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Em busca da forma-educação infantil

LEITURA E RESENHA

Professora do curso de Pedagogia da Universidade Federal do Tocantins (UFT), Campus Universitário de Miracema, TO, Brasil. Doutoranda em Educação na Faculdade de Educação/ Unicamp. drumondviviane@gmail.com

FARIA, Ana Lúcia Goulart (Org.). O coletivo infantil em creches e pré-escolas: falares e saberes. São Paulo: Cortez, 2007. 120 p.

O livro O coletivo infantil em creches e pré-escolas: falares e saberes, organizado por Ana Lucia Goulart de Faria, docente da Faculdade de Educação da Unicamp, pesquisadora da Educação Infantil e de crianças pequenas, convida-nos a refletir sobre a educação das crianças pequenas em espaços coletivos de Educação Infantil: as creches e as pré-escolas.

A criança pequena, de zero a seis anos, é reconhecida pela legislação brasileira atual como sujeito de direitos. Seu direito à educação está constituído na primeira etapa da educação básica, a Educação Infantil, que permanece um campo de luta e resistência, na medida em que o protagonismo infantil se encontra sempre às voltas com possíveis imposições de práticas advindas do modelo escolar. O fato de preceder a escola de Ensino Fundamental não deve retirar da Educação Infantil aquilo que a singulariza. Não se deve admitir que o trabalho com crianças pequenas se constitua em meros degraus para etapas posteriores.

O conteúdo abordado no livro refere-se à construção da Pedagogia da Educação Infantil e leva-nos a uma revisão da formação dos(as) docentes que atuam em creches e pré-escolas, reconhecendo que "educar as crianças pequenas não é apenas tomar conta: exige um/a profissional que não deve seguir o modelo escolar nem no conteúdo nem no espaço nem no tempo" (p. 15), como afirma a organizadora desta obra. Além disso, a legislação que trata da formação docente (diretrizes dos cursos de Pedagogia) exige estágio e formação certificada para a docência em instituições de Educação Infantil.

A obra apresenta um belíssimo prefácio escrito pelo professor Marcos Cezar de Freitas, "O coletivo infantil: o sentido da forma", com a discussão inédita sobre a "forma-Educação Infantil", que traz uma contribuição ímpar para a Pedagogia da Educação Infantil, ao problematizar "a forma-escolar", muito conhecida de todos nós, que frequentamos por longos anos a escola e as salas de aulas, com sua disposição mobiliária, suas regras próprias de funcionamento e a postura docente, tão bem retratada nas brincadeiras infantis de faz-de-conta, quando as crianças dizem: "Agora eu era a professora!".

Freitas retoma o texto clássico de Antonio Candido, publicado em 1966, A estrutura da escola, e convida-nos a refletir sobre a "forma da/na Educação Infantil". Assim como Candido demonstrou a singularidade presente na instituição escola, ou seja, a "cultura escolar", Freitas considera que a Educação Infantil representa um universo com forma própria, dentro do qual está a "forma-creche", com uma formatação diferente daquela comumente difundida do espaço escolar, justamente porque tem uma maneira peculiar de constituir-se.

É na singularidade da construção quotidiana do espaço, do tempo, da organização e das práticas, que o trabalho com a criança pequena ganha uma tonalidade própria. [...] é fundamental ter em conta que o específico da educação infantil não deve ser reconhecido no "reino da prática". Ou seja, o peculiar da educação de crianças pequenas não é o mister das mãos, tão pouco é o triunfo da prática sobre a teoria. [...] Mas se não é o imperativo da prática aquilo que singulariza o trabalho com crianças pequenas, o que do seu conteúdo é "estritamente seu" a ponto de fazer com que espaço, tempo, organização e práticas escapem da poderosa forma escolar? O que lhe é essencialmente particular é a própria "cultura da infância". (p. 10-11).

O coletivo infantil é a expressão de uma universalidade que só se torna efetivamente compreensível de perto, representa "um microcosmo a ser desvelado" (p. 12). Não é por acaso que os(as) pesquisadores(as) de crianças pequenas vêm recorrendo às etnografias, aos estudos descritivos das relações entre as crianças nos coletivos infantis, com o objetivo de analisar a produção das culturas infantis. As pesquisas com crianças pequenas têm desvelado um mundo infantil que, por muito tempo, passou despercebido ou foi negligenciado nos estudos educacionais.

Os capítulos que compõem o livro buscam problematizar o coletivo infantil - foco central da discussão em todos eles e elemento essencial do título do livro - em creches e pré-escolas, revelando um conjunto de falares e saberes, em busca da "forma-educação infantil".

No primeiro capítulo, Tullia Musati, pesquisadora do Centro Nacional de Pesquisa (CNR) de Roma, discute suas pesquisas com foco na relação entre as crianças pequeninas e traz importantes contribuições para a Educação Infantil. Esse estudo, ao mostrar a importância do outro da mesma idade no desenvolvimento cognitivo da criança pequena, contribui para conhecermos um pouco mais sobre a produção das culturas infantis, entre bebês, na creche. Musati trabalha com conceitos da psicologia do desenvolvimento e não atribui unicamente ao adulto a função mediadora: destaca a relevância do papel mediador de outra criança da mesma idade, por fazer emergir um desempenho cognitivo mais complexo e específico, diferente do papel do adulto na aquisição dos significados. Os resultados dessas pesquisas permitem questionar algumas interpretações equivocadas de conceitos desenvolvidos por Vygotsky, leituras que demonstram desconhecimento do significado da relação criança-criança e de como se produz cultura entre elas.

No segundo capítulo, Márcia Gobbi, a partir de sua pesquisa de doutorado, destaca a origem do conceito da infância inventiva, produtora de culturas, construído pelos artistas modernistas. Inova com a discussão entre arte e primeira infância, num cenário que indica a ruptura nos modos de ver as criações infantis, as quais passam a ser referências, contrariando ideias que afirmavam que as crianças eram incapazes ou que sua capacidade se limitava a copiar as produções dos adultos. A autora leva-nos não apenas a pensar em uma descoberta da infância pelos artistas, "mas também para descobrir com eles como construir olhares próprios para a infância a partir dela mesma" (p. 30). Desse modo, traz elementos para propor a arte como um dos fundamentos na formação docente, ao lado das ciências e da filosofia.

Gobbi mostra que a Educação Infantil tem na arte subsídios para a construção de uma pedagogia que valorize as múltiplas formas de expressão e linguagens infantis, de modo que o ingresso nas culturas da escrita não antagonize com as culturas lúdicas, nem com todas as outras capacidades expressivas da criança, pois a escrita não é a única, mas uma das linguagens infantis. A educação na forma escolar, por sua vez, geralmente separa a cabeça do corpo, minando a capacidade inventiva, criadora e expressiva da criança. Ao trazer os artistas para o diálogo, essa autora propõe que "a infância possa ser concebida como uma etapa da vida na qual as crianças são vistas como seres falantes, criativos, e isto, sobretudo, quando ainda estão livres das tradicionais tutelas sociais, tais como os padrões escolares, restritivos da imaginação e da criatividade" (p. 30).

No terceiro capítulo, Emília Ferreiro, docente e pesquisadora do Instituto Politécnico Nacional da Cidade do México, autora que trouxe grandes contribuições para os estudos sobre a alfabetização, discute o conceito de "culturas da escrita" e aborda o significado do ingresso das crianças nessas culturas. Ela considera que o ato que transforma sinais em objetos linguísticos é um ato de interpretação e que o leitor é um intérprete, "que é muito diferente de ser um decodificador" (p. 60). Quando esse ato se realiza para a criança pequena, que ainda não lê nem escreve, para quem a escrita representa um mistério a ser desvelado, mostra a elas que a "página cheia de sinais pretos com fundo branco" (p. 57) tem poderes mágicos: produz linguagem.

Desse modo, o papel interpretante do adulto é o de introduzir, nas crianças pequenas, o prazer e a curiosidade pela leitura. Esta deve ser a atitude do(a) professor(a) na Educação Infantil: ler para as crianças, fazer o papel de interpretante para crianças que ainda não leem. A "alfabetização como aprendizagem de uma técnica é discriminatória" (p. 64), porque favorece somente a criança que em casa teve o contato cotidiano com livros e com leitores(as). Este texto convoca professores(as) de crianças pequenas a repensar as práticas de leitura na Educação Infantil.

O capítulo quatro traz a carta-proposta que o professor italiano Danilo Russo, de uma pré-escola pública estadual de Roma, elaborou para os(as) responsáveis pelas crianças, para seus(suas) colegas da escola e para todos(as) os(as) interessados(as), relatando sua prática pedagógica, com a organização do tempo e do espaço e a seleção de conteúdos não escolares. A proposta desse professor não consiste em um enunciado de objetivos a serem atingidos durante o ano letivo, mas, sim, em um texto reflexivo e sério, porém nada convencional em sua escrita, nem mesmo nas ideias apresentadas. Usa palavras não escolares, mas próprias da Educação Infantil, ao falar do seu trabalho docente, tornando clara sua proposta inovadora, em que as crianças são protagonistas.

Danilo Russo apresenta sua turma multietária de meninos e meninas de três, quatro e cinco anos e fala de como ser professor sem dar aulas para crianças que não leem e não escrevem, garantindo que elas convivam entre si, brinquem, inventem, descubram, vivam a infância.

Na escola da infância, as turmas são acompanhadas pelo mesmo docente durante os anos que a frequentam, inclusive por professores homens. Danilo deixa registrado seu sentimento em relação ao trabalho que desenvolve com as crianças: "não me sinto diminuído como professor, não me sinto infantilizado como pessoa, quando passo o máximo possível do meu tempo de trabalho brincando, já que tenho a sorte de que meu trabalho seja com crianças." (p. 84).

No último e quinto capítulo, Daniela Finco, ao trazer os resultados de suas pesquisas, discute as teorias de gênero para uma análise das relações entre os sexos, apresentando um rico repertório teórico que oferece pistas para pensar outra prática e formação docente que problematize a origem das desigualdades entre os gêneros, inclusive entre as crianças de quatro a seis anos, nas brincadeiras infantis na pré-escola.

A autora discute o disciplinamento dos corpos de meninos e meninas na Educação Infantil e questiona a escolarização das brincadeiras infantis como jogo educativo, visando somente à aquisição de conteúdos cognitivos. Desse modo, o texto traz para os(as) leitores(as) o desafio de enxergar a criança como um ser completo, capaz de conhecer o mundo com seu corpo por inteiro, pois, enquanto as instituições de Educação Infantil não contemplarem o corpo, estarão destruindo a autenticidade das crianças.

Nessa perspectiva, aponta que o brincar é uma ação humana que integra o pensar e o fazer e que as crianças pequenas são as que mais resistem aos modelos que os adultos impõem; elas manifestam suas transgressões principalmente nas brincadeiras. A análise apresentada vai além das formas de controle praticadas pela escola, questiona outra forma mais sutil de controle do corpo: a demarcação das fronteiras entre o feminino e o masculino, desde a pequena infância, quando as marcas do gênero vão sendo impressas nos corpos de meninos e meninas de acordo com as expectativas dos adultos.

O coletivo infantil em creches e pré-escolas: falares e saber é um livro que nos instiga à construção de uma educação da infância, que não separa corpo e mente, experiência e saber, pensamento e ação. Mostra que a "forma-Educação Infantil", não se confunde com a "forma-Escola", porque tem uma maneira peculiar de construir o seu modus operandi: "espaço, tempo, organização e práticas são construídos no seio das intensas relações que transbordam da cultura da infância quando as crianças ainda não se tornaram expressões inequívocas da forma-aluno" (p.10).

As ideias apresentadas levam-nos a discutir a educação das crianças na "forma-Educação Infantil", convidando para uma revisão da formação de professores(as) de crianças de zero a seis anos e, também, das de seis a dez anos, em busca de outra pedagogia: uma Pedagogia da Educação Infantil ou até mesmo uma Pedagogia da Infância, como propõe Mello (2005, p. 24):

[...] temos contaminado, por assim dizer, a educação infantil com as tarefas do ensino fundamental e de que, de agora em diante, levando em conta os novos conhecimentos [...] trata-se de fazer o inverso: deixar contaminar o ensino fundamental com atividades que julgamos típicas da educação infantil.

Aos leitores fica o aviso: a leitura deste livro pode mexer com ideias preconcebidas, pois traz perspectivas inovadoras para discutir a educação das crianças em espaços coletivos. Questiona nossa visão adultocêntrica e coloca nosso mundo de ponta-cabeça; instiga-nos a pensar para além do conhecido e familiar, mostra que outras relações são possíveis.

  • MELLO, S. A. O processo de aquisição da escrita na educação infantil: contribuições de Vygotsky. In: FARIA, A. L. G. de; MELLO, S. A. (Org.). Linguagens infantis: outras formas de leitura. Campinas, SP: Autores Associados, 2005.
  • Em busca da forma-educação infantil

    Viviane Drumond
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      04 Nov 2011
    • Data do Fascículo
      Dez 2011
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