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Apresentação

DOSSIÊ

PEDAGOGIAS, RACIONALIDADES E REPRESENTAÇÕES DO/SOBRE O CORPO NOS SÉCULOS XIX E XX

Apresentação

Luciano Mendes de Faria Filho

Organização

Pode-se dizer, hoje, que já existe, no Brasil, no campo das ciências humanas e sociais, uma tradição de estudos sobre o corpo. Se, em boa parte dos dois últimos séculos, as perguntas sobre o corpo foram elaboradas no interior, sobretudo, das ciências médicas, a partir dos anos de 1970 tem havido um sistemático interesse das ciências humanas e sociais pela temática. A emergência do tema se dá, não por acaso, na confluência de múltiplas variáveis, tais como as novas configurações teóricas possibilitadas pela crítica ao estruturalismo e ao marxismo, pela exacerbação do culto ao corpo e das práticas para mantê-lo saudável, pela emergência dos movimentos feministas, dentre outros.

Assim, como demonstra uma gama de estudos, o corpo vem sendo constituído como problema em vários domínios. Nas mais diversas esferas, como a religiosa, a militar, a médica, a jurídica e a pedagógica, por exemplo, os discursos a respeito do corpo não cessam. No fundo, o que se pretende é proporcionar o corpo mais ajustado aos interesses que comandam cada um desses domínios. Percebe-se, contudo, que os comandos se deslocam, se rearticulam, se transformam sob os resíduos daquilo que se pretende ultrapassar, o que torna complexa a tarefa de quem deseja apreender os agenciamentos que se produzem a partir de cada um e/ou do conjunto desses domínios.

O saber construído nas esferas assinaladas encontra-se associado a instituições correlatas, nas quais o corpo seria fabricado em sintonia com as forças em ação. Tal saber, por sua vez, vem sendo submetido a uma crescente especialização, criando nichos específicos em cada uma das esferas, investindo em uma espécie de autonomização, com esforços voltados para a construção de uma legítima ciência dos corpos. Movimento que, de sua parte, não abandona os laços com aquilo que se aloja nos campos nos quais o corpo ainda se constitui em matéria pensada, calculada, projetada.

Foi esse ambiente que reforçou a interlocução acadêmica de duas áreas que, há muito, vinham estabelecendo um produtivo diálogo sobre as questões concernentes à educação dos corpos: a educação e a educação física. Superando, muitas vezes, constrangimentos institucionais e acadêmicos1 1 . Não se pode esquecer, por exemplo, que, no Brasil, a área de pesquisa em educação física é, tradicionalmente, avessa aos aportes das ciências humanas e sociais, pois está organizada no interior das ciências biológicas. , os pesquisadores dessas duas áreas têm estabelecido uma profícua colaboração para elaborar ricas questões e complexos objetos de pesquisa acerca da educação do corpo.

Este dossiê reúne pesquisadores brasileiros, argentinos e mexicanos que, juntos, indagam sobre o corpo e sua relação com a educação numa perspectiva de análise específica: a histórica. No conjunto dos textos, o corpo é interrogado a partir de estudos que se ancoram numa forma particular de interrogação, a história. Os artigos, no entanto, buscam explorar ângulos disciplinares e histórico-geográficos específicos, considerando experiências singulares desenvolvidas na Argentina, no México e no Brasil em fins do século XIX e ao longo do século XX, a partir de uma base documental que permite refletir cada um dos presentes examinados.

O artigo escrito por José Gonçalves Gondra, "Temperar a alma, retemperar os músculos - corpo e História da Educação em Afranio Peixoto", busca interrogar as representações do corpo construídas nos tratados de pedagogia voltados para a formação de professores. Cabe ressaltar a regularidade dessa presença nesse tipo de material. No caso deste estudo, privilegiou-se o exame daquele que é considerado o primeiro manual de História da Educação brasileira. O artigo analisa o livro Noções de História da Educação, publicado por Afrânio Peixoto em 1942 - testemunho do curso de História da Educação ministrado pelo autor no Instituto de Educação em 1932 -, e termina por formular uma espécie de grade de inteligibilidade para a História da Educação, ao mesmo tempo que apresenta e defende princípios doutrinários que deveriam ordenar a educação da casa e da escola. No artigo, José Gondra busca perceber a adesão e a campanha do autor por uma educação integral, na qual os aspectos físico, moral e intelectual deveriam estar presentes, articulados e equilibrados.

Do mesmo modo, o segundo estudo, assinado por Lucia Martínez Moctezuma, focaliza as representações do corpo infantil em livros mexicanos destinados à escola primária. Nesse caso, a prioridade incide sobre os discursos de autores de livros escolares - professores, em sua maioria, mas também doutores, pedagogos e membros da administração escolar -, que serão os responsáveis por consolidar o conhecimento sobre a criança em um contexto positivista. A autora toma como objeto de análise as imagens e os textos dos livros que circularam na escola primária mexicana entre os anos de 1882 e 1940.

Numa outra chave de leitura - a que busca indagar sobre a relação corpo-cidade -, dois estudos procuram tornar visível o incremento das atividades corporais associadas a projetos de urbanização. O primeiro deles, de autoria de Carlos Fernando Ferreira da Cunha Junior, examina o caso da cidade de Juiz de Fora (MG), com base na análise do jornal de maior circulação da referida cidade. O exame desse impresso permite ver práticas corporais diversas que articulam esporte e entretenimento, tais como o carnaval, o circo, o teatro e as touradas, mas também as corridas a pé, a ginástica e as lutas e os seus efeitos na construção e no funcionamento do urbano. O artigo busca analisar o desenvolvimento das práticas corporais em Juiz de Fora entre 1876 e 1915, através do jornal O Pharol. A ginástica e os esportes estiveram presentes nas páginas d'O Pharol entre 1876 e 1915. Incentivadas por médicos, devido a sua relação positiva com a saúde ou ainda por seu caráter espetacular, essas práticas corporais caíram no gosto da população juiz-forana e passaram a ocupar lugar relevante em seu cotidiano.

Já o estudo de autoria de Andréa Moreno e Tarcísio Vago tem por título "Nascer de novo na cidade jardim da República: Belo Horizonte como lugar de cultivo de corpos (1891-1930)" e analisa uma cidade planejada e construída para ser a capital das Minas Gerais, vitrine da República, com suas praças, ruas e avenidas projetadas a régua e compasso, com a pretensão de obrigar seus habitantes a nascer de novo, como escreveu Carlos Drummond de Andrade. Segundo os autores, o advento da República envolveu Minas Gerais em uma experiência até então inédita em seus domínios, na última década do Oitocentos. Em apenas seis anos, protagonistas diversos envolveram-se em eventos marcantes, em torno da construção de uma nova capital, que redefiniram lugares de sociabilidade e modos de viver. Assim, o início da década (1891) assistiu a um intenso debate sobre a transferência da Capital, então Ouro Preto, para outro lugar, ainda indefinido. À decisão favorável à mudança seguiu-se a escolha do lugar considerado apropriado e, depois, durante quatro anos, de 1893 a 1897, o planejamento e a construção de uma nova cidade, edificada sobre um arraial, nos moldes das reformas urbanas levadas a efeito em países como a França e a Argentina. Experiência que marcou profundamente costumes, hábitos, sensibilidades de habitantes tão diversos - políticos e funcionários públicos, bacharéis e intelectuais, médicos e professores, mulheres, crianças, pobres e ricos, maltrapilhos, mendigos e todos quantos experimentaram aquele tempo e seus lugares, da velha Ouro Preto ao arraial de Curral D'el Rey.

Os exercícios físicos e os esportes são o foco do quinto estudo, "As roupas destinadas aos exercícios físicos e ao esporte: nova sensibilidade, nova educação do corpo (Brasil, 1920-1940)", de Carmen Lúcia Soares, a partir do exame de três periódicos. Essa reflexão encontra-se ancorada no exame da roupagem imposta às modalidades esportivas, procurando problematizar as dimensões científicas, comerciais, higiênicas, morais e estéticas contidas nos argumentos mobilizados na documentação examinada. Para a autora, as roupas possuem lugar privilegiado na história da humanidade, e sua especificidade sexual, étnica, religiosa, política ou cotidiana revela esse lugar. A vestimenta constitui característica fundamental dos seres humanos, e o ato de vestir-se obedece a determinações sociais, sendo resultado de um laborioso processo de transformação de sensibilidades em relação ao corpo e a sua exibição, de tolerância à nudez e à natureza corporal. Por isso, a partir da análise de três revistas - Educação Physica: Revista de Esporte e Saúde (1932 - 1958); Sport Illustrado (década de 1930); Revista de Educação Física (1930-1939) -, esse trabalho dedica-se ao levantamento, à seleção e à análise de reportagens e imagens publicadas em revistas brasileiras pertencentes ao domínio da educação física e do esporte entre os anos de 1930 e 1950 e tem como objetivo compreender as justificativas elaboradas para o uso de roupas específicas nessas práticas em suas dimensões higiênicas, morais e estéticas, presentes nos argumentos desenvolvidos no período.

Por fim, numa outra tópica, o estudo de Pablo Ariel, "Cuerpos femeninos en movimiento o acerca de los significados sobre la salud y la enfermedad a fines del siglo XIX en Argentina", utilizando como fonte de análise as teses médicas sobre fisiologia, ginecologia, patologia e higiene - entendidas pelo autor como parte central de uma episteme que circulou, foi ensinada e transmitida no interior da corporação médica argentina no período -, analisa as práticas corporais escolares e não escolares desenvolvidas na Argentina no fim do século XIX como um terreno conflitivo em que atores e grupos sociais distintos estabeleceram um jogo complexo e heterogêneo de tópicas vinculadas ao corpo e seu funcionamento, à saúde e à doença, à diferença sexual e à definição do ser feminino.

Como se vê, nas chaves corpo-cidade, corpo-esporte, corpo-ciência e corpo-mulher, estabelecidas a partir de uma prática comum, a de historiar, corpos de diferentes idades e pertencimentos são interrogados no conjunto dos estudos aqui reunidos. Como eles, o dossiê aqui apresentado pretende dar a ver e tornar pensável o arbitrário das medidas voltadas para a educação do corpo e, do mesmo modo, o imponderável que emerge das múltiplas ações dirigidas a ele e a seus titulares.

Por fim, uma informação que me parece muito relevante: os textos aqui publicados foram, todos eles, apresentados e discutidos no Congresso Ibero-Americano de História da Educação Latino-Americana, realizado no Rio de Janeiro no final de 2009. Chamo a atenção para isso pelo fato de que a Pro-Posições, ao acolher a nossa proposta de publicação do dossiê, permitiu, também, que o Congresso, pelo menos para estes autores e seus textos, pudesse, de fato, significar uma singular experiência de interlocução e intercâmbio acadêmico e, ao mesmo tempo, possibilitou que tal experiência possa, pelo menos em parte, ser compartilhada pelos leitores da revista.

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    . Não se pode esquecer, por exemplo, que, no Brasil, a área de pesquisa em educação física é, tradicionalmente, avessa aos aportes das ciências humanas e sociais, pois está organizada no interior das ciências biológicas.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      04 Nov 2011
    • Data do Fascículo
      Dez 2011
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