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Apresentação

Presentation

Nunca fomos catequizados. Vivemos através de um direito sonâmbulo. Fizemos Cristo nascer na Bahia. Ou em Belém do Pará.

(Oswald de Andrade)

O trecho da epígrafe faz parte do “Manifesto Antropofágico” (1928), escrito por Oswald de Andrade e publicado na revista que dá origem ao movimento literário de mesmo nome, um dos principais do modernismo literário brasileiro. De forma lapidar, as frases exprimem três ideias intimamente ligadas aos objetivos deste dossiê. A primeira ideia é a de que o catolicismo europeu nunca se estabeleceu completamente em terras tupiniquins; nós nunca fomos catequizados, porque nosso catolicismo nunca foi romanizado. Pelo mesmo motivo, fizemos Cristo nascer na Bahia (Salvador), isto é, submetemos a tradição europeia a um processo de mestiçagem religiosa com as culturas indígena e africana. A segunda ideia é a de que, como resultado disso, temos nossa própria Belém, apresentada como sendo diferente daquela onde os Evangelhos situam o nascimento de Jesus de Nazaré. Para terminar, a sibilina referência ao “direito sonâmbulo” pode ser aproximada (com alguma licença poética) das ambíguas relações entre o Estado e a Igreja, marcadas durante o período republicano por uma separação que nunca foi posta efetivamente em prática. Exemplo disso é que o período de lançamento do Manifesto assiste ao ápice do desenvolvimento das instituições religiosas, custeadas em grande medida pelos orçamentos públicos administrados pelas oligarquias estaduais, as mesmas que se uniram em 1891 para assinar uma Constituição que, pela primeira vez na história do Brasil, declarava a laicidade do Estado.

É notável que este furor vanguardista e iconoclasta tenha surgido da pena de um ex-aluno do Colégio São Bento de São Paulo – onde Oswald conheceu o também modernista Guilherme de Almeida – e frequentador assíduo do mosteiro contíguo durante seus estudos no bacharelado em Ciências e Letras (Miceli, 2004Miceli, S. (2004, junho). Experiência social e imaginário literário nos livros de estreia dos modernistas em São Paulo.Tempo Social, 168-207.). O herdeiro único de uma família conservadora, educado em um dos melhores colégios católicos da capital paulista, onde conviveu com vários outros filhos da oligarquia cafeeira, faz de seu texto um ajuste de contas com esse passado. Mais relevante ainda que esse personagem tenha sido um dos pivôs deste momento de renovação do panorama cultural brasileiro, cujas divisões em correntes variadas não excluem objetivos comuns, como sinalizar a existência de um Brasil, definido como “moderno”, cioso de suas particularidades culturais e, por isso mesmo, mais bem inserido no contexto internacional, marcado pelas afirmações nacionalistas de diversos matizes. A trajetória percorrida por Oswald de Andrade é um exemplo da importância que a educação católica desempenhou nos anos iniciais da República, pois foi ela que lhe permitiu desenvolver as habilidades e a rede de relações sociais necessária para o sucesso de suas empreitadas intelectuais.

A Igreja Católica, por seu turno, imbuída de seu projeto de reforma com vistas a impor-se como um interlocutor de peso na cena intelectual brasileira, não descuidava das manifestações culturais de caráter secularizante e oferecia a alternativa religiosa católica. Esses embates se tornam perceptíveis no percurso de outros artistas, tal como demonstrado no artigo “Carlos Oswald: uma história e dois temas”, publicado neste volume, no qual Godiva Accioly percorre a trajetória do pintor, gravurista e escritor católico, Carlos Oswald, contemporâneo de O. de Andrade, um dos encarregados da tarefa de catolicizar a cultura a partir de sua arte, além de codificar e categorizar a arte sacra no Brasil. O ensejo de Carlos Oswald é uma contraproposta ao fortalecimento de uma visão, elaborada pela elite cafeeira paulista, que toma como modelo de relação entre Igrejas e sociedade civil o dos Estados Unidos, onde a convivência entre diferentes opções religiosas é resultado da limitação dessas práticas à esfera do privado. Se o Manifesto Republicano de 1870 prenunciava tal aproximação em suas linhas, ela se tornou visível na linha diplomática adotada pelo regime de novembro de 1889, da qual resultou um novo equilíbrio nas relações comerciais e culturais (Bethell, citado por Schwarcz, 2012Bethell, L. (2012). O Brasil no mundo (parte 3). In L. M. Schwarcz, A construção nacional (1830-1889) (Vol. 2, pp. 131-178, Coleção História do Brasil Nação: 1808-2010). Rio de Janeiro: Objetiva.) que favoreceu o ingresso dos valores americanos na sociedade paulista. E no interior dessa moldura as propostas estéticas dos autores associados ao modernismo buscavam compreender as alterações na configuração da sociedade brasileira, em especial daquela parte que vivia nas cidades em expansão, onde a Igreja sofreu a concorrência de outros formadores de opinião (teatros, imprensa, etc.).

A princípio, poderia parecer contraditório que a contestação ao desejo da hierarquia católica de preservar o protagonismo na vida social brasileira pudesse advir de sujeitos formados em sua rede de escolas. Entretanto, tal visão se torna mais clara quando se aplica um olhar retrospectivo para compreender melhor o lugar social ocupado pela Igreja Católica no processo histórico nacional. Instalada desde a Colônia e conservada no período imperial, com suas Ordens leigas, suas Irmandades mantenedoras de hospitais e capelas, a Igreja constitutiva do Estado enfrentou nos trópicos os ventos do liberalismo que sopravam desde a Europa, trazidos pela elite cosmopolita e por contingentes de imigrantes patrocinados pelo próprio Estado. A construção da República, muito mais assentada sobre a ideia de federação do que sobre a ideia de nação, resultou de amplas negociações entre as oligarquias regionais e criou um modelo nacional que garantia certo grau de autonomia aos estados federados, ao mesmo tempo em que mantinha a unidade territorial (Salles, 1983Salles, A. (1983). A pátria paulista. Brasília: Universidade de Brasília.). Divisões regionais marcadas na própria literatura pelo movimento regionalista, apareciam expressas ainda na manutenção do modelo do engenho de açúcar, convivendo com as lavouras de café no período pré-republicano. Modernizava-se o Estado pela atualização da burocracia patrimonialista no Brasil (Faoro, 1987Faoro, R. (1987). Os donos do poder. Formação do patronato político brasileiro (7a ed.). Rio de Janeiro: Globo.; Weber, 1999Weber, M. (1999). Economia e sociedade: fundamentos da sociologia compreensiva (R. Barbosa, & K. E. Barbosa, Trads., G. Cohn, revisão técnica) Brasília: Universidade de Brasília.), enquanto a Igreja Católica, acuada na Europa pelos avanços da laicização dos estados liberais, inventava uma política de centralização. Não apenas centralizava o poder na figura do papa, padronizava os ritos, elaborava o primeiro Código Canônico concluído em 1917, mas, ao mesmo tempo, voltava-se para a América Latina com o seu projeto de “repúblicas católicas”, conforme se discutirá mais adiante. Nessa política, o Brasil assumia lugar de destaque como destino preferido dos investimentos de ordens e congregações constrangidas a deixar seus países de origem (Cabanel, 2008Cabanel, P.(2008). Lettres d’exil 1901-1909. Les congrégations françaises dans le monde après les lois laïques de 1901 et 1904. Turnhout (Belgium): BREPOLS.). Por sua vez, o projeto republicano instalado no Brasil pelas manobras palacianas e militares não previa mudanças estruturais no modelo econômico e social vigente desde o Império. Sem que se criassem políticas de construção da nação, instalou-se uma república declarada laica na sua Constituição, composta por cidadãos livres e iguais, o que só ocorreria com a Revolução de 1930 (Carvalho, 1990Carvalho, J. M. de (1990). A formação das almas: o imaginário da República no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras.).

Na queda do trono, deslocou-se o púlpito. O fim do Padroado empurrou a Igreja Católica para a busca de seu novo lugar, regulado pelo regime político recém-instalado. Historiadores e sociólogos da Igreja e da educação encontraram a instituição religiosa mais livre e mais bem posicionada para se modernizar e expandir nos tempos da república, do que nos períodos anteriores, quando se configurava como religião oficial, braço do Estado (Azzi, 1983Azzi, R. (1983). A vida religiosa no Brasil: enfoques históricos. São Paulo: Paulinas.; Miceli, 1988Miceli, S. (1988). A elite eclesiástica no Brasil. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil.; Pereira, 2012Pereira, J.B. B. (2012). Religiosidade no Brasil. São Paulo: EDUSP.).

Dessa maneira, depois de reunirem-se no Concílio Plenário da América Latina1 1 Ver mais detalhes sobre esse evento político-religioso na obra publicada pelo Vaticano, por ocasião do centenário do Concílio, em 1999. Pontifícia Commissio Pro America Latina. (2000). Los últimos cien años de la evangelización en América Latina. Actas. Ciudad del Vaticano: Libreria Editrice Vaticana. , o qual teve lugar em Roma e agrupou toda a elite eclesiástica da região para formular um projeto único para a América do Sul, as autoridades eclesiásticas brasileiras deram início à criação de uma estrutura capilar apoiada pela instalação de dioceses nos principais centros urbanos do País. A administração eclesial, que se encontrava até então dispersa em uma série de iniciativas relativamente autônomas, passou a se estruturar em uma pirâmide cujos agentes tinham lugar cada vez mais bem definido, em termos institucionais e territoriais. Uma consequência perceptível foi o abandono de um catolicismo voluntarioso e popular na base e ancorado nas benesses do Estado na cúpula para a implementação de outra forma de atuação dos profissionais religiosos, mais presente na vida de seus fiéis através da administração frequente de ritos (sacramentos) para chancelar o pertencimento de seus fiéis à comunidade em todos os momentos cruciais da vida, como por exemplo o nascimento (batismo), o ingresso na vida adulta (crisma), o casamento (matrimônio), a morte (enterramento)... entrementes, a liturgia da missa dominical e das festas religiosas deu ensejo a propor ritos que reforçassem o papel central da Igreja no cotidiano de seus fiéis.

Do ponto de vista da própria Igreja, esse processo demandava novos profissionais de apoio, abundantes nas congregações religiosas masculinas e femininas europeias. Do ponto de vista dos grupos políticos que ocupavam o Estado brasileiro (e não obstante seu desejo manifesto de restringir o espaço de atuação dos grupos religiosos), houve uma precariedade na oferta pública de serviços sociais, que poderia ser minimizada com a importação de pessoal qualificado e desalojado na Europa, especialmente na França e na Itália. Os sistemas educacionais desses dois países foram atravessados por fortes processos de laicização no início do século XX, e isso oportunizou o movimento migratório de religiosos que persistiu por oito décadas de forma ininterrupta, conforme se pode ver no artigo “A era das congregações - pensamento social, educação e catolicismo”, neste volume.

Este artigo fornece uma visão ampla do processo de instalação das congregações e ancora os demais artigos presentes no dossiê, visto que, de maneira geral, todos os autores também exploram algum aspecto desse processo de circulação internacional dos grupos de religiosos, comprometidos com a construção das “repúblicas católicas da América do Sul”, tema central do projeto temático financiado pela FAPESP2 2 Os artigos presentes neste dossiê constituem parte da produção acadêmica gerada pelo projeto coordenado por Agueda Bittencourt: “Congregações católicas, educação e estado nacional, 1849/1950”, desenvolvido no período de 2012-2017, sediado na Unicamp. .

Roux (2012)De Roux, R. (2012, maio). De la “Nación Católica” a la “República Pluricultural” en América Latina. Algunas consideraciones históricas. Memórias. Revista digital de Historia y Arqueología desde el Caribe colombiano, .(16), 1-35. demonstra como a ubiquidade da Igreja foi essencial para a preservação de seus privilégios, especialmente nas trocas de regime político. De forma paralela aos vizinhos latino-americanos, tanto o Império como a República brasileiros optaram por manter o espaço da Igreja como uma maneira de agradar à maioria da população interna e facilitar a aceitação do novo regime pelas nações estrangeiras. Paradoxalmente, o Império e a República exprimiram sua aceitação de formas radicalmente distintas: no primeiro caso, pela manutenção econômica dos quadros religiosos através da instituição do padroado; no último, pela garantia econômica viabilizada sob o argumento dos benefícios oriundos das “obras sociais” – um acerto jurídico mantido até os dias atuais. Foi para ampliar a rede de empreendimentos desse tipo que a hierarquia eclesiástica acionou seus contatos europeus com vistas a importar religiosos profissionais. Para entender os efeitos dessa mobilidade populacional na vida social e cultural da região, há que não só se compreender a natureza do projeto da Igreja e do Estado receptor, mas cumpre caracterizar essa mobilidade e seus efeitos sobre a sociedade de destino e sobre os indivíduos que se deslocam. Embora a literatura relativa à circulação internacional seja extensa e rica, tem sido pouco abordada a mobilidade de religiosos (Beigel, 2011Beigel, F. (2011). Missión Santiago. El mundo académico jesuíta y los inicios de la cooperación internacional católica. Santiago: LOM Ediciones.; Cabanel, 2008Cabanel, P.(2008). Lettres d’exil 1901-1909. Les congrégations françaises dans le monde après les lois laïques de 1901 et 1904. Turnhout (Belgium): BREPOLS.; Ferreira, 2007Ferreira, D. M. (2007). Conversão e reconversão: a circulação internacional dos filósofos de origem católica (197pp.). Tese de Doutorado em Educação, Faculdade de Educação, Universidade Estadual de Campinas, Campinas.).

Viajantes e missionários – uma cidadania incomum Outra vez te revejo - Lisboa e Tejo e tudo -, Transeunte inútil de ti e de mim, Estrangeiro aqui como em toda a parte, Casual na vida como na alma, Fantasma a errar em salas de recordações, Ao ruído dos ratos e das tábuas que rangem No castelo maldito de ter que viver... (Fernando Pessoa (Álvaro de Campos), Lisbon revisited (1926))

No poema, Fernando Pessoa relata sua experiência de voltar à terra natal algum tempo após tê-la deixado, ao que o poema indica, por vontade própria. As experiências dos migrantes religiosos em análise neste dossiê por vezes incluem algumas diferenças importantes: a migração pode ser uma imposição (do Estado ou do grupo religioso no qual vive) e a possibilidade de rever a terra pode não existir. Mesmo assim, o poema revela um aspecto fundamental para todo fluxo migratório: a experiência de ser “estrangeiro em toda parte”, de não se identificar completamente com nenhuma das paisagens humanas experimentadas ao longo da migração. O processo migratório é um espaço privilegiado para análise das relações entre as subjetividades e as constrições impostas pelas instituições no seio das quais o migrante vive sua experiência. Enseja também uma história e uma sociologia que transcendam as fronteiras nacionais e compreendam o complexo jogo de representações resultante de uma formação inicial necessariamente calcada em experiências locais, o pertencimento a uma Igreja em vias de internacionalização das práticas e centralização do comando e o contato prolongado com outra(s) cultura(s). Tais desafios se impõem cotidianamente à vida de pessoas instadas a “ter que viver”, ou seja, a reinterpretar suas experiências passadas à luz de uma existência na qual práticas, costumes e valores éticos podem ser postos à prova pelo contato com outras culturas.

Para enfrentar esse desafio teórico e metodológico, empregam-se conceitos tais como: imigração/emigração, exílio, refúgio político, relacionando uns aos outros e tendo em conta a ideia de missão religiosa, que configura um tipo especial de deslocamento de quadros, operado pela Igreja. A Imigração é, ao mesmo tempo emigração, isto é, um país receptor tem como contraponto um país de origem, em um fenômeno da ordem dos estados-nação modernos, que repousa sobre um ordenamento jurídico a implicar direitos civis e políticos para os que saem de sua terra ou a exclusão desses direitos, criando uma situação de limbo na qual o migrante se encontra sem amparo onde quer que esteja. Envolve cumplicidade entre as nações, portanto, se apoia sobre interesses e políticas nacionais além de interesses individuais. Consiste em acordo tácito entre nações. “... a emigração/imigração envolve na verdade duas ordens políticas, duas nações e duas nacionalidades e não apenas dois países, duas sociedades, duas economias, como se costuma pensar e afirmar” (Sayad, 1998Sayad, A. (1998). A imigração ou os paradoxos da alteridade (P. Pierre Bourdieu, Prefácio, C. Murachco, Trad.). São Paulo: Editora Universidade de São Paulo., p. 280).

Alguns estudos consideram a imigração como um tempo de suspensão da identidade, dos direitos, da própria determinação histórica do imigrante. Isso só pode ser pensado como força de expressão, dado que a identidade permanece em reconstrução durante toda a vida. A imigração guarda um componente de provisoriedade, pois o ideal de retorno ao local de origem é maior quando o migrante parte sem família. Trata-se de processo mais comum entre os homens, que, seja nas migrações internacionais ou nas internas às nações, muitas vezes partem com o desejo de mais tarde voltar e buscar a família, embora nem sempre isso aconteça. A imigração faz do cidadão de certo país, oficialmente, um estrangeiro em outro, um estranho, embora a errância possa revelar o “estrangeiro em toda parte” de que fala Fernando Pessoa.

Do ponto de vista do receptor, quando se trata de chegada em massa altera-se o padrão estético nacional, a cor da pele, o vestuário, a linguagem dos gestos, do corpo, a música e a própria língua. O impacto nas sociedades modernas torna-se visível, uma vez que a democracia é fruto da paixão pela igualdade, envolve a definição de fronteiras do direito que mantém a exclusão regulamentada (Moya, 2008Moya, J. (2008). La emigración como processo de masificación: una perspectiva global. In N. de Cristóforis, & F. Fernández, Las migraciones españolas en Argentina: variaciones regionales (siglos XIX y XX). Buenos Aires: Biblos.; Sayad, 1998Sayad, A. (1998). A imigração ou os paradoxos da alteridade (P. Pierre Bourdieu, Prefácio, C. Murachco, Trad.). São Paulo: Editora Universidade de São Paulo.). Nas constituições brasileiras, o direito do cidadão define-se pela nacionalidade. Os estrangeiros estão submetidos às regras constitucionais próprias, sendo previsto o processo de nacionalização, assim como são regulamentados os direitos ao trabalho, à propriedade e o acesso a cargos públicos. Em praticamente todas as constituições brasileiras, a nacionalização do estrangeiro implica perda da nacionalidade anterior e obriga o cidadão naturalizado a residir no País. Na Constituição em vigor, os estrangeiros ganharam um estatuto vinculado à seguinte prescrição: “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade ..,” (Art. 5o. Constituição BR., 1988Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 (1988). Brasília: Presidência da República. Casa Civil. Subchefia para Assuntos Jurídicos.). Não se trata de regulação especificamente brasileira, mas de normas nacionais e internacionais, como as expressas na Convenção de Genebra de 1951 (Noiriel, 2001Noiriel, G. (2001). État, nation et immigration, vers une histoire du pouvoir. Paris: Gallimard.).

Nesse sentido, o processo migratório não pode ser considerado um ato individual; ele depende das redes de solidariedade, da construção social de grupos e das populações como tem sido demonstrado por estudos, memórias e depoimentos colhidos em diferentes países (Da Orden, 2008Orden, M. L. da (2008). Imigrantes galegos, relaciones personales y trabajo en la etapa posterior al “ajuste”. Aportes para una discusión a través de un epistolário (1920-1930). In N. de Cristóforis, & F. Fernández, Las migraciones españolas en Argentina: variaciones regionales (siglos XIX y XX) (pp.48- 66). Buenos Aires: Biblos.; Marquiegui, 2008Marquiegui, D. N. (2008). Migraciones tempranas y redes sociales: un enfoque comparado a propósito de los españoles e irlandeses de Luján. In N. de Cristóforis, & F. Fernández, Las migraciones españolas en Argentina: variaciones regionales (siglos XIX y XX) (pp. 109- 131). Buenos Aires: Biblos.; Roniger, 2014Roniger, L.(2014). Destierro y exilio en América Latina. Nuevos estúdios y avances teóricos. Ciudad Autónoma de Buenos Aires: Eudeba.). No caso dos religiosos imigrantes, também o processo não tem nada de individual, as redes de solidariedade, aparentemente já estão dadas, não apenas pela própria congregação, mas por outras congregações e ordens já estabelecidas no país de destino, como relata Paula Leonardi (2002)Leonardi, P. (2002). Puríssimo Coração: um colégio de elite em Rio Claro. Dissertação de Mestrado, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, Brasil.. Para além de ser imigração amparada pelo prestígio da Igreja Católica, esse movimento dos religiosos no século XIX/XX contou com outro fator positivo, a garantia de trabalho, considerada na literatura como fator de estabilidade e reconhecimento de direitos. Grande número de congregações deslocou-se da Europa para o Brasil a convite de membros do clero e de políticos locais para implantar projetos predefinidos: estabelecer colégio, gerenciar hospitais, asilos de idosos ou de órfãos (Leonardi, 2002Leonardi, P. (2002). Puríssimo Coração: um colégio de elite em Rio Claro. Dissertação de Mestrado, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, Brasil.; Neris & Seidl, 2015Neris, W., & Seidl, E. (2015). Circulação internacional. Politização e redefinições do papel religioso. Revista Brasileira de História da Educação, 15, 285-315.; Scremin, 2016Scremin, J. V. (2016). Reformar os costumes e salvar as almas: a atuação dos franciscanos na educação e formação sacerdotal. Tese de Doutorado, Faculdade de Educação, Universidade Estadual de Campinas.). Dessa maneira, mesmo sem escapar totalmente de problemas típicos dos processos migratórios, os religiosos apresentavam condições especiais para tal empresa e constituíam um grupo privilegiado. Essa condição, contudo, não tinha o poder de impedir sofrimentos, conflitos e mesmo transtornos capazes de mudar projetos elaborados nos países de origens. Maria Aparecida Corrêa Custódio e João Valério Scremin, em seus estudos sobre Capuchinhos e Capuchinhas italianos, narram agruras e embates políticos enfrentados pelas duas congregações. Os capuchinhos, estabelecidos inicialmente em Piracicaba, foram empurrados para fora da cidade pela elite anticlerical e acabaram deslocando-se para Taubaté. Nessa cidade conseguiram – depois de negociações estabelecidas entre a elite eclesiástica de São Paulo, a hierarquia da Ordem no Brasil e as elites locais – fundar um seminário para formação de padres. Somente 50 anos mais tarde conseguiram realizar seu objetivo de criar empresas em Piracicaba (Scremin, 2016Scremin, J. V. (2016). Reformar os costumes e salvar as almas: a atuação dos franciscanos na educação e formação sacerdotal. Tese de Doutorado, Faculdade de Educação, Universidade Estadual de Campinas.). Por sua vez, as capuchinhas tiveram que voltar para a Itália depois de envolverem-se em uma verdadeira guerra no Maranhão, onde tentavam realizar trabalho de evangelização, como se pode acompanhar no artigo de Maria Aparecida Corrêa Custódio, nesta coletânea.

Outro aspecto que permite explicar, em determinadas épocas e regiões, a vaga em massa está diretamente ligado às condições econômicas desses imigrantes, uma vez que, como aponta a literatura sobre o assunto, quem imigra não são os mais pobres e, sim, aqueles que dispõem de capital para assumir essa empresa. A imigração começa com os ricos, ela implica dinheiro, informação e redes sociais, diz José Moya (2008)Moya, J. (2008). La emigración como processo de masificación: una perspectiva global. In N. de Cristóforis, & F. Fernández, Las migraciones españolas en Argentina: variaciones regionales (siglos XIX y XX). Buenos Aires: Biblos.. Não se trata de um engenho de fome e miséria. São necessários não apenas o capital econômico para suportar passagens e manutenção no país de destino, mas certo capital simbólico, de relações sociais e de conhecimento das possibilidades da imigração. Mesmo nessas condições, os imigrantes configuram um grupo que vive em condições precárias e de pobreza, quando alcançam sua destinação, como é o caso largamente estudado por Sayad (1998)Sayad, A. (1998). A imigração ou os paradoxos da alteridade (P. Pierre Bourdieu, Prefácio, C. Murachco, Trad.). São Paulo: Editora Universidade de São Paulo. dos africanos magrebinos, cuja saída representa deixar para trás uma comunidade de origem na qual estavam entre os mais bem situados (Moya, 2008Moya, J. (2008). La emigración como processo de masificación: una perspectiva global. In N. de Cristóforis, & F. Fernández, Las migraciones españolas en Argentina: variaciones regionales (siglos XIX y XX). Buenos Aires: Biblos.; Orden, 2008Orden, M. L. da (2008). Imigrantes galegos, relaciones personales y trabajo en la etapa posterior al “ajuste”. Aportes para una discusión a través de un epistolário (1920-1930). In N. de Cristóforis, & F. Fernández, Las migraciones españolas en Argentina: variaciones regionales (siglos XIX y XX) (pp.48- 66). Buenos Aires: Biblos.).

Via de regra, as migrações de religiosos representam caso diferente, visto que a decisão de partir, a escolha do país de destino são operações que envolvem múltiplos agentes. Para se instalar no Brasil, as congregações contaram com apoio episcopal ou de uma fração de elite que desejava os serviços em escolas e hospitais. E contam ainda hoje com forte apoio da estrutura montada pela Igreja para recepção de seus imigrantes. Ademais, os votos de pobreza praticados pelos religiosos constituiu fator de enriquecimento dos Institutos de Vida Consagrada. Assim, pode-se trabalhar com a hipótese que os custos da imigração correram por conta dos próprios organismos da Igreja, apoiados pelos demandantes dos serviços especializados em questão nesses movimentos.

Há, no entanto, a possibilidade de que a imigração seja vivenciada na forma de um exílio, dado que nem todo deslocamento opera pelo desejo ou pela busca voluntária de um mundo melhor. Depois do estabelecimento dos estados nacionais, a história registra uma coleção de episódios políticos que resultaram em expulsão, desterro e exílio, envolvendo populações em diferentes lugares nos últimos dois séculos. Não porque as populações antes não circulassem, mas porque os estados-nação estabelecem fronteiras rígidas em nome da proteção dos direitos sociais e estabelecimento do estatuto de cidadão. Constitui-se o que Gérard Noiriel chamou de tirania do nacional por meio de uma nacionalização do mundo social (Noiriel, 2001Noiriel, G. (2001). État, nation et immigration, vers une histoire du pouvoir. Paris: Gallimard.). É nesse universo que se pode entender a construção das identidades individuais e de grupos, as estratégias usadas pelos estados modernos para construir a ideia de nação e de uma identidade nacional única. Todavia operam, no interior dos estados nacionais, os grupos de pressão, os porta-vozes – intelectuais, imprensa, igrejas, além de representações corporativas. É importante compreender que, no interior da sociedade nacional, frações se constituem e se diferenciam através de um processo de agrupamento social e político e de categorização jurídico-administrativa. Dito de outra forma: as sociedades nacionais operam constantemente os processos de diferenciação e de atribuição de categorias cujos direitos e deveres são juridicamente definidos. Para isso faz-se necessário um trabalho burocrático de imposição identitária, apoiado em características objetivas dos indivíduos pertencentes às categorias abstratas definidas por lei (Bourdieu, 1998Bourdieu, P. (1998). Espírito de Estado: gênese e estrutura do campo burocrático, razões práticas sobre a teoria da ação (Mariza Corrêa, Trad.). Campinas SP: Papirus.; Noiriel, 2001Noiriel, G. (2001). État, nation et immigration, vers une histoire du pouvoir. Paris: Gallimard.). Não se pode esquecer que são os representantes, os porta-vozes, os que defendem os grupos, que ao mesmo tempo constroem imagem positivas destes e negativas dos outros. Alimentam assim o processo de diferenciação interno e externo à nação, jogando com o afrontamento político do eles e nós, nós e eles.

Exilados, refugiados e deportados conheceram o direito de asilo ainda no período das monarquias europeias absolutas, quando a permanência de grupos de “diferentes”, especialmente de religiosos, dependia da vontade e da determinação do poder real. Desde sua origem, o direito de asilo está relacionado à definição de a quem pertence a soberania, o que, no caso das monarquias europeias, era resolvido pela teoria do direito divino. Já nos estados modernos, no quais o povo é o soberano, o direito de asilo está definido entre os direitos do homem e do cidadão. Ele pode ser compreendido dentro da lógica democrática que associa governantes e governados na mesma identidade, sobre a qual repousa a soberania de um povo: é o contrato social que define o estatuto do exilado, o qual tem, em geral, restrições em relação aos direitos dos cidadãos nacionais (Noiriel, 2001Noiriel, G. (2001). État, nation et immigration, vers une histoire du pouvoir. Paris: Gallimard.).

Nas constituições republicanas brasileiras – com exceção da primeira de 1891, na qual a naturalização é quase automática aos estrangeiros que viviam no País – expõe-se claramente a distinção entre brasileiros e estrangeiros, esses últimos com direitos mais restritos e condicionados. Poderiam vir a ser considerados brasileiros depois de passar pelo processo de naturalização, que sempre implica a perda de sua nacionalidade original. Vejamos o que diz o art 5o. da Constituição de 1934: “Compete privativamente à União: ... legislar sobre: g) naturalização, entrada e expulsão de estrangeiros, extradição; emigração e imigração, que deverá ser regulada e orientada, podendo ser proibida totalmente, ou em razão da procedência”. Já o Art. 121 § 6º diz:

A entrada de imigrantes no território nacional sofrerá as restrições necessárias à garantia da integração étnica e capacidade física e civil do imigrante, não podendo, porém, a corrente imigratória de cada país exceder, anualmente, o limite de dois por cento sobre o número total dos respectivos nacionais fixados no Brasil durante os últimos cinquenta anos.

(Constituição BR., 1934Constituição da República Federativa do Brasil de 1934 (1934). Brasília: Presidência da República. Casa Civil. Subchefia para Assuntos Jurídicos.)

Esses textos se repetem com algumas alterações até à Constituição de 1988, quando se tem uma mudança radical nessa questão, e os estrangeiros passam a gozar dos mesmos direitos garantidos aos brasileiros.

Com relação à imigração e ao exílio de congregações, encontra-se uma situação particularmente diferenciada, uma vez que a separação da Igreja em relação ao Estado, com o fim do Padroado, ocasionou a acomodação de duas instituições com idênticas pretensões. Há situações históricas que revelam a Igreja Católica funcionando como um estado dentro do Estado republicano. As congregações, como dito anteriormente, chegam protegidas pelo clero já estabelecido no País. No trabalho de Patrick Cabanel (2008)Cabanel, P.(2008). Lettres d’exil 1901-1909. Les congrégations françaises dans le monde après les lois laïques de 1901 et 1904. Turnhout (Belgium): BREPOLS., a análise da correspondência entre madres e visitadoras francesas, com bispos e membros das elites locais brasileiras, identifica redes de solidariedade, distribuição de benesses às religiosas, especialmente àquelas pertencentes às congregações cujos membros foram recrutados em famílias tradicionais francesas.

A recepção narrada nas cartas deixa ver a operação realizada pela Igreja no papel de um estado dentro do Estado. São os bispos, o Núncio Apostólico e os padres, filhos de famílias de políticos, que preparam e acomodam as congregações, escolhem os trabalhos que elas devem desenvolver, independente do carisma e da espiritualidade definida por elas em sua fundação. Essas autoridades eclesiásticas se esmeram em convencer as madres e os padres superiores das melhores congregações para que se estabeleçam em seus territórios. Entre os trabalhos aqui publicados, o de Angela Xavier de Brito, “Orar, ensinar ou agir. As diversas formas de cumprir o carisma de Sion” permite acompanhar a movimentação das Irmãs com seu carisma voltado para a conversão de judeus. Por outro lado, a expectativa das autoridades católicas brasileiras de que elas se dedicassem à educação de “meninas bem nascidas” contribui para que a evangelização pela educação se torne parte desse carisma. Caso semelhante ao das Irmãs do Santíssimo Sacramento – Sacramentinas - narrado por Cabanel, em que também aparece registrado na documentação o processo de escolha da congregação pelos anfitriões, assim como a concorrência enfrentada pelos grupos imigrantes para alcançar os melhores lugares e implantar seus estabelecimentos. O volume de imigrantes e exilados nos primeiros tempos da República provocava certo congestionamento, uma vez que se somavam as disputas entre as congregações e entre os membros das elites locais que apadrinharam esses religiosos. É assim que se pode acompanhar a correspondência analisada por Cabanel, quando irmãs visitadoras, aflitas, pedem urgência nas decisões às suas superioras. Havia certo medo de perder as melhores oportunidades aos grupos que se sucediam.

Além das categorias de imigrante e de exilado, uma terceira forma de enxergar o que há de específico nesse fluxo de população é defini-los pelo caráter de “missionários”. Kollman (2011)Kollman, P. (2011, June). At the origins of mission and missiology: A study in the dynamics of religious language. Journal of the American Academy of Religion. 79(2),425-458. chama a atenção para o sentido histórico da emergência da palavra “missão” no século XVI. Antes disso, a palavra missio, no latim, era empregada exclusivamente para se referir à Santíssima Trindade, com o envio do Filho e do Espírito Santo pelo Pai; naquela quadra histórica, dois novos usos do termo (relacionados entre si) aparecem: 1) as coroas de Portugal e Espanha passam a assim designar as tropas enviadas para a conquista de novos territórios; 2) em paralelo, esse é o nome dado por Inácio de Loyola para os jesuítas atuando no Novo Mundo. Há, portanto, um sentido geopolítico e um sentido religioso-espiritual, conjugado na emergência do termo, rapidamente aceito como palavra corrente em distintas línguas europeias, graças à noção imposta pelo conceito de que os europeus (missionários) são sujeitos da ação; e os não europeus, receptores das missões, seu objeto. O conceito de missão desempenha um ato performativo a compor uma nova acepção de mundo, de modo a integrar as sociedades recém-construídas e confirmar a supremacia europeia.

O eurocentrismo latente à ideia de missão é confirmado quando do surgimento da “missiologia” como campo de conhecimento, no século XIX, outro período de forte expansão imperialista europeia. As Igrejas buscam nas universidades o repositório de justificativas para legitimar sua ação, da qual nem sempre há coordenação com os outros personagens interessados na expansão imperialista (administradores, comerciantes, etc.). Sua definição como uma disciplina dentro do “campo científico” se dá inicialmente no universo protestante, com Gustav Warneck, professor da universidade de Halle entre 1897 e 1908. Pouco tempo depois, a Universidade de Münster cria uma segunda cátedra de missiologia, entregue ao católico Gustav Schmidlin, criador do termo Missionwissenchaft, ou “ciência das missões”.

Schreiter (1994)Schreiter, R. (1994). Changes in roman catholic attitudes towards proselytism and mission. In S. Bevans, & J. Scherer, New directions in mission and evangelization (pp.113-125). Nova Iorque: Orbis Books. confirma a inflexão apresentada por Kollman, tomando como análise os documentos oficiais da Igreja Católica e sua atitude em relação ao assunto. Sua periodização para esse tema sugere que o momento de crise na concepção tradicional da missão se deu durante o Concílio Vaticano II; antes dele, cinco Encíclicas3 3 De Bento XV, a Maximum Illud (1919); de Pio XI, a Rerum Ecclesiae (1926); de Pio XII, a Evangelii Praecones (1951) e a Fidei Donum (1957), essa última de capital importância para a Igreja latino-americana. A última encíclica desse período é de João XXIII e se chama Princeps Pastorum (1959). sobre o assunto enfatizaram a necessidade de obter novos adeptos à fé católica, em detrimento das considerações sobre os costumes locais. Com a Ad Gentes (1965), modifica-se substancialmente a visão que a Igreja oferece aos seus fiéis sobre o tema: o sentido inicial da missão como elemento constituinte da Santíssima Trindade (é o Pai quem envia o Filho e o Espírito Santo) é evocado para estender a todos os praticantes a participação nesse esforço. No mesmo documento, o enfrentamento com outras religiões é matizado em vista da aceitação da coexistência entre religiões distintas como algo inerente ao mundo contemporâneo.4 4 Embora seja essa a visão majoritária no seio do discurso eclesial, é forçoso admitir que as Encíclicas Conciliares são, de modo geral, fruto da construção de um consenso entre várias vozes com opiniões divergentes -- o que implica em dizer que também há uma possibilidade de interpretar a Encíclica como uma defesa de uma postura mais agressiva do catolicismo frente às outras religiões. Trata-se apenas de afirmar que essa última não é a interpretação majoritária no meio eclesial.

O enfrentamento das críticas sobre o eurocentrismo da ação missionária, conjugado à manutenção do projeto de estender o catolicismo romano a culturas não europeias, resultou em uma inflexão no discurso de alicerce da atividade missionária. Em termos de vocabulário, há uma preferência da Santa Sé por utilizar o termo “evangelização” em paralelo ao da “missão” como forma de mitigar o peso histórico do genocídio cultural provocado pelos missionários do passado, mas os resultados são questionáveis: pode existir uma troca de saberes entre religiosos e receptores da missão, quando os primeiros partem em direção aos últimos no intuito expresso de modificar por completo sua visão de mundo? É possível haver um diálogo simétrico entre membros da Igreja – uma instituição estabelecida em escala planetária – e moradores de comunidades isoladas? A essas dificuldades soma-se o fato de que o discurso dos missionários frequentemente comporta, de forma repaginada, a distinção entre “civilizados/ocidentais” e “primitivos/não ocidentais”.

Enfeixando essas questões sob prismas bastante distintos entre si, estão os artigos do presente dossiê, alguns dos quais expressam aspectos das pesquisas individuais desenvolvidas no Projeto Temático. Assim são os textos de Guilherme Arduini, interpretando os investimentos da Igreja Católica (dioceses e congregações) na Educação Superior; ou o de Massimo Bonato, tratando das experimentações pastorais da Igreja na década de 1960, em que o autor analisa o projeto da Gioventù Studentesca no Brasil. Ainda podem ser citados: o estudo de Diego Silveira sobre a representação das figuras de mãe mulher e esposa no jornal O Arquidiocesano, Órgão Oficial da Arquidiocese de Mariana (Minas Gerais), ou ainda o artigo de Paula Leonardi, que priorizou a interpretação do processo de socialização implementado pelos salesianos no Santuário e no Liceu do Sagrado Coração de Jesus, em São Paulo. Neris e Seild trazem no artigo “Crise e Recomposição do Habitus Religioso na Periferia do Espaço Católico”, um estudo sobre a crise da Igreja Católica, tomando como objeto de análise a recomposição da elite eclesiástica no Maranhão. Merece destaque o artigo “Matrimonio, Sexualidad Y Bioética en el Magisterio Pontificio: De Pio XI A Francisco”, de Rodolfo de Roux, assessor internacional do projeto que analisa os avanços e a permanência na política da Igreja no que se refere aos temas sensíveis para a modernidade, como é o caso dos modelos de família.

À guisa de considerações finais, cumpre observar que a natureza plástica da Igreja Católica, autocompreendida como instituição universal, configura um processo permanente e criador de discursos e estruturas capazes de enfrentar mudanças sociais e culturais. Daí porque imigração e missão continuam a ocorrer nos dias atuais, não mais com o sentido original do final do século XIX. Não são os europeus que chegam em grandes grupos para trabalhar na romanização, mas asiáticos africanos ou latino-americanos que entram no País para colaborar na manutenção das estruturas católicas, carentes de novos quadros profissionais nacionais. A dificuldade de recrutamento seja para o clero religioso ou para o diocesano tem provocado um novo modelo de imigração que deverá ser examinado futuramente.

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    Ver mais detalhes sobre esse evento político-religioso na obra publicada pelo Vaticano, por ocasião do centenário do Concílio, em 1999. Pontifícia Commissio Pro America Latina. (2000). Los últimos cien años de la evangelización en América Latina. Actas. Ciudad del Vaticano: Libreria Editrice Vaticana.
  • 2
    Os artigos presentes neste dossiê constituem parte da produção acadêmica gerada pelo projeto coordenado por Agueda Bittencourt: “Congregações católicas, educação e estado nacional, 1849/1950”, desenvolvido no período de 2012-2017, sediado na Unicamp.
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    De Bento XV, a Maximum Illud (1919); de Pio XI, a Rerum Ecclesiae (1926); de Pio XII, a Evangelii Praecones (1951) e a Fidei Donum (1957), essa última de capital importância para a Igreja latino-americana. A última encíclica desse período é de João XXIII e se chama Princeps Pastorum (1959).
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    Embora seja essa a visão majoritária no seio do discurso eclesial, é forçoso admitir que as Encíclicas Conciliares são, de modo geral, fruto da construção de um consenso entre várias vozes com opiniões divergentes -- o que implica em dizer que também há uma possibilidade de interpretar a Encíclica como uma defesa de uma postura mais agressiva do catolicismo frente às outras religiões. Trata-se apenas de afirmar que essa última não é a interpretação majoritária no meio eclesial.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Sep-Dec 2017

Histórico

  • Recebido
    28 Mar 2017
  • Aceito
    11 Abr 2017
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