, como acontece no mencionado livro de Benjamin. Uma exceção é um texto de Adorno bastante breve acerca da cidade onde passava suas férias de infância – trata-se de um exercício memorialístico que, certamente, deve muito ao Infância berlinense, de Benjamin (Adorno, 2003a). De qualquer maneira, um aspecto sociológico dessas reflexões que podemos demarcar é que elas tomam como referencial a infância burguesa vivenciada por ambos os autores – o que não deixa de ser uma especificidade, embora não prejudique o argumento teórico mais geral a respeito da infância que apresentarei a seguir. . Contudo, assim como penso ser o caso em Adorno, não se trata simplesmente de idealizar a infância, mas de reler suas experiências específicas como forma de recuperar possibilidades para a vida adulta. Outro aspecto importante a ser destacado na discussão adorniana, que irei expor, é que a infância não é concebida aqui como fenômeno a-histórico de conotações atemporais – conforme apontam os relevantes estudos históricos de Philippe Ariès (1981)Ariès, P. (1981). História social da criança e da família (D. Flaskman, Trad.). Rio de Janeiro: Editora LTC.. Embora o próprio Adorno não explicite esse aspecto de maneira taxativa, podemos derivar da intenção geral de sua obra de estabelecer um diagnóstico do presente que, no caso das crianças, sua atenção também se concentra em dimensionar a situação delas no âmbito da sociedade capitalista. Elas são importantes precisamente porque encenariam potencialidades de resistência a esse domínio econômico, também na medida em que fazem frente às forças civilizatórias que sustentam tal domínio.

Inicialmente, vale lembrar, ainda que de modo demasiado sucinto, os termos do diagnóstico adorniano em relação ao moderno, pois aí há uma determinada forma de conceber a razão tal como ela se constituiu ao longo do processo histórico ocidental. Desnecessário recordar que a razão está no cerne da nossa ideia moderna de educação3 3 Menciono aqui a perspectiva de ideólogos da Revolução Francesa (como é sabido, esse fenômeno histórico é o marco de surgimento da ideia moderna de educação) que viam na educação uma grande promessa de organizar racionalmente a sociedade por meio de valores, a serem propagados de maneira universal, que deveriam promover um novo espírito público e fomentar o desenvolvimento humano e social (Boto, 1996). Que ao lado desses nobres ideais iluministas havia também um projeto capitalista de substituição dos “costumes em comum” pela imposição da disciplina do trabalho industrial está bem demonstrado, por exemplo, em um prefácio de E. P. Thompson (1998). e, por isso, as ressonâncias dessas reflexões nessa última esfera da vida social são tão relevantes.

É sabido que, juntamente com Max Horkheimer, Adorno (1985)Adorno, T., & Horkheimer, M. (1985). Dialética do esclarecimento (G. de Almeida, Trad.). Rio de Janeiro: Jorge Zahar. ampliou a crítica marxista à reificação, ao argumentar que “o mito já é esclarecimento e o esclarecimento acaba por reverter à mitologia” (p. 15). Nessa concepção, explicitada na Dialética do esclarecimento – um dos livros mais impactantes do século XXI –, a dominação social e capitalista continua sendo o mote, contudo, além disso, chama-se a atenção para o fato de que ela também inclui uma dominação da natureza interna que precede o capitalismo como sistema econômico propriamente dito. Nesse sentido, ao lado da crítica à dominação da mercadoria no mundo presente, os autores tomam o texto da Odisseia como alegoria para reconstruir o processo ocidental de formação do indivíduo, indicando que tal processo está ancorado em sucessivos momentos de repressão da natureza. Recorrendo à psicanálise, Adorno e Horkheimer apontam, reiteradamente, a dimensão violenta da cultura que, para firmar-se, exige renúncias: é por isso que Ulisses precisa ser amarrado ao mastro para poder, ao mesmo tempo, ouvir e resistir ao canto de outro modo irresistível das sereias; é por isso também que o herói não pode se deixar seduzir pelos prazeres oferecidos por Circe, como o fizeram seus companheiros – então transformados em animais –, antes de qualquer gozo, ele deve subjugá-la; dentre outros exemplos que demonstram que o processo de individualização exige sempre a renúncia a prazeres relacionados à natureza; caso contrário, o indivíduo se dissolve em meio ao domínio do natural e perde a si mesmo.

Os episódios da Odisseia aos quais Adorno e Horkheimer recorrem para sustentar suas teses são variados. De qualquer forma, todos eles conduzem à constatação de que a formação dos indivíduos e sua autoconservação estão calcadas em uma dominação violenta da natureza, dos instintos e dos impulsos.

No caso de Adorno, especificamente, essa dimensão analítica do processo civilizacional ocidental se une às discussões em torno do fetichismo da mercadoria para marcar presença nos mais variados temas que foram objeto de seu pensamento. Por um lado, o processo de desenvolvimento de uma razão que instrumentaliza a vida, que procura submeter tudo a finalidades calcadas na dominação da natureza interna e externa; por outro – mas de modo complementar –, a culminação desse processo ocorre no estabelecimento da onipresença das relações de troca capitalistas. Esse diagnóstico pode ser resumido na perspectiva de que, inexoravelmente, ao longo do processo histórico de constituição da moderna civilização ocidental, a “vida” terminou por se configurar como “falsa”: submetidas a finalidades externas impostas pela dinâmica econômica, as existências reais dos seres humanos não podem ser efetivadas de maneira “verdadeira”. Como não poderia ser diferente, esses pressupostos guiam também a percepção de Theodor Adorno acerca das crianças.

Não por acaso, tendo em mente o diagnóstico mais geral do “entrelaçamento entre mito e esclarecimento”, Alexander Kluge irá dizer em um depoimento que, para Adorno, a “sociedade não faz bem aos homens”4 4 Essa afirmação aparece na segunda parte de um documentário sobre Adorno produzido por Meinhard Prill e Kurt Schneider com o título: Theodor W. Adorno – Der Bürger als Revolutionär [O cidadão como revolucionário] (primeira parte) e Theodor W. Adorno – Wer denkt, ist nicht wütend [Quem pensa não se enfurece] (segunda parte). – por isso, o pensador conectaria a infância a um período irrecuperável de felicidade que seria corrompido por meio da assimilação social, culminada pela vida adulta. Podemos concordar com Kluge, desde que conheçamos o diagnóstico histórico mencionado anteriormente: não se trata aqui da imagem idílica da infância como período regido pela “boa” natureza em contraste com a “má” sociedade (conforme argumentava Jacques Rousseau5 5 Em suas considerações a respeito da infância, o pensador francês assevera: “Ponhamos como máxima incontestável que os primeiros movimentos da natureza são sempre retos: não existe perversidade original no coração humano; não se encontra neste nenhum só vício que não se possa dizer como e por onde entrou” (Rousseau, 1995, p. 78). ) ou como período da vida em que não se sofreu ainda a perversão do social. Conforme argumentarei ao longo deste texto, o que Adorno vislumbra na infância é a realização de manifestações que “desatam um dos nós” (conforme expressão de Gabriel Cohn) daquela totalidade “não verdadeira” inerente ao “nexo socialmente culpado” [gesellschaftlischer Schuldzusammenhang], caracterizado pelo nosso momento histórico e, destarte, fazem irromper relampejos de uma possível vida não “danificada”. Não porque as crianças sejam naturalmente “boas”, porém, no limite, porque, por vezes, conseguem escapar à mediação da mercadoria e, também esporadicamente, experimentam um ensaio de reconciliação com a natureza, ao não pautarem suas atividades na dominação racional desta.

Em um dos aforismos presentes em Minima moralia, essa reflexão aparece de maneira elucidativa. Recobrando uma passagem de Friedrich Hebbel acerca da perda de encanto da vida “característica dos anos tardios”, Adorno (2008)Adorno, T. (2008). Minima moralia (G. Cohn, Trad.). Rio de Janeiro: Azougue. reflete a respeito dos jogos infantis. Para ele, esse desencanto constatado por Hebbel se explica porque o “ganho” confisca as atividades próprias do universo infantil como “meros meios” e, no mundo adulto, as reduz a componentes permutáveis ao tempo de trabalho. Nesse processo, o mundo sensorial se desencanta, como uma reação da “sensibilidade à sua determinação objetiva como ‘mundo da mercadoria’” (p. 224 sq.), culminando em um disciplinamento dos sentidos (na fase adulta). As crianças, ao contrário, seriam dotadas de uma “percepção espontânea”, que “não compreende a contradição entre o fenômeno e a fungibilidade” e “dela busca escapar” (p. 225): a música, as cores, os movimentos lhes aparecem como resultados de atividades que se processam por meio do “gosto pela coisa”, por isso são mais vibrantes, encantadoras. Portanto, no caso das crianças, é como se essa inocência ou ignorância as redimisse, ao menos em alguns momentos, do fetichismo da mercadoria (algo que a “percepção resignada dos adultos”, por sua vez, “já não mais alcança”).

A incorruptível criança se dá conta da “peculiaridade da forma equivalente” [ênfase no original]: “O valor de uso torna-se forma aparente do seu oposto, o valor”, como se lê no Capital de Marx. Na sua ação sem finalidade, ela se põe, numa finta, do lado do valor de uso contra o valor de troca. É no momento mesmo em que retira das coisas que maneja a sua utilidade mediada que ela busca salvar nelas aquilo pelo qual são boas para o homem e não para a relação de troca, que deforma igualmente homens e coisas. O caminhãozinho não vai a lugar algum e os diminutos barris que carrega estão vazios; mas eles são fiéis à sua determinação ao não a exercerem, ao se esquivarem ao processo das abstrações que nivela a elas aquela determinação para se firmarem como alegorias daquilo para o qual especificamente existem.

(Adorno, 2008Adorno, T. (2008). Minima moralia (G. Cohn, Trad.). Rio de Janeiro: Azougue., p. 225)

Nesse sentido, as crianças estariam no aguardo de que a sociedade retire o “estigma social que lhes foi imposto” (p. 225). Para Adorno, essa espera própria dos jogos infantis aparece como uma centelha de esperança: a irrealidade de tais jogos atesta que o “real ainda não é real”. No mesmo aforismo, os folguedos das crianças são percebidos por Adorno (2008)Adorno, T. (2008). Minima moralia (G. Cohn, Trad.). Rio de Janeiro: Azougue. como “ensaios inconscientes para a vida certa” [ênfase adicionada] (p. 225).

Portanto, é justamente essa possibilidade peculiar da infância de distanciamento relativo da lógica da mercadoria que transforma esse período da vida em um aceno para a “vida certa”. Esse nexo aparece em outro aforismo de Minima moralia (Adorno, 2008Adorno, T. (2008). Minima moralia (G. Cohn, Trad.). Rio de Janeiro: Azougue., pp. 126-127) sob a ótica do trabalho. Ao comparar o intelectual com a criança, Adorno aponta que ambos têm em comum a faculdade de não separar dever e lazer de modo estanque, conforme preconiza a sociedade burguesa. Nessa sociedade, tem vigência uma “autodisciplina repressiva”, que estabelece: “trabalho é coisa séria, brincadeira tem hora” (p. 126). É por conta dessa alternativa fundante da sociedade capitalista que, em outro lugar, Adorno (2008)Adorno, T. (2008). Minima moralia (G. Cohn, Trad.). Rio de Janeiro: Azougue. postula que a aparência do mundo, “quando não mais estiver sob o imperativo do trabalho” (p. 108), será a da casa da criança que volta das férias e que ainda não se recordou dos deveres que estão associados a cada móvel, cada janela, cada lâmpada. Enquanto a percepção dos adultos está impregnada de ponta a ponta pelas relações capitalistas, o universo infantil ainda oferece espaço para a esquivança, ainda que pontual, de tais relações.

Uma observação de cunho histórico que não é feita por Adorno nessas suas considerações, mas apontada por Walter Benjamin, se refere ao fato de que a própria forma como a industrialização alterou o modo de produção dos brinquedos contribui para contaminar de relações capitalistas o espaço lúdico das brincadeiras infantis. Enquanto a produção artesanal valorizava uma pluralidade de formas e materiais (madeira, ossos, tecidos, argila) que ia ao encontro da heterogeneidade própria do universo infantil, a produção industrial e especializada simplificava as formas e empregava materiais menos multiformes (como o vidro, metais, papel). Benjamin (2007)Benjamin, W. (2007). Reflexões sobre a criança, o brinquedo e a educação (M. V. Mazzari, Trad.). São Paulo: Duas Cdades, Editora 34. vê em alterações como essa uma tentativa dos adultos de interpretar a seu modo a sensibilidade infantil, contudo, “quanto mais atraentes, no sentido corrente, forem os brinquedos, mais distantes estarão de seu valor como ‘instrumentos de brincar’ [ênfase no original]; quanto mais ilimitadamente a imitação anuncia-se neles, tanto mais se desviam da brincadeira viva” (p. 93). Portanto, o próprio capitalismo e a sua dinâmica industrial de produção em massa teriam contribuído para reduzir aquelas potencialidades inerentes aos jogos infantis por meio da produção capitalista dos brinquedos.

Embora essa sutileza relativa à própria forma dos brinquedos em distintos modos de produção não apareça nas observações de Adorno aqui interpeladas (mesmo porque, elas não são reflexões sistemáticas), a dimensão econômica é nelas fundamental. É por isso que Adorno (2008)Adorno, T. (2008). Minima moralia (G. Cohn, Trad.). Rio de Janeiro: Azougue. constata que a economia “não tolera brincadeiras”: essa é a lição que aparece em outro momento no qual o autor aproxima os intelectuais às crianças:

Sendo os intelectuais ao mesmo tempo beneficiários da má sociedade e aqueles de cujo trabalho socialmente inútil depende em grande medida a possibilidade de uma sociedade emancipada da utilidade, temos aí uma contradição que não é aceitável sem mais como irrelevante. Ela consome sem tréguas a qualidade objetiva do seu trabalho. Como quer que o intelectual faça, ele faz errado. Ele experimenta de maneira drástica a ignominiosa alternativa que em segredo o capitalismo tardio apresenta a todos os seus integrantes: tornar-se também um adulto ou permanecer criança. (p. 129)

Grosso modo, as reflexões de Adorno (2008)Adorno, T. (2008). Minima moralia (G. Cohn, Trad.). Rio de Janeiro: Azougue. a respeito das crianças reafirmam que “não há vida certa na falsa” (p. 36), mas o fazem pelo avesso, denotando, por meio das características próprias ao universo infantil, quais as possibilidades postas para o exercício de uma “vida certa”, subtraída às tendências dominantes na sociedade capitalista contemporânea. Um aspecto fundamental dessa potencialidade está precisamente na superação da lógica da mercadoria, na reafirmação do “valor de uso” das coisas, no rompimento da linha que separa radicalmente trabalho e lazer, no engodo momentâneo ao imperativo da troca que os jogos infantis logram estabelecer.

Contudo, embora centrais, sabemos que o diagnóstico do moderno realizado por Adorno vai um pouco além de elementos como esses teorizados por Karl Marx. Ao estender o processo de reificação a um período anterior ao capitalismo moderno, Adorno reconhece um entroncamento entre dominação externa e dominação interna que está na própria base do processo de formação da razão ocidental – essa explicação incorpora uma dimensão psicanalítica. De qualquer forma, tal nexo torna a superação da sociedade de classes um processo mais complexo do que aquele previsto por Marx. Não cabe aqui elaborar essa problemática de maneira extensiva, porém, no que tange ao nosso tema da infância, ela possui reverberações importantes.

A infância é o momento em que os indivíduos se constituem como tais, momento em que se forma “todo caráter, inclusive daqueles que mais tarde praticam crimes” (Adorno, 2006Adorno, T. (2006). Educação e emancipação (W. L. Maar, Trad.). São Paulo: Paz e Terra., pp. 121-122). Adorno defende até mesmo que esse processo ocorre “na primeira infância”, no período mais tenro da existência. Nesse lapso temporal de formação do caráter, realizam-se momentos do processo civilizatório que, na Dialética do esclarecimento, Adorno ilustra, utilizando episódios da Odisseia: conforme mencionei mais acima, esse processo implica que, a todo instante, a natureza precisa ser reprimida, afastada, disciplinada. Toda essa repressão dos instintos no momento de formação das individualidades causa o que Sigmund Freud (1929/2010)Freud, S.(1929/2010). O mal-estar na cultura (R. Zwick, Trad.). São Paulo: L&PM. chamou de “mal-estar” na cultura: a “privação cultural” dominaria o “grande campo das relações sociais dos homens”, de modo que seria impossível deixar de notar “em que medida a cultura está construída sobre a renúncia a impulsos” (pp. 101-102, tradução modificada). Seguindo de perto os ensinamentos do pai da psicanálise, Adorno (2006)Adorno, T. (2006). Educação e emancipação (W. L. Maar, Trad.). São Paulo: Paz e Terra. argumenta que essa natureza, sempre que reprimida de forma violenta, retorna desfigurada e destrutiva, é por isso que “a barbárie encontra-se no próprio princípio civilizatório” (p. 112). É por conta do prevalecimento dessa forma irreconciliada de dominação da natureza nas nossas sociedades que também o universo infantil não é isento de maldade.

Nesse sentido, em um dos aforismos de Minima moralia, Adorno (2008)Adorno, T. (2008). Minima moralia (G. Cohn, Trad.). Rio de Janeiro: Azougue. afirma: “pensando bem, eu poderia derivar o fascismo das recordações da minha infância” (p. 188):

Se a classe burguesa desde tempos imemoriais acalenta o sonho da comunidade nacional abrutalhada, da opressão de todos por todos, então crianças que já no prenome eram Horst e Jürgen e no sobrenome eram Bergenroth, Bojunga e Eckhardt deram andamento ao sonho antes dos adultos estarem historicamente maduros para realizá-lo.

(Adorno, 2008Adorno, T. (2008). Minima moralia (G. Cohn, Trad.). Rio de Janeiro: Azougue., p. 188)

Na lembrança da experiência pessoal aparece muito claramente a perspectiva de que a infância não é o território da pureza. Embora um dos temas prediletos de Adorno seja “o do aconchego infantil como emblema da possível vida não danificada” (Cohn em um posfácio em Adorno, 2008Adorno, T. (2008). Minima moralia (G. Cohn, Trad.). Rio de Janeiro: Azougue., p. 249), ele está ciente de que a infância consiste também no campo de batalha que serve de palco para que a cultura se imponha à natureza – não sem violência: “a civilização, por seu turno, origina e fortalece progressivamente o que é anticivilizatório” (Adorno, 2006Adorno, T. (2006). Educação e emancipação (W. L. Maar, Trad.). São Paulo: Paz e Terra., p. 111). Daí todo o interesse do pensador pela educação: quanto menos violentamente for possível levar a cabo esse processo civilizacional, mais chances há para que as tendências bárbaras da sociedade sejam combatidas. Vale mencionar que essa exigência implica, portanto, uma concepção ampla de educação, que não se limita à sua dimensão formal. No caso específico das crianças, ela se relaciona a um conceito caro ao pensamento alemão, relativo à formação [Bildung]. No modo geral como aparece no debate, o desenvolvimento das faculdades individuais com o objetivo da emancipação humana é o mote fundamental dessa concepção. Contudo, Adorno pondera que esse é um objetivo complexo, pois a forma como se deu o desenvolvimento histórico da cultura favorece aquilo que ele chama de “pseudoformação”, que vai resultar em um indivíduo precário, não autônomo, facilmente submetido à dominação social e a seus antagonismos6 6 Essa discussão é extensa em Adorno, entretanto, basicamente, ela sustenta que a formação [Bildung] não é nada mais do que a cultura em sua apropriação subjetiva. No entanto, a própria “cultura” tem um “caráter duplo”, que “remete à sociedade” e suas formas de dominação; nesse sentido, o cultivo do espírito individual não soluciona os problemas objetivados pela estrutura social: “O caráter duplo da cultura, cujo equilíbrio se dá apenas momentaneamente, tem origem no antagonismo social irreconciliável que a cultura deseja sanar e, como mera cultura, não pode” (Adorno, 2003c, p. 96). .

Em suma, uma das maiores violências do processo civilizacional se apresenta na forma como se processa a formação dos indivíduos com o intuito da autoconservação. Essa temática é basilar no pensamento adorniano e, para o propósito da “autoconservação”, os indivíduos precisam haver-se com o ambiente externo ou com aquilo que Adorno denomina genericamente de “natureza”. Grosso modo, o autor sustenta que, em tempos primitivos, para lidar com os perigos inerentes ao ambiente hostil da natureza, os indivíduos adotavam processos de assimilação a ele como formas de proteção7 7 Um exemplo clássico desse tipo de mimetismo é aquele aventado por Roger Caillois (a quem Adorno e Horkheimer recorrem em suas exposições a respeito da mimese em Dialética do esclarecimento): o de borboletas que alteram a sua cor para igualá-la à cor da árvore onde pousam e, dessa forma, protegerem-se melhor do perigo dos predadores. (Caillois, 1972, p. 63) – aqui, Adorno recorre ao conceito de mimese, também caro ao seu pensamento. Já o pensamento esclarecido substituiu essa mimese por assimilação à natureza por processos de “reflexão controlada”, que comprimem “o diverso sob o mesmo, o idêntico”8 8 Para uma discussão mais detalhada a respeito do problema da mímesis, ver: Gagnebin (2005, pp. 79-104). : no lugar da natureza entra a sociedade, que estabelece a identidade como o principal eixo de proteção contra processos que ameaçam a autoconservação individual; no lugar da dissolução no mundo natural, entra a classificação como arma de identificação e separação entre eu e natureza. No primeiro tipo de mimetismo, há formas de proteção que reproduzem momentos da “proto-história biológica”: “sinais de perigo cujo ruído fazia os cabelos se eriçarem e o coração cessar de bater” – aqui, o “humano quer se tornar como a natureza” e, para isso, “enrijece contra ela”. Ao passo que no caso da mimese controlada de nossa civilização capitalista, a razão vinculada ao trabalho substitui aqueles processos de mimese biológica por uma “educação social”, que estabelece uma forma padronizada de identidade individual (Adorno & Horkheimer, 1985Adorno, T., & Horkheimer, M. (1985). Dialética do esclarecimento (G. de Almeida, Trad.). Rio de Janeiro: Jorge Zahar., pp. 168-170).

O problema é complexo, porém, as crianças também oferecem lições importantes sobre ele. Na Dialética do esclarecimento, Adorno e Horkheimer (1985)Adorno, T., & Horkheimer, M. (1985). Dialética do esclarecimento (G. de Almeida, Trad.). Rio de Janeiro: Jorge Zahar. sintetizam: “A humanidade teve que se violar terrivelmente até que se formasse o eu, o caráter idêntico, determinado e viril do homem, e algo disso é ainda repetido em toda infância” (p. 44, tradução modificada). O processo civilizador se atualiza constantemente em cada criança antes de que essa se diferencie como um indivíduo. É por isso que, para Adorno, em suas atividades, as crianças ainda são facultadas a denunciar o caráter não idêntico a si mesmo do ser humano e, consequentemente, a “automatização dos processos espirituais” e sua transformação em “processos cegos”:

Não há como sustentar a identidade entre autenticidade e verdade. Justamente a firme consciência de si – aquele modo de conduta que Nietzsche denominava psicologia –, aquela insistência, portanto, na verdade sobre si mesmo, revela sempre de novo, já nas primeiras experiências conscientes da infância, que os sentimentos sobre os quais refletimos não são inteiramente “autênticos” [ênfase no original]. Sempre há neles algo de imitação, jogo, querer ser diferente. A vontade de bater na rigidez incondicional, no ser do vivente mediante a imersão na individualidade própria ao invés de mediante seu conhecimento social conduz precisamente àquela má infinitude, que desde Kierkegaard o conceito de autenticidade deve exorcizar.

(Adorno, 2008Adorno, T. (2008). Minima moralia (G. Cohn, Trad.). Rio de Janeiro: Azougue., pp. 149-150, tradução modificada)

Para Adorno (2008)Adorno, T. (2008). Minima moralia (G. Cohn, Trad.). Rio de Janeiro: Azougue., é crucial enfatizar o caráter mimético do comportamento dos indivíduos modernos, também porque o discurso acerca do sujeito único ajuda a sustentar a ideologia por detrás da sociedade capitalista: “A descoberta da autenticidade como o último baluarte da ética individualista é um reflexo da produção industrial em massa” (p. 152). Bens padronizados são apresentados como únicos, genuínos, autênticos e retroalimentam o círculo vicioso que vai da sociedade de massas até a dissimulada afirmação da individualidade.

Diante disso, um motivo frequente em Adorno é precisamente o dos jogos infantis como um espaço para adoção de diferentes papéis: ora as crianças são motoristas, ora incorporam distintos animais, ora um objeto ou outro – durante essas brincadeiras, elas sempre adotam a identidade correspondente por completo; no entanto, vale acrescentar como o faz o autor, podem ser trazidas de volta à realidade a qualquer momento. Para Adorno, esse conhecimento básico demonstra que os seres humanos, longe de serem idênticos a si mesmos, são portadores de uma diversidade interna irredutível. Porém, a sociedade institui padrões normativos de identidade individual que corrompem a potencialidade de tal multiplicidade – algo que não se processa sem grandes sofrimentos psíquicos. Nisso, a educação possui um significado crucial para a perpetuação desses processos, pois a pedagogia existente “desacostuma as crianças de serem infantis” (Adorno, 2008Adorno, T. (2008). Minima moralia (G. Cohn, Trad.). Rio de Janeiro: Azougue., p. 169), também na medida em que institui papéis sociais padronizados que devem ser seguidos desde a mais tenra idade – qualquer experimentação é podada e cada vez de modo mais enfático. Se quisermos formular de maneira um tanto esquemática, percebemos aqui que aquele elemento do processo civilizador mais amplo, que atua no sentido de dominar a natureza, opera, além disso, a serviço da forma como se molda o entroncamento social contemporâneo: a assimilação do indivíduo ao social e a manutenção dissimulada do discurso da individualidade convergem para sustentar as relações sociais capitalistas.

Nesse passo, podemos recobrar uma definição distinta de educação, associada a um ideal emancipatório, sugerida por Adorno em outro lugar. Basicamente, ela seria idêntica a uma educação para a experiência:

Mas aquilo que abre propriamente a consciência é o pensar em relação à realidade, ao conteúdo – a relação entre as formas e estruturas de pensamento do sujeito e aquilo que este não é. Este sentido mais profundo de consciência ou de capacidade de pensar não é apenas o desenvolvimento lógico formal, mas ele corresponde literalmente à capacidade de fazer experiências. Eu diria que pensar é o mesmo que fazer experiências intelectuais. Nesta medida e nos termos que procuramos expor, a educação para a experiência é idêntica à educação para a emancipação.

(Adorno, 2006Adorno, T. (2006). Educação e emancipação (W. L. Maar, Trad.). São Paulo: Paz e Terra., p. 151, tradução modificada)

Simplificando um pouco o argumento, podemos deduzir que uma educação emancipadora deveria comportar elementos como aqueles dos jogos infantis, nos quais as crianças se abrem para as experiências de maneira plena. Esse tipo de educação estaria em contradição radical com a educação dominante, que institui sempre de antemão os “jogos” válidos por meio de padrões normativos de comportamento social. Tudo isso leva as crianças a um “empobrecimento de repertórios”, à afirmação de um determinado tipo de individualização que se constrói com base na eliminação da infinidade de outros tipos possíveis e à assimilação acrítica ao social existente.

Ao retomar um elemento bastante cotidiano (o que, aliás, faz parte do projeto geral realizado em Minima moralia, um dos trabalhos do autor que mais oferece imagens da infância), Adorno lembra em dado momento que mesmo as canções de ninar (Adorno, 2008Adorno, T. (2008). Minima moralia (G. Cohn, Trad.). Rio de Janeiro: Azougue., p. 196) comportam aspectos daquela educação danosa e dominante das nossas sociedades, que opera contra a experiência e a favor da padronização de identidades: os “estranhos” – mendigos, “bichos papões”, etc. – são sempre expulsos para que o sonho da criança seja tranquilo. É como se houvesse uma tentativa (sempre frustrada) de expulsar (violentamente) da civilização todo traço de natureza presente naqueles que não se deixam disciplinar por completo. A educação contemporânea, com suas formas de classificação, de normatização e disciplinamento, é, em grande parte, realizada dessa maneira e, nesse sentido, ela trabalha contra a experiência – e contra a emancipação.

A mesma ideia é retomada no famoso ensaio “Educação após Auschwitz” (Adorno, 2006Adorno, T. (2006). Educação e emancipação (W. L. Maar, Trad.). São Paulo: Paz e Terra.), no qual Adorno argumenta que os mecanismos psíquicos e sociais que tornaram possível Auschwitz seguem presentes nas sociedades contemporâneas, produzindo pessoas “ativas”, que apenas agem ou trabalham, sem refletir sobre suas ações para além do “decurso lógico formal” da capacidade de pensar.

Para confrontar esse quadro histórico-social, outra função da educação que é constante em Adorno (2006)Adorno, T. (2006). Educação e emancipação (W. L. Maar, Trad.). São Paulo: Paz e Terra. e que está estreitamente relacionada à ampliação da experiência é a da “desbarbarização”: “a desbarbarização da humanidade é o pressuposto imediato da sobrevivência. Este deve ser o objetivo da escola, por mais restritos que sejam seu alcance e suas possibilidades” (p. 117). Contudo, não é o mero esclarecimento que promove essa “desbarbarização”: as “situações inconscientes” que, conforme rapidamente exposto, derivam do fato de que “a barbárie encontra-se no próprio princípio civilizatório”, não se deixam dissolver por meio do conhecimento. É nesse sentido que, para Adorno, a educação das crianças deveria ser complementada por meio da conscientização acerca de reações afetivas, que escapam ao conhecimento racionalizado. Vale lembrar, além disso, que o autoritarismo inerente a todo processo educativo também contradiz esse processo de educação contra a barbárie. A figura do professor, por exemplo, encarna esse autoritarismo de maneira inexorável, de modo que não consegue fugir ao seu papel instrumental de repressor da natureza dos alunos:

O processo civilizatório de que os professores são agentes orienta-se para um nivelamento. Ele pretende eliminar nos alunos aquela natureza disforme que retorna como natureza oprimida nas idiossincrasias, nos maneirismos da linguagem, nos sintomas de estarrecimento, nos constrangimentos e nas inabilidades dos mestres. Triunfarão aqueles alunos que percebem no professor aquilo contra o que, de acordo com seu instinto, se dirige todo o sofrido processo educacional. Há nisto evidentemente uma crítica ao processo educacional, que até hoje em geral fracassou em nossa cultura.

(Adorno, 2006Adorno, T. (2006). Educação e emancipação (W. L. Maar, Trad.). São Paulo: Paz e Terra., p. 110)

A única maneira de que os professores se esquivem dessa sua função trágica seria esclarecendo a dimensão paradoxal da educação: sua função de disseminação de conhecimentos está fatalmente associada à função de nivelamento, padronização, controle.

Além disso, para Adorno, uma educação que se quer emancipatória não é sinônimo de disciplina, nem de obediência incondicional. O ideal de virilidade, de “ser duro” é questionado pelo autor. Novamente buscando apoio em um motivo psicanalítico, o pensador afirma: “Quem é severo consigo mesmo adquire o direito de ser severo também com os outros, vingando-se da dor cujas manifestações precisou ocultar e reprimir” (Adorno, 2006Adorno, T. (2006). Educação e emancipação (W. L. Maar, Trad.). São Paulo: Paz e Terra., p. 128). Repetidas vezes, Adorno enuncia a necessidade de tomar consciência desses mecanismos – há aqui um elemento “dialético”, por assim dizer: se o esclarecimento é insuficiente, ele é a única arma da civilização contra aquilo que ela promove contra si mesma. Nesse sentido, se o esclarecimento contém um momento mítico, se a superação de poderes naturais recorre sempre a uma violência racionalizada, é necessário que tenhamos a clareza acerca dessa violência originária do processo civilizacional para que ele não desemboque no seu oposto: em barbárie. No pensamento de Adorno, a infância se oferece como experiência humana que fornece elementos para contrapor esses processos civilizadores que desembocam na dominação social. Contudo, a reconciliação que poderia ser aí entrevista aparece aqui apenas como promessa, aceno ou potencialidade não realizada.

Gostaria de concluir essas breves considerações, retomando a bela imagem contida na citação inicial, que é precisamente a da infância como uma espécie de promessa. A ideia de recuperar a “infância de maneira transformada” como a grande realização da vida humana é o contraponto perfeito à percepção – certamente desesperadora – de que “não há vida certa na falsa”. O que a imagem da infância oferece para Adorno é a possibilidade de uma reconciliação que redima o processo civilizatório, destituindo-o de seu momento mítico. Talvez possamos pensar que suas reflexões acerca do universo infantil operem no sentido de retomar os momentos originários nos quais os indivíduos são configurados para buscar aí ocasiões nas quais ainda são passíveis de ocorrer “ensaios para a vida certa”. Há aqui uma inegável desconfiança na razão (instrumental) imperante no mundo adulto.

Em seu estudo sobre o músico Gustav Mahler também são constantes as referências à infância sob essa perspectiva. Adorno (1986)Adorno, T. (1986). Mahler. Eine musikalische Physiognomik [Mahler. Uma fisionomia musical]. Suhrkamp: Frankfurt a. M. aponta, por exemplo, a experiência “de que, na juventude, infinitas coisas são percebidas como promessa da vida, como felicidade antecipada; disso, a pessoa que envelhece reconhece, por meio da lembrança, que, na verdade, os instantes dessa promessa são a própria vida” (p. 294, tradução nossa). É como se a infância mesma fosse o único momento dessa possibilidade de experimentar a felicidade no nosso mundo – que consiste em um “nexo socialmente culpado”. Contudo, essa experiência configura um aceno à possibilidade de emancipação. Senão isso, pelo menos, como argumenta Wiggershaus, é essa promessa de felicidade dada à criança que fornece a força para “viver na resistência” àqueles que, mesmo irremediavelmente apartados da “vida certa” por conta das condições objetivas vigentes, se recusam conscientemente a colaborar com a reprodução da vida falsa (Wiggershaus, 1988Wiggershaus, R. (1988). Theodor W. Adorno. Munique: C. H. Beck., p. 64, tradução nossa).

São os “impulsos da infância” (Wiggershaus, 1988Wiggershaus, R. (1988). Theodor W. Adorno. Munique: C. H. Beck.), derivados das possibilidades de afirmação do “não idêntico” que tornam esse período da vida tão especial para Adorno. Imagens dispersas nos textos do pensador ressaltam a não identificação das crianças ao mundo das mercadorias e, consequentemente, as possibilidades de experimentar a vida, as coisas e os fenômenos em sua qualidade de uso ou de experiência propriamente, e não de troca. A tarefa de uma educação emancipatória está em resgatar e afirmar essa potencialidade. Mais do que isso: as reflexões de Adorno convidam os adultos a aprenderem com as manifestações das crianças – que fazem do brinquedo a sua resistência (Adorno, 2008Adorno, T. (2008). Minima moralia (G. Cohn, Trad.). Rio de Janeiro: Azougue., p. 225).

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    Apoio: Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo - FAPESP
  • 2
    Um outro traço compartilhado por ambos em suas respectivas reflexões é a marca autobiográfica, que, no caso de Adorno, nem sempre é explicitada, como acontece no mencionado livro de Benjamin. Uma exceção é um texto de Adorno bastante breve acerca da cidade onde passava suas férias de infância – trata-se de um exercício memorialístico que, certamente, deve muito ao Infância berlinense, de Benjamin (Adorno, 2003aAdorno, T. (2003a). Amorbach. In Kulturkritik und Gesellschaft II (pp. 302-308). Suhrkamp: Frankfurt a. M.). De qualquer maneira, um aspecto sociológico dessas reflexões que podemos demarcar é que elas tomam como referencial a infância burguesa vivenciada por ambos os autores – o que não deixa de ser uma especificidade, embora não prejudique o argumento teórico mais geral a respeito da infância que apresentarei a seguir.
  • 3
    Menciono aqui a perspectiva de ideólogos da Revolução Francesa (como é sabido, esse fenômeno histórico é o marco de surgimento da ideia moderna de educação) que viam na educação uma grande promessa de organizar racionalmente a sociedade por meio de valores, a serem propagados de maneira universal, que deveriam promover um novo espírito público e fomentar o desenvolvimento humano e social (Boto, 1996Boto, C. (1996). A escola do novo homem: entre o iluminismo e a Revolução Francesa. São Paulo: Unesp.). Que ao lado desses nobres ideais iluministas havia também um projeto capitalista de substituição dos “costumes em comum” pela imposição da disciplina do trabalho industrial está bem demonstrado, por exemplo, em um prefácio de E. P. Thompson (1998)Thompson, E. P. (1998). Introdução: costume e cultura. In Costumes em comum: estudos sobre cultura popular tradicional (pp. 13-24). São Paulo: Companhia das Letras..
  • 4
    Essa afirmação aparece na segunda parte de um documentário sobre Adorno produzido por Meinhard Prill e Kurt Schneider com o título: Theodor W. Adorno – Der Bürger als Revolutionär [O cidadão como revolucionário] (primeira parte) e Theodor W. Adorno – Wer denkt, ist nicht wütend [Quem pensa não se enfurece] (segunda parte).
  • 5
    Em suas considerações a respeito da infância, o pensador francês assevera: “Ponhamos como máxima incontestável que os primeiros movimentos da natureza são sempre retos: não existe perversidade original no coração humano; não se encontra neste nenhum só vício que não se possa dizer como e por onde entrou” (Rousseau, 1995Rousseau, J.-J. (1762/1995). Emílio, ou da educação (S. Milliet, Trad.). Rio de Janeiro: Bertrand Brasil., p. 78).
  • 6
    Essa discussão é extensa em Adorno, entretanto, basicamente, ela sustenta que a formação [Bildung] não é nada mais do que a cultura em sua apropriação subjetiva. No entanto, a própria “cultura” tem um “caráter duplo”, que “remete à sociedade” e suas formas de dominação; nesse sentido, o cultivo do espírito individual não soluciona os problemas objetivados pela estrutura social: “O caráter duplo da cultura, cujo equilíbrio se dá apenas momentaneamente, tem origem no antagonismo social irreconciliável que a cultura deseja sanar e, como mera cultura, não pode” (Adorno, 2003cAdorno, T. (2003c). Theorie der Halbbildung [Teoria da pseudoformação]. In Soziologische Schriften I (pp. 93-121). Suhrkamp: Frankfurt a. M., p. 96).
  • 7
    Um exemplo clássico desse tipo de mimetismo é aquele aventado por Roger Caillois (a quem Adorno e Horkheimer recorrem em suas exposições a respeito da mimese em Dialética do esclarecimento): o de borboletas que alteram a sua cor para igualá-la à cor da árvore onde pousam e, dessa forma, protegerem-se melhor do perigo dos predadores. (Caillois, 1972Caillois, R. (1972). O mito e o homem (J. C. dos Santos, Trad.). Lisboa: Edições 70., p. 63)
  • 8
    Para uma discussão mais detalhada a respeito do problema da mímesis, ver: Gagnebin (2005, pp. 79-104)Gagnebin, J. M. (2005). Do conceito de mímesis no pensamento de Adorno e Benjamin. In Sete aulas sobre linguagem, memória e história (pp. 79-104). Rio de Janeiro: Imago..

Referências

  • Adorno, T. (1986). Mahler. Eine musikalische Physiognomik [Mahler. Uma fisionomia musical]. Suhrkamp: Frankfurt a. M.
  • Adorno, T. (2003a). Amorbach. In Kulturkritik und Gesellschaft II (pp. 302-308). Suhrkamp: Frankfurt a. M.
  • Adorno, T.(2003b). Auf die Frage: Warum sind Sie zurückgekehrt [Sobre a pergunta: por que o senhor voltou]. In Vermischte Schriften (pp. 394-395). Suhrkamp: Frankfurt a. M.
  • Adorno, T. (2003c). Theorie der Halbbildung [Teoria da pseudoformação]. In Soziologische Schriften I (pp. 93-121). Suhrkamp: Frankfurt a. M.
  • Adorno, T. (2006). Educação e emancipação (W. L. Maar, Trad.). São Paulo: Paz e Terra.
  • Adorno, T. (2008). Minima moralia (G. Cohn, Trad.). Rio de Janeiro: Azougue.
  • Adorno, T., & Horkheimer, M. (1985). Dialética do esclarecimento (G. de Almeida, Trad.). Rio de Janeiro: Jorge Zahar.
  • Ariès, P. (1981). História social da criança e da família (D. Flaskman, Trad.). Rio de Janeiro: Editora LTC.
  • Benjamin, W. (2007). Reflexões sobre a criança, o brinquedo e a educação (M. V. Mazzari, Trad.). São Paulo: Duas Cdades, Editora 34.
  • Benjamin, W. (2010). Berliner Kindheit um 1900 [Infância berlinense por volta de 1900]. Frankfurt a. M.: Suhrkamp.
  • Caillois, R. (1972). O mito e o homem (J. C. dos Santos, Trad.). Lisboa: Edições 70.
  • Boto, C. (1996). A escola do novo homem: entre o iluminismo e a Revolução Francesa São Paulo: Unesp.
  • Freud, S.(1929/2010). O mal-estar na cultura (R. Zwick, Trad.). São Paulo: L&PM.
  • Gagnebin, J. M. (2005). Do conceito de mímesis no pensamento de Adorno e Benjamin. In Sete aulas sobre linguagem, memória e história (pp. 79-104). Rio de Janeiro: Imago.
  • Rousseau, J.-J. (1762/1995). Emílio, ou da educação (S. Milliet, Trad.). Rio de Janeiro: Bertrand Brasil.
  • Thompson, E. P. (1998). Introdução: costume e cultura. In Costumes em comum: estudos sobre cultura popular tradicional (pp. 13-24). São Paulo: Companhia das Letras.
  • Wiggershaus, R. (1988). Theodor W. Adorno Munique: C. H. Beck.

Filmografia

  • FilmografiaPrill, M., & Schneider, K. (Diretores). (2003). Theodor W. Adorno – Der Bürger als Revolutionär [parte 1].
  • Prill, M., & Schneider, K. (Diretores). (2003). Theodor W. Adorno – Wer denkt, ist nicht wütend [parte 2].

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Sep-Dec 2018

Histórico

  • Recebido
    20 Abr 2017
  • Aceito
    18 Set 2017
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