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A educação permanente segundo Henri Desroche

NOTA DE LEITURA

A educação permanente segundo Henri Desroche1 1 . Conteúdo elaborado no quadro das atividades vinculadas ao Projeto de Pesquisa da FAPERJ, Processo nº. E-26/111.697/2010, intitulado: "Apoio metodológico a projetos de pesquisa e extensão universitária baseados em metodologias participativas e de pesquisa-ação".

Michel Thiollent

Atual professor do Programa de Pós-Graduação em Administração – PPGA – Unigranrio. Campus II – Rio de Janeiro. Professor associado (aposentado) da COPPE/Universidade Federal do Rio de Janeiro. m.thiollent@gmail.com

Henri Desroche (1914-1994) é conhecido como sociólogo das religiões, como estudioso do cooperativismo em seus diferentes aspectos econômicos, sociais, organizacionais e educacionais, e, também, como fundador de várias experiências em formação de adultos e em educação permanente, apoiadas em métodos de biografia e de pesquisa-ação. Davide Lago (italiano, nascido em 1972), responsável pelos Serviços de Educação Continuada da Universidade de Gênova (Itália), defendeu uma tese de Doutorado em Ciências de Educação na Universidade Claude Bernard – Lyon I (França), em 2009, a qual se transformou em um livro intitulado: Henri Desroche, théoricien de l'éducation permanente, publicado em Paris pelas Éditions Don Bosco, em novembro de 2011.

O trabalho de Davide Lago (2011) consiste em mostrar a contribuição de Henri Desroche na elaboração da educação permanente, conceito bastante novo que se firmou a partir dos anos 1960/70 na França e exerceu certa influência em vários países, inclusive no Brasil e na América Latina, onde as ideias de Desroche obtiveram alguma divulgação (Thiollent, 2008).

Dezoito anos após sua morte, Henri Desroche continua atual, sua obra ainda é objeto de discussão e é estudada como fonte de muitas ideias relacionadas à cooperação, à educação e à pesquisa-ação. Um importante seminário foi organizado sobre o conjunto de sua contribuição, em 2007, em Caen (Normandia), por Claude Ravelet (2008), e o livro de Davide Lago atualizou, em 2011, os múltiplos caminhos abertos pelo pensamento e pelas práticas educacionais de Desroche.

Relembrando a longa biografia do autor, Lago indica como, durante sua infância e juventude, ele havia sido sensível à dimensão comunitária, primeiro, pela vida em família modesta de uma pequena cidade do interior (Roanne); segundo, pelo espírito religioso e sua adesão à ordem dominicana; e terceiro, por sua experiência em uma comunidade de trabalho, conhecida como Boimondau, nos Alpes, a qual fabricava peças para a indústria relojoeira nos anos 1940 e 1950. Essa vivência o levou às primeiras aproximações entre ação e pesquisa (ou prática e teoria), com aspectos de educação e de organização em base comunitária.

Em 1949-50, querendo aproximar cristianismo e marxismo, Desroche acabou sendo desligado da ordem religiosa. Ele se dedicou desde então à sociologia das religiões, com cargo de diretor de estudos em instituição de nível superior (École Pratique des Hautes Études – EPHE, hoje denominada EHESS – École des Hautes Études en Sciences Sociales) e, mais tarde, à sociologia da cooperação, tanto no aspecto de organizações de produção e de trabalho, quando no de pedagogia e de educação de adultos. Isso constituiu o eixo principal do pensamento e das práticas do autor até os anos 1990.

Segundo a interpretação de Davide Lago, a concepção da educação permanente de Henri Desroche apresenta uma forte característica comunitária. Não se trata de um sistema de aprendizado formal, técnico, com procedimentos fechados e rotineiros, como se vê hoje na educação continuada, presencial ou a distância, oferecida por organismos especializados que pretendem responder às demandas imediatas do mercado da qualificação profissional.

Um ensinamento que se extrai da leitura do livro de Lago é que a educação permanente (ou educação de adultos ao longo da vida) não se limita à transmissão de um conteúdo preestabelecido. O processo de aprendizagem não remete apenas a meios técnicos. Para o educando, é preciso uma profunda autorreflexão sobre si próprio (autobiografia), sobre seu entorno e sobre as práticas sociais nas quais ele está engajado. Nesse contexto, a pesquisa-ação é vista como estratégia de autoformação.

A proposta não se limita a um procedimento. O mais importante é o significado do conteúdo da experiência vivida para que os formandos não sejam reduzidos a meros receptores de informações. Eles atuam como membros ativos pertencentes a coletividades, a instituições ou a comunidades rurais ou urbanas, implicados em práticas sociais relacionadas com associações, cooperativas, sindicatos, grupos políticos ou de expressão cultural, dentre outros.

A autobiografia dos sujeitos e suas formas de inserção social condicionam o que se pode esperar da educação permanente que, para ser efetiva, deve ser desejada pelos próprios participantes, em vez de ser imposta arbitrariamente por instituições ou por relações de poder.

Assim, a educação permanente corresponde a uma antiga ideia de universidade extramuros, que, durante muito tempo, era vista apenas como utopia. Com Desroche, essa ideia tomou corpo sob forma de colégios cooperativos, dedicados à formação de adultos, para um público amplo, não limitado às elites e fazendo sentido dentro de uma visão de comunidade.

A seleção dos alunos não se baseia exclusivamente em títulos e diplomas obtidos no ensino formal, mas leva em conta as experiências adquiridas em práticas sociais, organizativas, educativas, por vezes, militantes. O que supõe a elaboração de um sistema de validação das experiências dos candidatos e a formulação de um projeto de estudo apoiado em método de pesquisa-ação. O reconhecimento dos resultados adquiridos, ao longo da formação, ocasionou a criação de um diploma de estudos de práticas sociais. O sistema universitário francês custou a oficializar esse diploma, que acabou aceito através de convênios entre os colégios cooperativos e certas universidades. Em escala internacional, a experiência foi ampliada pela Universidade Cooperativa Internacional – UCI, entidade de direito privado, estruturada em rede, com grupos constituídos principalmente em países da África e da América Latina. Tal estrutura foi experimentada no Brasil, a partir de 1979, mas não obteve forte adesão. Além disso, a UCI não sobreviveu à morte de seu fundador.

As obras de Henri Desroche que lidam com cooperação, educação permanente e pesquisa-ação (1976, 1978, 1991, 2006) constituem, apesar do tempo, um rico acervo de informações para elaborar ou repensar projetos e propostas de pesquisa e extensão. Como parte desse acervo, o livro de Davide Lago contém uma riquíssima bibliografia (p.317-377), com referências de obras de Henri Desroche, muitas delas pouco conhecidas, e de artigos e livros de outros atores, contendo análises e comentários.

A publicação lembra também que as concepções de Henri Desroche em educação permanente serviram de base para posteriores desenvolvimentos de propostas educativas, baseadas em métodos de pesquisa-ação, como no caso de Guy Avanzini (1996) e André Morin (2004, 2010), ou em biografias ou histórias de vida (temporalidades), como no caso de Gaston Pineau (2003).

No Brasil e na América Latina, a concepção desrochiana da educação permanente, voltada para as comunidades, apoiada em pesquisa-ação e demais métodos participativos, a nosso ver, ainda pode inspirar novos projetos no trabalho de desenvolvimento comunitário realizado por ONGs ou no quadro institucional das atividades de extensão universitária, cujo conceito inexiste em universidades francesas.

Referências bibliográficas

AVANZINI, G.. Éducation des adultes. Paris: Anthropos, 1996. 182 p.

DESROCHE, H.. Apprentissage in sciences sociales et éducation permanente. Paris: Éditions ouvrières, 1976. 200p.

DESROCHE, H.. Apprentissage 2. Education permanente et créativités solidaires. Paris: Éditions ouvrières, 1978. 299 p.

DESROCHE, H.. Apprentissage 3. Entreprendre d'apprendre. D'une autobiographie raisonnée aux projets d'une recherche-action. Paris: Éditions ouvrières, 1991. 208 p.

DESROCHE, H.. Pesquisa-ação dos projetos de autores aos projetos de atores e vice-versa. In: THIOLLENT, M. (Org.). Pesquisa-ação e projeto cooperativo na perspectiva de Henri Desroche. São Carlos: EdUFSCar, 2006.cap.1, p. 33-68.

LAGO, D.. Henri Desroche, théoricien de l'éducation permanente. Paris: Éditions Don Bosco, 2011. 389 p. (Coleção "Ciências da Educação", coordenada por Guy Avanzini).

MORIN, A.. Cheminer ensemble dans la réalité complexe. La recherche-action intégrale et systémique (RAIS). Paris: L'Harmattan, 2010.

MORIN, A. Pesquisa-ação integral e sistêmica. Rio de Janeiro: DP&A, 2004.

PINEAU, G.. Temporalidades na formação. São Paulo: Triom, 2003. 234 p.

RAVELET, C. (org.). Anamnèse. Paris: L'Harmattan. 2008. v. 4.

THIOLLENT, M. La présence d' Henri Desroche au Brésil et en Amérique Latine. In: RAVELET, C. (Org.). Anamnèse. Paris: L'Harmattan, 2008. v. 4, p. 109-122.

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    . Conteúdo elaborado no quadro das atividades vinculadas ao Projeto de Pesquisa da FAPERJ, Processo nº. E-26/111.697/2010, intitulado: "Apoio metodológico a projetos de pesquisa e extensão universitária baseados em metodologias participativas e de pesquisa-ação".
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      14 Dez 2012
    • Data do Fascículo
      Dez 2012
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