Acessibilidade / Reportar erro

Teoria e prática na pesquisa com crianças: diálogos com William Corsaro

LEITURAS E RESENHAS

Teoria e prática na pesquisa com crianças: diálogos com William Corsaro

Peterson Rigato da Silva

Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Educação e membro do Grupo de Estudos e Pesquisas em Educação e Diferenciação Sociocultural (Gepedisc) – Culturas Infantis, da FE Unicamp, Campinas, SP. Diretor de creche e pré-escola pública no município de Piracicaba, SP, Brasil. petersonrigato@gmail.com

[MÜLLER, Fernanda; CARVALHO, Ana Maria Almeida. São Paulo: Cortez, 2009. 213p.]

A importância de enfatizar – nas pesquisas, na pedagogia, na política pública e no cotidiano da Educação Infantil, em creches e pré-escolas – as falas; as ações; e os pensamentos das crianças, como autoras no processo da história e da cultura, configura a relevância deste livro com três textos inéditos do pesquisador estadunidense, sociólogo da infância, criancista e criançólogo William Corsaro, que já tem o livro Sociologia da infância (Corsaro, 2011); um artigo (Corsaro, 2005); e uma entrevista (Müller, 2007) traduzidos e publicados no Brasil, além de outro artigo traduzido para o português, publicado em uma revista de Portugal (Corsaro, 2002). Portanto, este livro é mais uma forma de conhecê-lo, agora em debate com um pesquisador e 14 pesquisadoras brasileiras.

A obra, organizada em três partes – cada uma com um dos três artigos inéditos de Corsaro, comentados e debatidos em três artigos distintos –, é composta por 13 capítulos, além dos 12 já destacados. O 13º e último capítulo faz uma discussão entre a sociologia da infância, a psicologia do desenvolvimento e a Educação Infantil.

A primeira parte traz uma reflexão sobre os conceitos que embasam as suas pesquisas, a segunda apresenta a metodologia de investigação que ele utiliza e a última parte apresenta a discussão das políticas públicas para a Educação Infantil. As organizadoras do livro, Fernanda Müller e Ana Maria Almeida Carvalho, convidam-nos a repensar as práticas cotidianas nas creches e nas pré-escolas; e a criar um novo quadro metodológico para as pesquisas com crianças pequenas, no intuito de delinear e fortalecer as investigações que vêm sendo desenvolvidas no campo de estudo das infâncias.

No prefácio deste livro, Niina Rutanen, pesquisadora finlandesa, apresenta a importância da contribuição de Corsaro para os estudos da sociologia da infância, apontando como as teorias que estão sendo construídas partem de um terreno de disputas, com várias tensões ideológicas sobre as infâncias.

A socialização na infância é compreendida, na obra de Corsaro, não mais como um período de dependência, mas como um processo criativo de "reprodução interpretativa", ou seja, o autor se distancia significativamente da sociologia tradicional, que tem enxergado as crianças como "meros fardos sociais"(p. 23). Vale destacar, nesta obra, como em outros textos de Corsaro, a tradução do inglês de peer culture como "cultura de pares", definida como"um conjunto estável de atividades ou rotinas, artefatos, valores e interesses que as crianças produzem e compartilham na interação com seus pares" (p. 32). Este é um conceito importante, trabalhado pelo autor, e que vem sendo problematizado e discutido no campo da Educação Infantil1 1 Finco (2010) problematiza este conceito, sinalizando que ele não possui o sentido de "duplas", mas de parceiros iguais, o que evidencia a má tradução do termo. .

No primeiro capítulo, intitulado "Reprodução interpretativa e cultura de pares", William Corsaro começa a preparar a tela, esboçando o desenho do quadro em que destaca o conceito de "reprodução interpretativa". Tem como referência teórica Clifford Geertz (2008), para explicar o que ele denomina como "um processo de socialização"; e define os aspectos inovadores da participação das crianças na sociedade: elas não se limitam à simples imitação ou à mera reprodução, mas envolvem-se com a criação e a participação em todo o processo de transformação, apropriando-se de informações do mundo adulto e construindo ativamente, por meio da produção e de mudanças culturais.

Corsaro relaciona tal conceito com alguns episódios que tratam da autoria e do protagonismo das crianças nas brincadeiras em dois países distintos, nos Estados Unidos, em Berkeley; e na Itália, em Bolonha observando as relações construídas entre elas e as formas como vão ressignificando e construindo outras regras. Segundo o pesquisador, as crianças "querem criar e compartilhar emocionalmente o poder e controle que os adultos têm sobre elas" (p. 39). Outra grande contribuição deste capítulo é a problematização das questões de gênero, em que ele discute as relações de poder e hierarquia entre os sexos, presentes nas brincadeiras entre meninos e meninas de diferentes idades.

As psicólogas e pesquisadoras Maria Isabel Pedrosa e Maria de Fátima Santos ampliam o debate iniciado por Corsaro sobre as questões relativas às "culturas de pares" e ao conceito de "reprodução interpretativa" no capítulo dois, intitulado "Aprofundando reprodução interpretativa e cultura de pares em diálogo com Corsaro". Nele argumentam as formas como compreendem o processo de transmissão cultural ou herança cultural, enfatizando o aspecto da criação da "cultura de pares". Apresentam dois episódios de crianças brasileiras, para exemplificar os conceitos desenvolvidos pelo pesquisador, e discorrem sobre a importância da dimensão lúdica, principalmente a brincadeira, no processo criativo de constituição do ser humano.

No capítulo três, "Um diálogo com a sociologia da infância a partir da psicologia do desenvolvimento", as pesquisadoras do campo da psicologia do desenvolvimento infantil, Maria Clotilde Rossetti-Ferreira e Zilma de Moraes Ramos de Oliveira, discutem a importância do brincar na infância, a partir de um diálogo desafiador entre a psicologia do desenvolvimento e a sociologia da infância. Tal aproximação aponta para a dimensão brincalhona existente entre as crianças pequenas e as professoras e os professores, que vão experimentando, nas práticas educativas, as várias formas de brincar nos espaços das creches e das pré-escolas. As relações que são desenvolvidas no coletivo são um desafio na construção da profissão docente na Educação Infantil.

Tânia Mara Sperb, pesquisadora do campo da linguagem e da interação social, no quarto capítulo, "Diálogo interdisciplinar: tensões e convergências", aprofunda o conceito de reprodução interpretativa como um processo de apropriação criativa na construção da cultura de pares. E destaca o papel da brincadeira como elemento fundamental do processo criativo entre as crianças, chamando, entretanto, a atenção para a ausência do conceito de imaginação nas teorias de Corsaro. A partir desse olhar, a pesquisadora discute a questão da interdisciplinaridade entre a psicologia do desenvolvimento, a sociologia e a antropologia, aprofundando as manifestações sociais, afetivas, cognitivas presentes nas brincadeiras.

A metodologia e os instrumentos descritos por Corsaro no capítulo cinco, denominado "Métodos etnográficos no estudo da cultura de pares e das transições iniciais na vida das crianças", são fundantes para a compreensão das relações construídas no coletivo infantil nas pré-escolas. Tanto os registros escritos quanto as filmagens realizadas pelo pesquisador nos momentos das brincadeiras revelaram a importância da pesquisa participativa.

No capítulo seis, "Reflexões sobre a observação etnográfica: a cultura de pares em ação", as pesquisadoras do campo da psicologia do desenvolvimento e da etologia, Vera Silvia Raad Bussab e Ana Karina Santos, provocadas pelos relatos do método etnográfico realizados por Corsaro, aprofundam as questões metodológicas e trazem as contribuições do campo da psicologia do desenvolvimento e da etologia, com destaque para a observação naturalística. O comportamento é um conceito central das pesquisadoras que, por intermédio dos critérios estabelecidos nas pesquisas, principalmente a etnografia, podem revelar a construção da cultura de pares entre as crianças.

No capítulo sete, "Crianças e suas culturas singulares", a pesquisadora Marita Martins Redin discute as culturas infantis no processo de criação e apropriação dos artefatos e dos rituais construídos no coletivo infantil. A discussão que Redin nos apresenta é a de pensar nas relações que são construídas nas creches e nas pré-escolas, em que crianças de diferentes idades e adultos de ambos os gêneros convivem diariamente. A pesquisadora, em diálogo com Corsaro, discute a importância das brincadeiras como processo inventivo e criativo na construção das culturas infantis. Esse processo de construção de conhecimento pode e deve quebrar o "olhar adultocêntrico viciado" (p. 118), como revela Redin, afirmando que professores e professoras têm o desafio de possibilitar espaços e tempos brincantes para que as crianças de diferentes classes sociais possam construir as culturas infantis.

O pesquisador César Ades, no capítulo oito, "Um adulto atípico na cultura das crianças", traz elementos fundantes ao processo de apropriação e construção de conhecimento entre adultos e crianças e destaca o que ele denomina como inspirador: os relatos de Corsaro, que evidenciam a amizade como um forte relacionamento entre as crianças e os adultos de ambos os gêneros, presente no coletivo das pré-escolas. O autor faz repensar a entrada do(a) pesquisador(a) no campo de pesquisa(a) nos grupos de crianças e refletir sobre o método etnográfico: "uma criança penetra no mundo adulto, um adulto penetra no mundo das crianças" (p. 132).

No capítulo nove, "Educação Infantil na Itália e nos Estados Unidos: diferentes abordagens e oportunidades para as crianças", encontram-se presentes traços desse quadro em que as questões ideológicas e pragmáticas sobre as infâncias se apresentam. Corsaro discute as políticas públicas para a educação das crianças pequenas desses dois países, tendo como foco as prioridades para os financiamentos e investimentos, principalmente nos Estados Unidos, que, segundo o sociólogo, não compreendem a importância de uma Educação Infantil pública e de qualidade para todos os cidadãos. Denuncia que, ao invés de os investimentos incrementarem a Educação Infantil, ao contrário, buscam encontrar problemas que levem a negligenciar por completo a educação das crianças pequenas em instituições coletivas de educação na esfera pública. Discute como a lógica do mercado e a privatização são marcas do neoliberalismo no país; e, por esse motivo, existe um fluxo grande e constante de professores e professoras nas instituições de Educação Infantil, muito diferentemente da Itália, em que a maioria das crianças frequenta as escolas públicas, principalmente nas pré-escolas, cuja frequência, mesmo não obrigatória, atinge quase 100% das crianças. Outro aspecto importante observado nas pré-escolas em Módena, Itália, diz respeito à formação docente, que tem o seu foco principal na arte, reservando papel relevante à música, ao teatro, além de outros campos específicos desenvolvidos na educação das crianças pequenas.

A pesquisadora Eulina da Rocha Lordelo, no capítulo dez, intitulado "Por que tanta diferença: a educação infantil na Itália e nos Estados Unidos", também elenca os elementos presentes na construção de uma política pública para a Educação Infantil de qualidade, demarcando as diferenças existentes entre os países de primeiro mundo. Nos Estados Unidos, não existe uma política que atenda às necessidades das crianças pequenas, nem das mães e dos pais, trabalhadoras e trabalhadores. A lógica do capitalismo, em que o atendimento é garantido por estâncias privadas e algumas públicas, é fator que justifica a falta de investimentos, pois estes partem da lógica econômica e demográfica, ideológica e histórica, cultural e social. Na Itália, a luta feminista e das famílias de operários e operárias foi fundamental para a compreensão do direito de todos os cidadãos à Educação Infantil de qualidade, sem distinção orçamentária entre as famílias. A autora apresenta alguns dados sobre os países nórdicos, permitindo a compreensão de uma Educação Infantil de qualidade e trazendo elementos para pensarmos a perspectiva do direito das crianças no cotidiano das creches e pré-escolas.

A pesquisadora Ana Lúcia Goulart de Faria, no capítulo onze, "Um estadunidense na Itália", convida-nos a entender a dimensão das teorias que Corsaro apresenta, nas quais esse "professor universitário estadunidense atípico", sociólogo da infância, espanta-se com a própria pesquisa, ao destrinchar as diferenças perversas que existem no sistema de educação americano". Destaca ainda o olhar instigante do pesquisador, voltado para a experiência centrada nas relações entre as crianças, como sendo de fundamental importância para a compreensão das produções das culturas infantis. Aponta a relevância do método utilizado, em que a "forma de registro das observações e escutas realizadas por Corsaro são inovadoras" (p. 174). Constata, ainda, a rejeição dos Estados Unidos às pesquisas com crianças de zero a 3 anos na esfera pública. Finaliza, provocando pesquisadores e pesquisadoras a estranhar o que é familiar e familiarizar-se com o estranho, introduzindo, assim, novas sombras e nuances na superfície e nas cores do quadro que vem sendo construído no campo da sociologia da infância.

No capítulo doze, "Como a sociologia da infância de William A. Corsaro pode contribuir com as pedagogias das escolas de educação infantil?", a pesquisadora Maria Carmem Silveira Barbosa destaca as contribuições do autor no campo da sociologia da infância, uma vez que ele quebra paradigmas e rompe fronteiras disciplinares, ao focar as infâncias como "fenômeno social complexo e contextualizado" (p. 177). O conceito "reprodução interpretativa" e a construção das "culturas de pares" emergem para a compreensão dos diversos olhares sobre as infâncias. Essa autora discute, ainda, a importância de uma formação que abranja as especificidades das infâncias e das crianças, agregadas à reflexão das experiências nas creches e nas pré-escolas, na construção da docência na Educação Infantil.

O capítulo treze, "Sociologia da infância, psicologia do desenvolvimento e educação infantil: diálogos necessários", encerra esse grande quadro. As pesquisadoras do campo da infância, Ana Maria Almeida Carvalho, Fernanda Müller e Sonia Maria Rocha Sampaio, traçam uma discussão sobre a construção do campo da sociologia da infância que, de forma audaciosa e interdisciplinar, reinventa um diálogo entre os vários campos da pesquisa com crianças pequenas, encaradas como autoras da sua história e do processo de construção do conhecimento, quebrando as barreiras adultocêntricas e buscando a construção de relações horizontais entre crianças e adultos no processo de produção das culturas infantis.

O livro, apresentando densidade de conceitos e diversidade de pontos de vista, instiga-nos a refletir sobre os desafios desse campo de pesquisa, principalmente ao pensar nas pesquisas com crianças e não somente sobre elas. A sociologia da infância conduz-nos a olhar a dimensão das produções das culturas infantis, já iniciadas em 1944 por Florestan Fernandes (2004), que, com o seu trabalho pioneiro sobre os folguedos infantis, criando os conceitos "grupos infantis" e "cultura infantil", abria o campo da sociologia da infância no Brasil. Por isso, é obrigatória a leitura deste livro, que evidencia que este quadro está sendo inventado, reinventado, construído e desconstruído permanentemente, como um rico e verdadeiro processo inventivo em que as crianças são produtoras das culturas infantis.

  • CORSARO, W. A. A reprodução interpretativa no brincar ao "faz-de-conta" das crianças. Educação, Sociedade e Cultura: Revista da Associação de Sociologia e Antropologia da Educação, Porto, v. 17, p. 113-134, 2002.
  • CORSARO, W. A. Entrada no campo, aceitação e natureza da participação nos estudos etnográficos com crianças pequenas. Educação e Sociedade, Campinas, v. 26, n. 91, p. 443-464, maio/ago. 2005.
  • CORSARO, W. A. Sociologia da infância 2. ed. Porto Alegre: Artmed, 2011.
  • FERNANDES, F. Folclore e mudança social na cidade de São Paulo São Paulo: Martins Fontes, 2004.
  • FINCO, D. Educação Infantil, espaços de confronto e convívio com as diferenças: análise das interações entre professoras e meninas e meninos que transgridem as fronteiras de gênero. Tese (Doutorado) – Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo, USP, 2010.
  • GEERTZ, C.A interpretação das culturas Rio de Janeiro: LTC, 2008.
  • MÜLLER, F. Entrevista com William Corsaro. Educação e Sociedade, Campinas, v. 28, n. 98, p. 271-278, jan./abr. 2007.
  • 1
    Finco (2010) problematiza este conceito, sinalizando que ele não possui o sentido de "duplas", mas de parceiros iguais, o que evidencia a má tradução do termo.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      20 Ago 2012
    • Data do Fascículo
      Ago 2012
    UNICAMP - Faculdade de Educação Av Bertrand Russel, 801, 13083-865 - Campinas SP/ Brasil, Tel.: (55 19) 3521-6707 - Campinas - SP - Brazil
    E-mail: proposic@unicamp.br