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Grant Wood: uma vida

LEITURAS E RESENHAS

Grant Wood: uma vida

Roberto Carvalho de Magalhães

Università Internazionale dell'Arte di Firenze, Itália. rcmagalhaes@libero.it

Evans, R. Tripp. Grant Wood. A Life. New York: Alfred A. Knopf, 2010. 402 p., 26 il. col., 87 il.

Pode acontecer que uma parte importante do trabalho de um historiador da arte consista em desvincular a obra de um artista dos lugares comuns ou das tradições sem fundamento que lhe foram associados no curso da história. O mesmo pode acontecer com os biógrafos, que, depois de terem recolhido todos os documentos e testemunhos disponíveis, veem-se chamados a desmentir ou até mesmo inverter muitas convenções sobre o seu personagem. Em Grant Wood. A Life, de R. Tripp Evans, ocorrem as duas coisas. Na sua biografia/monografia sobre Grant Wood, Evans, professor de história da arte no Wheaton College (Massachusetts, USA), não se ocupa, porém, de um pintor qualquer, mas de um dos símbolos nacionais americanos. Para quem não tem familiaridade com o nome, é suficiente lembrar um de seus quadros: American Gothic, onde se vê um casal um pouco inquietante - aparentemente, agricultores - diante de uma casa de fazenda da época vitoriana. O homem de macacão jeans, do tipo que se tornou, como a coca-cola, um símbolo americano - mas que, na realidade, nasceu na França - e paletó preto está segurando uma forquilha. O seu olhar é hostil, parece não anunciar nada de bom e querer manter o observador à devida distância. A mulher, ao seu lado, está com um vestido preto, coberto por um avental tradicional. O olhar dela não é mais afável do que o do homem.

A obra foi mostrada, pela primeira vez, em uma exposição do Institute of Art de Chicago, em 1930, provocando reações opostas: de um lado, alguns críticos oriundos do estado de Iowa, onde o próprio Grant Wood nascera e crescera, viram nela uma paródia cruel do seu mundo rural e ressaltaram a inexatidão das roupas e dos acessórios, acusando o pintor de não ter estado em Iowa, provavelmente, desde a adolescência; do outro lado, críticos das grandes cidades da East Coast receberam a paródia positivamente, considerando-a um símbolo da mentalidade religiosa intolerante do MidWest americano. (Já entrevemos, aqui, a divisão que, em parte, caracteriza, politicamente, os Estados Unidos atuais.)

Logo depois, porém, American Gothic e outros quadros de Grant, que retratam, supostamente, o campo e a vida rural em Iowa, tornam-se um símbolo da "verdadeira alma americana", da "simplicidade e honestidade da vida rural", uma "reflexão sincera e patriótica sobre a América". Além disso, sem se preocupar com o fato de que Grant Wood tinha passado longos períodos de formação na Europa - especialmente em Paris -, viajado pela Itália e feito com que seu vitral para o Veterans Memorial Building (Cedar Rapids, Iowa) fosse executado em Munique, onde ele pôde estudar, principalmente, as pinturas flamenga e alemã do Renascimento, o pintor se torna, quase milagrosamente, um "home-grown product", um produto nacional.

No seu livro excelente, Evans revela como, em um contexto social marcado pelo preconceito, aliás, pela condenação intransigente do homossexualismo, Wood - que era homossexual, como fica claro a partir da ampla documentação, dos depoimentos e dos indícios fornecidos pelo autor, é acometido pelo dilema de ser ele próprio, de seguir uma carreira e um estilo de pintura livre das conveniências sociais, ligado à sua formação francesa e europeia, ou adequar-se ao estereótipo de masculinidade que a sua província, com seus preconceitos político-religiosos, impunha-lhe de forma intransigente. No seu ambiente familiar e social, a palavra artista era automaticamente associada à promiscuidade da vida bohémienne das grandes cidades, quando não considerada um sinônimo de sissy, ou seja, de homem afeminado (conceito ao qual se vinculava, e ainda se vincula, com simplismo, a ideia de homossexualidade). Afeminada era considerada, também, a pintura ligada ao estilo impressionista francês. A biografia deixa claro que Wood opta por uma closeted life, por um ficar no armário, por esconder a sua verdadeira natureza e por adotar, pelo menos na aparência, um estilo e temas que lhe poupassem o risco de tais associações.

Nos anos 1930, Grant Wood é literalmente investido pelo violento debate político-cultural que opõe as cidades da costa leste à província americana e que se polariza nos termos seguintes: a grande cidade, exemplificada por New York, é onde, do ponto de vista da província, a corrupção e a promiscuidade se difundem, onde a cultura é filoeuropeia e, portanto, decadente; vice-versa, do ponto de vista do establishment cultural nova-iorquino, a província é vista com desprezo e a sua cultura, rotulada como folksy, folclórica - rótulo que, em seguida, será reforçado ainda mais com o surgimento do expressionismo abstrato em pintura.

Em 1933, independentemente da sua vontade, Wood foi associado, de forma arbitrária, a outros dois pintores, Thomas Hart Benton e John Steuart Curry, em uma exposição do Kansas City Art Institute intitulada American Art Since Whistler. A retrospectiva privilegiava a pintura figurativa e narrativa e os artistas que, supostamente, tinham-se formado em casa, em detrimento da arte abstrata e dos pintores americanos que viviam no exterior. O seu curador, Maynard Walker, sustentava que "uma das coisas mais significativas no mundo da arte de hoje é a importância crescente da verdadeira arte americana... arte que brota realmente do solo americano e procura interpretar a vida americana" (p. 167). Criavam-se, assim, os pressupostos para uma crítica de arte patriótica e nacionalista e para a invenção da corrente American Scene, isto é, do regionalismo pictórico americano. Como se não bastasse, Benton publica, em 1935, um violento manifesto homofóbico, Farwell to New York, no qual o pintor acusa o meio artístico da cidade de estar nas mãos de homossexuais, fazendo, ao mesmo tempo, a apologia da "saudável masculinidade" da pintura regionalista.

Com certeza, tudo isso não ajudaria Grant Wood a viver despreocupadamente a sua homossexualidade, pelo menos não na sua vida pública. Por cúmulo da ironia - e do paradoxo - exatamente a sua pintura tornar-se-ia um dos símbolos da "saudável masculinidade" do "verdadeiro americano". Entretanto, como R. Tripp Evans demonstra, não só os temas dos quadros de Wood não são uma glorificação patriótica da América ou da vida sã do Middle West rural, como também relatam muito sobre o Grant Wood escondido. Em primeiro lugar, Evans revela como os seus quadros não se referem tanto ao Iowa contemporâneo quanto ao mundo da infância do pintor - o que, por si só, descarta a ideia de apologia patriótica da "verdadeira América", substituindo-a pela nostalgia de algo que se foi ou que nunca houve, senão até mesmo pela crítica sarcástica.

Servindo-se de instrumentos que vão da pura visibilidade à psicanálise, Evans analisa um grande número de obras de Grant Wood, fazendo com que emerja o seu aspecto biográfico, inquietante e, diga-se, quase perverso. O autor torna evidente a ambiguidade das paisagens, que, por trás do caráter aparentemente bonachão e encantador, contêm referências à sexualidade oculta do pintor, ou como os retratos individuais ou de grupo apontam para histórias que vão muito além do, ou contradizem, o "saudável caráter nacional americano" Evans demonstra, por exemplo, como em Woman with Plants, um retrato da própria mãe, com uma paisagem de fundo de clara matriz flamenga, a mulher é transformada sutilmente em uma Demetra moderna, e como American Gothic não é composto por um casal ou por um pai e uma filha - como comumente se crê -, mas é, na verdade, um duplo retrato da irmã e do dentista do pintor, que se tinham prestado como modelos para outra alegoria - a de Hades, na qual Wood projeta idealmente a figura austera, distante e pouco acolhedora do próprio pai, e de Perséfone.

Outro exemplo de invasão de fronteira entre um retrato e uma alegoria - ou entre a dimensão pública e a vida privada - encontra-se em Appraisal. No frente a frente entre duas mulheres, uma pertencente ao campo e a outra à cidade, a suposta mulher de um agricultor é, na realidade, um retrato de Ed Rowan, diretor da Little Gallery de Cedar Rapids e amigo de Grant Wood, do qual o pintor zomba, retratando-o como um drag (travesti). Dessa forma, o pintor coloca, no centro da América virtuosa, patriótica e intransigente, exatamente o que nela era violentamente repudiado. Diz Evans: "Appraisal é uma cena de gênero ou um duplo retrato? Com certeza, para Wood é as duas coisas - e deveria sê-lo também para nós, se quisermos entendê-lo plenamente, assim como no caso de American Gothic". (p. 142)

Resumindo, o livro nos mostra como, no debate cultural, em geral, e na pintura, em particular, divididos entre os defensores da "saudável masculinidade" e do suposto caráter nacional e patriótico da arte de um lado e os defensores do afeminado abstracionismo e das doentias vanguardas de origem europeia do outro, Grant Wood foi transformado, não obstante a sua orientação sexual e as qualidades intrínsecas da sua pintura, num representante do regionalismo e, como tal, num símbolo americano. Mas o livro é muito mais do que isso. Evans reconstrói, com grande sutileza e sensibilidade, o contexto familiar e social em que essa trajetória de vida e artística ocorre, explora e analisa os dilemas pessoais de Wood, desvela o que se esguia camufladamente nas entrelinhas dos depoimentos. Grant Wood. A Life é um trabalho excelente, corajoso e meticuloso de demolição de um mito e de reconstrução de uma pessoa e de um artista, que renascem, nas páginas do livro, muito mais complexos e profundos, muito mais humanos.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    16 Set 2013
  • Data do Fascículo
    Ago 2013
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