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Nietzsche, cultura e educação

LEITURAS E RESENHAS

Nietzsche, cultura e educação

Henrique Raimundo do Carmo SperandioI; Samuel MendonçaII

IPontifícia Universidade Católica de Campinas, Campinas, SP, Brasil. henrique.sperandio@ig.com.br

IIPrograma de Pós-Graduação Stricto Sensu em Educação, Pontifícia Universidade Católica de Campinas, Campinas, SP, Brasil. samuelm@puc-campinas.edu.br

HART, Thomas E. et al. (Org.) Nietzsche, Culture and Education. Londres: Ashgate, 2009.

Mais de 100 anos depois da morte de Nietzsche, apesar de sua grande influência no pensamento filosófico, ainda há muito a ser discutido no campo da filosofia da educação. Nietzsche procurava mostrar o que havia de errado na educação de sua época, na Alemanha, apontando as consequências para a cultura. Esta coletânea, com sete capítulos, tem o grande mérito de unir várias iniciativas no sentido de dissecar seu pensamento no que se refere à educação.

Thomas Hart, da University College de Utrecht – Holanda, compilou diversos artigos de participantes da "Nietzsche Society Conference" em Durham, Inglaterra, no ano 2000, quando elaborava sua tese de doutorado, cujo tema era filosofia da educação em Nietzsche. O livro traz reflexões de autores do Canadá, dos Estados Unidos, da Austrália, da Holanda, da Inglaterra e da Bélgica sobre o tema da crítica cultural de Nietzsche e sua utilização na teoria educacional. Alguns dos capítulos são transcrições dos trabalhos apresentados na conferência e outros se referem a artigos escritos posteriormente ou revistos a partir do congresso. A diversidade geográfica dos autores propicia a pluralidade de interpretações do tema da filosofia da educação em Nietzsche.

Embora parte dos pensadores demonstre alguma esperança de que as gerações futuras venham a ser mais bem educadas, o leitor perceberá que, muitas vezes, a solidão é a única opção, num mundo que se tornou cego e chegou a abrir mão de seu próprio destino.

No capítulo I, sob o título "Autenticidade e Educação Superior: a universidade nietzscheana no século XXI", Richard E. Smith (Durham University, Inglaterra) discorre a respeito da burocratização do sistema educacional universitário. Lembra que, em A vontade de potência, Nietzsche já relatava que os valores supremos se reduziram a convenções que escondem a falta de valores. Nas universidades, se formulam planos estratégicos que têm, muitas vezes, o único objetivo de buscar melhores posições no ranking. Com efeito, isso gera uma falta de foco nas questões de objetivo ou finalidade para a educação, como já apontava Nietzsche em O crepúsculo dos ídolos, ao reclamar que o mais importante foi eliminado do sistema da educação superior na Alemanha: o final. Da mesma forma como nesse livro Nietzsche criticava a modernidade e a perda do senso de tradição, nós sofremos de uma doença similar, com as inspeções e auditorias sem fim, muitas vezes negligenciando o engajamento humano na natureza da autoridade acadêmica. É indiscutível a utilidade da administração, mas não se podem priorizar os princípios de gerenciamento empresarial e deixar de lado o mais importante no relacionamento entre professor e aluno: o ato de pensar e discutir. O autor chama a atenção para o impacto do pensamento de Nietzsche no que tange à sua capacidade de tocar em pontos que acabaram se tornando dogmas, mas não passam de crenças que demandam urgente reexame.

Com o artigo "Torne-se o que você é: um comando e elogio entre amigos", no capítulo II, Babette Babich, da Fordham University, Nova York, Estados Unidos, ressalta a profundidade da frase de Nietzsche "torne-se o que você é", que se aplica não somente ao indivíduo como também aos membros da comunidade e amigos.

A autora aponta que, como um amigo, Nietzsche dificilmente nos diz o que devemos fazer. Pede que não tenhamos vergonha do que somos, ao invocar o amor fati, e façamos o possível para manter-nos como somos, diferentemente do senso comum, pois este nos pede para adotarmos algum ideal de comportamento, ou seja, algo que não se é. Menciona a frase de Pindar (518-438 a.C.) "torne-se o que você é ao saber o que é isso" e lembra que outros autores também assim disseram mais recentemente, como Holderin. Este faz uma provocação, ao dizer que no processo de aprendizagem se deve procurar manter-se como se começa. Babich lembra que, para Nietzsche, o limite do pensamento é o limite da verdade da origem, da genealogia e indaga ao leitor: "quem somos, o que em nós quer a verdade, qual é a verdade do ser?". Segundo Babich, para Holderin e Pindar, "torne-se aquilo que você é" é um conselho para tornar-se honesto, pois ou você não é honesto ou se arrisca a deixar de ser honesto. Invoca Zaratustra, que nos chama a submeter nossa vontade a ela própria. Como, para nos tornarmos quem somos, precisamos saber quem somos, oferece uma pista para sabermos quem era Nietzsche, conhecido por nós apenas pelos livros: aos 44 anos, já tinha escrito O nascimento da tragédia, Considerações extemporâneas, Humano demasiado humano, Crepúsculo dos ídolos, A gaia ciência, Assim falou Zaratustra, Além de bem e de mal, Para uma genealogia da moral e O caso Wagner.

A autora deste capítulo lembra que, atrás do senso de saúde e expressão de Nietzsche, está presente a sua ênfase no sofrimento e na dor. O filósofo promete eliminar a dor não como faz a religião, acenando para o paraíso, mas por meio da ciência; e propõe a revaloração do sofrimento para a sublimação da tragédia. Babich lembra que, segundo Nietzsche, qualquer "como" pode ser tolerado desde que exista um "porquê".

No Capítulo III, que tem como título "Ética Nitzscheana e Autenticidade: Além do Consenso", Horst Hutter (Concórdia University, Montreal, Canadá) investiga o pensamento de Nietzsche no que se refere a usar a "rainha das ciências" não apenas para discutir os problemas fundamentais, mas também como ferramenta de autoformação. Descreve que, para Nietzsche, os velhos objetivos da luta do homem persistirão moldando as massas, mas não poderão moldar as mentes da minoria de espíritos livres, que podem vislumbrar novos horizontes de vontade.

O autor lembra que, na visão de Nietzsche, os estágios da askesis (autodisciplina) e da autossuperação incluem (i) livrar-se das correntes invisíveis da moralidade escrava, o que deve ser seguido por (ii) uma "emancipação da emancipação". Hutter defende que esse movimento deve ser preservado das pressões das massas e enfatizado por meio de práticas apropriadas.

Hutter descreve as cinco técnicas de autossuperação contidas nos ensinamentos de Nietzsche, a saber: a solidão, a amizade, o retirar-se da política e das ideias do senso comum, o escrever e o extremo cuidado em tudo que se ingere (não apenas comida e bebida, como também o que se respira, o que se ouve e aquilo a que se assiste ). Lembra que a mais importante das técnicas é a solidão, no que se refere à autoemancipação.

Ressalta que, para Nietzsche, a honestidade teria que ser paulatinamente adquirida pelo cultivo da virtude por mentes fortes (Besonnenheit), em longos períodos de solidão e auto-observação; na reflexão sobre os sonhos; e na identificação dos padrões do pensamento. Mostra que a tentativa de Nietzsche de revalorar valores envolve uma fase desconstrutiva (do "dizer não") e outra reconstrutiva (do "dizer sim"). Uma das mais óbvias formas de tirania pode ser vista nos vícios, legais ou ilegais: não somente nas drogas como também no poder, no dinheiro, no trabalho e na rigidez. Desconstruir esse cenário requer longos períodos de solidão, para que se possa buscar a dissolução (i) da identificação com o genérico que forma a mentalidade de rebanho; (ii) da consideração, que é um mecanismo que trabalha por meio de nossos corpos e nossos seres, usando os vários egos como suas ferramentas; e (iii) do fazer compulsivo, que é fruto da necessidade de obrigar-se a ser um corpo frequentemente ocupado, sem se permitir o lazer, como no tempo da escravidão, quando não se admitia lazer para o escravo.

Hutter lembra que a solidão é vista como uma porta de entrada para as operações do demônio, e que o próprio Nietzsche esteve sujeito às "compulsões do ego escravo" durante seu tempo de escravidão, como professor na Universidade de Basileia. Devido à sua doença, foi forçado a liberar-se do seu douleia e tornar-se solitário. Mas o que, afinal, a solidão traz? O autor mostra que um dos maiores benefícios é a aprendizagem da formatação da vontade e lembra que o sistema de educação tradicional não se encaixa nesse processo.

Paul Smeyers (Catholic University, Leuven, Bélgica) desenvolve o tema da procura do "bem" no artigo intitulado "Ética e Autenticidade nietzscheana: além do consensual e do subjetivo", que compõe o capítulo IV. Investiga a ética de Nietzsche no que importa para a educação e para a retaguarda infantil.

O autor comenta o niilismo, representado pelo estado em que se encontra o indivíduo quando nada é imposto a ele. Lembra que a antipatia de Nietzsche com o que chama de "valores morais" se dirige aos modos de viver que parecem negar a vida.

Smeyers traz a crítica de Nietzsche à mentalidade de rebanho e defende que a exploração não decorre da imperfeita sociedade primitiva, mas pertence à própria essência da coisa vivente. Advém da intrínseca vontade de poder e da vontade de viver. Sem preconizar a violência, Smeyers entende como importante a interação entre conflito e criatividade.

Explica a questão da escolha em Nietzsche, para quem um agente abraça um desejo de corpo e alma somente quando se dá conta dos outros desejos que conflitam com o escolhido. Comenta a ética expressivista de Altieri, no que se refere às transformações que sofremos durante a vida. Ele vê a pessoa como se estivesse "em um tribunal, negociando por uma identidade", não porque deve considerações particulares aos outros e, sim, porque almeja que outros obtenham certos prazeres.

Ao comentar o papel do educador, o autor lembra que, por demandar uma relação entre duas pessoas, a educação deve incluir o cuidado, a integridade, a confiança e a autenticidade. Ressalta que a criança deve ter a chance de desenvolver uma imagem de si própria com a qual possa conviver, uma imagem de "como quer ser vista pelos outros, um objeto de valor". Deve aprender a lidar com a solidão da condição humana e procurar aí uma fonte de prazer e não de frustração.

No Capítulo V, com o texto "A solidão de Nietzsche: Pessimismo Cultural ou autodiagnóstico?", Ken Cussen (Macquarie University, Austrália) sugere que o abrigo na solidão, um importante aspecto da filosofia de Nietzsche, falhou, uma vez que o próprio Nietzsche parece sofrer da doença por ele diagnosticada na cultura europeia.

Ressalta o fato de que, em 1881, Nietzsche estava em um momento difícil, pois, nove anos depois de sua primeira publicação, seus livros não tinham tido um impacto substancial e sua saúde física andava muito mal. O autor pretende mostrar que, naquele momento, suas prescrições, na verdade, eram sintomas da decadência em que vivia. Demonstra que as diversas prescrições apresentadas por Nietzsche não funcionaram. A primeira, a do nascimento da tragédia, não era nada mais do que uma esperança vazia, pois ou acreditamos, como Nietzsche, que a natureza é cruel e caótica e a existência é terrível, ou não. Se não acreditamos, nós não podemos decidir que a vida é boa de ser vivida, apesar desses fatos.

A segunda prescrição vem com a publicação de Humano demasiado humano, em 1878, quando o pensamento de Nietzsche quanto ao valor cultural da ciência havia mudado. Mais maduro, em sua "segunda fase", Nietzsche apresenta uma visão muito mais positiva da ciência e prescreve a desconstrução dos valores da nossa humanidade para que possamos nos tornar superiores. Mas para quê? Sem deixar claro por que alguém deveria tornar-se um espírito superior, a segunda prescrição também se demonstra tão vazia quanto a primeira.

A terceira prescrição se dá à época da publicação de Aurora, em 1881, no começo do seu terceiro período produtivo, quando diagnosticou e desenvolveu a vontade de potência (Der Wille zur Macht). Ao mesmo tempo que estava enfraquecido pela doença, Nietzsche percebeu que havia errado na identificação do problema: a moralidade tornava-se agora o principal objeto de crítica. Para Nietzsche, a moralidade não é nada mais que obediência aos costumes. Ora, um compromisso com a verdade pressupõe um julgamento moral, o que se contrapõe à sugestão de descartar a moralidade. Um paciente não leva o médico a sério, se ele não consegue curá-lo do mal que diagnostica. Fica evidente que Nietzsche não traz nenhuma solução coerente para o problema, posto que ele não vê caminho para justificar o valor da verdade. Vale lembrar que não se pode esperar de Nietzsche respostas definitivas, considerando que sua filosofia trabalha o devir. O Nietzsche de Aurora e sua prescrição não eram mais que sintomas da doença que ele próprio diagnosticara. E ele sabia disso, ao reconhecer que estivera em uma fase niilista.

Cussen lembra que justamente aí está um dos grandes "valores" de Nietzsche: ele fala a partir de sua experiência mais íntima. De outro lado, ressalta que uma visão incoerente não tem muito valor. Acredita que Nietsche conseguiu a superação da decadência, depois de muita luta intelectual e que Assim falou Zaratustra é, dentre outros, o registro desse resultado. Defende que a entrada radical para a solidão de Nietzsche foi motivada por uma "contenção do homem", não somente para conter sua cultura, como também para "conter-se a si próprio de sua própria falha em superar a decadência".

No Capítulo VI, com o título de "Medida e Formação", Paul van Tongeren, da Radboud University, Nijmegen, Holanda, analisa o conceito de Bildung, conforme o entendimento do século XIX, e relata a crítica de Nietzsche. Discute elementos de filologia e filosofia usados por Nietzsche e revela as tensões e as incongruências entre o velho e o moderno. Aponta que a cultura grega funciona para Nietzsche como um padrão de valoração, mas não um padrão inquestionável. Para poder ultrapassar os gregos, deve-se primeiro conhecê-los. Lembra que Nietzsche está interessado no conflito entre a cultura contemporânea europeia ou cristã e a grega, porque o conflito é o melhor meio de conhecimento. Discute a questão da medida e da falta de medida que acomete o homem moderno e a relaciona com o conceito de Bildung. Aponta que, enquanto a cultura contemporânea tenta reconciliar a cultura grega com a cristã, Nietzsche tenta reavivar o conflito entre elas e acaba por revitalizar a cultura contemporânea numa prática de Bildung.

No capítulo final, o organizador do livro, Thomas E. Hart, da University College de Utrecht, Holanda, traz, no texto "Uma filosofia para a Educação", sua própria interpretação sobre a educação nietzscheana, dividindo-a em três tendências: autenticidade, contestação e sublimação.

Lembra que a criatividade é fundamental e deve servir como um meio e um fim. Enfatiza que, para Nietzsche, o que realmente importa sobre o filósofo ou o artista não é sua produção e, sim, o exemplo de vida que eles seguem. Afirma que a necessidade de revaloração apregoada por Nietzsche não se aplica apenas aos nossos valores morais, mas também a tudo e, em particular, ao sistema de educação, uma vez que educar significa criar significado, valor e cultura. E isso demanda do estudante não apenas experiência interior ou julgamento do mundo exterior como também – e principalmente – ação. E somente através da autenticidade pode-se aprender o que isso significa e a extensão das suas consequências.

Segundo Hart, na visão de Nietzsche, não faz sentido medir a educação pela aferição de sucesso ou falha, pois, no contexto integrado de educação, não existe a possibilidade de falhar. Todavia, pelo fato de a religião, a educação e a cultura serem dominadas e determinadas pelo Estado, criam-se seres formatados para competir entre si, ao serem classificados como "certos" ou "errados". A educação torna-se um processo de massa, "adotando-se o menor denominador comum como padrão, gerando apatia, mediocridade e fragmentação". Criação ou inovação são desestimuladas, uma vez que ameaçam a estrutura e o sistema existentes.

O autor descreve que a sublimação compõe o aparato necessário para conseguir a autenticidade e o compromisso consigo próprio, que são, para Nietzsche, os objetivos da educação. Lembra que, ao descrever a metamorfose do espírito em camelo, do camelo em leão e do leão em criança, em Assim falou Zaratustra, Nietzsche quer mostrar que o espírito é o principal objetivo do homem; o camelo é o indivíduo reprimido; o leão, o autodeterminável; e a criança, o ser livre e autêntico, em um processo que nunca termina. Para ele, a sublimação envolve a dominação e o redirecionamento dos instintos a serviço da criação. Afirma que a autenticidade, o compromisso e a sublimação implicam a separação do passado e do presente. O processo de transição para a autenticidade pressupõe uma crítica ao próprio passado, buscando evitar ser dominado. A luta que emerge desse processo substitui a apatia do niilismo pelo desejo de tornar-se melhor, de progredir. Ao final, define a sublimação como a luta pela autenticidade, no domínio dos próprios desejos, levando ao desenvolvimento de um tipo de autossoberania que é uma das principais características da "nova humanidade" que Nietzsche esperava criar como um remédio, um pharmakon, para a crise na moderna educação e cultura.

O organizador lembra que a obra é recomendada a estudiosos dos fundamentos da educação e, principalmente, a interessados na revaloração da filosofia da educação, isto é, trata-se de obra recomendada a estudantes de Filosofia, de Educação, de Ciências Sociais, de Psicologia e outros campos do saber, da mesma forma que é destinada também a especialistas em Nietzsche, se é que se pode conceber a especialidade desse pensador. Considerando que pouco se produziu sobre o pensamento de Nietzsche a respeito da educação, este livro é fundamental para o entendimento de quem pretende repensar a educação nos tempos hodiernos.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    10 Jan 2014
  • Data do Fascículo
    Dez 2013
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