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Acolher o recém-nascido nas sociedades crioulas do Oceano Índico

Receiving the new-born in the creole societies of the Indian Ocean

Resumos

O contexto deste artigo situa-se no Oceano Índico. Trata-se de Mascarenhas, um arquipélago constituído por três ilhas: Reunião (departamento francês de além-mar), Maurício (Estado soberano) e Rodrigues (ilha com estatuto de região autônoma da Ilha Maurício). É possível identificar, nessas três ilhas, um tronco comum de comportamentos culturais associados ao nascimento e à primeira infância. Que costumes são esses? Como se modificam, por influência da sociedade ocidental contemporânea? Colocar-se-á, igualmente, a questão da interpretação dos dados de pesquisa numa sociedade crioula de origens pluriculturais em evolução extremamente veloz. Quais as armadilhas da interpretação? Como se constrói a tradição?

Nascimento; primeira infância; tradição; sociedades crioulas; Antropologia


The Mascarene archipelago in the Indian Ocean consists of three islands: Reunion (Overseas French Department), Mauritius (sovereign) and Rodrigues (island with the status of an autonomous region of Mauritius). On the three islands, it is possible to identify a common core of cultural behavior associated with birth and childhood. What are these costumes? How do they change under the influence of contemporary Western society? The question of how to interpret fieldwork data obtained in a multicultural Creole society that evolves extremely fast is also discussed. What are the pitfalls of interpretation? How is tradition built?

Birth; childhood; tradition; Creole societies; anthropology


DOSSIÊ: BEBÊS E CRIANÇAS BEM PEQUENAS EM CONTEXTOS COLETIVOS DE EDUCAÇÃO

Acolher o recém-nascido nas sociedades crioulas do Oceano Índico

Receiving the new-born in the creole societies of the Indian Ocean

Laurence Pourchez

Universidade da Reunião. Arquipélago de Mascarenhas: Reunião, Maurício, Rodrigues. Antropóloga, MCF HDR UFR Saúde

RESUMO

O contexto deste artigo situa-se no Oceano Índico. Trata-se de Mascarenhas, um arquipélago constituído por três ilhas: Reunião (departamento francês de além-mar), Maurício (Estado soberano) e Rodrigues (ilha com estatuto de região autônoma da Ilha Maurício). É possível identificar, nessas três ilhas, um tronco comum de comportamentos culturais associados ao nascimento e à primeira infância. Que costumes são esses? Como se modificam, por influência da sociedade ocidental contemporânea? Colocar-se-á, igualmente, a questão da interpretação dos dados de pesquisa numa sociedade crioula de origens pluriculturais em evolução extremamente veloz. Quais as armadilhas da interpretação? Como se constrói a tradição?

Palavras-chave: Nascimento; primeira infância; tradição; sociedades crioulas; Antropologia.

ABSTRACT

The Mascarene archipelago in the Indian Ocean consists of three islands: Reunion (Overseas French Department), Mauritius (sovereign) and Rodrigues (island with the status of an autonomous region of Mauritius). On the three islands, it is possible to identify a common core of cultural behavior associated with birth and childhood. What are these costumes? How do they change under the influence of contemporary Western society? The question of how to interpret fieldwork data obtained in a multicultural Creole society that evolves extremely fast is also discussed. What are the pitfalls of interpretation? How is tradition built?

Keywords: Birth; childhood; tradition; Creole societies; anthropology.

Quais as práticas tradicionais de cuidados maternos presentes nas Ilhas Mascarenhas (Reunião, Maurício e Rodrigues) e como evoluiu o acolhimento do recém-nascido, diante das transformações ligadas à biomedicina?

Situação geográfica e recapitulação histórica

Situadas no Oceano Índico, a leste de Madagascar, Reunião, Maurício e Rodrigues compõem o Arquipélago de Mascarenhas. Enquanto Reunião (800 mil habitantes) possui, desde 1946, o estatuto de departamento francês de Além-Mar, a ilha Maurício (1 milhão e 200 mil habitantes), antiga colônia britânica, é independente desde 1968. A ilha Rodrigues (36 mil habitantes), por sua vez, embora sendo possessão da Maurício, adquiriu em 2001 o estatuto de região autônoma. Conhecidas desde a época dos navegadores árabes, as três ilhas eram, de início, aparentemente desertas.

O primeiro povoamento duradouro de Reunião data de 1663. Durante o primeiro meio século de ocupação, predominava a população europeia (Barassin, 1989). As mulheres – apenas oito, nos primórdios do povoamento – eram originárias da França ou de Madagascar. A escassez de mulheres e o fato de muitos colonos serem celibatários promoveram a formação de casais cujos membros vinham de diferentes povos e lugares. Essas relações provavelmente tiveram imensa importância no plano biológico e, principalmente, no processo cultural de crioulização, com a criação de uma língua e uma cultura crioulas.

Com o fracasso das primeiras tentativas holandesas de estabelecer feitorias, a Ilha Maurício só seria efetivamente povoada a partir de 1721, com a chegada de colonos vindos de Bourbon (antigo nome de Reunião) e, em seguida, de escravos oriundos de Madagascar e da África, a que vieram juntar-se, após a abolição da escravatura, uma quantidade de indígenas e um certo número de chineses empregados nas plantações de cana-de-açúcar.

Rodrigues foi a última ilha do arquipélago a ser colonizada, tendo sido efetivamente povoada somente a partir do início do século XIX, com considerável desequilíbrio numérico entre homens e mulheres (Berthelot, 2002), também observado em Reunião e Maurício.

Até meados do século XIX, Maurício e Reunião se caracterizavam pela economia açucareira, com a vinda de escravos, principalmente, da região ao sul do Oceano Índico ou do leste da África; e, mais tarde, após a abolição da escravatura, de empregados oriundos, em boa parte, da Índia e da China. Rodrigues permaneceu um caso à parte, com a particularidade de nunca ter sido uma ilha açucareira.

Essas diferenças históricas e de estatuto político tiveram, como veremos, um impacto na presença da biomedicina – que é, sem dúvida, maior em Reunião –, assim como na medicalização do parto e nos cuidados dispensados aos bebês. Essa brevíssima recapitulação histórica evidencia, além disso, um ponto comum entre as três ilhas: o desequilíbrio numérico entre homens e mulheres, que perdurou até o século XIX. Esse fator pode ter sido impactante, notadamente nas transmissões intergeracionais e nas transmissões femininas, tanto mais por terem estas um papel considerável na comunidade (notadamente no campo relacionado ao nascimento das crianças).

A primeira infância nas Ilhas Mascarenhas

Venho me dedicando há quase vinte anos ao estudo antropológico, nas Ilhas Mascarenhas, da primeira parte do ciclo da vida: desde a concepção até a primeira infância, ou seja, até os 3 anos de idade.

Tenho estudado diferentes aspectos familiares ou associados à vida cotidiana, como o nascimento (Pourchez, 2011), o acolhimento do recém-nascido, a alimentação, os ritos, os cuidados com o corpo, os procedimentos terapêuticos, a circulação das crianças (Pourchez, 2004) e até as práticas de infanticídio (Pourchez; Tabuteau, 2004). Minhas investigações têm sido conduzidas em quatro gerações de homens e mulheres, sendo que a mais jovem de minhas interlocutoras tem a idade de 14 anos, ao passo que a mais velha com quem trabalhei tinha, à época de seu falecimento, em 1998, 103 ou 104 anos, conforme se considere sua idade presumida real ou a indicada na certidão de nascimento.

Reler e relacionar

Meu interesse concentra-se na primeira parte do ciclo de vida, que, de fato, se apresenta como uma chave, permitindo tanto relacionar as diferentes fases da vida definidas pelo antropólogo, como – dada a importância do acolhimento ao recém-nascido, dos cuidados e dos ritos de nascimento – reler todos os elementos presentes na sociedade.

Mas, para entender as lógicas mobilizadas, para ter acesso a esse fio condutor que é o nascimento, existe um pressuposto: partir do passado, da história, para entender e interpretar o presente. Esse desvio pela história é necessário não somente para atentar à sociedade estudada, mediante um trabalho de pesquisa histórica complementar à pesquisa antropológica, mas também para melhor compreender e interpretar os dados, comparando os materiais coletados com outros trabalhos efetuados fora da sociedade implicada nas pesquisas. Sem esse indispensável desvio, o antropólogo corre o risco de só perceber as coisas em sua superfície e distorcer a interpretação dos dados.

O nascimento

Citarei aqui dois exemplos: o nascimento e o acolhimento da criança – o modo como seu corpo era, e ainda é, tratado e "acabado" por muitas mães do arquipélago.

Desde o início do povoamento, a medicina científica ocidental tem estado presente nas três ilhas, e é conflituosa a relação com as parteiras tradicionais, suas potenciais concorrentes. O historiador Jean Barassin (1989, p. 141) observa a presença de enfermeiras obstetras em Saint-Denis, em Reunião, no início do século XVIII. Profissionais da saúde, diplomadas, eram inscritas por um padre no registro paroquial redigido em latim, onde seu nome aparecia com a menção obstetrix probata. Uma vez que os métodos anticoncepcionais de então eram muitas vezes falhos, e as representações da vida, sensivelmente distintas do que são hoje, essas obstetras, cuja missão era influenciada tanto pela Igreja como pelas realidades sociais da época, tinham notadamente a função de prevenir os abortos e os infanticídios.

Nessa época, além das próprias mulheres, as parteiras é que eram tidas como responsáveis pelas gravidezes interrompidas. Mesmo porque pertenciam, no mais das vezes, à classe dos escravos, e o fato de serem aptas a trazer os bebês ao mundo conferia-lhes um status e um poder que, por vezes, incomodavam os donos de plantações. Quando do parto de suas companheiras, estes se viam, com efeito, em posição de dependência em relação a uma mulher que normalmente tratavam como inferior. Muito embora, do início do século XVIII até o final dos anos 1960, as parteiras fossem, não raro, o único e exclusivo recurso das parturientes.

Aimée, Jacinthe e Lucie, três antigas parteiras reunionenses, relatam sua experiência durante os anos 1950:

Aimée: Nos tempos de antes, era uma miséria. Não tinha doutor, não tinha enfermeira obstetra. Eu aprendi com uma velha

Jacinthe: Era a mim que eles chamavam primeiro [antes de chamar o médico]. Muitas vezes, o trabalho de parto já tinha começado. As mulheres às vezes davam à luz na cama, mas nem sempre. Punha-se uma proteção, um lençolzinho, ou então se fazia uma caminha especial com gaulettes [galhos] e gonics [sacos de juta] cosidos com baleines parasol [varetas de guarda-chuva]. Para ajudar a mãe a parir, dava-se um banho nela, quente ou morno. Para ajudar a relaxar, para abrir. Pegava-se uma toalha molhada quente e punha na barriga dela.

Lucie: Às vezes, também, para ajudar a mulher a parir, a gente dava para ela um suco de limão. Diziam que era bom para virem as contrações. Para saber se o parto estava próximo, a gente apalpava e via se o colo estava aberto em dois francos, cinco francos, dez francos.

Escolhiam-se diferentes posições para o parto. A mulher podia ficar deitada de costas na cama ou, como relata Jacinthe, numa caminha baixa, especialmente fabricada para a ocasião. Muitas vezes, recorria-se a outras posições, pois, explicam as parteiras, era fundamental que as mulheres tivessem seu filho da maneira mais confortável para elas. A escolha de uma posição não era definitiva: as parteiras ajudavam as mulheres a mudá-la, várias vezes, em alguns casos, antes da expulsão do bebê. Assim, o parto podia se dar na posição horizontal ou semi-horizontal, na cama, com a ajuda de correias passadas sob a cama; de lado, sozinha; em pé, apoiada na parede; na posição horizontal, sustentada pelo marido; sentada num banquinho ou banqueta, amparada – não raro pelo marido –; de quatro ou de cócoras.

Acrescenta Lucie: "Se estava difícil, a gente pegava azeite de oliva ou sabão para fazer a criança deslizar. Ou usava azeite Planiol".

Jacinthe fala também sobre a responsabilidade que cabia às parteiras e sobre o que a levou a aprender a partejar:

Quando tive meus primeiros filhos, existia uma velha parteira, uma velha senhora, que a gente chamava de Dona Zariko, não lembro o verdadeiro nome dela, mas todo o mundo a chamava assim. Fui então falar com essa mulher, e ela me disse para mandar meu marido ir buscá-la, quando chegassem as contrações, que ela ia cuidar de mim. Poucos dias antes da data prevista para o parto, senti que o bebê não estava descendo, eu não sabia que eram dois. Então meu marido foi buscá-la, foi a pé de Saint-André a Champ-Borne [cerca de 4 quilômetros]. Quando voltou com ela, já era noite. Ela falou: "Vai ser bem difícil; acho que sua esposa está esperando gêmeos, eles não estão bem posicionados e ela pode morrer". Ela então ficou lá em casa até o parto. Todo dia ela massageava suavemente a minha barriga, e aí, uma semana depois, os bebês nasceram, e saíram certinho, direitinhos...

Aimée descreve algumas possíveis complicações e o modo como as parteiras tentavam lidar, o melhor que podiam, com a situação:

Os partos, às vezes, eram mesmo difíceis. Acontecia de aparecer um bracinho, uma perninha, de o bebê estar bem mal posicionado. Ou de ele se apresentar de vértice. A gente então dava um jeito com azeite de oliva. Passava azeite na vulva e na vagina da mulher. Era uma manobra arriscada: precisava endireitar a cabeça, enfiar a mãozinha para dentro, posicionar corretamente o bebê. Depois disso, dava tudo certo. E havia bebês que vinham de vértice. Isso também era um problema. Tinha que fazer com que o bebê se virasse. A gente massageava suavemente a barriga da mãe, até o bebê ficar na posição correta.

Aimée acrescenta ainda que, em alguns casos, quando as mulheres sentiam "dor nas costas" durante o parto, ela fazia massagem na região lombar.

As parteiras tradicionais aparentemente possuíam, em sua maioria, reais competências obstetrícias, e os depoimentos tendem a mostrar que essas competências eram determinantes para a sua reputação: uma mulher que o diz que diz que apontasse como inapta só exercia seu ofício bem pouco tempo, por falta de solicitação.

As descrições das parteiras reunionenses e rodriguenses ou das dayi (nome dado às parteiras tradicionais) mauricienses dão conta de um legítimo acompanhamento pré-natal (palpação, exame, toque, massagens, administração de chás, aconselhamento profilático) e pós-natal (acompanhamento pós-parto, banhos cicatrizantes, cuidados do recém-nascido), assim como grande disponibilidade e profunda consciência profissional.

Além disso, seus relatos de partos revelam seu alto nível técnico, ao destacar diversos procedimentos obstetrícios especialmente delicados, como as manobras destinadas a reintroduzir o bebê no corpo da mãe em casos de má apresentação ou a virá-lo in utero, para encaixá-lo na posição correta. Outra técnica complexa, dizem as mulheres entrevistadas, era empregada, sobretudo, quando detectavam, durante o exame, uma má apresentação do bebê, em especial a apresentação pélvica. Numa época em que as cesarianas eram raras, praticadas apenas em casos extremos, era necessário agir sobre o feto para induzi-lo a virar-se e encaixar-se corretamente na bacia da mãe. Como relata Aimée, a fim de não causar sofrimento fetal, os gestos realizados tinham de ser extremamente lentos e suaves.

Essas técnicas obstetrícias eram frequentemente completadas com orações. As parteiras faziam o sinal da cruz no ventre das mulheres, rezavam para Santa Teresa, Santa Viviane, Santa Margarida. Algumas rezas eram mais especialmente recitadas, como as dedicadas à Santa Cruz ou a São Carlos Magno. A oração a São Carlos Magno assim determina: "Uma mulher com as dores do parto, se ler esta oração ou alguém a ler para ela, ou se a tiver junto a si, terá um rápido aliviamento e será sempre uma mãe amorosa. Tão logo nasça a criança, ponha esta oração sobre o seu lado direito, e ela será preservada de muitos males". Muitas mulheres, além disso, usavam amuletos contendo rezas, medalhas diversas; ou ainda um cordão de São José, com seus sete nós, que, supostamente, afastam o mal. Esses cordõezinhos de algodão são ainda hoje encomendados por algumas mulheres grávidas aos frades do Espírito Santo de Alès, na França.

Seria um erro, porém, achar que as parteiras, nos casos difíceis, contavam apenas com a religião. Lucie, por exemplo, relata os seguintes fatos:

Estava voltando da cidade a pé e, ao chegar à casa de minha mãe, escutei, ao passar por uma kaz, uma mulher rezando e dizendo: "Santa Teresa! Santa Teresa!". Nisso, ouvi a fam-saj lhe responder: "Pare de chamar por Santa Teresa! Empurre! Santa Teresa nunca pariu! Nunca teve filhos!".

Fam-saj

Em Reunião, até a sistematização dos partos na maternidade, os nascimentos se davam em casa. O pai é que chamava ou mandava buscar a parteira, que era, muitas vezes, uma pessoa próxima, tanto geográfica como socialmente. Esta era, eventualmente, assistida por uma doula,

Quando chegava o bebê, era anunciado o nascimento. Sendo o nascimento dos meninos socialmente mais valorizado que o das meninas, o anúncio era distinto: assim, em Reunião era costume disparar dois tiros de espingarda quando do nascimento de um menino, ao passo que, ao nascer uma menina, como diz Germain, 75 anos, "a gente não ia desperdiçar munição! Bastava um tiro só". Da mesma forma, punham-se duas aves para cozinhar, se nascesse um menino, e apenas uma, se fosse uma menina. Essa preferência não desapareceu por completo. Tanto em Reunião como em Maurício ou Rodrigues, as mulheres dizem preferir dar à luz um menino, principalmente em se tratando da primeira gravidez. Diferentes saberes são, aliás, transmitidos, para ajudar no processo natural, para favorecer um nascimento masculino que perpetue a linhagem paterna: observação da lua (dizem as mulheres que há mais chances de se ter um menino, se o bebê for concebido na lua crescente, momento em que os espermatozoides têm mais força), práticas alimentares específicas, notadamente a ingestão de sal antes do ato sexual...

O afastamento do pai no momento da expulsão do bebê era motivado pelo temor de ver o sangue das mulheres. Como essa visão tinha a fama de causar impotência, os homens eram fortemente desaconselhados a assistir à expulsão.

A fase de expulsão da placenta, em seguida à do bebê, era temida pelas mulheres, por ser passível de causar hemorragias, e as parteiras receavam, notadamente, que a placenta não saísse. Nas três ilhas, uma vez evacuada a placenta, cabia ao pai enterrá-la. O sepultamento se dava, com frequência, ao pé de uma árvore, em local úmido – ao pé de uma bananeira, na kour (espaço que, na labitasyon [espaço compreendendo o local de moradia, eventuais dependências e espaços externos], fica ao redor da kaz); às vezes, debaixo de uma torneira ou mesmo à beira de um córrego; ou próximo ao mar, quando o parto ocorria no litoral. A busca por umidade se justificava pela suposta relação existente entre a placenta, a mulher, sua fertilidade futura e a lactação. Uma placenta que secasse depressa demais poderia comprometer tanto as gravidezes futuras da mãe como a qualidade e a quantidade de seu leite.

A placenta, além disso, era tida como um duplo simbólico da criança recém-nascida. Julgava-se possível lançar um feitiço a alguém por meio da placenta, sendo esse um dos motivos por que ela era enterrada e subtraída à vista de todos. As representações associadas a ela eram tão fortes que, em Reunião, até os anos 1990, acontecia de políticos de alguns cantões justificarem sua candidatura por seu nascimento e pelo local de enterramento de sua lonbri – outro termo para designar a placenta e o cordão umbilical, tanto em crioulo reunionense como em crioulo mauriciense.

Conselhos profiláticos e cuidados com o recém-nascido

Para além de sua missão primeira – acompanhar a gravidez das mulheres, atuar no nascimento e dispensar os primeiros cuidados ao recém-nascido –, era fundamental a contribuição das parteiras na difusão dos saberes. Em complementação aos conhecimentos transmitidos de forma intergeracional, em que tudo o que dizia respeito à procriação e ao nascimento constituía um tabu, elas forneciam às mulheres, junto com diversas rezas destinadas a ajudá-las num momento tido como perigoso, inúmeros conselhos profiláticos durante a gravidez; no trabalho de parto e no parto em si; e no pós-parto. Às mães inexperientes ou que não contavam com os conselhos de uma mulher mais velha, transmitiam parte de seu próprio saber terapêutico e botânico: explicavam como preparar os chás a serem tomados após o parto e a serem administrados aos pequeninos, para que evacuassem o mecônio contido em seu intestino e evitassem, assim, a doença conhecida como tanbav. Por fim, frequentemente, ensinavam às mães técnicas diversas, tais como o afeiçoamento do nariz do recém-nascido ou massagens e elongações que podiam ser feitas no seu corpo11 11 Essas diversas técnicas do corpo estão descritas e analisadas em Pourchez (2002a, 2002b, 2007). .

Raj, que ainda atua como dayi em Triolet, na ilha Maurício, contava, em 2005:

Antes de mim, minha mãe era uma dayi e cuidava das mulheres e, antes dela, a minha avó. Já faz 18 anos que cuido das mulheres. Foi minha avó quem me ensinou. Eu saía com ela e observava como fazia. Depois comecei a fazer sozinha. Quando a dona está tendo o parto, eu ajudo, e, quando termina o parto, faço massagem com óleos. Faço durante doze dias, de manhã cedo e de noite. E lavo, massageio o bebê, doze dias também, de manhã e de noite. Depois disso, ele pode ser lavado todo dia, normalmente. Massageio o bebê com óleo de coco, na parte inferior das costas, na barriga. Depois disso eu amasso, cozinho umas plantas, açafrão verde misturado com leite, e dou para a dona tomar por uns seis ou doze dias, de manhã cedo. Que é para ela ter mais leite.

No passado, além do veto às relações sexuais, desaconselhava-se às parturientes efetuarem qualquer tipo de tarefa doméstica passível de cansá-las ou de favorecer o contato com a água, pois o corpo feminino era considerado termicamente instável depois do parto; e qualquer contato com a água era tido como perigoso, pois poderia causar problemas ósseos e articulares. Acompanhar a mãe era também tarefa das parteiras e podia, conforme o caso, se estender por até quarenta dias, tempo considerado de repouso, em que a mulher que dera à luz devia se poupar; evitar tarefas pesadas e permanências prolongadas na água quente – a qual poderia, ao amolecer as carnes, dificultar a cicatrização em caso de laceração –; deixar seu corpo recuperar-se da prova por que havia passado. Várias técnicas eram então praticadas: enfaixamento da barriga da mãe, a fim de que o útero voltasse para o lugar; massagens nas costas, no caso de dores lombares; banhos de assento com decocções de plantas adstringentes, como tanchagem12 12 Plantago major (Plantaginaceae). ou folhas de tamarindo13 13 Tamarindus indicus (Caesalpiniaceae). .

Do parto tradicional ao parto na maternidade

Enquanto, nas ilhas Maurício e Rodrigues, as parteiras tradicionais foram reconhecidas pelo Ministério da Saúde, que lhes dá acompanhamento, oferecendo, inclusive, várias opções de formação e um certificado oficial, em Reunião já quase não se tem recorrido a elas, desde o início dos anos 80 do século passado. Esse desinteresse decorre notadamente de um amplo movimento de difamação de suas práticas e saberes, sustentado pela imprensa da época e por boatos visando desacreditá-los. O recurso às parteiras tradicionais subsiste nas ilhas Maurício e Rodrigues, onde seus saberes, ainda reconhecidos e apreciados, não raro complementam os serviços médicos, quando não os substituem. As parteiras, além disso, acompanham as futuras mães durante a gravidez e alguns dias após o nascimento do bebê. Em compensação, como pude constatar na Escola de Obstetrizes da ilha da Reunião, várias técnicas próprias às parteiras deixaram de ser ensinadas, por não constarem nos currículos, tais como as massagens para o posicionamento correto do bebê na bacia da mãe ou as várias técnicas visando favorecer o bom andamento do parto.

Cuidados com o corpo

Como destacam F. Loux e M. F. Morel (1976) em relação à França tradicional, o bebê, ao nascer, é visto como um ser inacabado, ainda ligado ao além. Ele só se tornará um indivíduo completo, uma vez concluídos os diferentes processos de maturação de seu corpo, de integração na sociedade que o viu nascer.

Após o nascimento, o corpo do bebê continua sendo, ainda hoje, objeto de cuidados específicos: é massageado, afeiçoado, acabado graças a um chá que serve para evacuar o mecônio, ou seja, para separá-lo da mãe — daquilo que, nele, restava de sua mãe.

Vir ao mundo requer, com efeito, diferentes tratamentos corporais pós-natais, que são discretamente conduzidos na maternidade e quando da volta para casa. Cada operação – evacuação do mecônio, purificações e ingestão de infusão ou decocção, higiene, afeiçoamento do corpo e do crânio, vestuário – possui um papel específico no processo de acabamento do corpo do recém-nascido. Os procedimentos sempre se efetuam segundo uma ordem precisa, que corresponde aos objetivos de maturação do pequenino, de modo a garantir sua sobrevivência (pois, até o final dos anos 1950, o índice de mortalidade infantil era, nas três ilhas, particularmente elevado, e ainda é muito presente a memória desses falecimentos precoces). Essas práticas predeterminadas, complementares entre si, compõem um conjunto ritualizado.

O vínculo entre o bebê recém-nascido e a natureza, a terra nutriz, a vegetação, é frequentemente mencionado, nas três ilhas, pelas várias gerações de mulheres entrevistadas. Com efeito, tanto em Reunião como em Maurício, antigamente, associava-se ao recém-nascido um vegetal que seria o seu duplo simbólico. Trata-se de uma prática antiga, que parece ter caído em desuso. Ainda assim, as antigas parteiras recordam os pinheiros que eram plantados quando do nascimento de um bebê e enrijeciam junto com ele. A cada nascimento, o avô de Nadine, uma mãe de família de 40 anos, punha na terra uma árvore frutífera. Dominique (35 anos, dois filhos) recorda uma canforeira, existente há muito tempo na kour14 14 Kour: espaço externo da habitação que compreende as dependências, o jardim, assim como o local onde se lava roupa. de seus pais, desde antes de ele nascer. Sua mãe sempre se opôs à sua derrubada, acreditando que isso acarretaria uma morte na família. Ainda hoje, os locais de antigas habitações extintas são identificados pela presença dos pinheiros, vestígios de nascimentos passados. Em Reunião, às vezes, em frente às kaz15 15 Kaz: casa. mais modestas, o que se plantava era um pé de café.

A árvore que crescia simultaneamente à criança era o símbolo da passagem de um ciclo de vida para outro, do pequeno broto frágil para o arbusto e do arbusto para a árvore. Esta, então, dava frutos, tal como a criança, mais tarde, viria a ter descendência... Extinguiram-se as práticas, as representações permanecem. O poder atribuído às árvores se mantém particularmente vivo, e, para muitas famílias, cortar uma árvore equivale a ceifar uma vida. Por esse motivo, muitas pessoas evitam derrubar árvores plantadas por seu pai ou ancestrais. Muitas também ainda acreditam que a criança precisa enrijecer, passar do estado do broto, do frágil baba tand16 16 Bebê molenga. , para o da criança rija.

Higiene, vestuário e transformações do corpo do bebê

A observação, assim como os relatos, revela costumes e representações comuns ao conjunto das mães entrevistadas, independentemente de sua origem presumida: para a maioria, o bebê nasce inacabado, e convém acabá-lo, humanizá-lo – do contrário, poderá adoecer, não se desenvolver normalmente. De baba tand, termo crioulo que designa o recém-nascido inacabado, ele deverá se tornar um ser completo, membro da sociedade. E os cuidados que lhe forem ministrados terão o objetivo de fortalecê-lo: administração de chás, bandagem do tronco, afeiçoamento do rosto, do nariz, das maçãs do rosto e da testa.

No tan lontan, na tradição, dizem os mais velhos, a criança, antes de enrijecer, tinha primeiro de ser purgada dos resíduos contidos em seu intestino. O mecônio (denominado tanbav17 17 De tambavy, termo de origem madagascarense que, muitas vezes, designa os chás de modo geral, mas também um preparo específico ligado a um reconhecimento da linhagem da criança. ) era tido como uma impureza de que convinha livrar o bebê o quanto antes, para que patologias diversas (igualmente agrupadas sob o termo tanbav), decorrentes da não evacuação desses resíduos viciados, não prejudicassem a criança. A limpeza era feita com chás, cuja receita podia variar conforme a família, mas cujos principais ingredientes permaneciam os mesmos: em Reunião, usava-se, em geral, azeite de oliva (em crioulo, planiol, nome derivado da primeira marca de azeite de oliva outrora importada na ilha); um kèr d'pesh18 18 Caroço de pêssego: Prunus persica (Rosaceae). pequeno; um ramo da planta conhecida como lanis19 19 Funcho: Foeniculum vulgare (Apiaceae). ; três flores de bléèt20 20 Também chamado tit flèr bléèt, zépi blé, ou aciano, na forma acroletal do termo: Sachytarpheta jamaicensis (Verbenaceae). , sendo esse preparado básico passível de ser incrementado de diferentes maneiras, conforme a família: um pouco de manteiga de cacau, anis estrelado, três folhas de iapana21 21 Iapana ou ayapana: Eupatorium triplinerve (Asteraceae). Vegetal utilizado nas três Ilhas Mascarenhas, sobretudo no tratamento das cólicas do recém-nascido e também dos distúrbios intestinais. para prevenir cólicas, algumas flores de kamomiy22 22 Ou camomila: Parthenium hysterophorus (Asteraceae); não confundir com a camomila europeia, que é outro vegetal. [No Dicionário Houaiss (2009), há duas entradas para "camomila", ambas europeias. Nas pesquisas via google, Parthenium hysterophorus é uma erva daninha extremamente invasiva e perigosa para a saúde, conhecida como losna-branca, coentro do mato ou fazendeiro. N.T.] ou sansitiv23 23 Ou sensitiva: Mimosa pudica (Mimosaceae). [No Dicionário Houaiss (2009), "sensitiva" remete a "mimosa sensitiva" (entre outras mimosas), da família das mimosáceas, mas não consta Mimosa pudica N.T.]. para propiciar um sono tranquilo. Essa limpeza dos intestinos do recém-nascido continua sendo praticada hoje em dia, quer discretamente, na maternidade, quer ao voltar para casa, já que algumas mães temem a reação negativa da equipe médica. Com efeito, o chá deve, em princípio, ser administrado antes de o bebê tomar leite pela primeira vez. Assim, é frequente as avós (são elas que em geral preparam a tizan tanbav) levarem à maternidade, escondida num cesto, a mamadeirinha que será dada à criança, assim que a equipe médica der as costas, ou até, por vezes, com sua cumplicidade. Outras mães esperam estar em casa para dar o preparado ao recém-nascido, mesmo quando, por não saberem dosá-lo, compram purgantes prontos na farmácia. Qualquer que seja o modo de administração escolhido, a evacuação do tanbav permanece como o primeiro ato de enrijecimento do bebê. Esse processo fará da criança um ser autônomo completo, pois o mecônio é considerado uma sobra materna.

Até os anos 1970, esperavam-se quarenta dias, ou mais, para dar banho no bebê, considerado termicamente instável ao nascer. Ele era, porém, lavado diariamente: a mãe o acomodava na dobra do vestido e, com um pano macio, um algodão úmido, limpava-lhe o corpo. A água tinha fama de ser perigosa para os baba tand. Dizia-se que água muito fria podia, ao esfriar o bebê, revelar-se mortal. Nos dias de hoje, os comportamentos evoluíram, mas, em algumas famílias, subsistem certas reservas quanto a molhar demasiadamente os recém-nascidos. Em outras, certos aportes exógenos, como o trocador de fraldas multifuncional ou faixas umbilicais compradas prontas, foram integrados ao esquema de higiene tradicional. Essas faixas, hoje existentes na forma de uma rede elástica de algodão que envolve a barriga do recém-nascido, são muitas vezes escolhidas em substituição às tradicionais ataduras Velpeau.

Observa-se uma ordem específica dos atos durante a higiene, ou mesmo um uso muito ritualizado de cada um dos elementos ali presentes, quer se trate da água ou do sabão. A água é usada de diferentes maneiras, conforme a idade do bebê ou o nível de cicatrização de seu umbigo.

Em decorrência da grande fragilidade da criança, teme-se particularmente o ar, que pode resfriar o bebê, e a luz, que pode agredir seus olhos.

Durante a higiene, o bebê é primeiro cuidadosamente ensaboado e, em seguida, lavado e enxaguado. Algumas mulheres, aliás, afirmam que as crianças não são adequadamente lavadas nas maternidades. Com efeito, a bacia destinada ao enxágue, presença quase sistemática no contexto familiar, inexiste no meio hospitalar. Outros cuidados se referem ao cordão e à barriga. Cobre-se o bebê com várias camadas de roupas para proteger o peito e o abdômen. Seu torso e sua barriga são frequentemente enfaixados. Após a higiene, uma larga faixa o envolve, desde as axilas até o baixo-ventre, para protegê-lo das correntes de ar; para que não se resfrie sua barriga, ainda frágil; para fortalecê-lo, enrijecê-lo. Tais procedimentos podem ser relacionados àqueles – descritos por Françoise Loux (1978) e Jacques Gélis (1984) – existentes na França de antigamente e que se perpetuam ainda hoje em outras partes do mundo, dentro do mesmo intuito de boa postura. As práticas de bandagem da barriga e do torso da criança, que, em geral, se encerram no final do primeiro mês, parecem pertencer à mesma lógica da "boa postura", e é lícito aventar a hipótese de que constituam resquícios dos enfaixamentos vigentes até o início dos anos 1970. Veiculados por profissionais da puericultura ocidental (médicos, enfermeiras obstetras ou puericultoras), esses costumes refletiam aqueles existentes na Europa algumas décadas mais cedo. Constituíam, portanto, um modelo colonial importado.24 24 O fenômeno não é exclusivo de Reunião, sendo um excelente exemplo o enfaixamento filmado por Suzanne Lallemand (2007) entre os Batak da Sumatra, bastante influenciado pelos modelos da puericultura holandesa dos anos 1940 a 1950 (Sumatra, antes da independência, era uma colônia holandesa). Para as mães que haviam integrado esses aportes exógenos aos costumes e às representações estabelecidos, o enfaixamento ("enroscar no pagn", em crioulo reunionense) tinha dois objetivos principais: proteger o pequenino do frio, das correntes de ar passíveis de prejudicar seu organismo, tido como termicamente instável; e endireitar o bebê, dar-lhe boa postura, humanizá-lo, de certa forma, ao possibilitar que andasse mais depressa.

Nos nossos dias, o pagn está praticamente extinto, sendo substituído quer pela bandagem do torso, quer pelo uso de uma calça e/ou macaquinho, que evitam que a criança fique de barriga descoberta. Pijamas estilo "tip top" são os mais usados para recém-nascidos, pois, no dizer de várias interlocutoras, "protegem das correntes de ar". Para sair, os recém-nascidos são cuidadosamente vestidos. Em compensação, passados três ou quatro meses, quando o bebê já é considerado menos frágil pelas jovens mães, a moda parece ser a única a ditar a escolha do vestuário. E este é, igualmente, reflexo de uma clara e precoce intenção de diferenciação sexual.

Evolução das práticas, invenção da tradição?

Vimos, neste artigo, que as Ilhas Mascarenhas possuíram, e em parte ainda possuem, riquíssimas tradições em termos de cuidados maternos e acolhimento do recém-nascido. As mudanças consecutivas à generalização da biomedicina vieram alterar esses costumes: os partos já não acontecem em casa, e, sim, na maternidade; o acolhimento do bebê modificou-se, assim como as formas de solidariedade feminina que estavam no cerne das condutas sociais ligadas ao nascimento.

Terão as práticas simplesmente evoluído ou estará sendo criada uma nova tradição, influenciada pela medicina e pela puericultura ocidental moderna?

Uma leitura antropológica das dinâmicas em vigor revela a coexistência de dois fenômenos:

• é possível observar, de um lado, uma apropriação, no modo identitário, das práticas das avós, aliada, em algumas mulheres, à reivindicação desses costumes como sendo associados a uma origem exclusiva – decorrente, no mais das vezes, de um pertencimento eletivo, associado a origens presumidas;

• num outro nível, alguns procedimentos relacionados à posição do parto e à puericultura, aportes exógenos trazidos pela biomedicina, são incorporados pelas mais jovens ao modelo preexistente e considerados como parte da tradição.

Deparamos aqui com um fenômeno bem conhecido pelos antropólogos e muitíssimo bem descrito por Eric Hobsbawm e Terence Ranger (1983): a criação da tradição. E, em termos de interpretação antropológica, bem se vê, toda derivação é possível, se não houver conhecimento do passado.

Por fim, o acolhimento do recém-nascido nas Ilhas Mascarenhas se caracteriza, antes de tudo, pela fluidez das práticas vigentes, pelas reinterpretações, pelas reorganizações, pelas reinvenções culturais (Ghasarian, 2002), o que, muitos anos atrás, Roger Bastide, referindo-se ao contexto brasileiro, qualificou de "fluidez":

... porque o folclore brasileiro, ao contrário do europeu, ainda não se cristalizou: apresenta-se com uma fluidez extraordinária [...] Por isso esse folclore é essencialmente móvel, decompondo-se e recriando-se em novas formas a todo instante, mudando datas ou passando de um grupo social para outro, o que constitui, para o sociólogo, uma fonte de dificuldades. (Bastide, 1951, p. 377)

E a fluidez da sociedade reunionense decerto não é tão diferente daquela presente em outras sociedades crioulas do planeta, como no Brasil, por exemplo.

Submetido à publicação em 11 de março de 2013.

Aprovado em 04 de junho de 2013.

  • BARASSIN, J. La vie quotidienne des colons de l'île Bourbon à la fin du règne de Louis XIV: 1700-1715. Saint-Denis: Académie de La Réunion, 1989.
  • BASTIDE, R. Le folklore brésilien. Revue de Psychologie des Peuples Centre de recherches et d'etudes de psychologie des peuples et de sociologie economique, Institut Havrais de Sociologie Economique et de Psychologie des Peuples, Le Havre, n. 4, p. 377-412, 1951.
  • BERTHELOT, L. La petite Mascareigne: aspects de l'histoire de Rodrigues. Port-Louis: Centre Culturel Africain, 2002.
  • BONNET, D.; POURCHEZ, L. (Ed.). Du soin au rite dans l'enfance Paris: Érès; IRD, 2007. (Collection Petite enfance et parentalité). 14 contribuições e 11 filmes etnográficos incluídos no vídeo em DVD que acompanha o livro.
  • GÉLIS, J. L'arbre et le fruit. La naissance dans l'occident moderne, XVIe- XIXe siècles. Paris: Fayard, 1984.
  • GHASARIAN, C. La Réunion: acculturation, creolisation et reformulations identitaires. Ethnologie française Outre-mer: Statuts, cultures, devenirs, Paris, v. 32, p. 663-676, oct./déc. 2002/4.
  • HOBSBAWM, E.; RANGER, T. The invention of tradition Cambridge: Cambridge University Press, 1983.
  • LAGET, M. Naissances: l'accouchement avant l'âge de la clinique. Paris: Seuil, 1982.
  • LALLEMAND, S.  Les soins du corps chez les Bataks de Sumatra. In: BONNET, D.; POURCHEZ, L. (Ed.). Du soin au rite dans l'enfance Paris: Érès; IRD, 2007.  DVD vídeo.  15 min. Filme etnográfico.
  • LOUX, F. Le jeune enfant et son corps dans la médecine traditionnelle Paris: Flammarion, 1978.
  • LOUX, F.; MOREL, M.-F. L'enfance et les savoirs sur le corps. Ethnologie française, Paris, v. 6, n. 3-4, p. 309-324, 1976.
  • POURCHEZ,  L. Adoption et fosterage à La Réunion: du souci de préserver les équilibres sociaux. In: LEBLIC, I. De l'adoption. Des pratiques de filiation différentes Clermont-Ferrand: Presses Universitaires de Clermont-Ferrand, 2004, p.  16-30.
  • POURCHEZ,  L. Grossesse, naissance et petite enfance en société créole Paris: Karthala, 2002a.
  • POURCHEZ,  L. Le façonnage du visage et le bandage du tronc de l'enfant à l'île de La Réunion: soins, rites ou marquage identitaire?. In: BONNET, D.; POURCHEZ, L. (Ed.). Du soin au rite dans l'enfance Paris: Érès, 2007. p. 44-58.
  • POURCHEZ,  L. Les dangers de l'allaitement maternel à La Réunion. In: BONNET, D.; MOREL, M.-F.; LEGRAND-SÉBILLE, C. (Ed.). Allaitements en marge Paris: L'Harmattan, 2002b. p. 47-68.
  • POURCHEZ,  L. Savoirs des femmes, médecine traditionnelle et nature (Maurice, Réunion, Rodrigues) Paris: Unesco Publishing, 2011.
  • POURCHEZ, L.; TABUTEAU, J. Infanticide et représentation de la vie à La Réunion: une approche croisée. Ethnologie française, Paris, n. 4, p. 689-697, 2004.
  • 1
    1 Traduzido do francês por Dorothée de Bruchard.
  • 2
    2 Para uma análise cruzada dessas antigas representações da vida, feita por uma antropóloga e um jurista, a partir do estudo de diversos processos por infanticídio, ver Pourchez e Tabuteau (004).
  • 3
    ma tante 3 No original: "une vieille ". (N. T.).
    minha tia
  • 4
    4 Esse termo de referência não remete necessariamente a um membro da parentela (consanguínea ou por aliança) de Aimée. É frequentemente empregado, num modo classificatório, para designar uma mulher próxima da família e da mesma geração da genitora de Ego.
    que me levava junto em todos os partos, mostrando como se fazia. Aos poucos, foi me ensinando tudo, e aí, quando ela ficou muito velha, eu passei a fazer o trabalho, colher os bebezinhos [fazer os partos].
    Então, quando uma mulher ficava doente [com contrações]
    , o marido vinha me chamar.
  • 5
    Communauté Financière Africaine 5 As moedas, em francos CFA, que circulavam então. [CFA: , Comunidade Financeira Africana. (N.T.)]
    No começo, para ter certeza, eu trazia umas moedas na bolsa, mas depois, quando fui me acostumando, não precisava mais. O pai estava presente, claro, às vezes ele olhava, mas nem sempre. Ele dava uma mão. Estava ali, se a gente precisasse. E às vezes, quando o parto não ia bem, ele tranquilizava a mulher, amparava, ajudava. E às vezes, também, precisava mudar a posição para ajudar a mulher a parir.
  • 6
    James Planiol 6 Nome derivado da marca , primeiro azeite de oliva a ser importado na ilha e o único empregado para preparos medicinais, embora os demais azeites possuam as mesmas propriedades.
  • 7
    Fam-saj 7 remete à expressão homófona francesa femme sage (mulher sábia) e, em forma invertida, sage-femme (enfermeira obstetra, ou obstetriz). (N. T.) era outro nome dado às parteiras reunionenses, por vezes também chamadas de
    fam-saj maron, decerto em referência à clandestinidade dos escravos fugitivos
  • 8
    marron 8 O adjetivo , que em francês designava originalmente os escravos fugitivos, adquiriu modernamente o sentido de "clandestino", "ilegal". (N. T.) , forçados a esconder-se. O termo remetia igualmente às "mulheres sábias [
    femmes sages], sensatas e experientes", inscritas nos registros paroquiais do século XVIII. A
    fam-saj maron era, assim, em certa medida, o oposto da enfermeira obstetra: era uma mulher não formada na medicina científica, que aprendera seu ofício com outras mulheres e o exercia de maneira não oficial. Em Rodrigues, o termo
    fam-saj designa ainda hoje as parteiras tradicionais, que em Maurício, aliás, foram reconhecidas pelo Ministério da Saúde.
  • 9
    femme-qui-aide 9 No original, . Usa-se em português o termo doula, que em grego significa "mulher que serve". (N. T.). mãe ou sogra da parturiente. A doula intervinha principalmente nos cuidados, na higiene do recém-nascido ou dos mortos. Pessoa de confiança, conhecida na aldeia, constituía um dos recursos terapêuticos das famílias. Em geral, o pai não assistia à expulsão, devido a temores ligados ao sangue loquial
  • 10
    10 A força das representações associadas ao sangue se encontra também em inúmeras receitas de filtro do amor, sendo o sangue, em sua forma real ou simbólica, um ingrediente indispensável ao seu preparo (Pourchez, 2004). , porém estava presente, sustendo a esposa (conforme a posição escolhida para o parto), providenciando os diversos materiais necessários – água quente, panos destinados a acolher o bebê (dizia-se, às vezes, inclusive, que o bebê tinha de ser recebido numa camisa velha, se possível ainda impregnada do cheiro do pai). Este fornecia igualmente o alimento para as demais crianças da casa.
  • 1
    Traduzido do francês por Dorothée de Bruchard.
  • 2
    Para uma análise cruzada dessas antigas representações da vida, feita por uma antropóloga e um jurista, a partir do estudo de diversos processos por infanticídio, ver Pourchez e Tabuteau (004).
  • ma tante

    3 No original: "une vieille ". (N. T.).
  • 4
    Esse termo de referência não remete necessariamente a um membro da parentela (consanguínea ou por aliança) de Aimée. É frequentemente empregado, num modo classificatório, para designar uma mulher próxima da família e da mesma geração da genitora de Ego.
  • Communauté Financière Africaine

    5 As moedas, em francos CFA, que circulavam então. [CFA: , Comunidade Financeira Africana. (N.T.)]
  • James Planiol

    6 Nome derivado da marca , primeiro azeite de oliva a ser importado na ilha e o único empregado para preparos medicinais, embora os demais azeites possuam as mesmas propriedades.
  • Fam-saj

    7 remete à expressão homófona francesa
    femme sage (mulher sábia) e, em forma invertida,
    sage-femme (enfermeira obstetra, ou obstetriz). (N. T.)
  • marron

    8 O adjetivo , que em francês designava originalmente os escravos fugitivos, adquiriu modernamente o sentido de "clandestino", "ilegal". (N. T.)
  • femme-qui-aide

    9 No original, . Usa-se em português o termo
    doula, que em grego significa "mulher que serve". (N. T.).
  • 10
    A força das representações associadas ao sangue se encontra também em inúmeras receitas de filtro do amor, sendo o sangue, em sua forma real ou simbólica, um ingrediente indispensável ao seu preparo (Pourchez, 2004).
  • 11
    Essas diversas técnicas do corpo estão descritas e analisadas em Pourchez (2002a, 2002b, 2007).
  • 12
    Plantago major (Plantaginaceae).
  • 13
    Tamarindus indicus (Caesalpiniaceae).
  • 14
    Kour: espaço externo da habitação que compreende as dependências, o jardim, assim como o local onde se lava roupa.
  • 15
    Kaz: casa.
  • 16
    Bebê molenga.
  • 17
    De
    tambavy, termo de origem madagascarense que, muitas vezes, designa os chás de modo geral, mas também um preparo específico ligado a um reconhecimento da linhagem da criança.
  • 18
    Caroço de pêssego:
    Prunus persica (Rosaceae).
  • 19
    Funcho:
    Foeniculum vulgare (Apiaceae).
  • 20
    Também chamado
    tit flèr bléèt, zépi blé, ou aciano, na forma acroletal do termo:
    Sachytarpheta jamaicensis (Verbenaceae).
  • 21
    Iapana ou
    ayapana:
    Eupatorium triplinerve (Asteraceae). Vegetal utilizado nas três Ilhas Mascarenhas, sobretudo no tratamento das cólicas do recém-nascido e também dos distúrbios intestinais.
  • 22
    Ou camomila:
    Parthenium hysterophorus (Asteraceae); não confundir com a camomila europeia, que é outro vegetal. [No Dicionário Houaiss (2009), há duas entradas para "camomila", ambas europeias. Nas pesquisas via google,
    Parthenium hysterophorus é uma erva daninha extremamente invasiva e perigosa para a saúde, conhecida como losna-branca, coentro do mato ou fazendeiro. N.T.]
  • 23
    Ou sensitiva:
    Mimosa pudica (Mimosaceae). [No Dicionário Houaiss (2009), "sensitiva" remete a "mimosa sensitiva" (entre outras mimosas), da família das mimosáceas, mas não consta
    Mimosa pudica N.T.].
  • 24
    O fenômeno não é exclusivo de Reunião, sendo um excelente exemplo o enfaixamento filmado por Suzanne Lallemand (2007) entre os Batak da Sumatra, bastante influenciado pelos modelos da puericultura holandesa dos anos 1940 a 1950 (Sumatra, antes da independência, era uma colônia holandesa).
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      10 Jan 2014
    • Data do Fascículo
      Dez 2013

    Histórico

    • Recebido
      11 Mar 2013
    • Aceito
      04 Jun 2013
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