Acessibilidade / Reportar erro

Física em verso e prosa: a voz dos alunos sobre a Física escolar através de redações

Physics in verse and prose: the voice of students on school Physics through essays

Resumo

Este trabalho tem por objetivo analisar as diferentes percepções expressas em redações por alunos do terceiro ano do Ensino Médio sobre a Física escolar. Trabalhou-se com o contraste entre dois tipos de produção escrita. Numa delas os alunos escreveram sobre o tema Leis de Newton fora do contexto abordado pela Física escolar; já na outra o tema foi a própria relação dos alunos com a disciplina ao longo dos três anos do Ensino Médio. Entendendo que os textos analisados estão imersos em um contexto específico, utilizou-se o referencial sociocultural e a teoria da enunciação bakhtiniana para orientar as análises. Os resultados indicam o posicionamento fortemente negativo dos estudantes com relação à Física escolar, além da imagem de ciência ingênua e idealizada por eles sustentada. O estudo aponta, no entanto, para o uso de estratégias discursivas em aulas de Física como um exemplo promissor para a reversão desse quadro. Conclui-se com uma reflexão sobre os objetivos estabelecidos para a alfabetização científica.

Palavras-chave
linguagem; ensino de Física; referencial sócio-histórico-cultural

Abstract

This study aims to analyze the different perceptions of school Physics expressed in essays written by high school seniors. The data includes two types of written production. In the first type, students wrote about Newton's Laws outside of the context of the school's syllabus. In the second, the theme was the relationship between the students and Physics as a school subject. Understanding that the essays in question were written under a specific context, socio-cultural referential and the bakhtinian theory of language were used to direct the analysis. The results indicate the overly negative position of the students in relation to school Physics, as well as their perception of this science as naïve and idealized. However, the study suggests the use of discursive strategies as a promising example of the inversion of student's negative positioning toward Physics. As a conclusion, the study offers a reflection on the objectives presented to scientific literacy.

Keywords
language; teaching of Physics; socio-cultural background

Introdução

Um número crescente de pesquisadores em Ensino de Ciências, vislumbrando como Mortimer (2006)Mortimer, E. F. (2006). Linguagem e formação de conceitos no ensino de ciências (383 pp.). Belo Horizonte: Editora UFMG. a impossibilidade de se ignorarem os aspectos sociais na análise do desenvolvimento de ideias em sala de aula, tem-se voltado para a abordagem sócio-histórico-cultural. Com a mesma ênfase, Goulart (2007)Goulart, C. (2007). Enunciar é argumentar: analisando um episódio de uma aula de história com base em Bakhtin. Pro-Posições, 18(3)(54), 93-107. e Veneau, Ferraz e Rezende (2015)Veneau, A., Ferraz, G., & Rezende, F. (2015). Análise de discurso no ensino de ciências: considerações teóricas, implicações epistemológicas e metodológicas. Revista Ensaio. 17(1), 126-149. Recuperado em 02 de abril de 2016, de http://www.portal.fae.ufmg.br/seer/index.php/ensaio/article/view/1707/1538
http://www.portal.fae.ufmg.br/seer/index...
ressaltam a relevância de estudos voltados para a caracterização das condições de produção de discurso e conhecimento em espaços escolares, dada a dificuldade histórica dos alunos em se expressarem nas áreas do conhecimento cuja linguagem se distancia daquela utilizada no cotidiano.

A especificidade do discurso típico da Física escolar, fortemente imbricado com a linguagem matemática (Almeida, Souza, & Silva, 2006Almeida, M. J. P. M., Souza, S. C., & Silva, H. C. (2006). Perguntas, respostas e comentários dos estudantes como estratégias na produção de sentidos em salas de aula. In R. Nardi, & M. J. P.M. Almeida (Orgs.), Analogias, leituras e modelos no ensino de ciências (pp. 61-75). São Paulo: Escrituras.; Karam & Pietrocola, 2009Karam, R., & Pietrocola, M. (2009). Resolução de problemas e o papel da matemática como estruturante do pensamento físico. In Atas do XVIII Simpósio Nacional de Ensino de Física. Recuperado em 21 de outubro de 2014, de http://www.sbf1.sbfisica.org.br/eventos/snef/xviii/sys/resumos/T0185-1.pdf.
http://www.sbf1.sbfisica.org.br/eventos/...
; Krapas, 2009Krapas, S. (2009). O tratado sobre a luz de Huygens e sua transposição didática no ensino introdutório de óptica. Revista de Enseñanza de la Física. 21(2), 49-60.), tem sido alvo de estudos que buscam caracterizá-la. Tais estudos também observam entraves e apontam recursos no sentido de proporcionar melhores resultados no processo de significação em sala de aula (Barbosa-Lima & Queiroz, 2007Barbosa-Lima, M. C., & Queiroz, G. (2007). Preposições nas aulas de Física: como podem interferir? Revista Electrónica de Enseñanza de las Ciencias, 6(1). Recuperado em 21 de outubro de 2014, de http://reec.uvigo.es/volumenes/volumen6/ART8_Vol6_N1.pdf.
http://reec.uvigo.es/volumenes/volumen6/...
; Guerra, Reis, & Braga, 2013Guerra, A., Reis, J. C., & Braga, M. (2013). Abordagem cultural da física: discussão do uso de linguagens diferenciadas no ensino de ciências. In Atas IX Congresso Internacional sobre Investigación em Didáctica de las Ciencias. Recuperado em 02 de abril de 2016, de https://www.researchgate.net/profile/Marco_Braga2/publication/256548528_abordagem_cultural_da_fsica_discusso_sobre_o_uso_de_linguagens_diferenciadas_no_ensino_de_cincias/links/02e7e5236560b9e1a7000000.pdf
https://www.researchgate.net/profile/Mar...
; Mortimer, Chagas, & Alvarenga, 1998Mortimer, E. F., Chagas, A. N., & Alvarenga, V. T. (1998). Linguagem cientifica versus linguagem comum nas respostas escritas de vestibulandos. Investigações em Ensino de Ciências, 3(1), 7-19. Recuperado em 21 de outubro de 2014, de http://www.if.ufrgs.br/ienci/artigos/Artigo_ID36/v3_n1_a1998.pdf.
http://www.if.ufrgs.br/ienci/artigos/Art...
; Reis & Galvão, 2006Reis, P., & Galvão, C. (2006). O diagnóstico de concepções sobre os cientistas a través da análise e discussão de histórias de ficção científica redigidas pelos alunos. Revista Electrónica de Enseñanza de las Ciencias, 5(2), 213-234. Recuperado em 21 de outubro de 2014, de http://reec.uvigo.es/volumenes/volumen5/ART1_Vol5_N2.pdf
http://reec.uvigo.es/volumenes/volumen5/...
). O trabalho com a diversificação de recursos textuais indicado por alguns pesquisadores (Almeida et al., 2006Almeida, M. J. P. M., Souza, S. C., & Silva, H. C. (2006). Perguntas, respostas e comentários dos estudantes como estratégias na produção de sentidos em salas de aula. In R. Nardi, & M. J. P.M. Almeida (Orgs.), Analogias, leituras e modelos no ensino de ciências (pp. 61-75). São Paulo: Escrituras.; Salomão, 2005Salomão, S. R. (2005). Lições de Botânica: um ensaio para as aulas de biologia (259 pp.). Tese de Doutorado em Educação. Universidade Federal Fluminense, Niterói.; Souza, Silva, Santos, K. N., & Santos, B. F., 2013Souza, M. S. G., Silva, E. S., Santos, K. N., & Santos, B. F. (2013) A pesquisa sobre linguagem e ensino de ciências no Brasil em teses e dissertações (2000 – 2011). In Atas IX Encontro Nacional de Pesquisa em Educação em Ciências. Recuperado em 02 de abril de 2016, de <http://www.nutes.ufrj.br/abrapec/ixenpec/atas/resumos/R1326-1.pdf>
http://www.nutes.ufrj.br/abrapec/ixenpec...
) como uma estratégia eficaz para melhor apropriação de conceitos pelos estudantes e para a promoção de maior fluência na disciplina.

Neste trabalho, analisamos a produção textual elaborada por alunos do Ensino Médio em duas situações distintas: a primeira delas aborda redações cujo tema, proposto pelas professoras de Física e Português da turma, é a recontextualização das leis de Newton; a outra se constitui numa dissertação sobre a vivência dos alunos na disciplina de Física ao longo do Ensino Médio.

Nossas análises buscam revelar a construção de sentidos, a apropriação do repertório típico da Física escolar, além do posicionamento individual dos estudantes diante desta ciência, no que diz respeito à vivência nos três anos do Ensino Médio.

A sala de aula vista através de lentes bakhtinianas

Entendendo a produção de discursos como um processo histórico e culturalmente determinado, precisamos amparar nossa observação em um referencial que considere o estudante imerso em seu contexto social. Seguindo essa direção, as bases da filosofia da linguagem bakhtiniana se mostraram pertinentes em nossas análises, já que, como indica Brait (2006)Brait, B. (2006). Análise e teoria do discurso. In B. Brait, Bakhtin outros conceitos chaves. São Paulo: Contexto., Bakhtin propõe a análise da linguagem em processo de produção, sem afastar o ser humano de seu contexto constitutivo.

O estudo da interação discursiva na perspectiva bakhtiniana requer um aprofundamento na compreensão das características da linguagem. Entendendo-a como algo vivo, dinâmico, constituído por sujeitos situados no meio em que estão imersos, Bakhtin extrapola a visão linguística de regras gramaticais e elementos textuais, como orações e palavras, fundando uma nova visão: a da translinguística – uma área de conhecimento que considera a análise da língua socialmente organizada, em uso.

Nessa perspectiva, os enunciados se constituem em unidades de análise, entendidos como construções de sentidos em relação tanto ao ouvinte ao qual se destinam – direcionalidade – quanto à situação na qual são produzidos. Para Bakhtin (2003)Bakhtin, M. (2003). Estética da criação verbal (4a ed.). São Paulo: Martins Fontes., o ouvinte se constitui como interlocutor, assumindo uma posição responsiva ativa em relação ao locutor, concordando ou discordando, considerando-o em seus próprios contextos. Assim, o ouvinte se torna falante. Sobre a questão da comunicação, Machado (2007)Machado, I. (2007). Gêneros discursivos. In B. Brait (Org.), Bakhtin conceitos-chave. São Paulo: Contexto. declara que é impossível admitir um diagrama espacial da comunicação baseado na noção da mensagem que é transportada de um emissor para um receptor, através de um código comum compartilhado; antes, devemos imaginar um circuito de respondibilidade que marca a alternância de sujeitos durante a interação discursiva, produzindo e trocando significados.

Uma característica relevante da noção de enunciado é a voz, apontada por Clark e Holquist (1984Clark, K., & Holquist, M. (1984). Mikhail Bakhtin. Cambridge: Harvard University Press., citados por Wertsch, 1991)Wertsch, J. V. (1991). Voces de la mente: un enfoque sociocultural para el estudio de la acción mediada. Madrid: Aprendizaje Visor., como a consciência falante: “um enunciado oral ou escrito se expressa sempre desde um ponto de vista (uma voz), que para Bakhtin é mais um processo que uma localização” (p. 71). A voz do falante está sempre permeada de sua intenção, seus acordos sociais, seu posicionamento diante do tema e, além de tudo, de outras vozes, as quais o falante toma emprestadas para defender seu ponto de vista.

Todo o estudo bakhtiniano gira em torno da linguagem constituindo a realidade e do seu papel na vida real, como fica demonstrado na própria adoção do enunciado como a unidade da comunicação discursiva. O autor delega à interação verbal a verdadeira substância da língua (Bakhtin/Voloshinov, 2006Bakhtin, M. (Volochinov, V. N). (2006). Marxismo e filosofia da linguagem (12a ed.). São Paulo: Hucitec.). Assim sendo, é de suma importância analisar a linguagem pelo enfoque de sua relação com a atividade humana e as implicações de uma sobre a outra, caracterizando diferentes gêneros discursivos. Especificamente neste trabalho, analisaremos o contexto das interações discursivas entre os sujeitos de uma determinada sala de aula de Física.

A partir dessa ótica, entendemos que não falamos e escrevemos frases, mas enunciados valorados socialmente, que se arquitetam como gêneros do discurso, nos quais os conhecimentos são apresentados de maneiras características em relação à situação de produção, e de acordo com a intencionalidade do locutor naquela esfera de atividade social.

A questão expressiva não pode ser, segundo a teoria dialógica de Bakhtin, atribuída aos elementos da língua. A entonação expressiva, que assegura sentido ao texto, pertence ao enunciado, e não à palavra, já que, quando selecionamos palavras, temos em mente o conjunto planejado do enunciado, suas intenções. Ou seja, de acordo com Bakhtin (2003, p. 292)Bakhtin, M. (2003). Estética da criação verbal (4a ed.). São Paulo: Martins Fontes., selecionamos a palavra pelo significado que, em si mesmo, não é expressivo, podendo ou não atender aos nossos objetivos expressivos na combinação com outras palavras.

Bakhtin também destaca a existência de determinadas formas de construir sintaticamente os enunciados que ele denomina de “linguagens sociais”, que podem ser pensadas, de acordo com Martins (2008)Martins, I. (2008). Alfabetização científica: metáfora e perspectivas para o ensino de ciências. In Atas do XI Encontro de Pesquisa em Ensino de Física. Recuperado em 21 de outubro de 2014, de http://www.sbf1.sbfisica.org.br/eventos/epef/xi/sys/resumos/T0242-1.pdf.
http://www.sbf1.sbfisica.org.br/eventos/...
, como “o caráter particular do discurso de um dado grupo social, em termos de características profissionais, geracionais, ideológicas ou linguísticas” (p. 3). As linguagens sociais caracterizam grupos sociais de vários modos, por meio de formas de estruturar saberes, em discursos elaborados em esferas e instâncias sociais diversas.

O destaque que Goulart (2003)Goulart, C. (2003). Uma abordagem bakhtiniana da noção de letramento: contribuições para a pesquisa e para a prática pedagógica. In S. Kramer, S. J. Souza, & M. T. Freitas (Eds.), Ciências humanas e pesquisa: leituras de Mikail Bakhtin. São Paulo: Cortez. dá à noção de linguagem social como forma de organização e expressão de conhecimentos, em diferentes áreas, tem interesse para nosso estudo, que visa a analisar enunciados produzidos no âmbito da aprendizagem de Física. Segundo a autora, os significados atribuídos a determinados signos devem ser relacionados a diferentes visões de mundo, as quais são construídas no dia a dia dos grupos sociais ou transmitidas através da formação tradicional das diversas áreas do conhecimento, dentre as quais se destaca a Ciência.

Compreender, considerando nosso interesse, a linguagem da ciência como uma linguagem social significa não circunscrevê-la a termos técnicos e vocabulário específico, mas reconhecê-la como um saber que se organiza historicamente de uma forma típica, significa vê-la como uma reconstrução semiótica da experiência humana, conforme Martins (2008)Martins, I. (2008). Alfabetização científica: metáfora e perspectivas para o ensino de ciências. In Atas do XI Encontro de Pesquisa em Ensino de Física. Recuperado em 21 de outubro de 2014, de http://www.sbf1.sbfisica.org.br/eventos/epef/xi/sys/resumos/T0242-1.pdf.
http://www.sbf1.sbfisica.org.br/eventos/...
.

Uma questão de suma importância se coloca quando pensamos, sobretudo no âmbito da educação: a compreensão dos enunciados nos processos de ensino-aprendizagem. Para Bakhtin, a compreensão é fruto de um embate dialógico de vozes. Durante a interação verbal, o diálogo entre as palavras do enunciado do falante e as palavras próprias do ouvinte – as contrapalavras – propicia o processo de significação do enunciado em questão. Nas palavras de Bakhtin/ Voloshinov (2006), “para cada palavra do enunciado que estamos em processo de compreender, propomos, por assim dizer, um conjunto de palavras nossas como resposta. Quanto maior for seu número e sua importância, mais profunda e substancial deverá ser nossa compreensão” (p.137).

Se o ouvinte não possui palavras, em seu repertório, para que haja compreensão de determinado enunciado, o uso desse enunciado em futuras manifestações verbais se converterá em uma ventrilocução, ou seja, ato de fala sem intencionalidade ou apropriação do sentido do enunciado.

Para Bakhtin (2003)Bakhtin, M. (2003). Estética da criação verbal (4a ed.). São Paulo: Martins Fontes., um enunciado só se torna parte do repertório de um indivíduo quando por ele utilizado em uma situação determinada, com uma intenção discursiva clara. Dessa forma, o enunciado se preenche com a expressão discursiva do falante, com a sua voz. A ventrilocução é entendida como um primeiro estágio no processo de apropriação dos enunciados.

A compreensão de um enunciado é também influenciada pelo caráter internamente persuasivo ou de autoridade a ele agregado, ou seja, o autor nomeia duas classes de discursos. O discurso formado por enunciados com significados estabilizados, consagrados, não modificáveis pelo contato com outras vozes, é nomeado por Bakhtin como discurso autoritário, no sentido de discurso de autoridade: o discurso da ciência, da religião, entre outros.

Em sua explicação acerca do discurso autoritário, Bakhtin enfatiza a inabilidade desse discurso para pôr-se em contato com outras vozes e linguagens sociais. Por essa razão, o discurso autoritário faz surgir uma classe de texto unívoco, proposta pelo modelo de comunicação como transmissão (Wertsch, 1991Wertsch, J. V. (1991). Voces de la mente: un enfoque sociocultural para el estudio de la acción mediada. Madrid: Aprendizaje Visor.). Sobre o discurso autoritário, Bakhtin (2002)Bakhtin, M. (2002). Questões de literatura e de estética: A teoria do romance. (5a ed.). São Paulo: Hucitec. diz ainda: “A palavra autoritária pode organizar em torno de si massas de outras palavras (que a interpretam, que a exaltam, que a aplicam, desta ou de outra maneira), mas ela não se confunde com elas” (p. 142).

Diferentemente do discurso de autoridade, o discurso internamente persuasivo se constitui pela interanimação dialógica e pode revelar novas formas de significar. A palavra internamente persuasiva “desperta palavras novas interiores e não permanece em condição estática e isolada” (Wertsch, 1991Wertsch, J. V. (1991). Voces de la mente: un enfoque sociocultural para el estudio de la acción mediada. Madrid: Aprendizaje Visor., p. 98). Para Bakhtin, a constituição do discurso internamente persuasivo tem importância fundamental para a transformação da vida individual, quando começa a distinguir-se de discursos alheios, concebidos como discurso de autoridade.

Pensando no processo de significação, e mais especificamente no processo de aprendizagem no âmbito da sala de aula, a premissa bakhtiniana de que o pensamento é organizado pela expressão verbal torna-se altamente relevante, pois coloca as atividades de produção de linguagem como centrais para a construção do conhecimento (Salomão, 2005Salomão, S. R. (2005). Lições de Botânica: um ensaio para as aulas de biologia (259 pp.). Tese de Doutorado em Educação. Universidade Federal Fluminense, Niterói.).

O contexto da pesquisa

As redações analisadas neste trabalho foram escritas por alunos de uma escola de classe média da rede privada de Niterói, estado do Rio de Janeiro, constituída como uma cooperativa de pais. Seu projeto político prevê a participação dos estudantes nos planejamentos das disciplinas e até mesmo na proposta de metodologias avaliativas, através de assembleias sistemáticas e da presença de representantes dos alunos nos conselhos de classe.

O ensino de Física, bem como o das demais disciplinas, caracteriza-se pela diversidade de métodos de trabalho e procedimentos metodológicos, tais como atividades práticas, utilização de material de divulgação científica, construção de protótipos, dentre outros.

A proposta das redações foi motivada pelo diálogo entre as professoras de Língua Portuguesa e de Física − esta última, responsável pela condução da pesquisa −, por acreditarem, no primeiro caso, que o contexto científico poderia enriquecer a proposta da produção textual e, no segundo, que a elaboração do texto em língua materna poderia promover maior reflexão sobre os conceitos científicos, fazendo com que os estudantes pudessem construir conhecimentos com maior facilidade.

A atividade foi apresentada de forma oral aos estudantes durante a aula de Física, como uma proposta opcional, que poderia ser realizada como uma modalidade de recuperação para quem o desejasse. Sinteticamente, na apresentação da proposta de atividade, os alunos receberam a indicação de fazer redações sobre as Leis de Newton, em contextos não científicos, construindo metáforas capazes de traduzir as relações físicas que se apresentam no cotidiano. Não foram feitas restrições quanto ao número de linhas ou ao estilo do texto. Além disso, os alunos estavam livres para escrever sobre todas as leis em um mesmo texto, redigir um texto para cada lei de Newton ou escrever somente sobre uma das leis. As redações foram produzidas em casa e tiveram um prazo de uma semana para ser entregues. Por se tratar de estudantes de terceiro ano do Ensino Médio em seu último bimestre, o trabalho desenvolvido em sala estava voltado para o resgate dos principais conteúdos apresentados ao longo do Ensino Médio, e o tema Leis de Newton surgiu como um ponto ainda sensível para muitos estudantes. Por essa razão foi escolhido para a proposta de recuperação diferenciada.

A avaliação da atividade foi realizada de forma paralela nas duas disciplinas. A professora de Física deu maior ênfase à análise da precisão dos conceitos científicos entrevistos nos textos dos estudantes, e do mesmo modo à criatividade da proposta. A professora de Língua Portuguesa, por sua vez, analisou com mais apuro a coerência e a coesão dos textos, aspectos fundamentais à composição de bons textos, além da atenção à norma culta da língua.

A turma que realizou a atividade era composta por 16 alunos do terceiro ano do Ensino Médio, com idades entre 17 e 18 anos. O número restrito de alunos em cada turma é um diferencial nessa escola, em que as turmas são frequentemente pequenas.

Apenas nove estudantes optaram por participar das duas propostas de redações já mencionadas e detalhadas a seguir, os demais preferiram ser avaliados apenas pelos instrumentos formais, também disponíveis para a recuperação: teste, prova, lista de exercícios. Para preservar a identidade dos estudantes, utilizamos uma marcação baseada nas iniciais de seus nomes para identificar as produções escritas e, no processo de sua categorização, incluímos uma numeração, em seguida às iniciais do aluno, de acordo com a ordem em que aparecem neste texto. Assim, JP1 indica o primeiro trecho selecionado no texto do aluno JP.

Para fins de organização, nomeamos o conjunto de textos produzidos com o tema Leis de Newton de redações temáticas, por terem sido escritos sobre um tema de física específico: as Leis de Newton; já o conjunto de textos sobre a vivência dos estudantes com a Física escolar no Ensino Médio foi nomeado de redações autobiográficas, por reunir produções cujo tema principal era a história pessoal dos autores com relação à Física escolar ao longo de todo o Ensino Médio.

As redações temáticas foram elaboradas, como já adiantado, no âmbito de uma proposta didática lançada em parceria com a professora de Redação, na expectativa de diversificar o contexto típico das atividades de Física, que normalmente estão relacionadas com atividades ligadas ao raciocínio lógico-matemático. Trazida ao cenário da tarefa, a linguagem dissertativa – mais familiar aos alunos – facilitaria sua fluência. Os estudantes deveriam produzir textos que apresentassem as leis de Newton em situações não relacionadas ao ambiente da Física escolar. Citações das leis não eram desejáveis, muito pelo contrário, o objetivo era que, na construção textual, o enunciado das leis pudesse ficar mais claro com as recontextualizações construídas. Não foram feitas restrições quanto ao número de linhas e ao estilo. Além disso, conforme já exposto, os alunos estavam livres para escrever sobre todas as leis em um mesmo texto, fazer um texto para cada delas ou escrever sobre uma lei apenas.

A atividade foi opcional, mas os alunos foram motivados a dela participar por conta do caráter avaliativo que lhe foi atribuído.

As redações temáticas não foram analisadas exclusivamente do ponto de vista da precisão dos conceitos, caracterizada pela materialidade dos textos em si, mas na perspectiva das pistas que elas poderiam trazer acerca do contexto típico da sala de aula de Física e da relação dos alunos com a Física escolar.

Na redação autobiográfica, o aluno foi explicitamente convidado a escrever sobre a sua relação com a disciplina, incluída aí sua opinião sobre sua fluência nas temáticas específicas da disciplina, e, além disso, foi estimulado a apontar sugestões de aperfeiçoamento para o ensino. A atividade foi apresentada aos estudantes através deste enunciado:

Faça um relato de sua vivência nas aulas de física ao longo do Ensino Médio respondendo as seguintes questões:

De toda a física que vi na escola qual foi o conteúdo que mais me marcou de tal forma que eu possa falar sobre ele lá fora? Como me vejo nas aulas de física? Quais são minhas dúvidas? Eu consigo expressá-las? E se possível dê sugestões para uma possível melhoria no ensino de física.

Sendo assim, os alunos estavam cientes de que participavam de uma pesquisa e sua participação não estava vinculada em nenhum aspecto ao rendimento escolar, já que esses textos não foram avaliados no curso.

Nas duas atividades analisadas, foi franqueado ao aluno um espaço de manifestação da sua voz. Contudo, enquanto, nas redações temáticas, existe um tema predeterminado, nas redações autobiográficas espera-se que o aluno se posicione para discorrer sobre sua relação com a Física. Dessa forma, a análise que realizamos é dialética: observamos, por um lado, a manifestação indireta da voz do aluno e, por outro, a declaração dele sobre sua própria voz. A tensão que buscamos analisar é aquela entre o que o sujeito deixa transparecer sem o saber e aquilo que deseja revelar.

As redações temáticas

À primeira vista, o conjunto de redações temáticas representava uma paisagem complexa e repleta de possibilidades. Seguindo a perspectiva bakhtiniana, estávamos cientes de que uma análise dialógica do discurso implica “não aplicar conceitos a fim de compreender um discurso, mas deixar que os discursos revelem sua forma de produzir sentido, a partir de ponto de vista dialógico num embate” (Brait, 2006Brait, B. (2006). Análise e teoria do discurso. In B. Brait, Bakhtin outros conceitos chaves. São Paulo: Contexto., p. 24).

Inicialmente, buscamos indícios da fluência no discurso da Física escolar, avaliando basicamente a habilidade dos estudantes em versar sobre Física em contextos alternativos. Após a primeira leitura do conjunto de textos, um deles, a saber, a redação da aluna L, em especial,

suscitou alguns questionamentos, cujas respostas nos propusemos a encontrar através da análise de todos os textos do corpus de análise.

Após essa análise prévia, iniciamos sucessivas leituras dos demais textos, buscando fatores relevantes para a compreensão da relação dos alunos com a Física escolar. Percebemos, ao fim desse processo de idas e vindas, que poderíamos buscar respostas para algumas perguntas que nesse momento nos pareceram particularmente instigantes, as quais listamos aqui:

  1. De que forma os alunos se expressam no contexto da Física escolar? Eles conseguem propor enunciados alternativos àqueles típicos do gênero discursivo da Física escolar?

  2. Os alunos conseguem recontextualizar o tema em questão para outras situações que não as típicas da Física escolar?

  3. Que imagens de ciência são reveladas pelo discurso do aluno?

  4. Que características, afetivas e cognitivas, com relação à Física escolar, são reveladas pelo discurso do aluno?

  5. O discurso dos alunos nos revela o uso de algum recurso de autoridade no seu contato com a Física escolar?

Esses questionamentos foram motivadores do processo de categorização das análises.

O entendimento dos textos como enunciações dos alunos exige que tenhamos em conta a influência do cenário no qual foram produzidos. Sendo assim, é de se esperar que neles possamos encontrar não só respostas às exigências didáticas explicitamente colocadas, ou seja, as recontextualizações propostas pela atividade, mas também aspectos outros que permeiam os enunciados de seus autores. Dentre esses aspectos, destacamos: imagem de ciência, posicionamento e recursos de autoridade, que, juntos, constituem as categorias de análise dos dados na primeira parte da pesquisa.

Tomada de empréstimo de Abrantes (1998)Abrantes, P. (1998). Imagens de natureza e imagens de ciência. São Paulo: Papirus., a categoria imagem de ciência diz respeito às características atribuídas à ciência, tais como valores, modos de pensar e agir, objetivos e pontos de vista típicos.

Sobre essa categoria, chamou-nos a atenção que entre os estudantes predomine a reverência à Física, muitas vezes caracterizada por termos tais como gênio e inteligente para qualificar os cientistas.

Nos textos de Pd, por exemplo, verificamos a dinâmica do diálogo no qual um iniciado, hierarquicamente superior, dá “lições” sobre as leis de Newton a um iniciante:

  • Pd: - Quê?!?! Deixa o quê?!?!?! Pô mãe, tô dormindo e você fica falando esses “troços” difíceis aê.

  • - Inércia?! Desde quando inércia é algo difícil? Já ouviu falar de Newton?

  • - O cantor?

  • - Não!!!!! Não é Milton, é Newton, o gênio da Física!

Nota-se aqui a entoação expressiva do aluno marcada por “ ‘troços’ difíceis aê”, na voz do iniciante, e ainda por “gênio da física”, na voz do iniciado.

O trecho destacado marca também a polifonia constitutiva do discurso do aluno, já que, se por um lado ele, no papel do iniciante, se coloca como leigo no assunto, valorando a dificuldade do tema, é também sua própria voz, emprestada ao iniciado, que eleva Newton ao posto de gênio da Física. É também significativo que o sábio seja representado pela figura materna.

Nos trechos a seguir, é interessante apontar as interrogações e as exclamações, ressaltando o reconhecimento da dificuldade do tema e a valorização da figura de Newton:

  • Pd: - O quê? Ação e Reação?

  • - É, Ação e Reação! A terceira lei de Newton, meu ídolo!

  • Pd: - Meu Deus, Heloize, como você sabe tudo isso?

  • - Sabendo ué! Eu ainda serei professora de Física!

Na seguinte citação, a ciência é tida como uma atividade criativa, racional, porém inacessível e mitificada:

L1: Há muito tempo atrás, as pessoas não tinham muitas coisas pra fazer, por isso passavam horas pensando, criando e descobrindo. Acredito que esse era o momento dos “porquês”, aquelas perguntinhas do tipo: “por que eu existo?”, ou quem sabe “por que a vaca é vaca, e não um cavalo?”. Então, existiam vários “maluquinhos” desse tipo, que brincavam de pensar e Newton foi um deles, que provavelmente não tinha nada para fazer e criou três leis

L7: Antes de qualquer coisa, quero deixar claro que não estou falando mal de Newton e, ao chamá-lo de “maluquinho” nessa redação, estou apenas ironizando, pois é assim que muitas pessoas se referem aos grandes gênios que existiram no passado. Também estou querendo mostrar que, ao contrário do que vemos hoje, Newton foi um cara inteligente que ao invés de se preocupar com coisas fúteis, se preocupou em entender como certas coisas funcionavam [ênfase no original].

A comparação destes dois trechos revela mais uma vez o caráter polifônico constitutivo do discurso. Se, por um lado, é na voz da aluna que vemos Newton como um maluquinho, é também na sua voz, talvez voltada para uma resposta diplomática ao interlocutor de seu texto, sua professora, que se coloca consciente da inteligência de Newton, ressaltando não querer falar mal dele.

Essa imagem de ciência apresenta, em contrapartida, um posicionamento em geral negativo por parte dos alunos, posicionamento definido como valorações atribuídas à Física escolar, relacionado ao aspecto afetivo:

  • L: R = ma. Legal! O que isso quer dizer? “Freud explica! ”

Ao chamar Freud para lhe explicar o conteúdo, P evidencia a grande tensão suscitada pela segunda lei de Newton. É significativo que a autora tenha evocado uma figura da psicanálise em um trecho tão carregado de conflitos cognitivos. Ela enfatiza a desistência da compreensão: não é no ambiente escolar que ela busca o entendimento, mas em Freud. O aluno V também é bem claro logo no título de sua redação:

  • V: Newton me dá seis na média.

  • Mais adiante seu posicionamento é ainda mais assertivo:

  • V: Portanto, a 1ª, 2ª, e 3ª lei de Newton falam de situações que acontecem no dia-a-dia, e não me servem para nada.

Nos excertos já apresentados, é possível identificar indícios de recurso de autoridade agregado ao discurso da Física escolar, tais como a busca pelo discurso “oficial”, que legitima enunciados, e a visão de ciência portadora de certezas e verdades. Algumas redações trazem referências explícitas ao caráter de autoridade conferido à linguagem matemática, ainda marcada por hermetismo para este aluno:

L: Já a 2ª lei eu não entendi muito bem, só sei mesmo que “a aceleração (a) adquirida por um corpo é diretamente proporcional à resultante (R) das forças que atuam sobre ele e inversamente proporcional a sua massa inercial (m)”, que é o mesmo que R=ma. Legal! O que isso quer dizer?

As redações temáticas revelam uma Física escolar inacessível, autoritária, sem nenhuma utilidade. Falta motivação para aprendê-la. Como se a linguagem matemática retirasse a voz do aluno. Porém, existem recontextualizações criativas, e podemos dizer que há fluência em processo.

Com recontextualização queremos especificar a capacidade de contextualizar temas típicos da linguagem social da Física escolar em outros domínios. Identificamos dois tipos de recontextualizações: de nível zero e de nível 1. A primeira diz respeito a casos típicos de Física escolar – nessas recontextualizações, em geral, observam-se exemplos de pessoas que atuam sobre objetos ou outras pessoas. Já na de nível 1, pessoas atuam sobre outras pessoas, mas do ponto de vista psicológico ou social, como pode ser encontrado a seguir:

L: Ou seja, trazendo isso [a lei da inércia] para o nosso dia-a-dia, quer dizer que quando passamos o dia no sofá, assistindo televisão, estamos em repouso, até que nossos queridíssimos pais nos “mandem estudar” e nos obriguem a mudar de estado, e no caso, eles são as chamadas “forças desequilibradas”.

Um tipo exemplar de recontextualização de nível 1 envolvendo questões sociais é:

D: O ano é 1905, o local: Rússia. Uma partícula A (vamos chamá-la de Tzar Nicolau II) segue sua vida em movimento uniforme, dia nababesco após dia nababesco, feliz da vida ganhando um burro dum dinheiro para não fazer nada, o que nos leva a partícula B (a qual chamaremos de Povo). O povo também seguia em movimento uniforme, mas em condições ligeiramente diferentes, enquanto o Tzar ganhava muito e trabalhava pouco, o povo trabalhava muito e não ganhava nada. E assim se deu até que por um “repentino desejo” de nossa majestade Nicolau II de ganhar mais e continuar sem trabalhar, o povo foi obrigado a comprar uma guerra com os japoneses e, pra melhorar sua situação, foi massacrado cruelmente. Para muitos isso seria o suficiente para pegar a aceleração nula do povo e aumentá-la absurdamente, mas “a inércia às vezes resiste a grandes forças”, de forma que a única coisa feita pelos prejudicados foi aparecer a porta do Tzar pedindo ajuda.

No primeiro exemplo, a “força desequilibrada” da segunda lei de Newton não é uma força física: o motor da ação do filho é a voz dos pais que o mandam estudar. No segundo caso, trata-se do “repentino desejo” do Tzar.

Outro aspecto que esteve no foco das análises foi a fluência, entendida como a manifestação da voz do aluno em enunciados típicos da Física escolar. Distinguimos dois níveis de fluência: limitada e em processo. No primeiro caso, o aluno lança mão de enunciados típicos da Física escolar, mas sem preenchê-los com sua voz, nesses casos é frequente o uso de aspas. Quando a fluência se encontra em processo, a vivência dos alunos aparece (em geral relativa ao ambiente doméstico ou que lhes é familiar), revelando sua bagagem cultural. Nas redações analisadas a fluência se manifestou tanto na forma narrativa como nos diálogos, tanto em prosa como em verso, como é o caso de Vin:

meu divino descanso a preguiça que me bate não há peso nem força deixo tudo para mais tarde desgostoso movimento uniforme ou variado quero um pouco mais de tempo ponho tudo de lado estou estático me falta força um suspiro que seja um suspiro que faça em linear avante e aprumar

Fluência não implica, no entanto, correção do ponto de vista da Física escolar. Por exemplo, na terceira lei de Newton, ação e reação não aparecem como simultâneas:

JP: Após o meu soco, Gabriel se recupera de uma forma incrível e em “um instante de segundos”, manda um soco em meu queixo.

Fluência e recontextualização estão imbricadas: a fluência é maior nas recontextualizações de nível 1. Porém, em tais recontextualizações a correção não é fácil (às vezes é impossível). No caso da revolução russa, o aumento da aceleração seria possível, se o desejo repentino do Tzar aumentasse continuamente. Aqui parece que a ação do Tzar foi momentânea, e, sendo assim, ela deveria produzir um aumento – que poderia ser absurdo – da velocidade. Outro conceito envolvido é o de inércia (isto é, massa), que mede, sim, a capacidade do corpo de resistir a ser acelerado. Mas isso acontece sempre e não “às vezes”.

Para Bakhtin, a compreensão é fruto de um embate dialógico de vozes. Durante a interação verbal, o diálogo entre as palavras do enunciado do falante e as palavras próprias do ouvinte – as contrapalavras – proporciona o processo de significação do enunciado em questão. Nas palavras de Bakhtin/Voloshinov, para cada palavra do enunciado que estamos em processo de compreender, propomos, por assim dizer, um conjunto de palavras nossas como resposta. Quanto maior for seu número e sua importância, mais profunda e substancial deverá ser nossa compreensão (Bakhtin/Voloshinov, 2006Bakhtin, M. (Volochinov, V. N). (2006). Marxismo e filosofia da linguagem (12a ed.). São Paulo: Hucitec., p. 137).

Nas redações fica clara a presença de elementos específicos da vivência dos alunos ou de situações familiares, o que revela uma aproximação entre a linguagem própria da Física escolar e a linguagem do cotidiano. Ou seja, o protagonismo do aluno nas enunciações se organiza fundamentalmente, evidenciando a sua bagagem social e cultural, em consonância com o que dizem trabalhos atuais sobre ensino de ciências (Scott, Mortimer, & Aguiar, 2006Scott, P. H., Mortimer, E. F., & Aguiar, O. (2006). The tension between authoritative and dialogic discourse: A fundamental characteristic of meaning making interactions in high school science lessons. Science Education. 90(4), 605-631.).

As imagens de ciência encontradas nos servem de alerta: os alunos manifestaram, de forma predominante, imagens que os afastam do estudo de Física, já que essa ciência foi apontada como inacessível, portadora de verdades e certezas, e os cientistas, identificados como gênios.

Dessa forma, é frequente a grande ausência de motivação para o estudo da disciplina, além de referências diretas à sua falta de utilidade:

V0: Newton me dá seis na média.

V9: Portanto a 1ª, 2ª, e 3ª lei de Newton falam de situações que acontecem no dia-a-dia, “e não me servem para nada”.

O quadro fica ainda mais complicado quando olhamos especificamente para a questão da linguagem matemática presente no discurso da Física escolar. Nossas análises indicam que essa linguagem cria obstáculos para suscitar contrapalavras nos alunos, haja vista a sua dificuldade em produzir recontextualizações com enunciados tipicamente matematizados, a exemplo da segunda lei de Newton:

L4: “Já a 2ª lei eu não entendi muito bem”, só sei mesmo que “a aceleração (a) adquirida por um corpo é diretamente proporcional à resultante (R) das forças que atuam sobre ele e inversamente proporcional a sua massa inercial (m)”, “que é o mesmo que R=ma”. “Legal! O que isso quer dizer?” “Freud explica!”

É notável que os alunos lancem mão do enunciado matemático da lei para explicar aquilo sobre o que não conseguem falar. Isso sugere um forte caráter de autoridade agregado à linguagem matemática, tornando o enunciado difícil de perscrutar.

Outro exemplo é apresentado pelos títulos das redações do aluno Pd:

Pd0: 1ª Lei de Newton – Lei da Inércia: O inerte;

Pd6: 3ª Lei de Newton – Ação e Reação: Toma lá da cá;

Pd11: 2ª Lei de Newton

Ficamos surpresos com as referências ao rendimento acadêmico e à aprovação escolar como a grande motivação para a aprendizagem da Física. Esperávamos que, sendo os alunos advindos de uma escola em que sua participação se dá de forma tão ativa nos planejamentos das disciplinas e as avaliações são tão variadas e individualizadas, a visão da aprendizagem e seus objetivos fossem percebidos de maneira mais problematizada do que o simples “passar de ano”.

As redações autobiográficas

Tão logo consolidadas as análises das redações temáticas, passamos às redações autobiográficas, buscando esclarecimentos, confirmações, confrontações ou aprofundamentos. Não descartamos, contudo, atentar para fatores significativos que pudessem nelas se manifestar de forma exclusiva. Nosso primeiro olhar para as redações autobiográficas se encaminhou para os quesitos apontados como diretrizes para a elaboração da própria redação. Assim, buscamos inicialmente por fluência, posicionamento e sugestões.

Com a leitura sucessiva de todas as redações, alguns pontos se mostraram recorrentes, como as inúmeras referências ao rendimento escolar e ao aprendizado ou as referências à Matemática. Como desdobramento das leituras do conjunto de redações autobiográficas e do diálogo dessas leituras com as análises das redações temáticas, chegamos às categorias definidas a seguir:

  1. Aprendizado: autoavaliação sobre o aprendizado de conteúdos da Física escolar.

  2. Rendimento escolar: referências à avaliação institucional na disciplina de Física.

  3. Fluência declarada: declaração sobre a fluência em temas da Física escolar.

  4. Posicionamento: referências valorativas à Física escolar.

  5. Sugestões: sugestões para a melhoria do ensino de Física.

  6. Matematização: referências à Matemática na Física escolar.

As análises das redações autobiográficas não foram realizadas como algo isolado; buscamos neste conjunto de dados, o tempo todo, um diálogo e um confronto de vozes.

Nosso interesse residiu, particularmente, em analisar onde estão as grandes questões para os alunos − de forma mais específica, o que é mais recorrente, mais valorado em seus textos, confrontando sempre com o que jaz na superfície das redações temáticas.

Análise das redações autobiográficas

A questão do aprendizado, apontada recorrentemente pelos alunos, foi a maior surpresa no conjunto das redações autobiográficas. Ao contrário do que vemos no consenso popular, não foram as baixas notas na disciplina que mais marcaram os alunos em sua descrição da Física escolar, e sim a precariedade do seu aprendizado, como vemos claramente no trecho seguinte:

Vin1: Esses três anos e meio de aula de Física foram um tempo de muito trabalho e pouco aproveitamento. Numa moldura clara e simples o conteúdo absorvido por mim é quase nulo.

A visão deste aluno parece inclusive bastante isenta:

Vin 5: O meu rendimento em Física sempre foi satisfatório, afinal jamais ‘fiquei de recuperação’ apesar de ainda estar correndo risco no terceiro ano.

Vin9: Em fim apesar de não ter aprendido o conteúdo de maneira satisfatória eu posso dizer que estudar Física não foi uma experiência traumática. Adeus você.

Não nos parece que a questão levantada sobre seu aprendizado seja motivada por algum bloqueio com relação à disciplina, nem devida ao julgamento institucional insatisfatório de seu rendimento acadêmico.

É interessante observar a clareza dos alunos ao distinguir aprendizado de rendimento escolar, clareza possivelmente decorrente da especificidade do projeto pedagógico da escola na qual a pesquisa se inseriu, marcado pela participação democrática dos estudantes nas principais decisões da comunidade escolar. Contudo, as declarações constantes de um aprendizado insatisfatório não parecem estar acompanhadas de um desejo de ter aprendido melhor o conteúdo de Física. Parece que essas declarações estão atreladas à incompreensão das finalidades de estudar – com sacrifício – um conteúdo que, no fim das contas, não foi assimilado:

Pe5: Para dar mais ou menos uma ideia do meu saldo em Física em todo o Ensino Médio, darei uma nota de 1 a 10. Lá vai 4 ou 5. Ruim, porém acima da média do vestibular.

As observações sobre o aprendizado e o rendimento são corroboradas pela precária manifestação de fluência declarada, ou seja, apesar de terem atingido as metas institucionais, os

alunos deixam o último ano do Ensino Médio alegando não poder falar sobre quase nada de Física, como podemos constatar nos trechos a seguir:

L3: A única coisa que aprendi e não esqueci mais foi que V=ΔS/Δt. Já as outras coisas, não tenho certeza se é aquilo ou não é. Na verdade acho que aprendi a decorar fórmulas do 2º ano para cá.

Vin2: Infelizmente o único tópico que eu me sinto seguro para falar sobre é velocidade média, pois V=ΔS/Δt. Se eu forçar um pouco a memória talvez eu ainda saiba transformar temperaturas de Celsius para Farenheit e vice-versa ou talvez até eu saiba um pouco sobre câmaras escuras e suas tecnologias, mas não é nada que eu possa me orgulhar de dizer que entendo.

A citação encontrada no texto de Pri nos leva a uma relação interessante entre fluência, apreciação e compreensão:

Pri1: De toda a Física que vi no Ensino Médio o que me marcou foi muito pouco, que foi a lei da inércia e ótica que não me lembro muito, mas é a única matéria que gostei.

Pri4: Não consigo expressar as minhas dúvidas, primeiro porque tenho medo de, quando perguntar, as pessoas rirem de mim e segundo porque como não entendo nada nem dúvidas eu tenho.

Mais do que uma declaração de pouca fluência, a fala da aluna expressa o seu não pertencimento ao espaço discursivo da sala de aula de Física. Sua mudez exprime o medo da rejeição dos pares e a ausência de questionamentos, por conta da falta de compreensão.

Temos consciência de que a opinião dos alunos pode ser influenciada por muitas variáveis, e a própria noção de aprendizado está relacionada aos objetivos de ensino. Mas, ainda que a fala deles não possa ser levada em conta como prova cabal de aprendizado insatisfatório, é significativo que o grupo de alunos aqui analisado tenha se manifestado de forma praticamente homogênea sobre o baixo nível de aprendizado, fato que se torna mais notável quando se considera que esta não foi uma questão solicitada.

O posicionamento dos alunos revela-se, mais uma vez, fortemente negativo. Tendo sido esta a categoria com maior número de citações, podemos concluir que, quando lhes é solicitado apresentar um relato sobre sua vivência em Física ao longo do Ensino Médio, o maior registro dos alunos reside na sua valoração negativa dessa experiência. A inacessibilidade da disciplina

volta a aparecer de forma recorrente, bem como outras citações negativas que também surgiram nas redações temáticas, tais como “chata”, “difícil” e “abstrata”.

A motivação para o estudo encontra-se apenas relacionada a metas escolares, como passar de ano ou passar no vestibular. A falta de motivação vinculada às contribuições que o conhecimento físico possa trazer para a vida do aluno nos leva à questão das metas da educação científica. Martins (2008)Martins, I. (2008). Alfabetização científica: metáfora e perspectivas para o ensino de ciências. In Atas do XI Encontro de Pesquisa em Ensino de Física. Recuperado em 21 de outubro de 2014, de http://www.sbf1.sbfisica.org.br/eventos/epef/xi/sys/resumos/T0242-1.pdf.
http://www.sbf1.sbfisica.org.br/eventos/...
, ao refletir sobre as diversas perspectivas da alfabetização científica no cenário contemporâneo, alerta para o fato de que elas são preponderantemente ditadas pelos cânones do conhecimento científico, não estando, na maioria das vezes, atreladas a necessidades da sociedade. No tocante às nossas análises, parece acertado dizer que os benefícios do estudo da Física não ficaram claros para os alunos analisados.

Com respeito à matematização do conteúdo físico, ainda que alvo explícito de críticas, os alunos parecem reconhecer nessa linguagem o modo de falar da Física. Ficamos surpresos com a clareza manifesta por Pe para expressar sua dificuldade para além da memorização das equações matemáticas.

Pe3: O problema da Física é que ela não é simplesmente matemática, e mesmo que fosse causaria algum problema. Há também uma necessidade de compreensão do mundo trabalhado no momento para assim poder realizar os cálculos desejados, diferentemente da matemática, que apenas aplicamos fórmulas.

Este aluno parece ter a noção de que, por trás da sintaxe matemática, existe uma semântica relacionada ao mundo real que se pretende traduzir com a lei física (Ortega & Mattos, 2008Ortega, J. L. N. A., & Mattos, C. R. (2008). A questão da sintaxe e da semântica para a negociação de significados no ensino de Física. In Atas do XI Encontro de Pesquisa em Ensino de Física. Recuperado em 21 de outubro de 2014, de http://www.sbf1.sbfisica.org.br/eventos/epef/xi/sys/resumos/T0143-1.pdf.
http://www.sbf1.sbfisica.org.br/eventos/...
).

A falta de sugestões que indiquem uma possibilidade de melhoria para o ensino de Física revela conformismo por parte dos alunos e mesmo dificuldade, até para pensar em sugestões. Já que não veem finalidade para o estudo da disciplina e não estão de fato motivados para estudá-la, passam a encarar o contato com a Física ao longo do Ensino Médio como um mal necessário. A dificuldade do conteúdo de Física é também vista como um treinamento ou como uma forma de vencer os desafios da vida.

Discussão dos resultados e considerações finais

Resgatando as questões iniciais de nossa pesquisa e considerando as limitações deste trabalho, propomos respostas parciais que elencamos adiante, seguidas de algumas considerações adicionais.

Nossas análises demonstram que os sujeitos da pesquisa reconhecem a linguagem matemática como a forma de expressão prioritária da Física escolar, haja vista o número de menções a essa linguagem nas redações solicitadas; no entanto, também é possível verificar a potência de metodologias discursivas mais frequentes, já que as produções dos estudantes foram tão criativas e ricas em sentidos. Assim, reconhecemos que a estratégia de recontextualização dos enunciados típicos da Física escolar parece promissora para a construção de significados e a efetiva apropriação do repertório dessa disciplina, tendo em vista os múltiplos exemplos obtidos de aprendizagens, que não se manifestariam com os recursos tradicionais de simples resolução de problemas.

As análises indicam que a imagem de ciência manifesta pelos estudantes parece ser predominantemente ingênua. Os textos apontam os conteúdos da ciência como complexos, intrinsecamente difíceis, e a figura do cientista idealizada como alguém genial e inacessível. Portanto, a desmistificação dessa imagem parece ser um passo fundamental para que os estudantes possam se aproximar de forma efetiva dos conteúdos da disciplina.

A reação predominantemente negativa dos estudantes com relação à Física escolar é um fator preocupante trazido à tona nas análises, já que com frequência a disciplina é apontada como difícil, ou até mesmo impossível, além de seus enunciados serem considerados como elementos nos quais os estudantes precisam “acreditar”. Por essa razão, a linguagem matemática frequentemente é apontada como o recurso de autoridade que garante, por um lado, a precisão dos enunciados da Física; e, por outro, sua inacessibilidade aos alunos.

De forma geral, a pesquisa evidencia que o aluno alijado do cenário da sala de aula de Física pela falta de compreensão matemática, mas com competência discursiva e comunicativa escrita, foi ajudado pela atividade de redação. A inclusão dos alunos mais tímidos também é um aspecto de grande destaque, o que possivelmente foi favorecido pelo fato de o texto escrito eliminar a exposição pública.

A inovação trazida pela produção literária no âmbito da sala de aula de Física também privilegia o pluralismo cognitivo ou a heterogeneidade do pensamento verbal1 1 Pluralismo cognitivo ou heterogeneidade do pensamento verbal é o conceito associado à existência de múltiplas formas qualitativamente diferentes de pensamento, indicando a necessidade de abordagens distintas para a construção de sentidos por indivíduos distintos e, portanto, com distintas maneiras de pensar. (Tulviste, 1986 citado por Wertsch, 1991Wertsch, J. V. (1991). Voces de la mente: un enfoque sociocultural para el estudio de la acción mediada. Madrid: Aprendizaje Visor., p. 118), já que proporciona formas alternativas de lidar com o conhecimento físico.

Do ponto de vista da aprendizagem, tratada aqui nos moldes propostos por Colinvaux (2007)Colinvaux, D. (2007). Aprendizagem e construção/constituição de conhecimento: reflexões teórico-metodológicas. Pro-Posições, 18(3), 29-51., como emergência de novidade, o protagonismo delegado aos alunos na criação de textos recontextualizados caracteriza a atividade como estratégia privilegiada para o ensino de Física. Como negar, por exemplo, o valor do texto de D, que põe em diálogo a primeira lei de Newton e a Primeira Guerra Mundial?

Ao escrever textos sobre temas de Física em outros contextos, os alunos são confrontados com seus conflitos cognitivos (Aguiar & Mortimer, 2005Aguiar, O., & Mortimer, E. (2005). Tomada de consciência de conflitos: análise da atividade discursiva em uma aula de ciências. Investigações em Ensino de Ciências. 10(2), 179-297. Recuperado em 21 de outubro de 2014, de http://www.if.ufrgs.br/public/ensino/vol10/n2/v10_n2_a3.htm
http://www.if.ufrgs.br/public/ensino/vol...
) e precisam propor soluções para eles.

Quando analisamos o que os alunos têm a dizer sobre a Física, disciplina que enfrentaram ao longo do Ensino Médio, um alerta se faz soar. De maneira similar a Menegotto e Rocha Filho (2008)Menegotto, J. C., & Rocha Filho, J. B. (2008). Atitudes de estudantes de Ensino Médio em relação à disciplina de Física. Revista Electrónica de Enseñanza de las Ciencias, 7(2), 298-312. Recuperado em 21 de outubro de 2014, de http://reec.uvigo.es/volumenes/volumen7/ART2_Vol7_N2.pdf
http://reec.uvigo.es/volumenes/volumen7/...
, vemos que os alunos − no nosso caso, concluintes do Ensino Médio − não conseguem perceber a contextualização desta disciplina e, como sugerem esses autores, provavelmente nem mesmo acreditem que essa contextualização seja possível, haja vista a falta de sugestões apresentadas por eles, voltadas para a melhoria do ensino de Física.

A comparação entre os dois conjuntos de dados de nossa pesquisa, no entanto, suscita alguma esperança. Se, por um lado, os alunos fazem referência a uma Física descontextualizada, pouco apreciada e capaz de suscitar pouco ou nenhum aprendizado significativo, por outro lado, quando olhamos para as redações temáticas, observamos um cenário muito mais promissor, já que nelas são inúmeros os exemplos de fluência e de contextualizações efetivadas pelos próprios alunos.

O caso de Pd é bastante ilustrativo. Embora revele motivação para o estudo de Física intrinsecamente voltado para o vestibular e se avalie precariamente na disciplina, o aluno foi capaz de redigir três redações em que elabora de forma criativa situações de ensino-aprendizagem de Física.

A atividade da redação temática não se constitui no modelo predominante de atividades vivenciadas pelos alunos ao longo do Ensino Médio. Sendo assim, na execução da tarefa da redação autobiográfica, é compreensível que essa atividade praticamente não tenha sido levada em conta; somente uma aluna, L, menciona a atividade como produtiva.

A supervalorização da linguagem matemática no discurso da Física escolar, apontada nos dois conjuntos de dados que analisamos, está relacionada ao caráter monológico dessa linguagem (Almeida et al., 2006Almeida, M. J. P. M., Souza, S. C., & Silva, H. C. (2006). Perguntas, respostas e comentários dos estudantes como estratégias na produção de sentidos em salas de aula. In R. Nardi, & M. J. P.M. Almeida (Orgs.), Analogias, leituras e modelos no ensino de ciências (pp. 61-75). São Paulo: Escrituras.; Salomão, 2005Salomão, S. R. (2005). Lições de Botânica: um ensaio para as aulas de biologia (259 pp.). Tese de Doutorado em Educação. Universidade Federal Fluminense, Niterói.); os enunciados baseados na linguagem matemática agregam a si mesmos um caráter de exatidão, pelo menos à primeira vista (Silveira & Osterman., 2002Silveira, F. L., & Osterman, F. (2002). A insustentabilidade da proposta indutivista de “descobrir a lei a partir dos resultados experimentais”. Caderno Brasileiro do Ensino de Física. 19(número especial), 7-27.), tornando a polissemia presumivelmente menor. Os textos analisados, contudo, sugerem a necessidade de problematizar o uso dessa linguagem, haja vista a falta de contrapalavras dos alunos como réplica aos enunciados baseados tipicamente na linguagem matemática.

Ademais, julgamos muito pertinente pensar nos objetivos para o ensino de Física a partir das reflexões que levantamos com nossas análises. Existe, com certeza, algum equívoco no processo. Não é possível que nos conformemos com o fato de alunos do terceiro ano do Ensino Médio, portanto concluintes do processo de Educação Básica do País, aparentemente não terem entendido o porquê da inclusão da disciplina no currículo escolar.

Com certeza, os alunos cujos textos analisamos são conscientes do processo educativo por eles vivenciado, haja vista o levantamento de questões predominantemente voltadas para o aprendizado, em detrimento daquelas relacionadas ao rendimento escolar. Mesmo assim, eles deixam o Ensino Médio, dizendo ter pouco ou nada para falar sobre toda a Física que estudaram. Indo mais longe, eles não elencam nenhuma contribuição intrínseca à disciplina que seja capaz de motivar o seu estudo. Além disso, dizem quase unanimemente ter deixado de apreciar a Física ao longo do Ensino Médio.

É claro que diversos aspectos dessa problemática podem ser apontados como responsáveis por essas constatações, e não pretendemos aqui ser casuístas, mas também acreditamos ser muito pertinente trazer novamente à tona o questionamento de Martins (2008)Martins, I. (2008). Alfabetização científica: metáfora e perspectivas para o ensino de ciências. In Atas do XI Encontro de Pesquisa em Ensino de Física. Recuperado em 21 de outubro de 2014, de http://www.sbf1.sbfisica.org.br/eventos/epef/xi/sys/resumos/T0242-1.pdf.
http://www.sbf1.sbfisica.org.br/eventos/...
, compartilhado de certa forma com Shamos (1995)Shamos, M. H. (1995). The myth of scientific literacy. New Jersey: Rutgers University Press., sobre as razões de alfabetizar cientificamente. Se os alunos cumpriram todas as etapas institucionais (passaram de ano, tiveram as notas exigidas, etc.), revelaram-se criativos, capazes de realizar diálogos e suscitar a emergência de novidades, quando devidamente motivados para isso, por que não conseguem se apropriar, ou reconhecer a apropriação de pelo menos algum nível do discurso científico? Como podemos aceitar que estes alunos não sejam capazes de reconhecer na Física uma área de conhecimento conectada com o nosso dia a dia? Julgamos, como Martins (2008)Martins, I. (2008). Alfabetização científica: metáfora e perspectivas para o ensino de ciências. In Atas do XI Encontro de Pesquisa em Ensino de Física. Recuperado em 21 de outubro de 2014, de http://www.sbf1.sbfisica.org.br/eventos/epef/xi/sys/resumos/T0242-1.pdf.
http://www.sbf1.sbfisica.org.br/eventos/...
, que seja necessário repensar os objetivos da educação científica.

Por fim, destacamos a importância de todo e qualquer processo de pesquisa que nos faça vislumbrar o ensino, aproximando-nos do ponto de vista do aluno. Entender esse espaço dialético, a sala de aula, é tarefa impossível, se nosso interlocutor principal não for considerado. Mas considerá-lo não é o suficiente, é preciso considerá-lo em suas bases, e não tomando em conta prévias referências teóricas.

  • 1
    Pluralismo cognitivo ou heterogeneidade do pensamento verbal é o conceito associado à existência de múltiplas formas qualitativamente diferentes de pensamento, indicando a necessidade de abordagens distintas para a construção de sentidos por indivíduos distintos e, portanto, com distintas maneiras de pensar.

Referências

  • Abrantes, P. (1998). Imagens de natureza e imagens de ciência São Paulo: Papirus.
  • Aguiar, O., & Mortimer, E. (2005). Tomada de consciência de conflitos: análise da atividade discursiva em uma aula de ciências. Investigações em Ensino de Ciências. 10(2), 179-297. Recuperado em 21 de outubro de 2014, de http://www.if.ufrgs.br/public/ensino/vol10/n2/v10_n2_a3.htm
    » http://www.if.ufrgs.br/public/ensino/vol10/n2/v10_n2_a3.htm
  • Almeida, M. J. P. M., Souza, S. C., & Silva, H. C. (2006). Perguntas, respostas e comentários dos estudantes como estratégias na produção de sentidos em salas de aula. In R. Nardi, & M. J. P.M. Almeida (Orgs.), Analogias, leituras e modelos no ensino de ciências (pp. 61-75). São Paulo: Escrituras.
  • Bakhtin, M. (2002). Questões de literatura e de estética: A teoria do romance (5a ed.). São Paulo: Hucitec.
  • Bakhtin, M. (2003). Estética da criação verbal (4a ed.). São Paulo: Martins Fontes.
  • Bakhtin, M. (Volochinov, V. N). (2006). Marxismo e filosofia da linguagem (12a ed.). São Paulo: Hucitec.
  • Barbosa-Lima, M. C., & Queiroz, G. (2007). Preposições nas aulas de Física: como podem interferir? Revista Electrónica de Enseñanza de las Ciencias, 6(1). Recuperado em 21 de outubro de 2014, de http://reec.uvigo.es/volumenes/volumen6/ART8_Vol6_N1.pdf
    » http://reec.uvigo.es/volumenes/volumen6/ART8_Vol6_N1.pdf
  • Brait, B. (2006). Análise e teoria do discurso. In B. Brait, Bakhtin outros conceitos chaves São Paulo: Contexto.
  • Clark, K., & Holquist, M. (1984). Mikhail Bakhtin Cambridge: Harvard University Press.
  • Colinvaux, D. (2007). Aprendizagem e construção/constituição de conhecimento: reflexões teórico-metodológicas. Pro-Posições, 18(3), 29-51.
  • Goulart, C. (2003). Uma abordagem bakhtiniana da noção de letramento: contribuições para a pesquisa e para a prática pedagógica. In S. Kramer, S. J. Souza, & M. T. Freitas (Eds.), Ciências humanas e pesquisa: leituras de Mikail Bakhtin São Paulo: Cortez.
  • Goulart, C. (2007). Enunciar é argumentar: analisando um episódio de uma aula de história com base em Bakhtin. Pro-Posições, 18(3)(54), 93-107.
  • Guerra, A., Reis, J. C., & Braga, M. (2013). Abordagem cultural da física: discussão do uso de linguagens diferenciadas no ensino de ciências. In Atas IX Congresso Internacional sobre Investigación em Didáctica de las Ciencias Recuperado em 02 de abril de 2016, de https://www.researchgate.net/profile/Marco_Braga2/publication/256548528_abordagem_cultural_da_fsica_discusso_sobre_o_uso_de_linguagens_diferenciadas_no_ensino_de_cincias/links/02e7e5236560b9e1a7000000.pdf
    » https://www.researchgate.net/profile/Marco_Braga2/publication/256548528_abordagem_cultural_da_fsica_discusso_sobre_o_uso_de_linguagens_diferenciadas_no_ensino_de_cincias/links/02e7e5236560b9e1a7000000.pdf
  • Karam, R., & Pietrocola, M. (2009). Resolução de problemas e o papel da matemática como estruturante do pensamento físico. In Atas do XVIII Simpósio Nacional de Ensino de Física Recuperado em 21 de outubro de 2014, de http://www.sbf1.sbfisica.org.br/eventos/snef/xviii/sys/resumos/T0185-1.pdf
    » http://www.sbf1.sbfisica.org.br/eventos/snef/xviii/sys/resumos/T0185-1.pdf
  • Krapas, S. (2009). O tratado sobre a luz de Huygens e sua transposição didática no ensino introdutório de óptica. Revista de Enseñanza de la Física. 21(2), 49-60.
  • Machado, I. (2007). Gêneros discursivos. In B. Brait (Org.), Bakhtin conceitos-chave São Paulo: Contexto.
  • Martins, I. (2008). Alfabetização científica: metáfora e perspectivas para o ensino de ciências. In Atas do XI Encontro de Pesquisa em Ensino de Física Recuperado em 21 de outubro de 2014, de http://www.sbf1.sbfisica.org.br/eventos/epef/xi/sys/resumos/T0242-1.pdf
    » http://www.sbf1.sbfisica.org.br/eventos/epef/xi/sys/resumos/T0242-1.pdf
  • Menegotto, J. C., & Rocha Filho, J. B. (2008). Atitudes de estudantes de Ensino Médio em relação à disciplina de Física. Revista Electrónica de Enseñanza de las Ciencias, 7(2), 298-312. Recuperado em 21 de outubro de 2014, de http://reec.uvigo.es/volumenes/volumen7/ART2_Vol7_N2.pdf
    » http://reec.uvigo.es/volumenes/volumen7/ART2_Vol7_N2.pdf
  • Mortimer, E. F. (2006). Linguagem e formação de conceitos no ensino de ciências (383 pp.). Belo Horizonte: Editora UFMG.
  • Mortimer, E. F., Chagas, A. N., & Alvarenga, V. T. (1998). Linguagem cientifica versus linguagem comum nas respostas escritas de vestibulandos. Investigações em Ensino de Ciências, 3(1), 7-19. Recuperado em 21 de outubro de 2014, de http://www.if.ufrgs.br/ienci/artigos/Artigo_ID36/v3_n1_a1998.pdf
    » http://www.if.ufrgs.br/ienci/artigos/Artigo_ID36/v3_n1_a1998.pdf
  • Ortega, J. L. N. A., & Mattos, C. R. (2008). A questão da sintaxe e da semântica para a negociação de significados no ensino de Física. In Atas do XI Encontro de Pesquisa em Ensino de Física Recuperado em 21 de outubro de 2014, de http://www.sbf1.sbfisica.org.br/eventos/epef/xi/sys/resumos/T0143-1.pdf
    » http://www.sbf1.sbfisica.org.br/eventos/epef/xi/sys/resumos/T0143-1.pdf
  • Reis, P., & Galvão, C. (2006). O diagnóstico de concepções sobre os cientistas a través da análise e discussão de histórias de ficção científica redigidas pelos alunos. Revista Electrónica de Enseñanza de las Ciencias, 5(2), 213-234. Recuperado em 21 de outubro de 2014, de http://reec.uvigo.es/volumenes/volumen5/ART1_Vol5_N2.pdf
    » http://reec.uvigo.es/volumenes/volumen5/ART1_Vol5_N2.pdf
  • Salomão, S. R. (2005). Lições de Botânica: um ensaio para as aulas de biologia (259 pp.). Tese de Doutorado em Educação. Universidade Federal Fluminense, Niterói.
  • Scott, P. H., Mortimer, E. F., & Aguiar, O. (2006). The tension between authoritative and dialogic discourse: A fundamental characteristic of meaning making interactions in high school science lessons. Science Education. 90(4), 605-631.
  • Shamos, M. H. (1995). The myth of scientific literacy New Jersey: Rutgers University Press.
  • Silveira, F. L., & Osterman, F. (2002). A insustentabilidade da proposta indutivista de “descobrir a lei a partir dos resultados experimentais”. Caderno Brasileiro do Ensino de Física. 19(número especial), 7-27.
  • Souza, M. S. G., Silva, E. S., Santos, K. N., & Santos, B. F. (2013) A pesquisa sobre linguagem e ensino de ciências no Brasil em teses e dissertações (2000 – 2011). In Atas IX Encontro Nacional de Pesquisa em Educação em Ciências Recuperado em 02 de abril de 2016, de <http://www.nutes.ufrj.br/abrapec/ixenpec/atas/resumos/R1326-1.pdf>
    » http://www.nutes.ufrj.br/abrapec/ixenpec/atas/resumos/R1326-1.pdf
  • Veneau, A., Ferraz, G., & Rezende, F. (2015). Análise de discurso no ensino de ciências: considerações teóricas, implicações epistemológicas e metodológicas. Revista Ensaio. 17(1), 126-149. Recuperado em 02 de abril de 2016, de http://www.portal.fae.ufmg.br/seer/index.php/ensaio/article/view/1707/1538
    » http://www.portal.fae.ufmg.br/seer/index.php/ensaio/article/view/1707/1538
  • Wertsch, J. V. (1991). Voces de la mente: un enfoque sociocultural para el estudio de la acción mediada Madrid: Aprendizaje Visor.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Sep-Dec 2018

Histórico

  • Recebido
    02 Abr 2016
  • Revisado
    31 Maio 2017
  • Aceito
    19 Jul 2017
UNICAMP - Faculdade de Educação Av Bertrand Russel, 801, 13083-865 - Campinas SP/ Brasil, Tel.: (55 19) 3521-6707 - Campinas - SP - Brazil
E-mail: proposic@unicamp.br