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Histórias são naus que cruzam fronteiras

Stories are ships that cross borders

Resumos

Este artigo é uma reflexão sobre a paixão pela literatura e a infancia. Apresenta a preocupação com a necessidade de ler, contar e escutar histórias que são abordadas aqui como experiências profundas e fundamentais para os seres humanos, experiencias quase únicas. Para as professoras e professores, entre tantas tarefas a serem realizadas com as crianças, encontra-se também aquela de propiciar um encontro feliz entre as crianças e os livros e, de forma mais geral, entre as crianças e o mundo das histórias; e sobre a responsabilidade e consciência de serem, para as crianças pequenas, narradores e narradoras, leitores e leitoras. A narrativa é mostrada como um espaço privilegiado de convívio, relação e experiências entre meninos e meninas, leitores ou não, e os adultos e adultas que com elas se encontram.

literatura; pequena infância; narrativa; relação


This article is a reflection on the passion for literature and childhood. It presents the concerns regarding the need to read, tell stories and listen to them, which are here mentioned as deep and essential experiences for the human beings -almost unique experiences. Among so many tasks to be accomplished by the female and male teachers with children, there is the one which is to create a happy encounter between children and books and, more generally, between the children and the world of stories; and also to be aware of the responsibility of always being, to the young children, female and male narrators and readers, being the narrative a privileged space for interaction, relationships and shared experiences between boys and girls, readers or not, and the adults who encounter with them.

literature; early childhood; narrative; relationship


DOSSIÊ

INTERLOCUÇÃO POSSÍVEL: ARTE E CIÊNCIA NA EDUCAÇÃO DA PEQUENA INFÂNCIA

Histórias são naus que cruzam fronteiras

Stories are ships that cross borders

Marina Manferrari

Pedagoga, coordenadora do projeto Leitura e do projeto Creche-teatro do município de Bologna, Itália. E-mail: marina.manferrari@comune.bologna.it

RESUMO

Este artigo é uma reflexão sobre a paixão pela literatura e a infancia. Apresenta a preocupação com a necessidade de ler, contar e escutar histórias que são abordadas aqui como experiências profundas e fundamentais para os seres humanos, experiencias quase únicas. Para as professoras e professores, entre tantas tarefas a serem realizadas com as crianças, encontra-se também aquela de propiciar um encontro feliz entre as crianças e os livros e, de forma mais geral, entre as crianças e o mundo das histórias; e sobre a responsabilidade e consciência de serem, para as crianças pequenas, narradores e narradoras, leitores e leitoras. A narrativa é mostrada como um espaço privilegiado de convívio, relação e experiências entre meninos e meninas, leitores ou não, e os adultos e adultas que com elas se encontram.

Palavras-chave: literatura; pequena infância; narrativa; relação.

ABSTRACT

This article is a reflection on the passion for literature and childhood. It presents the concerns regarding the need to read, tell stories and listen to them, which are here mentioned as deep and essential experiences for the human beings -almost unique experiences. Among so many tasks to be accomplished by the female and male teachers with children, there is the one which is to create a happy encounter between children and books and, more generally, between the children and the world of stories; and also to be aware of the responsibility of always being, to the young children, female and male narrators and readers, being the narrative a privileged space for interaction, relationships and shared experiences between boys and girls, readers or not, and the adults who encounter with them.

Key words: literature; early childhood; narrative; relationship.

Introdução

A minha contribuição tem um recorte educativo. Não sou especialista em literatura infantil, sou uma apaixonada, isto sim, por livros para crianças, mas não uma especialista. Como pedagoga, os aspectos que mais me interessa elucidar são:

- a importância de ler e contar histórias para crianças;

- as funções e os significados que esses momentos adquirem do ponto de vista educativo;

- a necessidade de histórias, que as crianças e todos nós temos.

Gostaria de refletir com vocês por que ler, contar e escutar histórias são experiências tão profundas, diria mesmo irrepetíveis. Porque, enquanto adultos envolvidos com a infância, entre tantas tarefas e tantas responsabilidades difíceis e lindas que temos, está também aquela de propiciar um encontro feliz entre as crianças e os livros e, de forma mais geral, entre as crianças e o mundo das histórias — a responsabilidade e a consciência de sermos para nossas crianças adultos narradores e adultos leitores.

A narrativa enquanto espaço privilegiado de relação com a infância

Narrar é um verbo-ação, uma ação transitiva: narra-se algo e narra-se para alguém. A narrativa realiza-se no interior de uma relação e contribui para criá-la. Compartilhar as mesmas histórias é uma forma de reforçar o vínculo recíproco.

Contar é colocar-se em relação de empatia, é tornar possível experimentar o que o outro experimenta. O encontro, o contexto da relação, a dimensão comunicativa: são esses os aspectos tão intrinsecamente educativos que me interessa elucidar.

Um adulto que se coloca diante de uma criança, mesmo muito pequena, com disponibilidade e interesse em comunicar-se intencionalmente com ela, antes mesmo de querer transmitir-lhe um conteúdo, dá-lhe segurança, dizendo-lhe implicitamente: "estou aqui e estou me dedicando a você", "estou aqui para contar a você uma história, especial para você"; poderia acrescentar "só para você". A unicidade, o sentido forte da minha presença física e emotiva em relação à sua e, entre nós dois, o encanto de uma história, que adquire vida a partir da minha voz. "A voz é uma ponte entre corpos, entre corpos, respiração e carícia." (P. Jedlowski).

A narrativa é uma forma expressiva complexa: a escolha das palavras, do volume, do tom; a alternância dos ritmos, lentos, insistentes; as acelerações, as pausas; o cuidado com os gestos, a eficácia dos olhares; a repetição e a previsibilidade ou a surpresa e o engano... são todos instrumentos para criar aquele lugar de encontro feito de conexões entre quem conta e quem escuta, onde o que importa é a presença e a vontade de uma comunicação verdadeira, capaz de suscitar um espaço de escuta comum.

É "oferecer nossas preferências àqueles que preferimos" (D. Pennac)

Sejam histórias que passam de geração em geração ou inventadas, histórias divertidas, engraçadas, surreais; histórias complexas, poéticas, intensas, o importante é o sentido da presença, do estar junto, e as crianças sentirem que receberam algo para elas, que lhes diz respeito pessoalmente. É uma demonstração tão forte de interesse por elas que, paradoxalmente, mais do que a história em si, o que importa é a percepção de terem sido consideradas tão importantes a ponto de se tornarem objeto daquele tipo de comunicação; a ponto de, depois de muitos anos, o que mais virão a recordar não será o conteúdo da história, mas a sensação de proximidade, de autenticidade e de partilha que caracterizou o momento do conto. Porque narrar é construir uma intimidade…

No final das contas, como diz P. Bichsel, "a criança que quer ouvir uma história, quer, antes de mais nada, ouvi-la ser contada. O conteúdo necessário é o veículo da história, não é a história que é veículo do conteúdo".

Ocorre, às vezes, que a mensagem da relação fala mais forte que o conteúdo. Mas isso não significa que o conteúdo não seja importante. Quando contamos histórias a crianças muito pequenas, temos vontade de perguntar: o que será feito daquelas histórias que hoje as apaixonam tanto? Serão sepultadas sob outras histórias? Sob os fatos da vida? Diluídas ou deformadas pelo tempo? Esquecidas?

Não temos que nos preocupar com isso: as histórias que tocam dentro permanecem dentro, seguindo percursos pessoais pouco visíveis, depositam-se e vão nutrir o imaginário das crianças, um reservatório muito grande que reelabora e conserva.

As histórias, como as poesias e as representações teatrais, são feitas, em grande parte, de imagens.

E as imagens atingem partes muito profundas de nós de forma muito rápida e direta. Depois de terem nos atingido permanecem dentro, [...] se aninham em alguns lugares da mente e se reapresentam, de vez em quando, mesmo quando não damos atenção a elas (R. Valentino Merletti)

Usei várias vezes o termo "estar aqui" na relação educativa, falei da presença autêntica, são aspectos cruciais aos quais quero voltar mais um momento. Frequentemente se diz que os ritmos de vida contemporâneos e as nossas organizações familiares restringem os tempos de troca entre pais e filhos. Estou com você enquanto levo você para a escola, para o futebol, para a piscina, enquanto faço as compras, enquanto a televisão está ligada… São raros os momentos em que estou aqui com você e dedico tempo para nós dois. ESTAMOS sempre com as crianças (nossas crianças vivem rodeadas de adultos), mas raramente ESTAMOS DE FATO com elas. Excedem então os substitutivos da presença dos pais e os objetos que lotam os quartos das crianças, as atividades com as quais preenchem suas jornadas. Não sabemos dizer não às suas demandas não apenas porque dizer não é cansativo, mas também porque, num cantinho dentro de nós, sabemos que estamos um pouco em falta com eles.

Não quero generalizar nem banalizar uma realidade que é complexa, nem tampouco culpar adultos que já se sentem culpados, alimentando espirais pouco úteis. Mas algo de verdadeiro há nessas análises às vezes superficiais que enchem nossas publicações.

O tempo é um elemento-chave na relação educativa. No nosso tempo frenético, cheio demais, acelerado, antecipado, torna-se vital dar tempo, dedicar tempo ao tempo suspenso das histórias, ao tempo sem tempo das histórias.

Falando com as educadoras e as professoras, surge com frequência o seguinte: dedicar tempo para contar histórias e para a leitura é considerado quase com "sentimento de culpa", o temor de ter "perdido tempo". Esta terminologia tem uma dupla leitura: perder tempo entendido como demorar-se em tarefas pouco "produtivas" e perder o tempo entendido como "esquecer o tempo", entrar justamente em um pseudotempo narrativo, no qual se desfruta da suspensão momentânea do tempo convencional, pausa do real, deslizamento para outro lugar… (M. Bernardi).

Reconquistar este tempo "atemporal", reapropriar-se de tempos dilatados e diluídos é uma necessidade recíproca e legítima de adultos e crianças.

Se o momento narrativo funciona, entre nós e as crianças estabelecem-se fios que vão e vêm, tece-se uma teia carregada de significados, passa-se para as crianças uma mensagem de aliança, um sentido de proteção e de cuidado. Uma resposta à necessidade das crianças de receber palavras narrativas e de serem transportadas para outro lugar.

Quero ler para vocês, a propósito disso, um fragmento de Eva Luna, um livro de Isabel Allende, de 1987, de que gostei muito:

Minha mãe era uma pessoa silenciosa, capaz de confundir-se entre os móveis […], de não fazer o menor barulho, como se não existisse; no entanto, na intimidade do quarto que dividíamos, ela se transformava. Começava a falar do passado, a contar suas histórias e o quarto se enchia de luz, desapareciam as paredes para dar lugar a paisagens incríveis, palácios cheios de objetos nunca vistos, países distantes […]; depositava aos meus pés todos os tesouros do Oriente, a lua e algo mais, me reduzia ao tamanho de uma formiga para fazer sentir-me minúscula diante do universo, me colocava asas para vê-lo do firmamento, me dava um rabo de peixe para conhecer o fundo do mar. Quando ela contava histórias, o mundo se povoava de personagens, alguns deles tornaram-se tão familiares, que ainda hoje, depois de tantos anos, posso descrever suas roupas, o tom da voz. Conservava intactas suas recordações de infância […], elaborava a essência dos próprios sonhos e com aquele material construía um mundo todo para mim. As palavras são gratuitas, dizia e se apropriava dela […]. Ela plantou na minha cabeça a ideia de que a realidade não é apenas o que parece na superfície, porque ela tem uma dimensão mágica e, desejando, é legítimo exagerá-la e colori-la para tornar menos tediosa a passagem por esta vida…

Reviver-nos como crianças, lembrar-nos de nós mesmos quando crianças, aumentar nossa consciência autobiográfica, tudo isso nos ajuda a entender mais as crianças, a conhecê-las melhor. Não significa colocar-se falsamente no plano delas, abdicando do nosso papel de adultos, mas significa sermos adultos capazes de cuidar também da nossa infância, de sintonizarmo-nos com a forma de sentir das crianças e estar do lado delas, sem a pretensão de entender tudo, de interpretar, de controlar… simplesmente estar ao lado delas.

Contar para as crianças algo a nosso respeito, que tenhamos vivido pessoalmente e faz parte da nossa experiência e das nossas lembranças também é um pequeno presente, que as crianças apreciam porque sentem que estamos tocando em algo verdadeiro, valioso para nós, de que elas sabem cuidar (as crianças sabem cuidar de nós).

E mais: contar para elas momentos vividos juntos, reconstituídos em forma de história, significa levar uma contribuição importantíssima para a construção de suas identidades. Se a pergunta por excelência é aquela que se refere às próprias origens, há uma história que contém todas as histórias... a história de quando eram pequenas, de quando ainda estavam na barriga da mamãe, a história do nascimento delas… respondem a necessidades profundas, de entender quem são, por que estão aqui; revelam terem sido desejadas, serem reconhecidas, numa palavra: amadas.

Os pais, hoje, são, muitas vezes, descritos como "pobres de histórias", como se um importantíssimo fluxo de troca de histórias entre as gerações se estivesse secando. Nas famílias já seriam raros os momentos narrativos, as nossas histórias, mas eles são preciosos.

A necessidade de histórias. A faculdade de contar histórias como uma constante humana

Contar histórias é o que mais nos distingue enquanto seres humanos, um traço tão característico do homem, comparável à postura ereta ou ao polegar opositor. É uma necessidade primária. Não há civilização que não tenha manifestado essa necessidade e encontrado formas para dizer-se, contar-se, explicar-se, e isso ocorre através da narrativa.

O fogo ao redor do qual povos de todo o mundo e de todas as épocas se reuniram em busca de conforto e calor é uma imagem do nosso eu profundo.

A faculdade de narrar é uma constante humana que atravessa o espaço geográfico e atravessa o tempo. A narrativa é "como a vida, existe por si mesma, é internacional, trans-histórica, trans-cultural" (R. Barthes).

Portanto, contar é uma arte antiga, e responde a necessidades profundas: ajudanos a compreender o que é entender e ouvir ao mesmo tempo; a compreender e a compreender-nos, a dar sentido e significado ao mundo que nos circunda e ao nosso mundo interior. Narrar significa escutar o mundo através da imaginação, reencontrando nas palavras o sentido do que acontece.

Até mesmo, segundo Goethe, a vida em si é "indiferente", ou seja, sem sentido; a dimensão do sentido é dada pela língua dos homens e suas histórias.

Portanto, narrar é uma atividade poética (de poiesis: "fazer", "criar"), uma atividade que, embora imitando a vida, cria algo que antes da vida não existia (P. Ricoeur). A faculdade de narrar é, em síntese, parte de nós. Limitados no espaço e no tempo, confiamos nas histórias para transcender os limites da nossa realidade e para elaborar a nossa experiência, para reconhecer-nos e fazer-nos reconhecer.

As histórias conectam entre si coisas, nomes e acontecimentos. A infância em particular, vive de histórias. Para as crianças, cada coisa tem uma história. As crianças são "novas do mundo"; por meio das histórias, o mundo apresenta-se, dizendo quem é (P. Jedlowski).

A necessidade de narrar e de contar sobre si mesmo para compreender e dar sentido (para si, para o mundo, para os eventos)

Contar histórias é uma forma de interpretar o que nos acontece, encontrar sentido no que fazemos, dar significado não apenas a um evento, mas a categorias de eventos. A abordagem à qual faço referência é a chamada "pedagogia narrativa", que remete a autores como Jerome Bruner (a busca de significado), Haward Gardner (as inteligências múltiplas), aos italianos Duccio Demetrio (a autobiografia), Andrea Canevaro (o pano de fundo integrador); a uma prática de trabalho difundida e experimentada pelo MCE Movimento de Cooperação Educativa e pelo CEM (Centro de Educação para a Mundialização).

Conforme o pensamento de Bruner, muito sinteticamente, aprender é apreender, apreender é entender, entender é construir significados; a narração propicia, estimula e facilita a construção de significados.

Contar histórias é, portanto, um princípio estruturante dos processos e das experiências de vida. Segundo Bruner, a criação do eu é uma arte narrativa: a nossa identidade é criada e recriada através da narração, é um produto do nosso narrar e não uma essência da nossa subjetividade. O eu não é dado a conhecer-se intuitivamente e, portanto, temos necessidade de falar de nós mesmos, de inventar histórias de quem somos, sobre o que aconteceu e por quê.

Se perdêssemos a capacidade de narrar, "não conseguiríamos mais viver dentro de nós mesmos…porque para organizar e entender quem somos, temos que nos narrar". (A. Tabucchi)

Certamente todos vocês já precisaram contar, para si mesmos ou para qualquer outra pessoa, o que lhes aconteceu, para encontrar um sentido para vocês, para atribuir-lhe um significado; às vezes, para torná-lo mais suportável ou, seja como for, para conseguir encará-lo. Também nesse sentido se fala de "função salvífica" das histórias. A trama das narrativas permite dar forma a tantos eventos da realidade nos quais estamos mergulhados, muitas vezes difíceis de serem expostos e compreendidos. As histórias tentam representar experiências dolorosas, conflituosas, mas importantes, formadoras, que precisam ser transformadas em palavras. Por intermédio do recurso da linguagem simbólica e da metáfora, podemos reencontrar e reelaborar as nossas experiências, dar a elas uma forma, sentir-nos legitimados para expressá-las. As histórias permitem-nos isso, falar de algo que nos diz respeito pessoalmente, que nos toca intimamente, sem expor-nos; reencontrar, nas experiências dos outros, a nossa. Aquilo a que eu não consigo dar forma me domina, me inquieta, me deixa refém dos fatos. O que consigo reelaborar e contar adquire um sentido, que me abre para um universo de possibilidades. Como nos lembra Bichel, "toda história tem a capacidade de tornar leve o mundo [...] é consoladora. Aquilo que encontra uma forma perde o aspecto ameaçador do caos".

O simples fato de que nas histórias haja um começo e um fim dá às crianças segurança. A história é uma espécie de quadro que delimita o mundo. Oferece às crianças um horizonte simbólico no qual é possível depositar a própria experiência.

Narrar é abrir mundos possíveis

Muito já se disse e já se esccreveu sobre a importância de contar histórias para as crianças. Viver os anos da infância mergulhados num mundo de histórias significa, segundo alguns autores, crescer mais sadios: a reserva de histórias acumulada na infância tornaria as crianças capazes de representar a própria experiência em termos de história; de não se deixar ferir demais pela dureza da vida; de transformar as pequenas coisas do dia a dia; de habituar-se a ativar processos criativos, a estabelecer com os outros um contato verdadeiro e vital, a apropriar-se das experiências frustrantes, a transformar a passividade em atividade.

As histórias exercitam o pensamento das crianças para serem menos rígidas, menos ligadas a mecanismos de causa e efeito. Quando se constroem histórias, não há um único caminho de desenvolvimento do núcleo narrativo, podem se tomar direções distintas e encontrar diferentes respostas... e, portanto, não apenas uma verdade; e este é um conteúdo importante a ser oferecido às crianças. A comunicação narrativa não utiliza a explicação, o modelo explicativo conforme o qual tudo está já previsto, as perguntas e as respostas, o ponto de partida e o ponto de chegada, mas privilegia justamente a narração e, com esta, a busca compartilhada do sentido e do significado a ser atribuído à experiência.

A riqueza das nuances contidas nas histórias propicia o contato com o universo do possível. Nas histórias, não há apenas um único modo de desenvolvimento, não há um final apenas; há provas a serem superadas, dificuldades, perigos, perdas, mas sempre há uma encruzilhada na qual se deve fazer uma escolha; há pistas na trilha; há luzinhas no fundo do bosque; há ajudantes mágicos, temos apenas que saber reconhecê-los. É importante iniciar as crianças nesses segredos, acompanhá-las no mundo das histórias, dar a elas provisões suficientes para que possam atravessar o bosque sozinhas e sair dele mais fortes.

O imaginário de cada um de nós nutre-se e expande-se graças à exploração dos mundos que as histórias nos descortinam. Quando ouvimos uma história, estamos simultaneamente em dois mundos: o físico, no qual ocorre a narrativa, e o imaginário, no qual se desenrola a história... Contar uma história é abrir o mundo para a imaginação e, portanto, desvelar mundos possíveis. "Enquanto conto histórias, não me ocupo da verdade, mas da possibildade da verdade. Enquanto houver histórias, haverá ainda possibilidades" (P. Bichsel).

Para isto servem as histórias: para multiplicar a vida... "São naus para atravessar fronteiras" (P. Jedlowski). As histórias atenuam o sentimento de finitude, o limite humano, porque podem representar o que não é mais, o que está em outro lugar e o que é possível apenas no reino da fantasia. Imersos em outro lugar da história, somos também outro e, ao mesmo tempo, somos, na verdade, nós mesmos.

O intercâmbio narrativo como reconhecimento da identidade – dar a voz e ouvir

A história está estreitamente ligada à escuta. A intensidade e a veracidade da história dependem da qualidade e da autencidade da escuta. Sentir-se ouvido possibilita narrar e narrar-se a si mesmo. Está em jogo algo muito profundo: a necessidade de sentir o reconhecimento da própria voz e, com ela, a própria existência. Também por isso é tão importante contar histórias para crianças e ouvir o que as crianças nos contam.

A necessidade de reconhecimento é uma motivação de fundo para todas as nossas ações, uma necessidade muito forte na infância, mas que nos acompanha por toda a vida. O primeiro desejo que anima o narrador é ver reconhecida a própria existência por parte do destinatário da sua história. A coisa mais importante na narrativa, como na vida, é ter um interlocutor. A atenção e o interesse do destinatário manifestam um reconhecimento, que é o contrário do desprezo ou daquela forma especial e sutil de desvalorização que consiste em não escutar.

Narrar-se e escutar-se restitui a cada um a própria individualidade: assumindo o compromisso na troca narrativa, cada um pode reconhecer que o outro é o outro realmente, com a diferença, a imprevisibilidade e a importância que lhe competem enquanto ser único. Prestar-se à narração é respeitar-se reciprocamente. A identidade cresce à medida que aumenta a capacidade de narrar as próprias experiências e de escutar as dos outros.

Dar uma base narrativa à educação significa, então, concebê-la não apenas como tempo e lugar das explicações, da transmissão do conhecimento, mas também da escuta recíproca emtre sujeitos que narram, cuja identidade é, antes de mais nada, uma identidade narrativa. Significa, portanto, em nossos serviços educativos e nas nossas escolas, valorizar o pensamento narrativo, o mais antigo e universal e, no entanto, o menos explorado.

Ler livros para dar de presente às crianças um reino todo delas

Muitas reflexões que fiz sobre a narrativa valem também para a leitura. Ler um livro para uma criança equivale a dedicar-lhe tempo e atenção, compartilhar algo importante; é, portanto, uma ocasião privilegiada no plano das relações.

Há, no entanto, algo específico que vale a pena acrescentar sobre a leitura e o encontro entre as crianças e aqueles objetos atraentes e misteriosos que são os livros.

Proponho a vocês um breve texto de Elias Canetti, extraído de um livro lindo: A língua salva. História de uma juventude:

Meu pai lia todo dia o jornal e era sempre um momento solene quando o folheava lentamente… Assim que começava a ler, não me dirigia mais um olhar sequer […]. Eu tentava descobrir o que o atraía tanto naquele jornal; no começo, pensava que fosse o cheiro e, quando estava sozinho e ninguém me via, subia na sua poltrona e cheirava avidamente as páginas. Mas depois me dei conta de que, para ler, ele movia lentamente a cabeça para a direita e para a esquerda ao longo da folha, e tentei imitá-lo ficando atrás dos ombros dele, sem, no entanto, ter diante dos olhos a página que ele tinha nas mãos. […) ]Uma vez uma visita que tinha acabado de entrar o chamou, ele se virou de repente e me pegou imitando os movimentos de uma leitura imaginária. Então, antes mesmo de atender a visita, voltou-se para mim e me explicou que a coisa mais importante eram as letras, todas aquelas letras minúsculas sobre as quais apontava o dedo. Logo eu também as aprenderia, prometi a mim mesmo, e daquele modo ele despertou em mim uma sede insaciável pelas letras do alfabeto.

As formas de viver a relação com a leitura e com os livros durante a infância são tantas: olhar as figuras, folhear as páginas, descobrir a magia das ilustrações, mergulhar na escuta de uma voz que lê … até chegar à leitura propriamente dita, à leitura autônoma das crianças. A leitura descortina mundos, permite conhecer o que aconteceu e o que se pensou antes de nós, longe de nós, faz-nos sentir menos sós, presenteia-nos com um reino todo nosso que ninguém poderá nos tomar.

Para que essa magia ocorra, temos que acompanhar as crianças ao longo de um percurso que hoje, como adultos, parece-nos óbvio e talvez tenhamos nos esquecido de que também nós o vivemos. Acompanhar as crianças através de passagens importantes no plano simbólico, que as levam a atribuir aos signos signficados, a descobrir que aquelas marquinhas pretas na folha são palavras, que cada palavra corresponde a um objeto, uma ação, uma pessoa, uma situação, um estado de espírito… e que uma ao lado da outra se tornam sequências de acontecimentos e, portanto, histórias.

Já é conhecido, e não apenas porque escreveu Pennac, que o verbo ler não se conjuga no imperativo e que, portanto, em nenhuma idade a leitura pode ser imposta; e, apesar disso, é igualmente verdade que a educação para a leitura, aquele longo e delicado percurso que tentamos delinear, não pode ser deixado ao acaso.

Para que as crianças sejam colocadas em condição de considerar a leitura uma atividade prazerosa e desejável, é necessário, antes de mais nada, que tenham ao seu lado adultos atentos, críticos, conscientes, apaixonados, eles também, pela leitura.

Emerson disse: "O que você faz fala tão alto que não me deixa ouvir o que você diz". A promoção da leitura é muito condicionada pela atitude do adulto. Pensemos no pai de Elias Canetti, que lia o jornal todo dia e quando o folheava lentamente criava um momento solene, um ritual, assim que começava a ler, "não me dirigia mais um olhar sequer...". A motivação e o interesse do adulto, portanto, enquanto condição para fazer crescer a motivação e o interesse das crianças.

Sobre a importância do poderoso papel que têm os pais e os adultos, Canetti nos diz mais. Voltemos a seu pai e vejamos:

Já ia à escola há alguns meses, quando aconteceu algo solene e excitante que determinou toda a minha existênca depois. Meu pai me trouxe um livro. Me acompanhou sozinho até o quarto dos fundos onde dormiam as crianças e o abriu. Era The Arabian Nights, As mil e uma noites […]. Papai me falou em tom sério e encorajador e me disse como seria bom ler aquele livro. Ele mesmo me leu em voz alta uma história: todas as outras eram tão bonitas quanto esta. Eu tinha que tentar lê-las, sozinho, e depois à noite contá-las para ele: quando tivesse terminado aquele livro, ele me traria outro. Não precisou dizer duas vezes e, mesmo tendo acabado de aprender a ler na escola, me lancei sobre aquele livro maravilhoso e toda noite tinha algo para contar-lhe. Ele manteve a promessa, toda vez havia um livro novo, assim nunca precisei interromper, nem por um só dia, as minhas leituras. Era uma uma coleção de livros para crianças […] lembro-me de todos eles: após as mil e uma noites vieram as fábulas dos irmãos Grimm, Robinson Crusoe, as viagens de Gulliver, os contos de Shakespeare, Don Quixote, Dante, Guilherme Tell. […] quase tudo aquilo do qual mais tarde se nutriu a minha existência estava já contido naqueles livros, os livros que li pelo amor de meu pai no meu sétimo ano de vida. […] Toda vez que acabava um livro, discutia sobre ele com meu pai e, às vezes, me entusiasmava a tal ponto que ele tinha que me acalmar. Mas ele nunca me disse, como normalmente fazem os adultos, que as fábulas não são verdadeiras; e por isso eu lhe sou particularmente grato, talvez eu as considere verdadeiras ainda hoje. […] O Inferno de Dante na verdade me inspirou alguns sonhos ruins: Quando ouvi minha mãe dizendo: "Jacques, você não devia ter dado isso para ele, é muito cedo", tive medo que papai parasse de trazer-me os livros e aprendi a esconder meus sonhos. Acho que mamãe também via uma relação entre os livros e minhas conversas frequentes com os personagens da tapeçaria. Foi o período em que menos gostei de minha mãe. Eu era esperto o bastante para intuir o perigo e talvez não tivesse abandonado tão hipocritamente minhas conversas em voz alta com os personagens da tapeçaria, se meus livros e conversas não fossem então a coisa mais importante do mundo.

E continua, em seguida: "Meu pai, no entanto, não se deixou desviar de forma alguma e depois de Dante tentou com GuglielmoTell: foi naquela ocasião que ouvi pela primeira vez a palavra liberdade".

Nesse texto está tudo: a seriedade e o encorajamento ("papai me falou em tom sério e encorajador"); a leitura em voz alta; a centelha que irrompe e acende a necessidade incontrolável ("aconteceu algo que determinou toda a minha existência depois"); a escolha competente e ampla dos textos e dos autores (as mil e uma noites, as fábulas dos Grimm, os contos de Shakespeare, Don Quixote, e até mesmo Dante…); o fato de não cair na superproteção e na presunção de saber sempre o que é melhor para as crianças ("não é um livro adequado para esta idade"), de não cair na tentação de colocar as crianças em alerta ("fábulas não existem").

Se não conseguimos entender o quanto é verdadeiro o sentimento das crianças, suas fantasias, elas manterão escondidos de nós seus sonhos ("aprendi a esconder meus sonhos...foi o período no qual gostei menos da minha mãe"). E para tranquilizar as crianças, dizemos para elas: "não há nada a temer, não há nenhum monstro embaixo da cama". Se as crianças não se sentem levadas realmente a sério, não se sentirão legitimadas a expressar suas emoções, não nos falarão mais delas mesmas e ficarão sozinhas enfrentando os monstros. O medo deve ser levado a sério. Em vez de "não tem que ter medo", a mensagem pode ser "sei que está com medo, mas pode enfrentá-lo, pode superá-lo porque eu estou com você". Esta é a presença séria e encorajadora da qual as crianças precisam ("quase tudo aquilo do que mais tarde se nutriu a minha existência já estava contido naqueles livros, os livros que li pelo amor de meu pai").

Há tanto nesse texto que poderíamos falar dele por dias inteiros.

O presente de uma história

Mais uma coisa que digo sempre aos pais e aos professores: não transformemos o livro, a leitura e o contar histórias em mecanismos de chantagem, de punição, de recompensa e, portanto, mais uma vez, de controle sobre as crianças. O caráter de absoluta gratuidade da dimensão narradora deve ser preservado... Nós todos tendemos a colocar algo como prêmio, a pedir algo em troca. Mas ler e contar são PRESENTES que oferecemos às crianças. O presente de uma história não pede nada em troca. A "doação" é por si mesma acolhedora, é um cuidado.

Voltemos, então, à pergunta com a qual iniciamos. POR QUE LER E CONTAR HISTÓRIAS PARA AS CRIANÇAS? Os porquês são tantos: -Para propiciar os processos de representação simbólica, estimular as crianças a extrair significados de um texto, dar sentido às imagens.

- Para estimular o desenvolvimento da linguagem.

- Para propiciar a capacidade de escuta e concentração.

- Para despertar a curiosidade, mola propulsora da aprendizagem, do conhecimento. -Para estimular sua imaginação, intensificar suas emoções, alargar suas mentes. Os porquês são tantos, mas acrescento mais um: -Para dar um presente às crianças. Pode parecer uma resposta simples demais e talvez um pouco ingênua, mas acredito que tenha um grande valor.

Recebido em 22 de dezembro de 2010 e aprovado em 25 de março de 2011.

Tradução: Regina Célia da Silva. Revisão técnica: Marcia Gobbi

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    31 Ago 2011
  • Data do Fascículo
    Ago 2011

Histórico

  • Recebido
    22 Dez 2010
  • Aceito
    25 Mar 2011
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