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Editorial

No romance Memórias1 1 Memórias (romance) (Raquel de Queiroz, Trad.). São Paulo: Global, 1983. O título Memórias reúne três romances – Infância, Adolescência e Juventude – em que o autor recria as suas experiências pessoais. , de Léon Tolstoi, o narrador vê o mundo dividido entre pessoas comme il faut e pessoas comme il ne faut pas, categoria que, para ele, ainda se subdividia entre pessoas não comme il faut e simples pessoas do povo.

Para o jovem nobre russo, ser comme il faut consistia, antes de tudo, em saber falar bem o francês, ou melhor, pronunciá-lo bem. Quem não o fizesse, provocava nele um profundo ódio – "Por que tentas falar como nós, se não o podes?" (Tolstoi,1983, p. 368). Além disso, as pessoas comme il faut deviam ter as unhas compridas, limpas e polidas; saber cumprimentar, dançar e conversar; mostrar-se sempre com um ar de enfado por tudo. Todavia, uma das principais condições de alguém comme il faut consistia justamente em esconder todo o esforço que se fazia para atingir essa condição. Um comme il faut, observa o narrador, orgulha-se de ser apenas isso.

O protagonista estimava as pessoas comme il faut por serem suas iguais e fingia desdenhar as do segundo grupo, confessando até sentir ódio, por considerá-las uma ofensa à dignidade humana; quanto às pessoas do povo, estas nem sequer existiam para ele.

Para Tolstoi e seu duplo nesse romance, que fugiram do destino que os aguardava, a educação e o meio não podiam ter-lhes inculcado uma concepção mais nociva e falsa como esta do "comme Il faut": servia não só para estabelecer quem estava e quem não estava de acordo com algumas condições exigidas pela e para a nobreza russa do final do século XIX, como também, especialmente, para legitimar as distâncias sociais e culturais existentes entre esses grupos de privilégio e a sociedade mais ampla, considerada pelos primeiros quase aquém da condição humana.

Certamente não há como discordar de um observador tão perspicaz da educação moral das elites de sua época como foi Tolstoi. Acrescento apenas à ideia do "comme il faut" o seu caráter de ser apenas forma da qual se depreende a sua constância e atualidade. Arrisco mesmo a concebê-la como um eficaz dispositivo mediante o qual as posições de privilégios de determinados grupos sociais são produzidas e mantidas. Como forma que se preenche, ser comme il faut consiste em atender às condições que cada época e lugar impõem aos filhos das elites como eficazes para distingui-los dos que não o são, isto é, dos nascidos em outros meios sociais.

Neste número da revista Pro-Posições, o dossiê "Elites y sectores medios: fronteras morales y desigualdad educativa", organizado por Sandra Ziegler, da Faculdade Latinoamericana de Ciências Sociais (FLACSO), de Buenos Aires, reúne cinco estudos de pesquisadores estrangeiros e brasileiros sobre os processos de escolarização de elites, hoje, em três países latino-americanos – Argentina, Brasil e Chile.

Victoria Gessaghi trata das narrativas morais elaboradas pelos sujeitos pertencentes às classes altas argentinas, mostrando como essas narrativas, em que se destacam valores como simplicidade e espírito solidário, são recursos que as famílias mobilizam para fazer suas escolhas escolares e se distinguir de outros grupos das classes dominantes.

Sofia Bowen nos mostra como os membros das elites econômicas chilenas, ligadas a colégios católicos de prestígio, estabelecem as diferenças em relação ao "outro" pobre; ao identificar na pobreza uma carência cultural, essa elite explica a desigualdade como produto de conquistas diferenciais decorrentes da relação com a cultura e o trabalho.

Sebastian Fuentes estuda o efeito da dinâmica que se estabelece entre várias instituições – escola, universidade, clubes, igreja, bairros fechados –, em Buenos Aires, na formação (e reprodução) de uma juventude como classe, cuja posição de privilégio se justifica em termos morais.

Graziela Perosa, Frédéric Lebaron e Cristiane Kerches da Silva Leite tratam das desigualdades educacionais no município de São Paulo, mostrando a aproximação dos grupos sociais na estrutura social e as relações que eles mantêm com o sistema educacional nas diferentes regiões da cidade; apontam ainda para as mudanças que estão ocorrendo na configuração do sistema educacional da capital paulista, especialmente no Ensino Médio, em virtude do investimento familiar no capital escolar dos filhos.

Alícia Méndez estuda os egressos de uma escola pública de Ensino Médio ligada à Universidade de Buenos Aires. A ideia da existência de uma "comunidade" presente nas falas dos ex-alunos é o que lhes permite estabelecer as diferenças entre "quem somos nós" e "quem são os outros", assim como manter a coesão do grupo com base em uma série de princípios e disposições que julgam exclusivos.

O dossiê compõe-se, assim, de estudos que nos falam de privilégios, classes sociais, circulação e mobilidade de diferentes grupos sociais. Esses temas, como bem nota Sandra Ziegler na apresentação do dossiê, nos remetem a dinâmicas de estratificação social e ao modo como se dá, em cada contexto nacional, a configuração de suas desigualdades educacionais, evidenciando o caráter relacional destas. Por meio de pesquisas empíricas, os artigos tratam das estratégias educativas utilizadas por grupos que ocupam posições de privilégio e por outros que as disputam; abordam as distâncias que se estabelecem entre os grupos, em um imbricado processo de mobilidade e/ou de fechamento social, e, como parte dessas dinâmicas, a assimilação de referências por parte dos grupos já estabelecidos e dos novos grupos constituídos, a fim de delimitar a sua inserção e pertença social, ou seja, para serem reconhecidos como pessoas comme il faut.

Além do dossiê "Elites y sectores medios: fronteras morales y desigualdad educativa", a revista traz ainda cinco artigos de pesquisadores brasileiros e estrangeiros. Alguns temas desses estudos – educação escolar indígena, educação inclusiva e educação infantil – bastam para indicar a amplitude e a complexidade crescente das questões que envolvem a educação no mundo contemporâneo.

Maria Aparecida Bergamaschi e Fernanda Brabo Sousa, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, tratam das possíveis mudanças para a política escolar indígena no Brasil, ocasionadas por normatizações federais – mais especificamente, pelo Decreto Presidencial nº 6.861, de 2009, que criou os "Territórios Etnoeducacionais", e pela Portaria nº 1.062, de 2013, do Ministério da Educação, que instituiu o Programa Nacional dos Territórios Etnoeducacionais. Para as autoras, essas normativas recentes, ao colocarem ênfase no protagonismo dos indígenas na educação escolar, "ressituam" a política de educação escolar indígena no País, podendo mesmo chegar a interferir na organização territorial e nas formas de gestão e condução das escolas indígenas.

O estudo de María Virginia Mellado, do Instituto de Ciencias Humanas, Sociales y Ambientales, em Mendoza, Argentina, ainda que não integre o dossiê "Elites y sectores medios: fronteras morales y desigualdad educativa", partilha do mesmo interesse. Ao analisar os processos de construção e reprodução das posições de poder na Argentina contemporânea, a autora mostra como a passagem pela universidade e a participação nos centros estudantis constituem as formas de socialização de uma geração de políticos que ingressaram na carreira no período democrático recente.

Débora Dainez, da Universidade Estadual de Campinas, no estado de São Paulo, e Gabriela Naranjo, da Secretaría de Educación Pública no México, tratam da implementação das políticas de educação inclusiva no Brasil e no México, respectivamente, analisando as formas que os professores que atuam em escola regular em ambos os países encontraram para responder às demandas colocadas pelas políticas relacionadas ao atendimento de alunos com "necessidades educacionais especiais" (NEE).

Também Simone Patrícia Silva e Carina Pessoa Santos, ambas da Universidade Federal de Pernambuco, e Pedro de Oliveira Filho, da Universidade Federal de Campina Grande, na Paraíba, abordam as dificuldades de uma educação inclusiva. Na pesquisa realizada com professores do Ensino Fundamental das redes pública e privada no estado de Pernambuco, os autores mostram o uso de categorias de cunho "psicologizante" ou "biologizante" pelos professores, para se referirem aos alunos considerados portadores do TDAH ou com atividade acima da média; ao procederem dessa maneira, os professores opõem ideias de "normalidade" e de "anormalidade", individualizando os comportamentos dos estudantes, tidos como desviantes, sem jamais questionar a estrutura escolar.

Sandro Vinicius Sales dos Santos, da Universidade Federal de Minas Gerais, a partir da polissemia do conceito de experiência em Walter Benjamin, propõe buscar elementos que possam contribuir para a elaboração da noção de experiência infantil – "composta por um misto de complexidade e sutileza". Para o autor, as contribuições de Walter Benjamin são de grande valia para a construção de um olhar diferenciado para a criança e sua educação no mundo contemporâneo.

A revista traz ainda uma densa resenha do livro Privilege. The making of an adolescent elite at St. Paul's School, de Shamus Khan, publicado em 20122 2 Khan, Shamus (2012). Privilege. The making of an adolescent elite atSt. Paul's School (Collection - Princeton Studies in Cultural Sociology, 232 pp.). Princeton and Oxford: Princeton University Press. . St. Paul's School é uma escola de Ensino Médio, localizada em Concord, New Hampshire, nos Estados Unidos, voltada para a preparação de estudantes para o ingresso nas universidades da Ivy League3 3 O termo Ivy League é utilizado para designar um grupo de oito universidades na costa nordeste dos Estados Unidos, reconhecidas internacionalmente por seu prestígio acadêmico e pela alta seletividade de seu público. Harvard, Yale, Princeton e Columbia, por exemplo, constam desse seleto grupo. . O autor da resenha é Nicolau Dela Bandera Arco Netto, doutorando do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade de São Paulo. Shamus Khan, autor do livro resenhado, é professor do departamento de sociologia da Columbia University. Ele discute o papel das escolas na (re)produção das desigualdades culturais e econômicas, uma questão que vem ganhando importância na sociologia da educação nas últimas décadas. Dentre as pertinentes considerações que Arco Netto faz sobre o livro de Khan, uma me parece especial: "[o estudo] traz novos ares para a sociologia da educação e pode ser o ponto de partida para certos deslocamentos nas pesquisas sobre os processos de socialização na elite. Talvez o principal deles seja um deslocamento metodológico". Em sua etnografia de um colégio de elite, Khan, observa Arco Netto, não se limitou ao que os jovens e a instituição dizem sobre si mesmos, procedimento bastante comum em pesquisas baseadas em entrevistas, observando as interações e os rituais da instituição, demonstrando "como certas disposições corporais, como a facilidade em transitar entre diferentes searas culturais, são produzidas no cotidiano". Mais que as explicações dos sujeitos, é preciso observar as interações entre eles. Arco Netto, por sua vez, cumpre a sua missão: lançar um convite irrecusável à leitura da obra resenhada.

Para finalizar, segue uma informação importante: já neste número a revista Pro-Posições adota, como padrão de atribuição de acesso aberto dos artigos, a licença CC-BY, aderindo, assim, aos novos critérios de indexação do SciELO Brasil. A licença CC-BY, que substitui a CC-BY-NC, é hoje adotada internacionalmente pelos principais periódicos e publicadores de acesso aberto; a vantagem da nova licença é maximizar a disseminação dos artigos, um dos principais objetivos do Programa SciELO. Aos mais interessados pelo assunto, sugerimos a leitura do post "SciELO adota CC-BY como atribuição principal de Acesso Aberto" no blog SciELO em Perspectiva.

E mais não digo. Boa leitura a todos.

Helena Sampaio*
*Departamento de Ciências Sociais na Educação, Faculdade de Educação, Universidade Estadual de Campinas - Unicamp, Campinas, SP, Brasil. hsampaio@unicamp.br

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    Memórias (romance) (Raquel de Queiroz, Trad.). São Paulo: Global, 1983. O título Memórias reúne três romances – Infância, Adolescência e Juventude – em que o autor recria as suas experiências pessoais.
  • 2
    Khan, Shamus (2012). Privilege. The making of an adolescent elite atSt. Paul's School (Collection - Princeton Studies in Cultural Sociology, 232 pp.). Princeton and Oxford: Princeton University Press.
  • 3
    O termo Ivy League é utilizado para designar um grupo de oito universidades na costa nordeste dos Estados Unidos, reconhecidas internacionalmente por seu prestígio acadêmico e pela alta seletividade de seu público. Harvard, Yale, Princeton e Columbia, por exemplo, constam desse seleto grupo.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    May-Aug 2015
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