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Barbie e sua história: gênero, infância e consumo

LEITURAS E RESENHAS

Barbie e sua história: gênero, infância e consumo

Helena Altmann

Professora da Faculdade de Educação Física da Unversidade Estadual de Campinas (Unicamp), Campinas, SP, Brasil. altmann@fef.unicamp.br

ROVERI, Fernanda Theodoro. Barbie na educação de meninas: do rosa ao choque. São Paulo: Annablume, 2012. 134 p.

O lançamento da boneca Barbie pela indústria de brinquedos ocorreu em 1959. No Brasil, ela aterrissou em 1982. O surgimento do que se tornaria a boneca mais vendida do mundo está envolto por um intenso investimento tecnológico, político e publicitário no sentido de viabilizar sua confecção, distribuição e hegemonia em um mercado mundial globalizado. Assim, compreender como a boneca Barbie educa meninas exige olhar não apenas para a boneca em si, mas para os diferentes dispositivos que a constituem. É a partir dessa perspectiva de pensamento que o livro Barbie na educação de meninas: do rosa ao choque apresenta-nos diversas dimensões educativas dessa boneca.

Esse livro é resultado da dissertação de mestrado de Fernanda Roveri, orientada pela Profa. Dra. Carmen Lúcia Soares, defendida na Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas - Unicamp, em 2008. A pesquisa teve como objetivo discutir a interferência da boneca Barbie na educação de meninas, os modelos de feminilidade veiculados às garotas e as narrativas apresentadas por este brinquedo.

A constituição da história desta boneca possibilitou não apenas compreender a educação de meninas, mas, também, a de meninos; olhar para a indústria do brinquedo, bem como para a produção e a circulação de produtos industrializados em um mundo globalizado e desigual; refletir sobre o lugar da publicidade na sociedade contemporânea e sua relação com a infância, com os brinquedos e seus usos, com a constituição de feminilidades e masculinidades, com a educação do corpo, entre outros. Assim, são muitos os interesses que podem conduzir à leitura deste livro. Cada leitor há de escolher o seu e percorrer os cinco capítulos que lhe dão forma e conteúdo: "Barbie: tudo o que você quer ser", "Barbie Farsa", "Barbie Lânguida", "Barbie Tóxica" e "Barbie Tribunal".

O livro conta com uma apresentação redigida por Margareth Rago, professora titular da Unicamp, pesquisadora consagrada nos estudos de história e de gênero. A apresentação, intitulada "O império da Barbie", levanta diversas questões sobre essa boneca que "se adéqua perfeitamente ao ideal da mulher moderna e branca do Primeiro Mundo, ágil, esportista e consumista, mas limitada ao que culturalmente se considera o 'universo da mulher'" (p. 12). A conclusão da apresentação deixa ao leitor as seguintes perguntas: "Precisamos mesmo de Barbies? Para que e para quem? A que preço, a que custos?" (p. 14)

O primeiro capítulo se inicia com a informação de que a Barbie teve sua imagem modelada no museu de cera de Grévin em Paris. Como, na sua história, se investiu na sua humanização, transformando-a em personalidade? O que ela fez para estar ali com astros e estrelas?

Se há algo marcante na história da Barbie é o investimento em torno da boneca. Diferentes estratégias publicitárias transformaram-na em uma personalidade. Barbie não é apenas uma boneca, mas uma marca. Não se trata mais apenas de vender uma boneca, mas de vendê-la com e por meio de inúmeros outros produtos: filmes, roupas e acessórios, carros, móveis, animais de estimação, jogos eletrônicos, sites da internet, decorações de festas infantis, roupas infantis, bolas, ovos de Páscoa e tantos outros produtos quanto se possa imaginar. Portanto, o livro mostra como a história da Barbie é concomitante à descoberta da criança como consumidora em potencial.

Se, entre 1966 e 1985, Susi reinava nas prateleiras das lojas brasileiras, ela rapidamente perdeu seu lugar com a chegada da Barbie ao Brasil em 1982. A Mattel exigiu que a Susi deixasse de ser vendida em 1985, para que a Estrela - na época a principal indústria de brinquedos do país - explorasse, por 12 anos, com exclusividade, Barbie e seus produtos. Depois disso, a Mattel voltou a produzir a boneca, transferindo, então, sua fabricação para países asiáticos. Assim, a história da Barbie é também uma história de relações de poder que propiciam sua ampla comercialização, revelando facetas geralmente invisíveis do comércio e da indústria globalizados e da exploração da mão de obra barata no mundo.

Outro aspecto que diferencia a Barbie da Susi é que a Barbie é a primeira boneca a ter coleções de roupas que podem ser adquiridas separadamente. Barbie é consumista e educa para o consumo. Até a década de 1980, as trocas de roupa de Susi não eram produzidas pela sua fabricante, mas dentro das casas das suas proprietárias ou comercializadas em um mercado informal, como o de feiras livres. Suas vestimentas também não eram temáticas, como passou a ocorrer com as da Barbie, cuja troca de roupas se tornou central não só na brincadeira, mas também na personalidade, nas funções e nas profissões da boneca. As roupas delimitam lugares e profissões para a mulher na sociedade, todos sempre perpassados pela beleza, característica incondicional da boneca.

No final dos anos 1970, a Estrela lançou o primeiro boneco pensado e produzido especificamente para meninos. Inspirado no nome de um jogador de futebol, Falcão, ele foi batizado de Falcon. Na época do seu lançamento, havia dúvidas quanto à viabilidade comercial de um boneco produzido para meninos, uma vez que não se esperava de um garoto brincar de boneca. Sua fabricante preparou um discurso visual que o mantinha seguramente como "boneco de domínio masculino": armas, carros, barba, cicatriz no rosto, corpo articulado para propiciar movimentos diversos, etc. Depois do Falcon, sucederam-se outros bonecos heróis, vilões e guerreiros.

No entanto, o Falcon também se tornou brinquedo de menina, mostrando como a infância e o brincar podem ressignificar objetos e práticas sociais. Falcon foi apropriado pelas garotas, que o transformaram no namorado da Susi. Diferentemente de Susi, que "conquistou" um namorado, Barbie teve o seu produzido especificamente para ela. Ken foi criado como namorado da Barbie em 1961, sendo mais uma das estratégias de personalizar a boneca. Ele possibilitou a construção de novas narrativas à Barbie, tornando-a ainda mais real. Esse "acessório" da Barbie, adquirido separadamente, era mais alto que a namorada, sendo uma boa companhia para passear, ouvir música, namorar ou até mesmo casar - embora nunca tenham tido filhos.

Como afirma Fernanda Roveri (2012, p. 57)

[...] o que tem sustentado a permanência de Barbie como a boneca mais vendida no mundo e um ícone da moda é o seu desprendimento do passado, apoiado na lógica das mudanças de detalhes: Barbie é um molde definido, padronizado e patenteado, mas a partir dele, segue-se uma miríade de variações (negra, ruiva, morena, fada, sereia etc.) dentre as quais é possível combinar peças de roupas, acessórios, equipamentos não mais oferecidos em um padrão único.

Essa eficiência mercadológica torna Barbie um brinquedo extremamente apreciado pelas crianças e por alguns adultos, sendo adquirido para brincar e também para colecionar.

As roupas da Barbie e seus acessórios determinam diferentes profissões para a boneca. Profissões ligadas à ideia de proteção e de educação fazem parte da sua história. Ela já foi babá de bichos, pediatra, professora de natação, veterinária. Embora nunca tenha sido produzida no papel de mãe, a autora argumenta que essa é uma função que pode ser assumida pelas personagens. A "Barbie Pediatra", por exemplo, não usava roupa de médica e era acompanhada de dois bebês, que, de pacientes, poderiam ser transformados em filhos.

Além das profissões, Barbie também foi personalizada em princesa, sereia, fada. Narrativas em torno dessas personagens são apresentadas por meio de filmes, de imagens e de objetos que encantam e preenchem o imaginário das crianças. No entanto, o que Fernanda Roveri mostra, ao longo de suas análises, é o quanto as personagens da Barbie são elaboradas de acordo com perspectivas limitadas do que a menina precisa saber, ter, fazer para tornar-se mulher.

Assim, mais um aspecto brilhantemente explorado no livro é como os brinquedos educam meninos e meninas de modos distintos, nos seus mais diversos aspectos, tais como o gênero, a sexualidade, o corpo, os sentimentos, as emoções, os gostos, entre outros. Embora o título do livro nos anuncie que é a educação delas que está em pauta por meio da boneca Barbie, o seu conteúdo também é revelador sobre a educação dos garotos na sociedade contemporânea. Ao olhar para a boneca Barbie e para os produtos que a acompanham, em contraste com brinquedos produzidos para eles, a autora coloca em prática algo importante para as pesquisas de gênero, tal qual já formulado por Joan Scott (1995): uma análise relacional. Um brinquedo produzido para meninas e suas dimensões educativas são analisados em relação àqueles oferecidos aos meninos. Se a Barbie e seus acessórios constroem um gosto pela cor rosa, o gosto dos meninos é educado para o verde e o azul. Enquanto a Barbie não se sustenta em pé, mas permite trocas de roupas que constituem seu lugar no mundo, o boneco Max Steel já vem vestido, muitas vezes armado, movimentando todas as suas articulações em várias direções. O carro da Barbie, rosa e conversível, em muito se diferencia dos carros da linha Hot Wheels, que, como o próprio nome já indica, possibilitam movimentos radicais, ação, coragem, adrenalina.

O livro Barbie na educação de meninas - do rosa ao choque, de Fernanda Roveri, percorre inúmeros caminhos para construir uma narrativa de qualidade irreparável sobre a chocante e rosada história da boneca Barbie e suas diversas e cerceantes dimensões educativas. No entanto, ainda que a produção da boneca ocorra a partir de possibilidades limitadas de ser mulher na sociedade contemporânea, por meio do brincar a criança é capaz de se sobrepor ao objeto, atribuindo-lhe outros significados que não aqueles originalmente pensados. Transformar o carro da Barbie em um rolls royce e bonecas na Presidenta Dilma Rousseff e em sua filha Paula, a desfilar por Brasília no dia 1º de janeiro de 2011, como fez minha filha naquela data, mostra que a brincadeira também pode construir novas possibilidades de ser mulher no mundo, até mesmo para a boneca Barbie.

  • SCOTT, Joan Wallach. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Educação e Realidade, Porto Alegre, v. 20, n. 2, p. 71-99, jul./dez. 1995.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    06 Maio 2013
  • Data do Fascículo
    Abr 2013
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