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Editorial

EDITORIAL

A primeira experiência de alfabetização em larga escala apoiada pelas ideias de Paulo Freire completou 50 anos em 2013. Ela aconteceu entre janeiro e abril de 1963, na pequena cidade de Angicos no Rio Grande do Norte. A alfabetização de adultos havia se tornado uma questão política fundamental, na esteira do processo de urbanização acelerada que atravessava a América Latina, vista como mecanismo que permitiria incorporar o campesinato aos processos políticos mais amplos e à crescente industrialização.

Em plena Guerra Fria, a experiência de Angicos foi também uma resposta ao movimento revolucionário cubano, que anunciara ter reduzido a proporção de analfabetos adultos na população - de mais de 23% para menos de 4% - por meio do esforço de voluntários, no quadro da Campanha Nacional de Alfabetização que tivera lugar entre janeiro e dezembro de 1961.

Pela visibilidade que obteve, a experiência de Angicos contribuiu para consolidar o que ficou conhecido na época como "sistema de alfabetização em tempo rápido". Formulado por Paulo Freire, o sistema tinha como objetivo, mais do que alfabetizar, "conscientizar", isto é, oferecer elementos para a tomada de consciência da opressão.

A alfabetização de adultos e a experiência de Angicos tornaram Paulo Freire uma referência nacional e internacional. Sua maneira de pensar a educação no mundo contemporâneo e sua operacionalização nas salas de aula firmaram-se como um princípio educativo para inúmeros educadores e educadoras envolvidos com a educação e, em especial, com a educação popular, educação de adultos em espaços escolares e não escolares.

O dossiê especial que a Pro-Posições publica neste número foi pensado como um convite para refletirmos sobre esse legado e, em particular, sobre seu lugar no debate educacional contemporâneo. Muitos autores responderam ao convite. Agradecemos a todos e a cada um pelas contribuições enviadas. Os manuscritos finalmente selecionados para publicação enfrentam essa questão a partir de ângulos diferentes.

O pensamento de Paulo Freire apoia-se em conceitos com ambições universalistas, como a conscientização, a transformação, a cultura e a práxis educativa. É bastante lembrado nos debates do campo educacional brasileiro que esses conceitos apoiam uma proposta pedagógica na qual a cultura do educando e a cultura que o educador está encarregado de transmitir, em geral dissonantes, devem ser valorizadas como um instrumento fundamental do processo educativo, ponto de partida e de chegada para a construção de uma relação dialógica entre os dois, engajados que estão numa troca de conhecimentos, na sua partilha e na sua construção. Nessa perspectiva, o processo educativo se torna um ato coletivo de ação e reflexão constantes.

Pouco se discute, no entanto, sobre as tensões que atravessam tal proposta. Esse é o foco do artigo que abre o dossiê. Nele, Eduardo Dullo explora a articulação, no interior da proposta freireana, de uma dimensão horizontal, dialógica, com uma dimensão vertical, definida pela autoridade e expressa na busca de transformação dos "dispositivos mentais" dos estudantes. Materializada em experimentos educacionais, a tensão entre os dois eixos estruturantes da proposta revela-se de difícil solução, complicando seus resultados, como fica evidente no caso da "Experiência de Angicos", analisado no artigo.

Em seguida, o artigo de Marília Menezes e de Maria Eliete Santiago examina a contribuição da obra de Paulo Freire para o campo de estudos do currículo. Atentas às categorias mobilizadas pelo autor, elas tecem aproximações com a produção da área, mostrando como a noção de diálogo encontrou um lugar central nos debates sobre a função crítico-emancipatória do currículo.

Paulo Gomes Lima traz uma breve contextualização histórico-biográfica do educador, retomando as principais teses por ele defendidas e argumentando sobre a atualidade do pensamento freireano para a democratização da educação.

Já Danilo Streck problematiza, em seu artigo, as múltiplas e contraditórias repercussões da obra de Paulo Freire, colocando em destaque quatro aspectos que caracterizam as contribuições do educador: a utopia, como tensão dialética entre as condições e as possibilidades de desenho e a realização de um projeto histórico; a radicalidade, como enraizamento e, ao mesmo tempo, o trânsito necessário e fecundo entre opções e posicionamentos; a dialogicidade, como princípio no processo educativo de conhecer-aprender-ensinar; e o rigor, no sentido do comprometimento ético-político que orienta a ação educativa.

O artigo seguinte, de Dalva de Souza Franco, oferece elementos para pensar as condições de possibilidade de transformação da proposta educacional freireana em política de governo. O relato cuidadoso das iniciativas imaginadas e do contexto de sua implementação é uma contribuição substantiva para se avançar na reflexão sobre a formulação de políticas educacionais.

Por fim, o artigo de Sergio Haddad encerra o dossiê propondo uma abertura. A partir do exame do apoio das agências de cooperação europeias às entidades da sociedade civil brasileira que atuaram na educação popular nas décadas de 1970 e 1980, o autor desenvolve uma sociologia das condições que tornam possível a inovação educacional que pode servir de inspiração para os estudiosos das ideias pedagógicas e das políticas públicas.

A seção "Diverso e Prosa" nos brinda com um documento inédito: um parecer de autoria de Rubem Alves, que faz parte do processo de contratação de Paulo Freire na Universidade Estadual de Campinas, no início dos anos 1980, após seu retorno ao Brasil. O comentário de Agueda Bittencourt problematiza as condições de produção do documento, lançando luz sobre esse período particular da história da universidade brasileira.

Integram ainda o presente número cinco textos: um primeiro, de Ana Zavala, propõe a pertinência de se distinguir a "História ensinada" da "História investigada", isto é, a "história dos historiadores" da "história dos professores e alunos"; um segundo, de Patricia Weiduschadt, discute os impactos da circulação de uma revista, como veículo informativo e educativo, em escolas paroquiais no Rio Grande do Sul nas décadas iniciais do século XX; um terceiro, de Norma Sandra Ferreira e Maria Lygia Santos, toma como objeto de pesquisa a cartilha de autoria de João Köpke, investigando e comentando o aspecto composicional da obra, os recursos visuais e textuais, o método analítico de ensino da leitura, em diálogo com estudos recentes. Um quarto artigo, de Alexandre Vaz e Jaison Bassani, apresenta os resultados de um estudo comparativo sobre a problemática da técnica, do progresso e da condição humana, no diálogo de Adorno com Ortega Y Gasset. Com base nas ideias de Jaques Rancière, o quinto artigo, de autoria de Rodrigo Barchi, discute as noções e as relações entre política, polícia, consenso e dissenso, no âmbito da institucionalização de teorias e práticas da educação ambiental na contemporaneidade.

Boa leitura!

ANA LUIZA B. SMOLKA, ANA MARIA F. ALMEIDA E DÉBORA CRISTINA JEFFREY

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    06 Jan 2015
  • Data do Fascículo
    Dez 2014
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