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A pessoa religiosa na Sociologia da Religião de Georg Simmel

LEITURAS E RESENHAS

A pessoa religiosa na Sociologia da Religião de Georg Simmel

Patricia Amorim de Paula

Estudante do curso de Pedagogia da Faculdade de Educação da Unicamp e bolsista de Iniciação Científica da Fapesp. patyamorimpg@gmail.com

SIMMEL, Georg. Religião: ensaios. São Paulo: Olho d'Água, 2009. 144 p. v. 1/2.

Georg Simmel (1858-1918), intelectual da Sociologia pouco conhecido e traduzido no meio acadêmico brasileiro, de origem judaica e nascido em Berlim, esteve junto aos principais teóricos de seu tempo: Max Weber e Ferdinand Tönnies, com os quais fundou a Sociedade Alemã de Sociologia. Sua experiência religiosa teve influência do catolicismo por parte do pai e do protestantismo por parte da mãe. Sob o protestantismo, casou-se e somente no fim de sua vida assumiu as raízes judaicas. Adepto de uma escrita ensaística para a produção de sua teoria sociológica, assim ele dialoga mais livremente com a filosofia, a antropologia e a psicologia, apresentando referências plurais como: Kant, Nietzche e Schopenhauer.

Em Religião: ensaios - volume 1/2, ele nos apresenta uma metodologia para o estudo da religião que diverge do tipo ideal weberiano, para oferecer maior protagonismo aos próprios atores, que apresentam por si as formas abstraídas para análise. Dessa forma, ele elenca a pessoa religiosa como material de estudo tal como a maneira como ela vê o mundo, experimenta-o e o constitui. Ele assemelha tal pessoa ao artista e ao filósofo, na medida em que estes também produzem formas culturais capazes de revelar o mundo de maneira única.

Outro elemento que dá consistência a essa opção metodológica é a adoção, em sua análise, do que ele chama de "lógica da psicologia", ou seja, diferentemente de Weber, que optou por uma análise histórica e comparativa da religião (entre o Ocidente e o Oriente), Simmel deteve-se das relações sensoriais que ajudam a entender as evoluções históricas das ideias religiosas.

Para o autor, o princípio da religião é revestido pelo movimento de religar e ressoar, no qual os elementos do universo são coletados e conectados de forma pessoal, e isso é expresso em suas ações no mundo. Simmel considera o artista Rembrandt capaz de revelar esse princípio em sua arte e, no campo da música, aponta o mesmo potencial de validade universal em Johann Sebastian Bach, com seu estilo barroco na música profana e religiosa.

O autor acredita que a religião consegue dar unidade (integrar a parte ao todo, sendo a parte o próprio todo) sem se valer dos processos sociais: competição, diferenciação e divisão do trabalho. No entanto, reitera que, ao admitirmos situações de conflito no espaço institucional racionalizado (Igreja Moderna), encontraremos elementos de competição, diferenciação e divisão do trabalho, ocasionados pelo próprio sacerdócio.

Os ensaios desse livro assumem um diálogo coeso, e é possível inferir que "A Religião" (1912) apresenta uma síntese da sociologia da religião simmeliana, enquanto os demais ensaios que compõem a obra revelam alguns aspectos emblemáticos dessa temática.

O conceito de alma foi muito explorado pelo autor. Ele acredita que a alma, um elemento pessoal formador da personalidade de cada indivíduo, expressa-se claramente nas formas culturais (religião, arte, filosofia e ética). Em seu ensaio intitulado "Da salvação da alma" (1903), este tema é apresentado de duas formas: do ponto de vista religioso e da liberdade e do ponto de vista cristão. O primeiro evidencia a revelação da personalidade própria de cada indivíduo nas suas ações terrenas e o conteúdo da exigência religiosa (Deus, santificação e vida eterna), ambos em consonância na mesma pessoa. Já o segundo respeita as diversas personalidades, mas propõe-lhes um ideal único para a salvação, uma ordem externa ou um dogma que também promete um bem externo: o bem-estar terreno. Assim, Simmel nos apresenta uma contradição no interior do meio cristão, que para ele se soluciona com a síntese do universal e do singular, o que se demonstra na salvação religiosa e com liberdade.

Já em "O problema da situação religiosa" (1911), Simmel fala de algo que aflige o homem do século XX - aqui ele insere justamente o seu objeto de estudo, que é a pessoa religiosa -, o qual reflete a falta sensorial de percepção real que autorize a fé. Dessa forma, nascem as religiões no intuito de suprir a carência de tal necessidade religiosa; no entanto, elas somente reiteram a fé transcendente como ilusória, permanecendo, então, a necessidade espiritual real.

Dessa maneira, de acordo com Simmel, Kant opta teoricamente por uma reconstrução radical da vida espiritual ao afastar-se da interpretação iluminista acerca do conteúdo religioso e da interpretação proveniente das religiões. A interpretação kantiana revela a religião como uma atitude íntima da alma, estabelecendo relação com o transcendente, mas de forma interna, e isso evoca um ser religioso não pela adoção do dogma religioso, mas pela adoção daquilo que está em harmonia com sua alma; dessa forma, constitui-se, então, uma ação coerente.

No entanto, o motor da angústia que se instaura sobre a pessoa religiosa é, para Simmel, a divisão desse estado fundamentalmente religioso em necessidade e satisfação. Um exemplo verdadeiramente ilustrativo por ele elaborado é quando o caráter intrínseco do artista se depara ao mesmo tempo com o impulso criador e a execução objetiva da obra de arte (Simmel, 2009, p. 12). Ou seja, coexiste na natureza religiosa, intemporal e íntima dessa pessoa uma necessidade de concretização real que a satisfaça: os objetos da fé religiosa (o mundo transcendente, os dogmas da Igreja e a doutrina de salvação).

Essa mudança de ordem psicológica instaurada no indivíduo - o problema da situação religiosa - resolver-se-ia, para o autor, com o estabelecimento de uma vida religiosa, de forma orgânica; assim, as incertezas com relação à religião não mais existiriam, a vida com religião e suas artificialidades que comporiam uma anomia da vida religiosa não mais seriam necessárias. Assim, se Weber1 1 . Neste trabalho comparo, sucintamente, a forma de elaborar a análise da religião empreendida por Simmel e Weber, intelectuais que vivenciaram o mesmo tempo histórico, com base na obra clássica: WEBER, Max. A ética protestante e o espírito do capitalismo. Trad. Jose Marcos Mariani Macedo. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. nos apresenta o desencantamento e ceticismo ao falar numa ética protestante relacionada ao espírito do capitalismo, em contrapartida, Simmel apresenta-nos certo otimismo ao recuperar a essência de uma pessoa verdadeiramente religiosa.

Se, em "O problema da situação religiosa" (1911), o sujeito da análise é a pessoa religiosa e o tema é a religiosidade, em "A Religião" (1912) prevalecem as relações sociais de pertencimento entre o indivíduo e o grupo social, revelando o surgimento da religião. De acordo com Simmel, as primeiras tentativas de organização coletiva estavam devidamente marcadas por religiões, no sentido de produzir segurança acerca das atitudes individuais na manutenção das relações sociais. Assim, ele quer dizer que as exigências sociais se manifestavam de forma religiosa e que isso resulta na objetivação de elementos subjetivos íntimos, delimitando as relações sociais.

Dessa maneira, formulam-se conceitos como destino, doação e dom, e o sentimento de dependência. E o que define tais conceitos é a maneira como a pessoa religiosa os recebe; no caso do destino, essa pessoa experimenta os acontecimentos da vida de tal forma que só poderá lhe render frutos benéficos; já a doação, em seu sentido psíquico, produz uma relação social muito próxima do estabelecido na Idade Média, quando a honra e a palavra do homem para com o outro possuíam valor incalculável. Com relação ao dom e ao sentimento de dependência, é possível relacioná-los na medida em que a aceitação do dom implica uma concessão ao doador, nas palavras de Simmel. Nesse sentido, de modo forçado, mas não equivocado, transferindo a ideia de dom para profissão, compreendemos claramente esse fenômeno sociológico e sua relação psíquica de dependência com Deus.

Ainda com respeito a essa relação estabelecida por Simmel entre indivíduo e sociedade sob a religião, o mesmo se refere ao cristianismo como promotor de uma síntese através do princípio da unidade pela religião ( religar e ressoar) já mencionado anteriormente. Assim, a religião constitui-se como forma acabada e objetiva, determinando um modo de ser onde /em que a existência terrena é quem elabora os "artigos de fé", e um bom exemplo disso é a divisão do trabalho ocasionada pelo próprio sacerdócio, em que as variadas disposições pessoais de cada indivíduo devem ser aproveitadas e avaliadas de acordo com aquilo de que são capazes, num objetivo de coesão do todo. Ao mesmo tempo, essa é uma necessidade de especialização da sociedade, tal como a troca e a concorrência, o que para Simmel ocasiona a anomia desse todo.

Aqui também cabe ressaltar a referência feita por Simmel nesse ensaio às seitas anabatistas e ao calvinismo. Para estes, a salvação dá-se por meio da predestinação ou eleição divina, por isso, o seu modo de vida interior deve ser devidamente respeitado, o que pode ser reivindicado pela comunidade a outras instâncias, por exemplo, o Estado. No entanto, tal atitude terrena produz intolerância e intransigência interiores absolutas; nas palavras de Simmel, uma derivação psicológica de doutrinas baseadas na eleição pela graça. Um caso típico que ilustra esse argumento é a identidade nacional norte-americana, na qual a intolerância chega a total exagero e se torna terrena com a guerra contra o terror.

No último ensaio dessa obra, "A arte religiosa de Rembrandt" (1914), Simmel apresenta-nos aspectos da arte religiosa e sua relação com a objetividade do mundo religioso, cuja realização histórica é evidente com o catolicismo; o que é verdadeiro, principalmente se pensarmos na atualidade, quando os dados do IBGE registraram, ainda no ano de 2010, aproximadamente 73% de católicos. A universalidade do conteúdo religioso oferecido pelo catolicismo correspondeu à universalidade formal investida pelas artes plásticas com temas religiosos objetivos (relação objetiva entre o homem e Deus ou objetos da fé), em especial, na arte bizantina e no Alto Renascimento, o que chega ao auge com a escultura, até Rodin.

No entanto, em contrapartida, Rembrandt realiza uma arte religiosa sob a premissa do indivíduo religioso; neste caso, o pintor elenca a religiosidade de Jesus como a sua figura mais proeminente, e esta aproxima-se da forma humana. Assim, o princípio da alma tal como descrito anteriormente também se faz presente na arte de Rembrandt, pois, sobretudo ele, retratava figuras simples, mal situadas na esfera social do período e de pés no chão; porém, eram dotadas dessa religiosidade imanente; prova disso é a iluminação que ele transferia para essas figuras.

Simmel não pretende atribuir religiosidade a Rembrandt, contudo, sua tese é de que como artista plástico ele é religioso, ou seja, a religiosidade em sua pintura manifesta-se artisticamente, assim como Bach, enquanto músico e compositor, manifesta sua religiosidade através do estilo barroco; só que para este, isso é um compromisso pessoal, por estar ligado à fé luterana.

Para concluir, é preciso dizer que a crítica feita por Simmel ao cristianismo e sua objetivação do mundo religioso e via única para a salvação, o que efetivamente foi uma realização do catolicismo, também recaíram sobre o protestantismo, na medida em que este não defendeu a possibilidade de relação direta da essência humana (alma) com Deus. E a maneira como o autor concebe a sociedade nas relações macro e micro - é possível ver, inclusive, a influência sobre os sociólogos Pierre Bourdieu e Norbert Elias - está intimamente ligada à sua sociologia da religião, o que faz desta obra uma leitura fundamental. O seu conceito de fé demonstra claramente um fenômeno sociológico: a fé religiosa em si, nos outros e em Deus é o que consolida as relações sociais, até para discordâncias e oposição a determinada pessoa ou coletividade. É um dos construtos sociais mais remotos e funcionais responsável pela coesão da sociedade.

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    . Neste trabalho comparo, sucintamente, a forma de elaborar a análise da religião empreendida por Simmel e Weber, intelectuais que vivenciaram o mesmo tempo histórico, com base na obra clássica: WEBER, Max.
    A ética protestante e o espírito do capitalismo. Trad. Jose Marcos Mariani Macedo. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      16 Abr 2012
    • Data do Fascículo
      Abr 2012
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