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Identidades docentes no Ensino Médio: investigando narrativas a partir de práticas curriculares disciplinares

Teacher identities in high school: investigating narratives from disciplinary curriculum practices

Resumos

O artigo apresenta resultados de uma pesquisa que investigarelações entre os processos identitários docentes e a noção de disciplina escolar. Do ponto de vista metodológico, foi constituído um quadro empírico de narrativas docentes produzidas pela rememoração das experiências profissionais na relação com as disciplinas escolares. A análise mostrou que é possível depreender processos identitários docentes disciplinares articulados às experiências de vida dos professores na relação com dinâmicas de estabilização presentes no currículo. Aliadas a esse aspecto, evidenciam-se dificuldades em torno de práticas interdisciplinares, já que a disciplina escolar se configura, geralmente, como uma espécie de nicho que blinda identidades docentes.

identidade docente; Ensino Médio; disciplina escolar; narrativas


The article presents results of a research project that investigates relationships between teacher identity processes and the notion of school discipline. From the methodological point of view, was constituted an empirical framework of narratives produced by the recollection of professional experiences in relation to school subjects. As a result, it is possible to deduce that identity processes disciplinary faculty are articulated the life experiences of teachers producing a stabilization dynamic in the curriculum. Allied to this aspect, are evident the difficulties around interdisciplinary practices, being the school discipline shaped generally as a kind of niche that protects teacher identities.

teacher identity; high school; scholar discipline; narrative


Introdução

Este artigo integra resultados de uma pesquisa que focaliza relações entre os processos identitários docentes e a noção de disciplina escolar no Ensino Médio. Para isso, a pesquisa1 1 Esta pesquisa foi apoiada pelo CNPq, no contexto dos processos 475137/2008; 306053/2009 e 504289/2010-1. está centrada na ideia de que as disciplinas escolares estão sofrendo um processo contínuo de dissolução no currículo do Ensino Médio, principalmente, a partir de reformas curriculares mais especificamente representadas por documentos curriculares, como Parâmetros Curriculares Nacionais – PCN – (Brasil, 1999Brasil. (1999). Parâmetros Curriculares Nacionais para o Ensino Médio. Brasília: Ministério da Educação: Secretaria de Ensino Médio.) e Orientações Curriculares Nacionais para o Ensino Médio – OCNEM – (Brasil, 2006Brasil. (2006). Orientações Curriculares Nacionais para Ensino Médio. Brasília: Ministério da Educação: Secretaria de Ensino Médio.)2 2 Importante notar que, no período da pesquisa, o documento Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Médio (2012) ainda não tinha sido publicado. .

Nesse sentido, é importante considerar que a estabilidade das disciplinas no currículo está ligada à formação de professores nas instituições universitárias (Goodson, 1995Goodson, I. (1995). Currículo: teoria e história (4a ed.). Petrópolis: Vozes. 140 p. Hall. S. (2003a). A identidade cultural na pós-modernidade. (T. T. da Silva, G. L. Louro, trads). Rio de Janeiro: DP&A. 102 p.). Esse é, no entanto, um dos aspectos de um processo histórico complexo de transformação das disciplinas escolares no contexto de políticas curriculares oficiais na educação brasileira. Para Lopes e Macedo (2002)Lopes, A. C., & Macedo, E. (2002). A estabilidade do currículo disciplinar: o caso das ciências. In E. Macedo, & A. C. Lopes. Disciplinas e integração curricular – história e políticas. Rio de Janeiro: DP&A. 224 p., a estabilidade do currículo disciplinar é muito útil para a organização curricular, na medida em que, mesmo havendo integração entre disciplinas, isso pode ser expresso por meio da criação de novas disciplinas e não pela extinção completa delas.

No contexto dos documentos curriculares oficiais, publicados no início dos anos 2000, o elemento mais provocador de instabilidades nas escolas foi a noção de competências, contrapondo-se às disciplinas (Ramos, 2005Ramos, M. N. (2005). Possibilidade e desafios na organização do currículo integrado. In G. Frigotto, M. Ciavatta, & M. Ramos (Orgs.). Ensino Médio integrado – concepção e contradições. São Paulo: Cortez. 176 p.). Tal noção vem ao encontro da ideia de resolução de problemas e de ações voltadas para resultados, integrando conhecimentos normalmente distribuídos por diversas disciplinas e saberes cotidianos. Instabilidades provocadas pela noção de competência nos fazeres pedagógicos do cotidiano escolar foram reportadas também em pesquisa realizada, tendo como sujeitos professores do Ensino Médio. Nessa investigação, foi possível perceber a circularidade entre discursos oriundos das políticas oficiais e conhecimentos profissionais expressos pelos entrevistados, que recriam fazeres pedagógicos, ao mesmo tempo em que resistem àquilo que lhes é imposto (Carreri, 2007; Carreri; Petrucci-Rosa, 2006Carreri, A. V. (2007). Cotidiano escolar e políticas curriculares: táticas entre professores consumidores. Dissertação de Mestrado em Educação, Faculdade de Educação, Universidade Estadual de Campinas, Campinas.).

De fato, princípios de organização do conhecimento escolar articulam-se com propósitos para a preparação para o trabalho e para a prática social no mundo globalizado (Lopes, 2004Lopes, A. C. (2004). Políticas de currículo: mediação por grupos disciplinares de ensino de Ciências e Matemática. In A. C. Lopes, & E. Macedo (Orgs.). Currículo de Ciências em debate. Campinas: Papirus. 192 p.). Nas palavras de Lopes, isso faz emergir um discurso que atrela "a educação ao processo formativo capaz de inserir as pessoas na estrutura social vigente e em seus processos produtivos" (p. 56). Por mais que se afirme que as finalidades sociais do movimento de reforma curricular do Ensino Médio, no final dos anos 1990, estão inteiramente ligadas a uma "preparação para a vida", junto com essa "vida" percebe-se claramente a vinculação ao mundo do trabalho e a necessidade de formação de um outro jovem trabalhador: eclético, generalista e versátil.

Apesar da suposta e aparente contraposição entre competências e conhecimentos disciplinares, o próprio documento PCN (Brasil, 1999Brasil. (1999). Parâmetros Curriculares Nacionais para o Ensino Médio. Brasília: Ministério da Educação: Secretaria de Ensino Médio.) procura reafirmar a estabilidade das disciplinas, quando afirma, como eixos didático-metodológicos, as noções de interdisciplinaridade e contextualização. A primeira, particularmente, estimulada a partir de situações-problema ou questões abrangentes que possam abarcar diferentes linguagens e campos de conhecimentos na construção de uma rota metodológica de produção de conhecimento escolar. Mas ainda é de se notar que, mesmo tendo sido o documento organizado por áreas e havendo nele uma contínua valorização da ideia de integração, os professores são distinguidos por disciplinas.

Essa perspectiva disciplinar foi reafirmada quando, após a assunção do governo Luiz Inácio Lula da Silva, o Ministério da Educação promoveu, em 2004 e 2005, um conjunto de seminários de discussão para elaboração de novos documentos curriculares oficiais, que, por fim, ao serem publicados, foram denominados Orientações Curriculares Nacionais para o Ensino Médio (Brasil, 2006Brasil. (2006). Orientações Curriculares Nacionais para Ensino Médio. Brasília: Ministério da Educação: Secretaria de Ensino Médio.). Nesse documento, a noção de competência é esporadicamente discutida, ora rebatida, ora reiterada, já que os diferentes capítulos da obra relacionados com as disciplinas do Ensino Médio foram escritos por distintos grupos de estudiosos da Educação. Nesse último documento, a marca disciplinar é mais nítida, já que não há uma integração muito clara entre os discursos de cada texto/disciplina.

Assumimos, com Alice Lopes, que a disciplina escolar é uma tecnologia de organização curricular constituída a partir de discursos híbridos e recontextualizados (Lopes, 2005Lopes, A. C. (2005, maio/agosto). Discursos curriculares na disciplina escolar química. Revista Ciência e Educação, 11(2), 263-278.). No contexto das investigações mencionadas, à medida que as políticas curriculares oficiais produzem inúmeras interpelações em torno da interdisciplinaridade, da contextualização, do desenvolvimento de competências e habilidades, da preparação para a vida e para o mundo do trabalho, professores de disciplinas específicas veem-se em processos de fragmentação e descontinuidade identitárias.

Concordamos com Tura (2002Tura, M. de L. R. (2002). Conhecimentos escolares e a circularidade entre culturas. In A.C. Lopes, & E. Macedo (Orgs.). Currículo: debates contemporâneos. São Paulo: Cortez. 240 p.) que a tradição instituiu as grades curriculares e, juntamente, o valor simbólico conferido aos conhecimentos escolares, numa malha de rígidos mecanismos de controle. Passou-se a controlar a valorização, a transmissão e a assimilação de determinados conhecimentos e não outros, bem como as for-mas de fazer essa transferência.

Assim, ao se estudar a relação entre conhecimento e poder na instituição pedagógica, estão em questão os processos de dominação da cultura escolar, que se desdobram em seus ritos de instituição e nos inúmeros mitos que sustentam diversas formas de controle e regulação (Tura, 2002Tura, M. de L. R. (2002). Conhecimentos escolares e a circularidade entre culturas. In A.C. Lopes, & E. Macedo (Orgs.). Currículo: debates contemporâneos. São Paulo: Cortez. 240 p.). Isso vem ao encontro daquilo que chamamos de "currículo loteamento", ao tratar das relações entre experiências interdisciplinares e formação dos professores (Petrucci-Rosa, 2007Petrucci-Rosa, M. I. (2007, maio/agosto). Experiências interdisciplinares e formação de professore(a)s de disciplinas escolares: imagens de um currículo-diáspora. Pro-Posições, 18(2), 51-65.).

As políticas curriculares para o Ensino Médio vêm surtindo efeitos de circularidade que desestabilizam o currículo loteamento, no contexto dos fazeres cotidianos escolares, na medida em que defendem a interdisciplinaridade como um dos eixos didático-metodológicos da ação pedagógica. Neste mesmo artigo, é trazida a imagem de um currículo diáspora, vivenciado pelos professores que se "aventuram" em experiências interdisciplinares, tais como aquelas relatadas na pesquisa de Quintino (2005)Quintino, T. C. (2005). Alice no país das maravilhas: currículo integrado, interdisciplinaridade e um grupo de professores que mergulhou na toca do coelho. Dissertação de Mestrado, Faculdade de Educação, Universidade Estadual de Campinas , Campinas. e que, por ela, são chamados de "Alices" que, no país das maravilhas "interdisciplinares", mergulham na toca do coelho, sem saber aonde isso vai dar e, ao mesmo tempo, admirando-se com o que encontram pelo caminho. Um currículo diáspora é vivenciado em experiências interdisciplinares, na medida em que cada professor de... (uma determinada disciplina) é interpelado a deixar sua "terra natal", seu campo de conhecimentos acadêmicos e estáveis, para conhecer os campos dos outros e trocar experiências.

Considerando o período pós-anos 1990 de políticas curriculares nacionais para o Ensino Médio, como tem se transformado a noção de disciplina escolar no contexto do cotidiano da escola? Como experiências vividas marcam processos identitários docentes na relação com as disciplinas escolares? Que identidades docentes vêm sendo produzidas a partir das inúmeras interpelações advindas das noções de integração curricular e interdisciplinaridade?

Na tentativa de compreender esse conjunto de questões, construímos um quadro empírico a partir de narrativas docentes produzidas por professores atuantes no Ensino Médio, representantes de diferentes disciplinas escolares. Interessa-nos, como objetivo principal da pesquisa, entender como identidades docentes disciplinares se movimentam no currículo contemporâneo do Ensino Médio brasileiro, tomando como referência suas práticas pedagógicas narradas e as possibilidades de rememoração advindas dessas narrativas.

Do ponto de vista teórico, aproximamo-nos de Hall (2003a)Hall. S. (2003a). A identidade cultural na pós-modernidade. (T. T. da Silva, G. L. Louro, trads). Rio de Janeiro: DP&A. 102 p., para quem a identidade una, fixa e indivisível é considerada pura fantasia, na contemporaneidade. Processos identitários são forjados a partir de múltiplas interpelações que pulsam a todo instante no contexto da cultura. A partir desse ponto de vista, consideramos que professores de ... (Português, Matemática, Filosofia, História, Química, Física, etc.) são chamados cotidianamente a assumir diferentes posições de sujeito no seu fazer pedagógico e profissional. Interessa-nos saber os efeitos dessas interpelações em sua identidade disciplinar. Tais efeitos são potencializados por processos de circulação de discursos entre diferentes contextos, dos quais aqui localizamos: o contexto de produção de textos e o contexto da prática (Ball, Bowe, & Gold, 1992Ball, S., Bowe, R., & Gold, A. (1992). Reforming education and changing schools London: Routledge.).

Narrativas e mônadas: abordagem metodológica

Ao fazer a opção pelas narrativas como método, privilegiamos discursos produtores de identidades, de experiência e de currículo daqueles que são os praticantes, aqueles que, nas brechas de suas memórias, podem oferecer-nos imagens de um tempo e de um lugar. Em outras palavras, nossos trabalhos compõem um método investigativo que não busca o olhar do outro externo à experiência, mas, sim, a voz e o olhar daquele que vive e pratica o cotidiano da escola.

Nossas pesquisas, que trazem narrativas como metodologia, pautam-se em leituras da vertente conhecida como Nova História, sendo nosso principal inspirador o filósofo, crítico literário e historiador alemão, Walter Benjamin. Em sua obra, alguns escritos chamam-nos especial atenção sobre as possibilidades desse caminho: O narrador, Experiência e pobreza, A infância em Berlim por volta de 1900 e Sobre o conceito de história, publicados no Brasil na série W. Benjamin – Obras Escolhidas (1994Benjamin, W. (1994). Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura (Obras Escolhidas, vol. 1). (7a ed.). São Paulo: Brasiliense. 253 p., 1995)Benjamin, W. (1995). Rua de mão única (5a ed.). São Paulo: Brasiliense. 277 p. (Obras Escolhidas, vol. 2).. Das leituras desses textos, especialmente as noções de experiência, sujeito da experiência e narrativa são as mais relevantes para compor nossa metodologia.

Na perspectiva de Benjamin, a narrativa encontra-se intimamente relacionada ao ato de rememorar, à possibilidade de ressignificação da própria experiência por meio das memórias cheias de significados, sentimentos e sonhos. O ato de rememorar permite que dimensões pessoais, que foram perdidas com o avanço do mundo moderno e capitalista, sejam recuperadas na relação temporal passado, presente e futuro. Trabalhar com narrativas é trabalhar com aberturas, com a possibilidade de interlocuções com outros, sem procurarmos responder a todas as perguntas, muitas vezes até criando outras.

A arte da narrativa está em evitar explicações sobre o dito, permitindo que o leitor fique livre para interpretar o narrado como quiser, podendo este atingir uma amplitude que não existe na informação. O narrador benjaminiano traz consigo a característica do saber aconselhar, o que torna a experiência vivida significante e potencializante, sendo esse aconselhamento entendido, menos como uma forma de saber responder perguntas, do que um meio para dar sugestões.

Para Michel de Certeau, ao falarmos ou ao narrarmos, estamos praticando uma arte, e essa produz efeitos. Assim, o narrar não seria um retorno à descrição, mas um ato que procura, distanciando-se cautelosamente da realidade, provocá-la. Nas palavras do autor: "mais que descrever um 'golpe', ela (a narrativa) o faz" (Certeau, 1994Certeau, M. (1994). A invenção do cotidiano: 1. Artes de fazer (9a ed.). Petrópolis: Vozes. 351 p.). E, ao fazer o golpe, ao praticar a astúcia, essa arte pode assumir múltiplos desdobramentos. Sendo arte, exige criação; sendo astuta, pode se engendrar com ousadia.

As mônadas, noção derivada da obra de Walter Benjamin, são fragmentos de histórias que, juntas, narram a conjuntura de um tempo e de um lugar. Metodologicamente, elas são excertos das transcrições das entrevistas que são recriadas mediante textualização, produção de um título e edição. Expressam-se como pequenas crônicas, historietas com início e final geralmente aberto, que deixa brechas para que o leitor ou o ouvinte possa também, criativamente, perceber as verdades que elas contêm.

O contexto da pesquisa

Pretendendo investigar relações entre processos identitários docentes, reformas curriculares em nível de Ensino Médio e a noção de disciplina escolar, o contexto da pesquisa envolveu professores em formação inicial e professores experientes em serviço na escola básica. Foram entrevistados professores das quatro áreas do Ensino Médio, atuantes em escolas públicas do sistema estadual de ensino da cidade de Campinas – SP. Foram também entrevistados professores em formação inicial, alunos de licenciaturas3 3 Os estudantes de licenciatura, professores iniciantes, que foram entrevistados, estavam participando da disciplina Estágio Supervisionado na Faculdade de Educação da Unicamp. relacionadas com as quatro áreas do Ensino Médio: Lingua-gens, Ciências Humanas, Matemática e Ciências da Natureza.

Todas as entrevistas foram gravadas em áudio, transcritas e textualizadas posteriormente. Das transcrições das entrevistas, foram produzidas mônadas. Como já mencionado, as mônadas foram criadas a partir das narrativas ouvidas dos professores acerca de suas histórias como professor de... (disciplina escolar); suas escolhas profissionais, sua experiência docente e as oportunidades de práticas interdisciplinares vivenciadas. Basicamente, as questões feitas durante as entrevistas foram as seguintes: Como você se tornou professor de... (Matemática, Educação Física, História..., etc.)? Você vê diferença na sua prática docente de hoje, comparada ao seu início de carreira? Como você vê sua disciplina escolar no contexto do Ensino Médio? Você tem experiência com práticas interdisciplinares?

A seguir, será apresentado um conjunto de mônadas, constituído a partir das narrativas dos professores entrevistados. É importante destacar que faz parte de nossa metodologia apresentar esse conjunto como um bloco único de fragmentos, sem categorização prévia, tampouco nenhum tipo de classificação. Para Benjamin, quem adensa a narrativa é o ouvinte (ou o leitor); dessa forma, o arranjo das mônadas abaixo apresentadas, produzirá efeitos de compreensão nos leitores dentro de um espectro de regimes de verdade possíveis para seu contexto (Petrucci-Rosa, Ramos, Corrêa, & Almeida Junior, 2011Petrucci-Rosa, M. I., Ramos, T. A., Corrêa, B. R., & Almeida Junior, A. S. (2011, janeiro junho). Narrativas e mônadas: potencialidades para uma outra compreensão de currículo. Currículo sem fronteiras, 11(1), 198-217.).

Experiências narradas: a expressão por meio de mônadas

Mônada 1

EU ME DESTAQUEI

Quando estava na 6ª série, eu tinha um professor de Matemática que era bom mesmo. Eu gostava muito dele! Ele ensinava Matemática mesmo! Lembro-me de uma aula que ele passou 150 equações do 1º grau na lousa e eu fiz as 150 e fiquei muito bom naquilo. Considero como futuro professor de Matemática, que é necessário aprender bem equação de 1º grau, que é a base para os outros anos. O pessoal tinha um pouco de dúvida, mas eu aprendi direito. Fiz os 150! Vim de uma cultura que eu fazia tudo o que os professores falavam. Os meus colegas não faziam! Eu me destaquei, no final da 6ª série! (professor iniciante de Matemática)

Mônada 2

PROFESSOR FICA MEIO DESLOCADO

Nas minhas aulas já trabalhei conteúdos de outras disciplinas, mas assim no geral é uma coisa difícil, você está se relacionando com outro professor. Teve aqui, na escola, um campeonato. Para fazer um campeonato, revisão de jogos, poderia ter mais professores participando. Para fazer uma tabela, às vezes, poderia participar um professor de Ciências. Mas tem professor que fica meio deslocado: professor de Física, de Química... Às vezes não dá certo, por falta de tempo. Às vezes, trabalha em um lugar em outro, não há tempo na escola para fazer isso. (professor experiente de Educação Física)

Mônada 3

JORNALISTA

Na verdade, meu objetivo era ser jornalista. Fiz cursinhos preparatórios para ser jornalista, mas não consegui passar. Aí pensei: "quer saber de uma coisa, está faltando alguma coisa... Vou fazer Letras para melhorar a minha escrita e me formar mais, para passar no curso de jornalismo". Entrei em Letras, mas meu objetivo não era dar aula, mas aí comecei a lecionar enquanto estudante mesmo. (professor experiente de Língua Portuguesa)

Mônada 4

COERÇÃO OU COESÃO

Os alunos me entregam trabalhos de Sociologia, porque eles confundem. Acham parecidos. Durante uma aula no 1º. Ano do Ensino Médio, eu estava falando sobre o Estado em Filosofia política. Então tinha uma palavra que era "coerção" e um aluno me falou sobre o conceito de "coesão" que ele tinha aprendido em Português. Eu disse que não era a mesma palavra. Então, ele comentou: "Ah... Mas essa coerção a professora de Sociologia ensinou para nós..." Mas não era exatamente a mesma coisa. (professora experiente de Filosofia)

Mônada 5

QUERO TRAZER NOVIDADE

Nos HTPCs4 4 HTPC – horário de trabalho pedagógico coletivo, instituído nas escolas paulistas em 1996. , trabalha-se muito a ideia que a gente precisa se reunir, precisa conhecer mais a matéria do outro. Gosto bastante de Sociologia. Volta e meia, pego o caderninho da professora de Sociologia para ver se não estou trabalhando a mesma coisa, porque não quero trabalhar a mesma coisa. É muito chato. Eu quero trazer novidade. (professora experiente de Filosofia)

Mônada 6

ÉRAMOS FÍSICOS E CONVERSÁVAMOS SOBRE FÍSICA

Primeiramente, éramos físicos e conversávamos sobre Física e tínhamos a possibilidade de estruturar um trabalho em longo prazo. Alunos que eram meus eram depois repassados para o colega que também era físico ou voltariam a ser meus e isso nos permitia acompanhá-los. Isso não é mais possível hoje, sem falar que as escolas tiveram uma queda drástica no número de aulas. Você trabalha com isso e sabe... (professor experiente de Física)

Mônada 7

FERRAMENTA

No início da minha carreira, não se falava em interdisciplinaridade. Isso é mais recente. A interdisciplinaridade, de alguma forma, existe na Física, porque ela está presente no dia a dia. A Matemática é uma ferramenta nossa e a interdisciplinaridade naturalmente ocorre aí. Temos a possibilidade de levar alunos a laboratório, não sempre... Nós tínhamos quatro aulas semanais, mas o governo nos retirou uma aula e depois outra e hoje temos duas. Isso, por si só, já mostra a fragilidade do sistema e das possibilidades que nós tínhamos na época. (professor experiente de Física)

Mônada 8

PARA SER PROFESSOR...

Queria ser professor! Eu pensei em fazer História, Letras, Biologia e sempre gostei muito de Geografia! Como Geografia concilia essa parte de Humanas e Natureza, achei que era um curso mais eclético, que tinha a ver com a minha cara, para ser professor. Acho que muito influenciado pelos bons professores de Geografia que tive... Também tive bons professores de História e de outras matérias. Meu perfil era da área de Humanas! (professor experiente de Geografia)

Mônada 9

VIAJAVA

Escolhi fazer a licenciatura em Geografia, porque eu tinha uma professora que fez Geografia na USP e foi dar aula lá no interior de São Paulo, onde eu estudava. Minha professora dava uma aula, nossa! Espetacular! Pelo menos viajava com ela, ficava "Ai que delícia, conhecer o mundo". Aí ela contava do Egito, por exemplo... Tinha muita coisa para contar não é? Naquela época, há quarenta e poucos anos atrás... (professora experiente de Geografia)

Mônada 10

MILITÂNCIA

Tive um convívio muito intenso com as escolas em função desses projetos de Educação Ambiental que desenvolvia: num primeiro momento com a empresa de consultoria e depois com o poder público, na Prefeitura. Conhecia bem essa realidade, fazia muitas oficinas de planejamento com professores e também desenvolvi muitos projetos com alunos de escola pública. Conhecia os desafios e todas as dificuldades da escola hoje. O que me levou a ser professor é achar que tenho habilidades para dar aula. Acho também que se trata de uma militância, me sinto assim... Acho que é a maneira mais concreta de pensar que estou contribuindo na formação das pessoas. De todas as coisas que faço, o que me satisfaz bastante é saber que de fato estou contribuindo nesse movimento de cidadania e politização. Enfim, claro, dentro das perspectivas de uma sala de aula que você não tem um resultado mensurável em curto prazo. (professor experiente de Geografia)

Mônada 11

DIÁRIO DE BORDO

O que acho bem legal na Geografia e que difere das outras disciplinas, é poder responder por que estou, por exemplo, morando aqui em Campinas. A gente usa História, Biologia, Física, mas a essência da Geografia tem uma dimensão política, cultural, econômica, natural também. Então eu acho que é isso: conhecer como que a sociedade ocupa um espaço e como esse espaço interfere na vida das pessoas e como as pessoas interferem... É essa relação dialética mesmo. A Geografia é coisa muito visual, Geografia é isso, sabe, é... E provar que isso está no dia a dia deles. Eu acho que dentro dessas propostas pedagógicas do Estado que têm ênfase nessas competências de leitura e de Matemática, eu entendo que a Geografia tem muito a contribuir com isso, porque assim... Os meus alunos que tem dificuldade em Geografia, eles não tem dificuldade em Geografia e eles têm dificuldade primeiro em Português porque o bom leitor, ele leva muito fácil a Geografia. A competência de leitura, acho que ela é muito mais necessária para compreender Geografia do que a competência de Matemática para entender essa coisa de espaço, porque Geografia é uma viagem!

Brinco com os alunos, dizendo que o caderno deles é um diário de bordo. (professora experiente de Geografia)

Mônada 12

POSIÇÃO DIFERENTE

Ensinar antes? Era diferente porque o professor tinha uma posição diferente: era muito mais respeitado. Você diante da sala era, até de certa forma, uma autoridade. Eles tinham respeito por aquela pessoa que está trazendo uma orientação, uma informação. Hoje em dia, você entra na sala, não tem esse respeito, não tem essa imagem. Eles não têm essa imagem do professor, daquele que está lá na frente orientando, ensinando, fazendo com que você progrida em termos de conhecimento para o futuro... Essa é a diferença. Para ser professora de Geografia, a última coisa que eu trabalho é a matéria Geografia. Eu dou aula de educação sexual, dou aula de culinária, de conselho de vó, sabe? Eu sou psicóloga, menos professora de Geografia. Porque você pergunta... Na sala de aula, hoje, o aluno falou assim "Professora, você já ouviu falar... Você já recebeu o cidadão que veio fazer o censo na sua casa? Que é isso, fessora(sic)?" Aí você perdeu as pernas, né? Porque eu estava falando sobre população, ele não sabe nada... Nada! Impressionante. Gosto de dar aula de geografia, porque gosto de geografia. (professora experiente de Geografia)

Mônada 13

ELA NÃO GOSTAVA DE MIM

Tive uma professora muito boa na 8ª série (9º ano). Ninguém gostava dessa professora e ela também não gostava de mim, talvez porque eu era filho de funcionário. Não sei o que era, e por birra eu estudava muito a matéria dela! E só tirava dez na prova dela, dez, dez, dez... E ela não gostava de mim! Ela sempre confundia o meu número da chamada, e daí ela trocou minha nota e eu fiquei com 3! Deu confusão na escola e ela voltou atrás. Eu me dedicava mais exatamente por isso e sempre tinha um mal-estar por eu ser filho de funcionário. Meu pai ganhava R$ 700,00 e eu tinha uma bolsa de R$ 600,00, por isso havia uma pressão muito grande! Tinha que ir bem na escola. No Ensino Médio, eu tinha mais facilidade, nem estudava muito. Tirava uma nota seis, sete, mas nunca me preocupei em tirar dez! Eu sempre gostei de Geografia e História, debatia com os professores, participava das aulas, mas sempre tive muita facilidade em Matemática, por causa da minha dedicação anterior. (professor iniciante de Matemática)

Mônada 14

É PARA VOCÊ!

Quando você entra na faculdade... Tudo o que você vê aqui na faculdade no curso de Letras, não vai aplicar isso fora daqui, não vai levar para a sala de aula. O conhecimento que você adquire aqui, é para que você cresça aqui dentro e com isso consiga até ter as previsões para montar uma aula legal, entendeu? Mas, o que você vê aqui, você não leva para lá, para a escola... (professora iniciante de Língua Portuguesa)

Mônada 15

NÃO ERA QUÍMICA

Foi por iniciativa própria: levei um pouco de gasolina, mais ou menos 100ml... Comprei as provetas! Como disse, tinha prazer naquilo, queria ajudar, queria ver esse pessoal observar uma reação... Para mim, aquilo que estava na apostila não era Química! Queria que esses meninos dessa turma vissem a Química. (professor experiente de Química)

Mônada 16

VOCÊS NÃO SÃO NINGUÉM!

A gente não tem perspectiva se não fizer mestrado. Dizem: "Sem mestrado, vocês não são ninguém!!! Sem mestrado e doutorado, vocês não são ninguém." Até ouvi de um professor aqui na universidade que só sou formada em Ciências Sociais geral, Antropologia por conclusão e agora no segundo semestre, Sociologia por conclusão. Ele disse: vocês são bacharéis em Antropologia, antropólogo só depois do mestrado!!! Aí eu falei: "OK!!!" Foi o maior choque para mim, porque a gente estuda, estuda, estuda, para fazer um "livro" para ficar arquivado na biblioteca, onde só o pessoal da universidade tem acesso. (professora iniciante de Sociologia)

Mônada 17

VAI SER DIFÍCIL SE ESTABELECER

Vai ser difícil se estabelecer como campo de conhecimento. Acho que se os professores não conquistarem na prática esse espaço, não adianta nada! Tem material didático bom, mas os profissionais precisam conquistar esse espaço dentro da escola. Porque hoje se ensaia a dança da Festa Junina na aula de Educação Física e se não batermos o pé, vai ensaiar na minha aula de Sociologia. Vai sempre perder espaço... Escutei dentro da escola: "O que vai fazer na aula de Sociologia?" Depende dos professores, nós de Sociologia, não perder essa aula! (professora iniciante de Sociologia)

O adensamento das mônadas como análise

Para Benjamin (1994)Benjamin, W. (1994). Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura (Obras Escolhidas, vol. 1). (7a ed.). São Paulo: Brasiliense. 253 p., quem adensa a narrativa é o ouvinte. A ressignificação das histórias narradas é produzida por aquele que ouve, sendo que o narrador aconselha, expõe as brechas de suas histórias e deixa múltiplas possibilidades de interpretação. "Aconselhar é menos responder uma pergunta que fazer uma sugestão sobre a continuação de uma história que está sendo narrada. Para obter essa sugestão, é necessário primeiro saber narrar a história" (p. 200).

É assim que a narrativa se diferencia do romance.

O narrador retira da experiência o que ele conta: sua própria experiência ou a relatada por outros. E incorpora às coisas narradas a experiência dos seus ouvintes. O romancista segrega-se. A origem do romance é o indivíduo isolado, que não pode mais falar exemplarmente sobre suas preocupações mais importantes e que não recebe conselhos nem sabe dá-los (p. 201).

É com essa postura teórico-metodológica que propomos uma forma de análise das mônadas, compreendendo-as como narrativa, e não como romance, no sentido definido por Benjamin (1994)Benjamin, W. (1994). Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura (Obras Escolhidas, vol. 1). (7a ed.). São Paulo: Brasiliense. 253 p.. O conselho ou a verdade contido na narrativa pode indicar traços discursivos relativos às formações identitárias, no caso, forjadas na articulação entre a docência e a disciplina escolar presente no currículo do Ensino Médio.

Nesse sentido, as narrativas não serão categorizadas, por entendermos que qualquer tipo de classificação fixaria verdades, apagaria as ambiguidades contidas nas histórias e reduziria muito o espectro de ressignificação das experiências vividas. Por isso, optamos por discutir algumas brechas mais presentes e evidentes nas narrativas, articulando-as à investigação. Definimos aqui, como brechas, os discursos relacionados com a escolha profissional e também aqueles relacionados com práticas interdisciplinares. As histórias relacionadas com a escolha profissional e com as práticas interdisciplinares evidenciam interpelações que movimentam identidades docentes, ora fragmentando-as, ora articulando-as.

Rememoração e escolha profissional – a carreira e a disciplina escolar

Um dos aspectos analíticos depreendidos é o conjunto de conexões entre memórias e escolha da carreira, que respingam diretamente na possibilidade da definição de identidades docentes disciplinares. Nas rememorações, as narrativas expressam situações escolares ou extraescolares, que despertaram emoções, que facilitaram ou dificultaram algum tipo de escolha profissional. Desafio, medo, raiva, devaneio, alegria são sentimentos que aparecem narrados nas histórias dos professores e que se amalgamaram com a escolha de uma área de conhecimento como carreira profissional (conforme mônadas 1, 3, 8, 9, 10, 13).

Muitas vezes, a licenciatura não é a escolha inicial, a favor de carreiras talvez mais prestigiadas socialmente (jornalismo, administração, farmacêutico), mas há memórias de escola carregadas de uma estética de sentidos (Petrucci-Rosa, & Ramos, 2008Petrucci-Rosa, M. I., & Ramos, T. A. (2008, setembro/dezembro). Memórias e odores: experiências curriculares na formação docente. Revista Brasileira de Educação, 13(39), 565-599.) e racionalidades que acabam adensando um fluxo de vida a favor da docência como profissão.

Nessa relação entre memória e história, professores, ao experimentarem sua escolha, num curso de licenciatura, muitas vezes, constatam na vivência dos currículos universitários as diferenças entre conhecimento científico e conhecimento escolar, que se expressa diretamente no deslocamento entre ciência e disciplina escolar (conforme mônadas 14, 15 e 16). Nesse sentido, os deslocamentos identitários entre bacharelado e licenciatura desafiam os movimentos de tentativa de estabilização da identidade docente, num jogo de poder que contraria valores e reitera princípios díspares entre academia e escola (mônada 17).

Se identidades são forjadas por múltiplas interpelações, é possível depreender relações de pertencimento com as disciplinas escolares que se constituem a partir de eventos, situações e contextos que produziram processos de identificação docente na relação com os campos disciplinares. Nas narrativas, há indícios também das relações entre as disciplinas escolares, numa dinâmica hierarquizada, na qual há aquelas mais valorizadas pela cultura da escola e, portanto, mais estáveis, enquanto outras ainda vivem uma fase de inserção e lutam pela estabilização nas práticas curriculares vigentes.

Para Lopes (2005)Lopes, A. C. (2005, maio/agosto). Discursos curriculares na disciplina escolar química. Revista Ciência e Educação, 11(2), 263-278., concordando com Goodson, a disciplina escolar é uma tecnologia de organização curricular constituída por discursos recontextualizados e híbridos. Consideramos, no presente trabalho, que as marcas discursivas presentes nas narrativas docentes analisadas evidenciam formas de operação com tal tecnologia. As maneiras como professores se identificam com as disciplinas escolares também compõem os contextos discursivos recontextualizados e híbridos de cada campo disciplinar. As narrativas docentes trazem elementos que ora se articulam, ora rompem com outros discursos como, por exemplo, aqueles próprios dos documentos curriculares, da comunidade escolar, dos livros didáticos disciplinares, entre outros. O conjunto constituído por todos esses discursos configura a disciplina escolar no currículo.

Outra brecha evidente nas narrativas se refere à possibilidade de práticas interdisciplinares. Se as comunidades acadêmicas têm investido cada vez mais em projetos interdisciplinares e temáticos, por outro lado, na cultura da escola, como pudemos perceber, essa circularidade ainda parece ser pouco dinamizada. É o que desenvolvemos a seguir.

Integração curricular no Ensino Médio

Nas entrevistas, foi possível perceber que a circularidade entre os documentos curriculares e as práticas cotidianas, no que toca à integração curricular como interdisciplinaridade, ainda não é operada. As práticas interdisciplinares narradas são esparsas, um pouco confusas e não parecem fazer parte da cultura da escola como tradição (conforme mônadas 2, 4, 5, 7, 11).

Por vezes, a interpenetração de significantes, significados, conceitos nos discursos de aula, é vista como algo indesejável, inusitado e que precisa ser esclarecido. As práticas interdisciplinares são vistas como algo a ser controlado, padronizado e restrito a momentos "extracurriculares". A integração curricular aparece quase como um "acidente" ou um evento desconhecido e intruso que precisa ser, de alguma maneira, dominado.

Perceber dinâmicas em torno das possibilidades de trabalho interdisciplinar no currículo do Ensino Médio também é um caminho para compreender como identidades docentes disciplinares jogam com suas relações de pertencimento e com os status próprios das disciplinas escolares. Por isso, investimos nesse caminho analítico.

Para Hall (2003a)Hall. S. (2003a). A identidade cultural na pós-modernidade. (T. T. da Silva, G. L. Louro, trads). Rio de Janeiro: DP&A. 102 p., a identidade fixa é uma fantasia, pois somos interpelados, a todo momento, a assumir diferentes posições de sujeito nas redes discursivas. A integração curricular, como interdisciplinaridade, expressa nos documentos curriculares de Ensino Médio, é consumida em práticas pedagógicas pouco articuladas e ainda bastante apoiadas na noção de disciplina escolar, como uma espécie de trincheira ou blindagem que, ao mesmo tempo em que apoia, isola cada docente em seu campo. A disciplina escolar, como traço principal da identidade docente no Ensino Médio, parece exercer um papel ambíguo e contraditório na constituição das práticas curriculares.

Processos de identificação levam a processos de nossa relação com nós mesmos, o que Foucault aponta como uma genealogia da subjetivação. Essa genealogia não se concentra na construção histórica de cada um, de um "eu", mas, sim, na história das relações dos seres humanos consigo mesmos (Rose, 2003Rose, N. (2003). Identidad, genealogia, historia. In S. Hall, & P. Gay (Orgs.). Cuestiones de identidad cultural. Buenos Aires: Amorrortu.). A relação de cada um consigo mesmo toma a forma que tem por ter sido objeto de um conjunto de esquemas mais ou menos racionalizados, que moldam formas de compreensão que levam à prática a existência humana. As maneiras como os seres humanos dão significado à experiência têm sua própria história.

Nesse sentido, professores de Ensino Médio, narradores sujeitos da experiência, imersos na cultura da escola, jogam com seus elementos simbólicos na ressignificação do papel de sua formação disciplinar numa instituição que os interpela continuamente para assumir diferentes posições de sujeito. Como afirma Hall, a identidade é um conceito sob rasura, mas ainda necessário, pois constitui a sutura entre discursos e práticas que interpelam os sujeitos a se colocarem em lugares sociais de discursos particulares. As identidades são pontos de adesão temporária a posições subjetivas que nos constituem nas práticas discursivas (Hall, 2003bHall, S. (2003b). Introdución: quien necessita "identidad"? In S. Hall, & P. Gay (Orgs.). Cuestiones de identidad cultural, Buenos Aires: Amorrortu.).

Considerações finais

Este trabalho, como parte integrante do projeto de pesquisa Formação docente em disciplinas: políticas e identidades no contexto da cultura da escola, partiu do pressuposto de que a circularidade de discursos nas políticas curriculares brasileiras vem provocando desestabilizações na noção de disciplina escolar, especialmente no contexto da prática. A identidade docente ligada à formação disciplinar é ponto de partida na formação de professores, que tem chancelada sua atuação a partir de um campo científico específico. Em outras palavras, os processos de identificação docente estão usualmente ligados ao ser professor de..., particularmente na segunda eta-pa do Ensino Fundamental e, predominantemente, no Ensino Médio. Tais processos são deflagrados nas licenciaturas sob responsabilidade das universidades, em cujos contextos, práticas culturais e discursivas potencializam redes de poder em torno da formação específica do seu campo disciplinar.

As narrativas de professores do Ensino Médio das escolas participantes dessa pesquisa evidenciam a formação disciplinar como elemento simbólico importante tanto do ponto de vista das escolhas profissionais docentes como também das for-mas de atuação na escola. A formação disciplinar produz efeitos de sentido em suas práticas discursivas que levam a certa proteção de sua identidade, no contato com outros profissionais no cotidiano da escola. Tal proteção identitária pode ser um último recurso para a necessidade de apego a um sentimento de estabilidade.

Concluindo, destacamos que as narrativas evidenciaram uma dinâmica a favor das disciplinas escolares, colocando-as numa posição de instrumento de proteção às identidades docentes, o que, de certa forma, pode tornar mais remotas as possibilidades de integração curricular, no contexto do Ensino Médio.

  • 1
    Esta pesquisa foi apoiada pelo CNPq, no contexto dos processos 475137/2008; 306053/2009 e 504289/2010-1.
  • 2
    Importante notar que, no período da pesquisa, o documento Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Médio (2012) ainda não tinha sido publicado.
  • 3
    Os estudantes de licenciatura, professores iniciantes, que foram entrevistados, estavam participando da disciplina Estágio Supervisionado na Faculdade de Educação da Unicamp.
  • 4
    HTPC – horário de trabalho pedagógico coletivo, instituído nas escolas paulistas em 1996.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Apr 2015

Histórico

  • Recebido
    13 Ago 2013
  • Aceito
    25 Ago 2014
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