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Apresentação

Não te rendas. A masmorra é escura,

A firme trama é de incessante ferro,

Porém em algum canto de teu encerro

Pode haver um descuido, a rachadura.

(Borges, 2005, p.169).

"Quem é o outro que sempre anda a teu lado?", indagava o poeta T.S. Eliot (2004, p. 163)Eliot, T. S. (2004). Poesia. (Obras completas, vol.1). São Paulo: ARX.. Essa mesma questão já se interpôs no caminho dos fundamentos teóricos e das práticas educacionais há um certo tempo. Campos de investigações como a psicanálise, a sociologia, a antropologia, a etnologia, a linguística, a filosofia, dentre outros, erodiram os domínios das certezas em torno do sujeito imperador de sua condução racional. Ele deixou de ser aquele velho detentor das certezas com as quais e pelas quais os propósitos de uma experiência educacional pudessem lograr êxitos sem desvios, pela justa equação do caminho comum para conduzir, sem precipitação de juízos e dúvidas, como bem sonhara Descartes, a eficiência da formação humana.

Mas esse humano com o qual somos desafiados a formar, no sentido pleno do aprender a ser e estar em uma Bildung, escapa-nos em sua própria alteridade. A cultura, a linguagem, a economia, a ideologia, o desejo, as relações sociais, as tão propaladas relações de poder, a história própria de cada sujeito, tudo isso dá prova de que a indagação de Eliot se torna para nós a sua própria afirmação: "há sempre um outro que a teu lado vaga" (Eliot, 2004Eliot, T. S. (2004). Poesia. (Obras completas, vol.1). São Paulo: ARX., p.163).

Da indagação à certeza, eis uma imagem incontornável a desafiar as experiências educacionais contemporâneas. Trata-se dos sujeitos que vagam. Entre uma teoria e outra, entre uma prática e outra, entre um receituário e outro, deparamo-nos com sujeitos que recusam os pretensos destinos consolidados pela ordem explicativa que insiste em capturá-los nas identidades igualmente consolidadas. Eles resistem, porém, errando, vagueando, e vagando-se distraídos em cada escola e nas aulas, no ensino dos conteúdos, na estranheza, na alteridade inclassificável, nos essencialismos, nas identidades, e encontram-se ao nosso lado. Eles estão presentes no cotidiano escolar, nos acontecimentos infames que não compreendem – como se isso fosse possível – o que estão a fazer ou deixam de fazer. Por vezes não se incluem, e para serem incluídos recebem rótulos de todo tipo: roupas de grifes pedagógicas para melhor identificá-los. Eles são estrangeiros, eles são diferenças que indagam, para nós, às vezes de forma gritante, às vezes de forma silente: eis-me aqui, ao seu lado, causando constrangimento por virar a herança das verdades de ponta-cabeça – e o que pode ser feito?

Este cenário faz parte do que o dossiê "Didáticas para as diferenças" intenta nos fazer pensar. Do ponto de vista da filosofia da educação, que é por onde a consistência de seus textos se encontra, a problematização das diferenças vem se consolidando como instrumento a nos desafiar a pensar e a agir com os outros que andam ao nosso lado. Temas como o da inclusão, o da afirmação das subjetividades, o das pluralidades étnico-raciais, o da constituição de si mesmo como sujeito ético encontram-se na ordem do dia. Por eles, quase sempre transitam questões em torno do fracasso de uma educação normada, normalizante, de captura do singular, do refratário, do ser sendo o que não pode ser pelas condições sociomateriais de existências, interpostas pelas limitações dos espaços físicos, restrições de convivência nas coletividades, exclusão social, etc.

Muito menos do que indicar soluções, o que seria uma petição de princípio, o conjunto dos textos aqui presentes assinalam para os desafios que a educação contemporânea tem diante de si: aprender a manejar a diferença como afirmação da própria diferença. Representa dizer, por exemplo, que a Didática não pode existir mais, senão como didáticas e em letra minúscula. Toda herança da utopia didática comeniana, pródroma dos tempos de mercantilização da sociedade moderna, intentava (ou intenta?) não apenas forjar um método universal na arte de ensinar. Mas também visava a ensinar a certeza e com rapidez, pressupondo uma verdadeira instrução (Comenio, 1985Comenio, J. A. (1985). Didáctica magna. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian., p. 45). As didáticas para as diferenças, contudo, indagam justamente o que seria uma verdadeira instrução, as certezas no ensinar e a eficiência de suas etapas pressupostas em uma temporalidade regrada de aprendizagem. Mais do que isso, colocam em xeque toda e qualquer possibilidade regulada de modus operandi didáticos que ignorem os processos de singularização e as próprias diferenças imanentes em cada sujeito da educação.

Dessa maneira, o conjunto dos textos sobre as didáticas para as diferenças procura avançar no debate teórico acerca da relação educação e diferenças. No caso, a especificidade temática visa a problematizar o que está em jogo nos processos didáticos quando se leva em consideração a afirmação das diferenças. Este campo consagrado na educação, a "Didática", abarcando as múltiplas possibilidades de didáticas, pode encerrar experiências de captura, de homodidatismo, de territoralização fechada, circuitos restringentes de saberes-poderes, um savor-faire fetichizado pela competência reprodutiva ou ancorada no discurso de autoridade. Mas bem pode ser uma experiência criativa, nômade, curto-circuitando saberes-poderes; um convite para o educador também aprender a vagar, a deambular-se nas incertezas e tentar repensar o seu lugar, o seu fazer, o seu ser e estar com a e na educação, questionando a sua própria experiência com as didáticas, sem render-se ao cansaço desse aprender. Pensar toda esta dimensão é o fulcro gerador do dossiê.

Nesse sentido, o dossiê abre o seu horizonte de problematização com o texto de Carlos Skliar: "La pronunciación de la diferencia entre lo filosófico, lo pedagógico y lo literario". Pensar o "entre" instalado na própria diferença é ir além do diferencialismo que, por vezes, grassa nas experiências concretas do educar, reduzindo a imanência da diferença a uma simples aceitação do outro. Aceitação que reduz a sua própria diferença, pois vai contaminar o sujeito com os signos que são palatáveis ao aceitável, ao que se explica, ao que se pode incluir. Mas e a estrangeiridade absoluta, e o anormal escorregadio à norma, e o inominável? Skliar explora essas imagens por intermédio de três obras de Coetzee, a fim de denunciar os fortes componentes de normalização e de regulação jurídica a reduzir a diferença em signos identificáveis, tão presentes na educação. Ir além de tais componentes acarreta tomar a diferença como relação, e não como atributo essencial aos indivíduos para, assim, movermos para aquilo que se passa e se faz no interior das instituições educativas. A pronúncia da diferença, nessa perspectiva, implica-nos "na decisão acerca de como nos encontramos com outros, sendo outros, entre outros"; decisão que "é educativa, política e eticamente educativa".

Pode ser dito que tais questões vão ao encontro do que Fernando Bárcena propõe em "La diferencia (de los idiotas)". Levando às últimas consequências a acepção de idiotas (idiôtés), isto é, aqueles seres carentes de uma existência política, o texto nos convida a pensar como a educação, eivada por uma discursividade normopatologizante e homodidata geralmente passa ao largo daqueles que, em sua experiência de fragilidade e de vulnerabilidade, contrariam a educação voltada para o socialmente estabelecido. Para tanto, o autor "analisa a diferença como diferença, pensando-a em sua singularidade, tal e como se tratasse com um encontro com o estranho". Para a educação, trata-se de questionar a sua lógica que impõe o dever de fixar em cada um de nós um "alguém", um "quem" dotado de uma identidade bem definida pelos cânones da normalidade.

Por isso mesmo, para Hubert Vincent, no artigo "Indivíduo, subjetivação e cultura", o desafio que se interpõe constantemente entre pensarmos as didáticas para as diferenças e agirmos potencializando-as encontra-se no ponto de inflexão de toda produção de subjetivação com a cultura. Inequivocamente, a cultura de nossa época, ao mesmo tempo, que propala a valorização das diferenças, quando se trata da efetiva dimensão do indivíduo, vê-se em contradição com os modos pelos quais tende a tomar a singularidade apenas como uma ilação de um suposto individualismo contemporâneo. Por conseguinte, a educação estaria fadada a não dar atenção às diferenças individuais e incontornáveis de seus sujeitos indivíduos. O que é necessário, portanto, para acampar o indivíduo em sua diferença em uma cultura formativa que, como sabemos, é por princípio coletiva?

A questão acima coincide com a força da problemática que Pedro Ângelo Pagni suscita, ao abordar o seguinte tema: "Diferença, subjetivação e educação: um olhar outro sobre a inclusão escolar". Paira sobre as didáticas para as diferenças o constante impasse: potencializar a diferença em nome da afirmação produtiva da subjetivação singular e, dessa forma, saber partir da própria condição ontológica da diferença de cada sujeito; ou aniquilar tal possibilidade em nome das categorias de homogeneização de competências corporais, estéticas, mentais, etc. correlacionadas à própria demanda produtiva de uma sociedade neoliberal e biopolitizada. E é analisando o lugar do deficiente na escola, em tal contexto, que um olhar outro surge para a temática da inclusão escolar.

Se em todos esses artigos há, de fato, um incessante questionamento acerca da tradição didática, entendida em um sentido amplo como estratégia de fazer conexões com o ensinar e o aprender, é preciso chegar até o texto de Sandra Mara Corazza para podermos pensar a força de uma outra tradução didática desde a transcriação do currículo. É assim que em "Didática da tradução, transcriação do currículo (uma escrileitura da diferença)", a autora explora o conceito de diferença pura para nos possibilitar a pensar uma didática da tradução. Tal didática consiste na exploração de todo tipo de agenciamento na cena dramática da aula, em sua zona prática e proximal de criação em processo na aprendizagem com o conceito, com a arte, com os signos.

A perspectiva anunciada por Corazza ressoa na reflexão de Artur José Renda Vitorino em "A didática como diferenciador das diferenças pelas potências dos possíveis". Sustentando que a função da didática como diferenciador da diferença é ensinar que há um excesso do possível sobre o real, o autor nos contrapõe aos ramos de uma didática que reproduz apenas um real ou um possível. Para irmos além deste território, as didáticas são convidadas a ser um diferenciador da diferença, exercendo um duplo papel: o conteúdo da força da própria diferença e uma potencializadora das passagens entre virtual e atual, revelando, distintamente, a ontologia da pura diferença.

O que o leitor encontrará neste dossiê são tensões e pistas que nos levam a outras falésias, a outras alteridades com a educação. Por vezes nos depararemos com fios rompidos, ainda bem; e indagações que suscitam outras indagações; ou uma teia no seu duplo sentido: como aquilo que foi tecido e como tocha, facho, archote para atear inquietações, mais dúvidas, suspeições, es e ous, diferenças, reticências e, ainda, buscas incessantes nos fios de outras teias de outras didáticas para as diferenças, com outras teias a iluminar diferentemente os caminhos da educação contemporânea.

Seja como for, o dossiê pretende cumprir com a provocação suscitada por Nietzsche (2006)Nietzsche, F.W. (2006). Crepúsculo dos ídolos. São Paulo: Companhia das Letras, filósofo certamente responsável por abrir o diálogo com as diferenças:

Precisa-se de educadores que sejam eles próprios educados, espíritos superiores, nobres, provados a cada momento, provados pela palavra e pelo silêncio, de culturas maduras, tornadas doces – não doutos grosseirões que ginásio [escolas] e universidade hoje oferecem aos jovens como "amas-de-leite superiores" [itálicos do autor] (p. 58).

  • O presente dossiê foi pensado em 2013, durante minhas pesquisas de pós-doutoramento no Departamento de Filosofia e História da Educação da Faculdade de Educação (Unicamp). Devo imensamente a minha gratidão ao meu supervisor de pesquisas, o professor Dr. Silvio Gallo, pelo apoio e estímulo para organizar este dossiê. Também sou grato à Professora Dra. Ana Maria Fonseca de Almeida, editora da presente Revista e à Roberta Rabello Fiolo Pozzuto, pela paciência ao longo de todo ir e vir na organização que aqui se consubstancia.

Referências bibliográficas

  • Borges, J. L. (2005). A moeda de ferro (Obras completas, vol. III). Rio de Janeiro: Globo.
  • Comenio, J. A. (1985). Didáctica magna Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian.
  • Eliot, T. S. (2004). Poesia (Obras completas, vol.1). São Paulo: ARX.
  • Nietzsche, F.W. (2006). Crepúsculo dos ídolos São Paulo: Companhia das Letras

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Apr 2015
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