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EDITORIAL

A educação tem sido pensada e implementada, na modernidade, sob a chave da universalização. Se tomarmos a obra inaugural de Comenius, a Didática Magna, do século XVII, já encontramos ali tal marco: seu objetivo era definir as bases de um método que possibilitasse ensinar tudo a todos. Ensinar tudo o que se sabe a qualquer um e a todas as pessoas. Quatro séculos depois, alguns países se aproximaram mais da realização deste objetivo do que outros, mas, de modo geral, ele tem sido o princípio de gestão dos sistemas de ensino no Ocidente. A questão é que essa universalização do ensino engendrou uma nova ciência, a Didática, e engendrou também a massificação e a homogeneização daquilo que se ensina e daquilo que se aprende. Os testes internacionais e seus padrões de normalização são, hoje, o principal desse projeto educativo moderno.

Porém, a partir do final do século XX, outro problema começou a ocupar parte daqueles que se dedicam a educar: a questão das diferenças. Nesse processo homogeneizante que é o ensino universalizado (ao menos como projeto), como lidar com os diferentes? O que fazer com aqueles que aprendem de forma mais lenta? Com aqueles que não aprendem? Com aqueles que precisam de instrumentos especiais, posto que vivem de formas diferentes (que têm limitações de mobilidade, de visão, de audição, etc.)? Sob a lógica da universalização, a educação inclusiva impôs-se. Todos precisam estar nas escolas; todos têm o direito de aprender: é uma questão fundamentalmente política para as sociedades democráticas modernas. Mas, se os diferentes aprendem de formas distintas, como fica a Didática como ciência geral? Terá ela condições de enfrentar a problemática das diferenças?

O presente número de Pro-Posições pretende trazer elementos para o debate que hoje se trava com cada vez mais intensidade em nosso campo, ao publicar o dossiê "Didáticas para as diferenças", proposto e organizado pelo Prof. Dr. Alexandre Filordi de Carvalho.

Segundo o organizador, trata-se de pensar não em uma Didática universal, mas em didáticas particulares, sempre no plural, uma vez que a pluralidade é a marca das diferenças, e soluções universais estão fora de cogitação. Mas ainda não estamos em condições de oferecer soluções definitivas; o que encontramos aqui são distintas problematizações, abordagens diferentes da questão, buscando elementos que nos permitam, aos poucos, ir construindo formas diversas de educar, aprendendo, com as diferenças mesmas, como lidar com elas, num projeto que não seja o de seu apagamento, mas o de sua afirmação.

O dossiê é bastante provocador em seu conjunto de seis artigos, escritos por pesquisadores que se dedicam à Filosofia da Educação a partir de diferentes perspectivas e locais. Temos contribuições vindas da Espanha, da França, da Argentina e do Brasil, em diálogo com a literatura e as artes, com a filosofia e a política, bem como com diversas ciências da educação. Na "Apresentação" que introduz o dossiê, o Prof. Filordi comenta cada um dos textos, mostrando suas articulações internas e suas diferenciações. Em termos editoriais, penso ser importante destacar que um dos artigos, de autoria de Artur José Renda Vitorino, não foi originariamente proposto pelo organizador do dossiê, mas recebido pelo sistema de submissão contínua. Avaliado e aprovado o artigo, percebemos sua intrínseca ligação com o dossiê e, por sugestão da comissão editorial, o organizador gentilmente concordou em incorporá-lo aos textos que o compõem.

Além do conjunto de textos "Didáticas das diferenças", o presente número traz ainda outros cinco artigos, selecionados entre aqueles submetidos e aprovados nos últimos meses. Dois deles dizem respeito à temática das narrativas docentes. Em "Identidades docentes no ensino médio: investigando narrativas a partir de práticas curriculares disciplinares", as autoras Rosa e Ramos partem de narrativas produzidas pela rememoração de práticas profissionais na relação com as disciplinas escolares, para problematizar a construção de identidades docentes, mostrando que tal construção impõe barreiras – às vezes intransponíveis – à prática interdisciplinar. Já no artigo "Modos de falar de si: a dimensão estética nas narrativas autobiográficas", Ostetto e Bernardes focam a perspectiva estética, especificamente em um curso de Pedagogia do Teatro, em narrativas autobiográficas. Técnicas como a da escrita de si foram mobilizadas com os alunos do curso, de forma a produzir e a ampliar os modos de falar de si, numa dimensão pedagógica.

De autoria de Dias e Eisenberg, o artigo "Vozes diluídas no plágio: a (des)construção autoral entre alunos de licenciaturas" enfoca um dos problemas que mais tem mobilizado o campo da educação: o plágio e a questão da autoria. Os autores partiram de trabalhos de avaliação realizados em cursos de licenciatura e entrevistaram professores e alunos, para verificar como a pesquisa e o plágio são compreendidos por eles. O resultado encontrado levou à reflexão de natureza bakhtiniana sobre autoria na construção do conhecimento.

Os dois artigos que completam a seção são remanescentes da chamada pública que Pro-Posições fez para a publicação de um dossiê em homenagem a Michel Foucault. Ainda que aprovados no processo avaliativo, esses artigos não puderam ser incluídos no dossiê publicado no nosso número 74 e aparecem agora. Em "Interdiscursividade e interdição no discurso do conhecimento escolar em geografia", Vilela utiliza-se de ferramentas conceituais foucaultianas para analisar livros didáticos de Geografia para o Ensino Fundamental, evidenciando os jogos de poder na constituição discursiva da disciplina escolar. Silva e Freitas, por sua vez, passam em revista a produção recente no Brasil no campo da Filosofia da Educação influenciada pelo pensamento e pela produção de Foucault, no artigo "A ética do cuidado de si no campo pedagógico brasileiro: modos de uso, ressonâncias e desafios". Na visão dos autores, o conceito de cuidado de si marca um quarto momento-movimento na recepção de Foucault no pensamento educacional brasileiro, abrindo um novo campo de possibilidades analíticas e interpretativas.

Fechamos esta edição com a seção Diverso e Prosa, na qual publicamos uma entrevista inédita com o filósofo francês Michel Serres. Pensador das diferenças e das misturas e mestiçagens, Serres vê o processo educativo como encontro com as diferenças. Assim, embora a entrevista não seja parte integrante do dossiê que é o centro desta edição, dialoga diretamente com ele, complementando-o.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Apr 2015
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