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As representações quanto ao lugar dos saberes na educação histórica, manifestadas durante o debate em torno do novo currículo de História no Quebec (2006-2010)

Representations about the position of knowledge in history instruction arisen during the debate on the new history curriculum in Quebec (2006-2010)

Resumos

Este artigo analisa o discurso de diferentes atores no momento do debate sobre o novo currículo de História nacional no Quebec de 2006 a 2010. Duas posições opostas quanto ao lugar do saber histórico e sua construção são identificadas: uma visa ao desenvolvimento de habilidades intelectuais associadas ao pensamento histórico; a outra enfatiza a transmissão e a memorização de uma trama narrativa rígida.

História; currículo; saber; cidadania; competência


This article analyzes different actors' discourses during the debate on the new national History curriculum in Quebec, held from 2006 to 2010. Two opposite positions regarding the place of history instruction and its construction were identified: one that aims to develop intellectual skills associated with historical thinking and one that focuses on the transmission and storage of a fixed narrative.

History; curriculum; knowledge; citizenship; intellectual skill


Cet article analyse le discours de différents intervenants lors du débat concernant le nouveau programme d'histoire nationale au Québec de 2006 à 2010. Deux positions opposées quant à la place du savoir historique et sa construction sont identifiées : l'une vise le développement d'habiletés intellectuelles associées à la pensée historique; l'autre met l'accent sur la transmission et la mémorisation d'une trame narrative fixe.

histoire; programme; savoir; citoyenneté; compétence


DOSSIÊ "ENTRE SABERES E PRÁTICAS DOCENTES"

As representações quanto ao lugar dos saberes na educação histórica, manifestadas durante o debate em torno do novo currículo de História no Quebec (2006-2010)1 1 . Agradecemos a Marta Teixeira, doutoranda em psicopedagogia na Université Laval, pela tradução do presente texto para a língua portuguesa, possibilitando a sua publicação neste dossiê temático.

Representations about the position of knowledge in history instruction arisen during the debate on the new history curriculum in Quebec (2006-2010)

Vincent BoutonnetI; Jean-François CardinII; Marc-André ÉthierIII

IDoutorando em Didática do Universo Social na Universidade de Montreal, Canadá. vincent.boutonnet@umontreal.ca

IIProfessor titular em Didática da História e das Ciências Sociais na Universidade Laval de Quebec, Canadá. jean-francois.cardin@fse.ulaval.ca

IIIProfessor de Didática da História na Universidade de Montreal, Canadá. marc.andre.ethier@umontreal.ca

RESUMO

Este artigo analisa o discurso de diferentes atores no momento do debate sobre o novo currículo de História nacional no Quebec de 2006 a 2010. Duas posições opostas quanto ao lugar do saber histórico e sua construção são identificadas: uma visa ao desenvolvimento de habilidades intelectuais associadas ao pensamento histórico; a outra enfatiza a transmissão e a memorização de uma trama narrativa rígida.

Palavras-chave: História; currículo; saber; cidadania; competência.

ABSTRACT

This article analyzes different actors' discourses during the debate on the new national History curriculum in Quebec, held from 2006 to 2010. Two opposite positions regarding the place of history instruction and its construction were identified: one that aims to develop intellectual skills associated with historical thinking and one that focuses on the transmission and storage of a fixed narrative.

Key words: History; curriculum; knowledge; citizenship; intellectual skill.

Contextualização2 2 . Uma versão diferente deste artigo foi publicada nas atas do colóquio História, Geografia e Educação para a cidadania, ocorrido em Lion (França) em 2011. Apresentamos aqui uma leitura complementar dos nossos dados.

No Quebec, no contexto de uma ampla reforma do sistema educativo, o Ministério da Educação, do Lazer e do Esporte (MÉLS) implementou em 2006 um novo currículo, baseado no desenvolvimento de competências (Cardin, 2010a; Éthier; Lefrançois, 2010; Gouvernement du Québec, 1997, 2006, 2007). O programa curricular de História e educação para a cidadania (HÉC) cobre, desde então, quatro dos cinco anos do ensino secundário3 3 . No Quebec, o ensino secundário obrigatório tem uma duração de cinco anos, divididos em dois ciclos: O primeiro ciclo é de dois anos (alunos com idades entre 13 e 14 anos), já o segundo é composto de três , ao invés de dois anos, como no currículo precedente. Os dois primeiros anos (1º ciclo) concentram-se na história do mundo ocidental. Os dois anos seguintes (2º ciclo) tratam da história do Quebec e do Canadá, segundo duas perspectivas: no 3º ano, segue-se uma abordagem cronológica e, no 4º ano, adota-se uma abordagem temática (população, economia, cultura, poder, sociedade e território).

A partir desses conteúdos, o currículo visa ao desenvolvimento de três competências específicas: 1) interrogar as realidades sociais numa perspectiva histórica; 2) interpretar as realidades sociais com a ajuda do método histórico; 3) construir/consolidar a própria consciência cidadã com o auxílio da História (Gouvernement du Québec, 2006, 2007). O currículo é baseado igualmente no desenvolvimento das competências relativas ao domínio e à manipulação de conceitos centrais e transferíveis.

Notemos que o programa curricular de Geografia, História e Educação para a cidadania, no primário (implementado desde 2001), e o programa de HÉC, no 1º ciclo do secundário (implementado desde 2005), não provocaram nenhuma agitação midiática (Cardin, 2010b). Ora, em abril de 2006, um debate veio à tona e teve grande repercussão na mídia, quando o jornal Le Devoir desvelou o conteúdo de uma versão preliminar do novo currículo de 2º ciclo sobre a história do Quebec e do Canadá; uma matéria muito mais sensível desta vez, pois diretamente vinculada à identidade pessoal e coletiva da população. A aplicação obrigatória desse currículo estava prevista para o início do ano letivo de 2007. Atores sociais de horizontes diferentes pronunciaram-se sobre ele, uns defendendo-o, outros atacando-o. Alguns, até mesmo, acusaram tal projeto de negar a nação quebequense, principalmente ocultando eventos simbólicos para os quebequenses francófonos, e denunciaram na mesma intensidade a abordagem de formação por competências, frequentemente apresentada como um dos meios usados para promover essa negação (Cardin, 2010b). Esse debate, que culminou em 2006, reapareceu algumas vezes nos últimos anos e continua até hoje, embora de forma mais atenuada.

Por outro lado, levantou várias questões fundamentais na escola sobre História, particularmente quanto à natureza da disciplina e à importância de transmitir uma trama de eventos nacionais, apresentada como sendo mais ou menos consensual. O teor deste debate tomou, então, várias vias ideológicas que nos pareceu interessante analisar, sobretudo porque os períodos de crise revelam frequentemente as representações sociais e as concepções profundas dos grupos, principalmente sobre tal questão social (Laville, 2004; Seixas, 2000). Todavia, neste artigo, não pretendemos intervir na base do debate; ao invés disso, procuramos analisar o discurso e os pontos de vista que circularam em relação ao saber histórico, ao seu ensino e à sua aprendizagem. Para nós, que estivemos envolvidos pessoalmente em diversos níveis nessa polêmica4 4 . Dois dos autores deste artigo intervieram na mídia e em revistas profissionais destinadas a professores, não para defender o projeto ministerial do currículo, mas, principalmente, para corrigir certos erros de fato ou meias verdades que circulavam a seu respeito e sobre o ensino da História em geral. , esta pesquisa é um meio de tomar certa distância em relação a ela. De fato, não podemos pretender a neutralidade, mas estimamos que importa colocar o debate a serviço da pesquisa e de uma melhor compreensão das diferentes representações sobre a história nacional.

Finalmente, queremos enfatizar que este debate ocorrido no Quebec está longe de ser um caso isolado. Durante as últimas décadas, vários países modificaram o currículo de História nacional e vivenciaram debates semelhantes, como, por exemplo, a Austrália (Macintyre; Clark, 2003), o Canadá (Granatstein, 1998; Laville, 2009), os Estados Unidos, em 1994, com os National Standards (Nash; Crabtree; Dunn, 2000) ou a Grã-Bretanha, durante os anos 1980, em torno do School Council History Project (Rosenzweig; Weinland, 1986). Sobre este assunto, o livro de Grever e Stuurman (2007) possibilita uma visão global do fenômeno, explorando em diferentes países essa passagem da transmissão de uma história tradicional e nacional na escola (o que os autores chamam de canon) para uma concepção muito mais baseada nos savoir-faire metodológicos e intelectuais próprios à História como disciplina científica.

Colocamos, então, como problema, a emergência neste debate sobre as representações sociais5 5 . Elas são também construções da realidade que tentam ser coerentes com a sociedade, as opiniões, os valores e as crenças dos sujeitos (Bouhon, 2009; Mos quanto ao lugar do saber histórico, seu valor, sua articulação, mas também todo o contexto didático no qual ele pode se inscrever, construtivista ou não, interpretativo ou não, crítico ou não, etc. Foi com essa perspectiva que coletamos e analisamos nossos dados.

Metodologia

Inicialmente, identificamos os artigos de periódicos que discutem o currículo de História nacional no secundário, provenientes de jornais destinados ao grande público, de blogs ou de websites, de revistas profissionais ou científicas. Esse material inicial cobre o período de abril de 2006 a dezembro de 2010 e conta com 243 textos. Em seguida, selecionamos 60 artigos julgados os mais pertinentes para a análise. Dois critérios principais orientavam nossas escolhas: 1) o teor e a densidade do discurso, considerando o tamanho do texto (mais de 200 palavras), mas também o rigor dos argumentos ou a originalidade do ponto de vista (até a saturação dos argumentos) e 2) os diferentes perfis de autores, a fim de reagrupá-los em categorias. Esses 60 artigos cobrem apenas 24,7% do material, mas constituem a parte mais representativa dos diferentes atores e dos diferentes argumentos que alimentaram esse debate.

Em seguida, fizemos uma primeira leitura desses artigos para identificar os temas recorrentes. A primeira codificação emergente (Van der Maren, 1996) que resultou dessa primeira leitura cobria temas como a relação com o saber, o desenvolvimento de competências, a educação para a cidadania, a ocultação presumida de certos fatos históricos no currículo, a oposição entre uma história nacional quebequense (ou nacionalista) e uma história nacional canadense (ou federalista), etc. Além desses temas, identificamos e reunimos em cinco perfis, vários atores: (1) professor de didática, (2) historiador, (3) jornalista, (4) docente e (5) público em geral (cuja opinião se manifestava principalmente nas cartas abertas aos jornais, escritas por indivíduos não associados aos quatro perfis precedentes).

Após ter efetuado essa primeira codificação emergente, retomamos nossas unidades de sentido por temas, para fazer delas uma codificação inversa6 6 . Entendemos por codificação inversa o procedimento para verificar a coesão entre as unidades de sentido por meio de um determinado código. , tentando distinguir certos subtemas. Por exemplo, o tema da relação com o saber foi dividido em subtemas como a construção do saber, a interpretação, o exercício do método histórico, a memorização, etc. Isso nos permitiu aprimorar nossa codificação e identificar certas representações características dos diferentes perfis de atores.

Apresentação dos resultados

Para a realização deste artigo, separamos três temas gerais vinculados às representações do lugar dos saberes históricos, de seu ensino e de sua aprendizagem: (I) a relação entre a História e a Educação para a cidadania, (II) o desenvolvimento das competências versus a aquisição dos conhecimentos e (III) a relação com o saber histórico e a concepção didática da disciplina História.

O quadro seguinte apresenta as porcentagens dos atores para cada um dos subtemas identificados por nossa codificação inversa. Este quadro se lê da esquerda para a direita. Por exemplo, para o subtema História está relacionada com a cidadania, 9% dos enunciados provêm dos professores de didática; 70%, dos historiadores; e 21%, do público em geral.

Para o tema I, sobre o vínculo entre a História e a Educação para a cidadania, podemos identificar duas posições. A posição que chamaremos A FAVOR descreve a História como fornecedora de uma base sólida na educação para a cidadania, transferindo habilidades intelectuais ou propondo um banco de exemplos de eventos do qual podemos tirar lições. A História permite, assim, compreender o presente, interrogando e analisando o passado e favorecendo, dessa forma, escolhas mais claras para os dias atuais. Na leitura dos enunciados que demonstram esses vínculos, constata-se que 70% provêm dos historiadores; 21%, do público em geral; e 9%, dos professores de didática. Eis aqui um exemplo:

A história e a educação para a cidadania estão intimamente ligadas. Não se aprende a história para contemplar o passado, mas para utilizá-la a fim de melhor entender o presente e tentar preparar o futuro (Guay, 2006, professor de didática).

A posição CONTRA, por sua vez, diz que o ensino da História e a educação para a cidadania têm objetivos diferentes, até mesmo inconciliáveis. Esta posição é bastante dividida: 15% dos enunciados provêm dos professores de didática; 24%, dos jornalistas; 24%, dos historiadores; e 36%, dos docentes. Eis um extrato que ilustra essa posição:

Trata-se, com toda a certeza, de duas tarefas importantes, mas justamente por essa razão parece-nos impossível realizá-las simultaneamente em uma mesma aula. Trata-se de dois ensinos, cada um com seu objeto próprio, sendo difícil tratá-los simultaneamente em uma única e mesma atividade pedagógica... (Angers et al., 2006).

Além disso, certos atores, em particular os professores de didática e os historiadores, reconhecem que a educação para a cidadania sofreu uma constante tensão entre objetivos cívicos e objetivos nacionalistas ou étnicos. Neste plano, a posição CONTRA é mais enfatizada. Ela defende uma abordagem da História que inclui, de maneira mais explícita, uma perspectiva nacional (canadense-francesa ou quebequense), ao mesmo tempo recusando-se a defender uma história exclusiva e parcial.

O tema II, o desenvolvimento de competências, nos traz também duas posições bem claras. A posição A FAVOR toma a defesa do desenvolvimento das competências, sem excluir o conhecimento de fatos históricos. Ela é adotada principalmente pelos professores de didática (79% dos enunciados do subtema 4), que se apoiam numa concepção construtivista e interpretativa do saber histórico, a qual favorece a abordagem por competência (Demers; Lefrançois; Éthier, 2010). Os conhecimentos são importantes e necessários para o desenvolvimento das competências, mas não se insiste na memorização ou na transmissão de uma narrativa predeterminada. Eis um exemplo desta posição:

Em história, se há, por um lado, fatos recolhidos e interpretados, há, por outro lado, a maneira como são recolhidos e interpretados. O currículo escolheu insistir sobre este segundo ponto, nessas competências e conceitos que formam o cerne do pensamento histórico (Laville, 2006).

A posição CONTRA insiste, preferencialmente, na importância do fato em si e ainda mais na preponderância de uma narrativa e de uma trama de eventos a serem aprendidas. Esta posição é defendida principalmente por historiadores (38% dos enunciados do subtema 5), pelos docentes (30%) e pelos jornalistas (20%). Nesse grupo, há uma nítida preocupação com a transmissão de uma trama nacional, relativamente fixa, repousando sobre uma série de fatos ou eventos julgados incontornáveis para a transmissão de uma identidade nacional comum. Alguns consideram que os alunos são jovens demais para adquirir as competências a que o currículo visa. Contesta-se, assim, a ênfase dada ao desenvolvimento das competências, em detrimento da aquisição dos conhecimentos. Vejamos um exemplo:

Além dos conteúdos das aulas, o que nos preocupa é a filosofia subjacente ao currículo. Essa filosofia da educação rejeita a transmissão dos conhecimentos como finalidade primeira do ensino em favor de noções tais como competência, ou "savoir-être" (Coalition pour l'histoire

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, 2009).

O tema III, que trata da relação com o saber histórico e da concepção didática da disciplina, é o mais rico em subtemas. Entretanto, segundo nossos dados, ele se divide, mais uma vez, em duas posições opostas. A primeira descreve uma História de natureza construtivista e social (o saber é elaborado e construído progressivamente, é discutido, é analisado, etc.), que desenvolve habilidades intelectuais (articulando-se, particularmente, em torno do pensamento crítico); utiliza um método de trabalho próprio (o método histórico) - posição que é elaborada em uma perspectiva temporal (principalmente a ideia de usar o passado para compreender o presente) -; e que deveria ser reflexiva e interpretativa (não existe uma única trama ou uma única versão dos fatos). Como mostra o quadro 1, os professores de didática se manifestam mais favoráveis a essa visão da História, mas, às vezes, eles são apoiados por historiadores ou até mesmo por uma parte do público em geral. Eis um extrato representativo dessa posição:


Então o aluno é colocado na situação de constituir saberes que podem ser somente reconstituições, no seu nível, mas que lhe proporcionam a oportunidade de praticar "savoir-faire" intelectuais que ele poderá aplicar em outras matérias posteriormente (Dagenais; Laville, 2007, p. 517-550).

Novamente, a segunda posição se opõe claramente à primeira, já que, para os que nela se apoiam, a História aparece principalmente como uma trama de eventos que existe em si; que se deve transmitir, memorizar; e que deve servir para caracterizar a identidade nacional. Assim, essa posição denuncia o presentismo do programa, o excesso de interpretação que ele promove e a ocultação da memória nacional dos quebequenses de origem canadense-francesa. Tudo isso leva, segundo os de posição CONTRA, a uma história redutora, pois desprovida dos momentos conflituais e simbólicos de uma identidade nacional legítima. Historiadores adotam mais particularmente essa posição; igualmente, docentes, jornalistas e, às vezes, até mesmo os professores de didática. Vejamos uma intervenção representativa:

Logo, renunciamos a ensinar conhecimentos sob pretexto que eles são "construídos" pelos historiadores... Nenhum ensino pode mais ser tirado do passado. Somente o presente interessa aos autores [do currículo]. (Coalition pour l'histoire, 2009).

Em suma, posições bem definidas, claramente opostas, sobressaem desta análise. Nas próximas páginas, tentaremos esclarecer estes resultados à luz de nossos objetivos de pesquisa e, inversamente, veremos como eles podem oferecer pistas de respostas a nossas questões.

Discussão

Lembremos primeiramente do objetivo de nossa pesquisa. A relação com o saber que nós tentamos focar aqui não é a relação do aluno com o saber. Tampouco se trata de analisar representações do saber do aluno. Na realidade, trata-se de extrair o tipo de relação com o saber valorizado por um grupo de pessoas tal como ele se expressa nos seus escritos polêmicos. Esses atores manifestam expectativas em relação ao ensino e à aprendizagem do saber numa certa disciplina, a saber, a História. Eles tornam explícitos pontos de vista, intenções, objetivos quanto às relações que os alunos deveriam estabelecer com esse saber histórico. A análise deste debate permite-nos identificar duas posturas epistemológicas.

Por um lado, há os que concebem o saber histórico principalmente como uma trama de eventos a serem ensinados e, basicamente, pela memorização. Essa postura manifesta-se quando o aluno é capaz de reproduzir a narrativa descrita pelo seu professor. Este grupo é nitidamente ancorado nos saberes (particularmente os fatos históricos) por si mesmos e, sem excluí-los, valoriza menos o savoir-faire e o savoir-être. Entre os que se expressaram nesse debate, encontram-se, principalmente, os historiadores, os docentes, os jornalistas e, às vezes, o público em geral.

Por outro lado, há aqueles que concebem o saber histórico não como um objeto inerte que o professor revela ao aluno ou o transmite para ser memorizado, mas como um saber que o aluno constrói, principalmente pela prática do método histórico, com a mediação do professor. Eles enfatizam a importância de uma dimensão interpretativa e crítica, até mesmo desconstrutivista, desse saber. Esse grupo, sem excluir a aprendizagem dos fatos históricos, valoriza, sobretudo, o savoir-faire e o savoir-être. Trata-se principalmente da posição da maioria dos professores de didática e, em menor escala, de docentes, de historiadores ou do público em geral.

Como havíamos anunciado no início, é preciso realmente compreender que, mesmo isolando neste debate a questão da relação com o saber, o que aconteceu no Quebec nesses últimos anos é, na verdade, a versão regional de um debate muito mais amplo, que tem sensibilizado, há algumas décadas, várias sociedades no mundo. Retornemos à obra Beyond the canon (Grever; Stuurman, 2007), já citada, que discute vários contextos educacionais, em diferentes países, em relação ao destino do canon tradicional e à sua substituição progressiva por uma concepção da disciplina de História muito mais baseada no savoir-faire.

Para compreender realmente as respectivas posições neste debate e poder realizar a análise, a noção de canon nos parece, de fato, muito importante. O canon do qual falamos aqui é esta grande narrativa linear, rígida, teleológica e justificativa da nação, pela qual se transmitia aos jovens uma memória coletiva nacional considerada aceita pela população em geral e destinada a solidificar a sociedade. No Quebec, por exemplo, esse canon fora, inicialmente, forjado na segunda metade do século XIX, principalmente por F.-X. Garneau, e foi atualizado durante a primeira metade do século XX por L. Groulx.

Após a Segunda Guerra Mundial e, principalmente, a partir dos anos 1960, essa narrativa escolar foi retomada pelos adeptos de um ensino de História centrado no savoir-faire, na prática do método histórico, nos conceitos fundamentais e em uma educação para a cidadania menos nacionalista e com maior ênfase na prática da libertação democrática. No Quebec, foi principalmente o relatório da Comissão Parent sobre a educação que, em 1966, atacou duramente o canon e o discurso nacionalista. Esse mesmo relatório defendeu um ensino de História que ele chamava de "científico".

No começo dos anos 1980, seguindo a tendência geral, o Quebec dotava-se de seus primeiros programas de História nitidamente orientados para objetivos de aprendizagem em favor dos alunos. Programas que, longe de limitar-se a uma lista de conteúdos fatuais, tinham por ambição desenvolver nos alunos habilidades, assim como savoir-faire e savoir-être vinculados à epistemologia da disciplina História e a sua função de educação para a cidadania. Nesse ponto, o currículo por competências, de 2006, que foi objeto de debate, cujo estado acabamos de apresentar, teve continuidade com os programas por objetivos dos anos 1980.

Ora, essa mudança de visão generalizada na direção de um ensino epistemológico da História, tanto no Quebec como fora dele, não atingiu a opinião pública em geral. No entanto, tal ensino encontra forte resistência por parte de historiadores e intelectuais e, na prática, muitos professores, opondo-se a ele, continuam ensinando segundo o canon.

Como outros analistas (Clark, 2006, principalmente), constatamos que uma das chaves para compreender essas duas posturas vem da posição que cada um adota com relação aos objetivos de formação que se determinam em relação à aprendizagem de História. Assim, para aqueles que inicialmente atribuem a ela uma função de transmissão da memória coletiva, é essencial que a interpretação ou o sentido dos fatos do passado ocorra ao mesmo tempo que os fatos em si. Ora, tal interpretação deve ser a mesma para todos, o que induz em aula um ensino preferencialmente declarativo e explícito.

Todavia, quando o objetivo primeiro da educação histórica é desenvolver o savoir-faire, as habilidades ou as competências, entendidos como transferíveis e úteis aos futuros adultos, convocados a intervir em uma sociedade democrática, será privilegiado, preferencialmente, um ensino aberto, no que diz respeito aos saberes fatuais - estes considerados não como um fim em si mesmo, mas como um material essencial para desenvolver conceitos e habilidades transferíveis.

Conclusão

O objeto desta pesquisa foi explorar o discurso de diferentes atores sociais sobre a relação com o saber histórico, tal como manifestado no momento do debate público a respeito do novo programa de História no Quebec. Nossos resultados nos permitiram caracterizar um discurso e objetivos específicos para a História, segundo certos perfis de atores. Identificamos, principalmente, duas posturas epistemológicas que determinam os objetivos de formação: (1) uma postura baseada na transmissão e na memorização de uma trama única, visando apoiar uma identidade nacional; (2) uma postura que concebe o saber histórico como construção, como interpretação, ao qual o aluno poderá dar um sentido próprio.

Estimamos que o modelo de análise elaborado para os fins desta pesquisa seja transferível e possa servir para interpretar outros tipos de debates e discursos sobre o ensino. Para a continuação deste trabalho, estipulamos novos objetivos. Assim, nossa intenção é determinar os valores implícitos e explícitos que servem de base para os novos programas (sobretudo conforme os documentos oficiais sobre a avaliação da aprendizagem) e verificar se o modelo pode servir para predizer as posições e as conclusões de autores a partir de seus argumentos.

Recebido em 3 de abril de 2012 e aprovado em 17 de agosto de 2012.

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  • 1
    . Agradecemos a Marta Teixeira, doutoranda em psicopedagogia na Université Laval, pela tradução do presente texto para a língua portuguesa, possibilitando a sua publicação neste dossiê temático.
  • 2
    . Uma versão diferente deste artigo foi publicada nas atas do colóquio História, Geografia e Educação para a cidadania, ocorrido em Lion (França) em 2011. Apresentamos aqui uma leitura complementar dos nossos dados.
  • 3
    . No Quebec, o ensino secundário obrigatório tem uma duração de cinco anos, divididos em dois ciclos: O primeiro ciclo é de dois anos (alunos com idades entre 13 e 14 anos), já o segundo é composto de três
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    . Dois dos autores deste artigo intervieram na mídia e em revistas profissionais destinadas a professores, não para defender o projeto ministerial do currículo, mas, principalmente, para corrigir certos erros de fato ou meias verdades que circulavam a seu respeito e sobre o ensino da História em geral.
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    . Elas são também construções da realidade que tentam ser coerentes com a sociedade, as opiniões, os valores e as crenças dos sujeitos (Bouhon, 2009; Mos
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    . Entendemos por codificação inversa o procedimento para verificar a coesão entre as unidades de sentido por meio de um determinado código.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      15 Abr 2013
    • Data do Fascículo
      Abr 2013

    Histórico

    • Recebido
      03 Abr 2012
    • Aceito
      17 Ago 2012
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