Acessibilidade / Reportar erro

Família e vida privada nas carreiras de professoras do secundário na França

LEITURAS E RESENHAS

Família e vida privada nas carreiras de professoras do secundário na França

Marília Barbara Fernandes Garcia Moschkovich

Mestranda em Educação na Faculdade de Educação da Unicamp, Campinas, SP, Brasil. E-mail: mari.moscou@gmail.com

CACOUAULT-BITAUD, Marlaine. Professeurs.. mais femmes – carrières et vies privées des enseignantes du secondaire au XXe siècle". Paris: La Découverte, 2007. 316p.

Licence em Paris-IV, mestrado em Paris-I, em arqueologia, porque eu queria tentar a Escola de Atenas. Não passou de uma intenção, no fim, porque conheci meu futuro marido. E porque seria incompatível. Ser arqueóloga pressupunha uma grande disponibilidade... Se bem que para D. [outra antiga aluna de Sèvres que chegou a arqueóloga] pode-se dizer que foi por causa de sua persistência, sobretudo sua determinação, pois é preciso se agarrar à ideia. […] Frequentei bastante os meios da arqueologia: era muito misógino. Primeiro, não havia mais que uma vaga por ano; uma mulher não tinha praticamente chance nenhuma de conseguir, concorrendo com os homens da Rue d'Ulm. O argumento era ainda bem simples: para dirigir um canteiro de escavação, sobretudo nos países mediterrâneos como a Grécia, não dava pra ser mulher, porque os gregos não obedeceriam. (Mme Angèle, cônjuge engenheiro, três filhos. Ocupou por quinze anos um cargo num collège.)1 1 . "Licence à Paris-IV, maîtrise à Paris-I, em archéologie puisque je pensais préparer l'École d'Athènes. Ce n'est resté qu'une intention puisque j'ai rencontré mon futur mari. Et puis ce n'était pas compatible. Archéologue, ça suppose une grande disponibilité... Mais c'est vrai que pour D. [une autre elève de Sèvres devenue archéologue], on peut penser que c'était son entêtement, sa détermination surtout, car il faut quand même être très accrochée. […] J'ai beaucoup fréquenté les milieux d'archéologie: c'était très misogyne. D'abord, il y avait un poste par an; une fille n'avait pratiquement aucune chance de l'avoir parce qu'on était em concurrence avec les garçons de la Rue D'Ulm. Et l'argument était très simple: pour diriger un chantier de fouilles, surtout dans les pays méditerranéens comme la Grèce, pas de filles, parce que les Grecs n'obéiront pas. (Mme Angèle, conjoint ingénieur, trois enfants. A occupé pendant quinze ans un poste dans un collège.)" – (Cacouault-Bitaud, 2007, p. 125, tradução livre, minha). (Cacouault-Bitaud, 2007, p. 125)

A desigualdade entre gêneros que se expressa nas carreiras e na formação acadêmica de homens e mulheres tem sido objeto de muitos trabalhos acadêmicos dentro e fora do Brasil, sendo considerada um fenômeno de destacada relevância. A docência universitária, a ciência e outras profissões de nível superior, assim como o setor terciário em geral, prestam-se bem a esse tipo de estudos, sobretudo porque, apesar de terem se feminizado nas últimas décadas, continuam mantendo diferenças substanciais entre homens e mulheres no que diz respeito a padrões de carreira e titulação (Musselin, 2005, 2006; Inep, 2008) que configuram certa divisão sexual do trabalho intelectual. Trabalhos recentes têm buscado explorar as relações desse tipo de desigualdade com as exigências da vida familiar, diferentes para cada gênero.

Como são as carreiras e as vidas privadas das professoras do secundário de diferentes gerações na França? Como essas carreiras e vidas privadas são construídas, uma em relação à outra? Que estratégias guiam as decisões dessas professoras? Buscando responder a essas perguntas, o livro de Marlaine Cacouault-Bitaud, Professeurs... mais femmes – carrières et vies privées des enseignantes du secondaire au XXe siècle2 2 . "Professoras... mas mulheres — carreiras e vidas privadas das professoras do secundário no século 20". (tradução livre, minha; livro ainda sem publicação e título em português). (Cacouault-Bitaud, 2007), oferece uma contribuição a essa área de pesquisas, estudando as carreiras e as vidas privadas das professoras da escola secundária francesa. A pesquisa apoia-se em análises de dados estatísticos e também em resultados de entrevistas. O longo período coberto pelo estudo, todo o século XX, explica-se pelo tratamento geracional dado à investigação. Cacouault-Bitaud aponta que é preciso olhar para as relações entre carreira e vida privada como uma série de deslocamentos, ajustes e arranjos que têm história, explicação e que, por não serem isolados, podem ser tomados como fatos sociais.

O livro é dividido em quatro partes e termina com uma breve conclusão. Na primeira parte, a autora demonstra como as características do desenvolvimento da educação para meninas na França contribuíram para uma desigualdade na formação de professoras e professores que, por sua vez, reproduziam essas condições de desigualdade com seus alunos ao longo do sistema escolar. No início do livro, a desigualdade de gênero no trabalho docente é tratada de forma estrutural e objetiva. Aos poucos, essa abordagem abre-se para aspectos mais subjetivos e simbólicos, quando a autora passa a analisar entrevistas biográficas.

Como mostra a pesquisa, as mulheres só passaram a ter direito de atuar como docentes nos liceus em 1882 e, mesmo assim, de forma precária. Um ano antes havia sido criado, na escola normal de Sèvres, um diploma específico para mulheres. Esse certificado dava-lhes direito só a contratos de chargées de cours (uma espécie de professor eventual) e não de concursadas porque não tinham e nem podiam, até 1883, fazer agrégation3 3 . Agrégation, sem tradução para o português, é uma certificação do governo francês de que aquela professora ou aquele professor está apta/o para dar aulas a partir do nível de ensino que corresponde ao nosso Ensino Médio. Para obter agrégation é preciso passar num concurso difícil e concorrido e, portanto, é preciso investimento de tempo para preparar-se. . Mesmo assim, a agrégation franqueada às mulheres a partir daquele ano era um exame separado, menos exigente e considerado de menor valor do que a agrégation masculina, já que limitava sua atuação exclusivamente a estabelecimentos para meninas.

Os homens, por outro lado, podiam chegar ao cargo de professores (em oposição a cargos instáveis do tipo eventual) mesmo sem o certificado da agrégation, com exigência dos diplomas de Baccaleauréat e License4 4 . Baccalauréat e License são dois diferentes níveis de ensino, criados no século XIX a partir da lei que estruturava o sistema de ensino superior na França. O primeiro é um diploma conquistado com a aprovação em exame realizado após os estudos em liceus (por volta de 15 e 18 anos de idade) e condição para entrada em universidades. A segunda corresponde ao diploma do primeiro ciclo de estudos universitários (três anos). : "Les hommes, en outre, on droit au titre de professeur même lorsqu'ils ne sont pas agrégés" (Cacouault-Bitaud, 2007, p. 18). Enquanto os liceus masculinos preparavam os alunos para esses diplomas, os liceus femininos não o faziam (já que tais diplomas não eram exigidos nos exames e certificados para magistério em liceus femininos); e, assim como as condições de trabalho e carreira de professoras e professores não eram reguladas da mesma forma, com as exigências variando segundo o gênero, as condições do período de preparação para a carreira também eram diferenciadas. Mesmo mais tarde, com a abertura das universidades às mulheres, os egressos de liceus masculinos desfrutavam de liberdade e mobilidade para cursarem a License em universidades localizadas em regiões diferentes das que habitavam com suas famílias, enquanto as poucas mulheres que cursavam a universidade se encontravam num contexto muito mais restrito, sob o controle das famílias, isto é, com menos mobilidade para estudar longe de casa ou morar sozinha durante os estudos universitários.

Como mostra a autora, a partir de entrevistas biográficas, essa situação gerava uma oposição entre trabalhar fora e casar-se, uma construção simbólica associada à maior ou menor independência, que tinha efeitos concretos sobre a vida pessoal das professoras, expressando-se, por exemplo, em altas taxas de celibato. Parecia estar claro para essas mulheres que, uma vez casadas, o dever familiar (cuidar dos filhos, mudar-se de cidade para acompanhar o marido, etc) interpor-se-ia à carreira, que já não se desenvolvia em condições fáceis. É importante ressaltar, no entanto, que a relação com o trabalho, o casamento ou o celibato e a construção da independência variam de acordo com a origem social das entrevistadas. As filhas de professores ou de trabalhadores são aquelas que mais frequentemente descreveram a entrada na profissão como o único meio de ascender a uma posição social mais confortável do que a de seus pais.

Na segunda parte do livro, Cacouault-Bitaud analisa mais profundamente o direcionamento dessas mulheres para o magistério, enfrentando os argumentos de autores, sobretudo da área da estatística e da demografia, de que a aparente preferência das mulheres pela profissão estaria relacionada a um "desejo" por estabilidade. Segundo ela, as condições objetivas tanto do mercado de trabalho quanto do período de preparação da carreira e da vida privada são mais relevantes do que a suposta estabilidade (ou desejo de) para explicar esse direcionamento. Ela se apoia na bibliografia para mostrar, por exemplo, que o diploma tem um peso maior na conformação das carreiras femininas nas profissões liberais, enquanto, para os homens, o capital social é mais importante. Dessa forma, as mulheres tenderiam a procurar por profissões em que os títulos escolares têm grande peso para a ocupação de uma posição de maior prestígio, como é o caso da carreira de professora. Outro argumento que a autora enfrenta é o de que as profissões se desvalorizariam com a feminização. Seu estudo mostra que, ao contrário, a migração dos professores homens para os postos no magistério superior, que se consolidavam e se ampliavam na época, precedeu e foi condição para que as mulheres pudessem ter acesso ao magistério secundário. Ela pode assim concluir que a desvalorização está ligada à saída dos homens e não, necessariamente, à entrada das mulheres.

Sendo a primeira metade do livro dedicada às professoras nascidas até o início do século XX, a segunda explora como as desigualdades estabelecidas nesse primeiro momento da feminização da carreira se transformaram em novas desigualdades, acompanhando as mudanças na sociedade francesa ao longo do século. Para isso, a autora compara dados oficiais do governo francês e documentos do sistema nacional de educação com as entrevistas biográficas das diferentes gerações de professoras.

Essa parte do estudo contribui significativamente para que possamos compreender melhor os padrões de carreira e de formação de família como elementos importantes na configuração da desigualdade de gênero nas profissões de nível superior. Embora a taxa de celibato das professoras continue ainda alta em relação a outras profissões, ela diminui na segunda metade do século. No entanto, com mudanças nas leis e nas normas (como a instauração da agrégation única e a criação dos liceus mistos), assim como nos padrões de comportamento e na sociedade mais amplamente, a desigualdade entre gêneros nas carreiras de professor do secundário transforma-se, e o modo como tal desigualdade é percebida também muda.

Assim, embora as moças estejam autorizadas a penetrar nos espaços masculinos, elas se direcionam em menor número para carreiras e diplomas de maior prestígio, mas também de maior seletividade, em áreas onde dominam os homens, como a arqueologia — exemplo dessas transformações.

Os padrões de carreira que as professoras desenvolvem também continuam mostrando a interferência forte do sentimento de dever familiar, embora essa interferência mude, desloque-se. A autora mostra, por exemplo, que as mulheres professoras que, num primeiro momento, têm as carreiras interrompidas parcial ou totalmente por gravidezes e outros deveres familiares, como viagens e mudanças de cidade com os maridos, no final do século XX trocam essa interrupção por uma titulação tardia. Uma vez que a entrada na carreira sem agrégation, com a ocupação de cargos menos estáveis, com salários mais baixos e em meio período tornou-se novamente possível graças a dispositivos na lei que flexibilizaram condições de trabalho nos liceus entre os anos 1980 e 1990, as professoras investem o tempo livre na preparação para exames e em cursos necessários para alcançar postos melhores e passar à agrégation, ao invés de utilizarem esse tempo para dar maior atenção à família e aos filhos. Ou seja, grande parte das professoras passou a entrar na carreira antes da titulação e a utilizar o meio período para buscá-la. A interferência da família acontece, portanto, num momento anterior, impedindo essas moças de conseguirem passar a agrégation no mesmo momento da vida em que o fazem os rapazes, ao invés de impedir a continuidade da carreira num momento posterior. O estudo mostra como os ajustes feitos pelas professoras em relação ao leque de possibilidades que lhes era dado entre exigências familiares e profissionais resultam nesse tipo de estratégia.

Os extratos de entrevistas incluídos no livro, assim como o trabalho cuidadoso com a apresentação dos dados, enriquecem a leitura do trabalho e permitem ao leitor compreender em profundidade a argumentação e as conclusões trazidas pela pesquisa. Entretanto, um aspecto da questão que talvez contribuísse para aprofundar a discussão é a análise das carreiras e vidas privadas dos professores homens. Os homens aparecem como cônjuges das professoras e, entre esses, o espaço mais importante é reservado aos cônjuges engenheiros. Quando cônjuges intelectuais ou professores são mencionados, seu lugar na análise resume-se à interferência de sua rotina e a necessidades profissionais nas carreiras femininas. Talvez uma comparação sistemática entre as carreiras que homens e mulheres construíram no ensino possa evidenciar, sobretudo para leitores estrangeiros, as especificidades das carreiras femininas em relação a aspectos mais gerais das carreiras de professores e professoras ao longo do século XX, na França. Esse, certamente, é um dos caminhos abertos por essa importante obra para aqueles e aquelas que desejam fazer avançar a pesquisa sociológica sobre a desigualdade de gênero na educação e nas profissões de nível superior de forma geral.

  • CACOUAULT-BITAUD, M. Professeurs... mais femmes carrières et vies privées des enseignantes du secondaire au XXe siècle Paris: La Découverte, 2007.
  • MUSSELIN, C. Le marché des universitaires Paris: Presse Sciences Po, 2006.
  • MUSSELIN, C. Les universitaires Paris: La Découverte, 2005.
  • INEP. Sinopses estatísticas da educação superior — graduação, 2008. Disponível em: <http://www.inep.gov.br/superior/censosuperior/sinopse/default.asp> Acesso em: 18 mar. 2010.
  • INEP. Relatório técnico do Censo da Educação Superior, 2008. Disponível em: <http://inep. gov.br/superior/censosuperior/relatorio_tecnico.htm> Acesso em: 24 ago. 2010.
  • 1
    . "Licence à Paris-IV, maîtrise à Paris-I, em archéologie puisque je pensais préparer l'École d'Athènes. Ce n'est resté qu'une intention puisque j'ai rencontré mon futur mari. Et puis ce n'était pas compatible. Archéologue, ça suppose une grande disponibilité... Mais c'est vrai que pour D. [une autre elève de Sèvres devenue archéologue], on peut penser que c'était son entêtement, sa détermination surtout, car il faut quand même être très accrochée. […] J'ai beaucoup fréquenté les milieux d'archéologie: c'était très misogyne. D'abord, il y avait un poste par an; une fille n'avait pratiquement aucune chance de l'avoir parce qu'on était em concurrence avec les garçons de la Rue D'Ulm. Et l'argument était très simple: pour diriger un chantier de fouilles, surtout dans les pays méditerranéens comme la Grèce, pas de filles, parce que les Grecs n'obéiront pas. (Mme Angèle, conjoint ingénieur, trois enfants. A occupé pendant quinze ans un poste dans un collège.)" – (Cacouault-Bitaud, 2007, p. 125, tradução livre, minha).
  • 2
    . "Professoras... mas mulheres — carreiras e vidas privadas das professoras do secundário no século 20". (tradução livre, minha; livro ainda sem publicação e título em português).
  • 3
    .
    Agrégation, sem tradução para o português, é uma certificação do governo francês de que aquela professora ou aquele professor está apta/o para dar aulas a partir do nível de ensino que corresponde ao nosso Ensino Médio. Para obter
    agrégation é preciso passar num concurso difícil e concorrido e, portanto, é preciso investimento de tempo para preparar-se.
  • 4
    .
    Baccalauréat e
    License são dois diferentes níveis de ensino, criados no século XIX a partir da lei que estruturava o sistema de ensino superior na França. O primeiro é um diploma conquistado com a aprovação em exame realizado após os estudos em liceus (por volta de 15 e 18 anos de idade) e condição para entrada em universidades. A segunda corresponde ao diploma do primeiro ciclo de estudos universitários (três anos).
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      31 Ago 2011
    • Data do Fascículo
      Ago 2011
    UNICAMP - Faculdade de Educação Av Bertrand Russel, 801, 13083-865 - Campinas SP/ Brasil, Tel.: (55 19) 3521-6707 - Campinas - SP - Brazil
    E-mail: proposic@unicamp.br