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Apresentação

DOSSIE

HISTÓRIAS E SENTIDOS DA LEITURA PARA PROFESSORES EM FORMAÇÃO

Professora do Departamento de Ensino e Práticas Culturais (Deprac) e membro do Grupo de Pesquisa Trabalho Docente na Formação Inicial (Aula) da Faculdade de Educação da Unicamp, Campinas, SP, Brasil. roap@uol.com.br

Os artigos que compõem este dossiê são o resultado de reflexões e investigações a respeito dos sentidos da leitura para professores em formação e das condições de produção em que tais sentidos vêm sendo constituídos.

Conduzidos por pesquisadores oriundos de formações diversas (Física, Química, Biologia, Letras e Pedagogia), que atuam como docentes em cursos de Licenciatura, em diferentes instituições de Ensino Superior, esses estudos nasceram das críticas, compartilhadas por seus autores, sobre as condições em que a leitura tem sido produzida na escola básica. Existe, ainda, o reconhecimento de que também na formação inicial de professores se enfrentam dificuldades e desafios decorrentes da diminuição da leitura e das modificações por que passaram os modos de ler, nas últimas décadas, mesmo entre os estudantes das carreiras de humanidades, sob a influência dos novos meios de informação e comunicação e da hegemônica tendência utilitarista dos saberes, que reduz a leitura à busca de informações úteis (ou necessárias) à execução das tarefas escolares ou profissionais.

Neste cenário, interessados em apreender como a leitura é significada pelos estudantes, futuros professores, e entendendo que o processo de formação profissional inicial - como uma instância de compreensão de novas sociabilidades, de vivência de círculos de pertencimento mais amplos, de distanciamento dos modos de pensar e viver cotidianos - beneficia-se das mediações da leitura, os estudos ora reunidos procuraram identificar e analisar potencialidades formativas dessa prática cultural, para além daquelas que a consolidaram como "ferramenta pedagógica", convergindo na compreensão da leitura como prática social que não prescinde da materialidade daquilo que se lê e da exterioridade das relações sociais em que o ato de ler se produz.

Com exceção do último artigo deste dossiê, que se inscreve nas contribuições do interacionismo sociodiscursivo, privilegiando uma análise de caráter mais cognitivo, os demais se assentam em uma concepção de linguagem tributária das contribuições da Análise do Discurso francesa, que focaliza a linguagem como produção social que mediatiza as relações entre homem e realidade e entre homens socialmente situados.

Dessa perspectiva, a linguagem é lugar de conflito, de confronto ideológico, de luta, mesmo, pela possibilidade de tomar a palavra e de negociar, abafar ou explicitar os sentidos contraditórios que nela se entrecruzam e lutam. Nesse sentido, a história não é contexto, pano de fundo explicativo da situação de produção da linguagem, mas interação viva das forças sociais nela inscritas, que é passível de ser apreendida pela análise semântica das relações entre discursos.

A relação entre discursos - interdiscurso - é também constitutiva da linguagem. Há sempre uma relação entre o já dito, o que se está dizendo e o que se quer dizer. Todos os discursos constituem-se a partir de outros, que os precedem e que os sucedem, respondendo a eles, antecipando-os e sustentando sua possibilidade de significação, em um movimento de adesões, recusas ou acordos; de aprovação, reprovação ou polemização; de reprodução ou de ressignificações; de explicitação, deslizamentos ou apagamentos de sentido.

O interdiscurso, segundo Pêcheux (1975), é definido como aquilo que fala antes, em outro lugar e independentemente; ou seja, a memória discursiva, o saber discursivo que torna possível todo dizer e que retorna sob a forma de pré-construído, o já dito, que está na base do dizível, sustentando cada tomada de palavra.

O fato de que há um já dito, que sustenta a possibilidade mesma de todo dizer, é fundamental para compreender o discurso em sua relação com a língua, com os sujeitos e com a ideologia.

Embora se considere a língua, na sua materialidade, como essencial à analise dos sentidos produzidos, a Análise do Discurso não assume sua autonomia absoluta enquanto sistema, nem que ela seja um código, um instrumento de comunicação ou um suporte do pensamento, ideologicamente neutros. Os sentidos não estão predeterminados por propriedades da língua. Ela funciona ideologicamente e suas formas (materiais) estão investidas nesse funcionamento, que é parte da natureza da sua ligação com o mundo (com a ordem social, com a história). No discurso, materializa-se o contato entre o linguístico, entendido como a língua, enquanto um sistema de regras, de categorias, e o não linguístico - a situação imediata de interlocução inscrita na história e na ideologia.

Com base nessas teses, a Análise do Discurso problematiza a noção tradicional de leitura como sinônimo de decodificação, em favor de uma concepção que a considera como uma prática social de "atribuição de sentidos" (Orlandi, 1988), que se produz em relações intersubjetivas e que tende a ser plural e ambígua, pois não há uma relação direta entre signo-mundo-homem, nem uma relação unívoca, termo a termo, que torne os sentidos transparentes e prontos, nos textos, para serem apreendidos pelo leitor. Essa forma de conceber a leitura como uma atividade intersubjetiva desloca as figuras do autor e do leitor das posições em que eram colocados pela teoria da comunicação, bem como reconfigura a direção da relação entre eles e o processo de produção de sentido no ato da leitura.

A interação escritor-leitor mediada pelo texto instaura-se desde o momento inicial de sua produção, na medida em que aquele que escreve orienta seu discurso tendo em vista o destinatário (real e virtual), a quem se dirige pela antecipação de possíveis réplicas aos seus enunciados. Nesse sentido, o leitor não se situa apenas como um receptor dos enunciados daquele que escreve. Ele se inscreve no texto, tanto quanto aquele que o produz, orientando-o em suas escolhas e estratégias comunicativas.

Além disso, no próprio processo de sua produção, o texto remete a outros textos, com os quais dialoga, pois, sendo os sentidos historicamente construídos, eles remetem sempre a outros textos e a outros sentidos, reconfigurando a figura daquele que escreve como um enunciatário não solitário e que não é a origem dos sentidos que enuncia.

No ato da leitura, considerado do ponto de vista do encontro do leitor com o texto, longe de ser o receptor passivo que decodifica o enunciado, o leitor é seu coenunciador (Brandão, 1997), uma vez que o texto - qualquer texto - não se dirige a um ser privado de palavras. Nesse sentido, ler não é encontrar o sentido desejado pelo autor, mas "constituir e não reconstituir um sentido" (Goulemot, 1996, p. 108). Em sua atividade de elaboração dos sentidos do texto, o leitor compreende-o ativamente, cotejando-o aos sentidos que já o constituem, a ele, leitor. Sentidos esses que também remetem a outros textos. Assim, aquele que lê também não o faz solitariamente. O leitor lê acompanhado por outros textos. Sua relação com o texto é sempre mediada por outros textos.

Partindo desses pressupostos, os artigos reunidos neste dossiê voltam-se para três grandes questões, que se desdobram nas argumentações dos seus vários autores: que efeitos a materialidade histórico-discursiva da língua tem sobre a compreensão do que se lê? Como as memórias de leitura dos universitários estudados, constituídas ao longo de suas trajetórias, como leitores, medeiam a configuração de seus modos de ler na universidade? Como o que se lê e as finalidades pelas quais se lê medeiam o ato de ler?

A primeira questão é focalizada por Onice Payer no texto que abre este dossiê. A autora discute as implicações da materialidade histórico-discursiva da língua para a prática da leitura. Considerando que a memória da língua materna, predominantemente oral, e as formas da língua nacional escrita, que interpelam o leitor em uma relação com a língua atravessada por uma dimensão jurídica, produzem efeito nas práticas de linguagem, a autora procura descrever e compreender certos "processos de identificação sujeito/língua" que se dão através do modo como a memória da estrutura linguística intervém na produção de efeitos de sentido, interpondo-se à relação do leitor com o texto, participando, portanto, do processo de atribuição de sentidos na leitura. A segunda questão é focalizada nos textos de Assolini; Dresch, Leledeff e Dickel; Cassiani, Linsingen e Giraldi; e Oliveira. Esses autores discutem como as relações que os estudantes dos cursos de formação de professores estabeleceram com a leitura, ao longo de suas vidas, repercutem no processo de aprendizagem desses licenciandos, de forma particular, e em sua formação acadêmica, de maneira ampla.

Assolini elege como sujeitos de seu estudo os estudantes de Pedagogia. Trabalhando a partir de 112 entrevistas realizadas com estudantes de diferentes instituições de ensino superior de quatro cidades do interior paulista, ela analisa, ancorada nos pressupostos da Análise do Discurso, três recortes em que procura recuperar traços do processo de produção dos sentidos da leitura nos discursos proferidos.

Dresch, Leledeff e Dickel estudaram as experiências de leitura de alunos do curso de Letras. A partir das memórias resgatadas através da técnica de grupo focal e analisadas à luz da Análise do Discurso, elas discutem a relação entre as experiências de leitura dos alunos durante sua formação escolar e o modo como se enunciam como sujeitos leitores no curso superior. Os dados coletados revelam vínculos com a escrita ora muito densos e afetivos, geralmente associados à primeira infância e à família, ora de desencanto e aversão, relacionados à escola. Na universidade predomina uma postura de valorização e respeito para com a escrita, ligada a um comportamento crítico em relação a sua formação escolar e autocrítico enquanto leitor universitário.

Cassiani, Linsingen e Giraldi discutem as implicações das histórias de leitura dos estudantes nos diferentes entendimentos sobre ciência, tecnologia e sociedade por eles elaborados, compreendendo que esses discursos não apenas comunicam sobre tais conteúdos, mas que aquilo que se fala e como se fala da/sobre ciência e tecnologia produz efeitos de sentidos.

Finalmente, Oliveira analisa a leitura de um texto sobre o histórico da construção do conceito "fotossíntese" por alunos do curso de Ciências Biológicas, em que se solicitou o destaque daquilo que julgaram mais interessante no texto lido. Tomando a leitura como prática discursiva, a autora destaca, nos discursos proferidos, manifestações em relação ao desenvolvimento da ciência, no que se refere ao tempo para sua construção; à interação entre os conhecimentos; à relação com a tecnologia; e à simplicidade do pensamento e defende a inclusão da história da ciência na formação de professores.

A terceira questão é inicialmente focalizada por Almeida e Sopreso. Com o intuito de evidenciar que não se lê da mesma maneira um livro didático, um texto de divulgação científica ou um original de cientista, as autoras apresentam exemplos referentes à Física, argumentando que essas leituras mobilizam diferentes interdiscursos, embora realizadas por um mesmo indivíduo, pois supõem diferentes imaginários. Apoiadas teoricamente na vertente da Análise do Discurso, elas articulam, no texto apresentado, noções que possibilitam a organização de um dispositivo analítico para compreensão de leituras de diferentes tipos de produção.

O último artigo deste dossiê debruça-se sobre os efeitos que as finalidades atribuídas à leitura têm sobre o próprio ato de ler. Castelló Badia, Bañales Faz e Vega López abordam os processos cognitivos e os condicionantes sociais e culturais implicados na leitura destinada à produção de textos acadêmicos, destacando o quanto ela é dirigida pelas tarefas de compreender e sintetizar fontes diversas e múltiplas. No artigo, os autores optaram por realizar uma revisão dos principais resultados de investigações sobre a questão por eles destacada, no campo da psicologia, abordando as diferentes representações que a leitura destinada à produção de textos acadêmicos suscita nos estudantes e em seus professores e o que se destaca como mais problemático para os estudantes nesse tipo de atividade. Os autores finalizam o texto, derivando implicações dos resultados revisados para as práticas formativas.

Em conjunto, os artigos reunidos neste dossiê, tendo em comum a prioridade conferida às condições mediadoras da leitura, possibilitam uma aproximação das práticas e histórias de leitura vividas e de seus efeitos na constituição das identidades, pessoais e profissionais, em construção nos futuros professores.

Ainda que as condições mediadoras da leitura, no caso desses estudos, digam respeito a relações escolares, nas reflexões propostas, ela não é reduzida a um evento circunscrito à implementação de uma série de medidas e de prescrições pedagógicas. A escolarização é analisada como um dos contextos de produção da leitura, que adquire significado na sua relação com o conjunto de atividades sociais, igualmente dotadas de sentido, que constituem a vida dos sujeitos estudados.

Dessa perspectiva, as especificidades históricas da escolarização, entre as quais a de ter-se tornado, nas sociedades contemporâneas, uma condição-chave ao ingresso na cultura escrita, são reconhecidas, bem como o fato de que sua hegemônica valorização afeta a produção da leitura de um modo geral. Destacam-se, no entanto, as evidências, igualmente importantes, de que a escolarização não esgota os sentidos, a diversidade de formas e de finalidades ou o caráter formativo do ato de ler em condições extraescolares de produção, sendo também afetada por elas.

Sem resultar em prescrições e sem expor um pensamento uniforme sobre as questões de que parte, o conjunto de trabalhos evidencia ambivalências em relação à leitura. Ela é valorizada pelos estudantes como possibilidade de ampliação dos universos de referência do sujeito, por permitir o acesso ao saber e a apropriação da língua, mas também como uma experiência dolorosa de confrontação com os modos de dizer, de viver e de valorar que são próprios do grupo social a que o leitor pertence ou do lugar em que ele vive. É reconhecida como mediadora da percepção da alteridade, do conhecimento de si, da construção de uma identidade coletiva; como educadora da sensibilidade; como possibilidade de resistir ao caos interior e à exclusão social, mas também representa uma fonte de conflitos com os tempos de trabalho e de vida, com os critérios de utilidade e de produtividade que regem as atividades dos sujeitos nela envolvidos.

Essas compreensões menos idealizadas, naturalizadas ou estritamente técnicas do ato de ler, apreendidas a partir das condições de produção da leitura, indiciam benefícios que dela podem ser esperados no contexto da formação de professores, bem como impasses e limites nela implicados. Elas também permitem a crítica das práticas de leitura vigentes e sinalizam o que é desejável e possível mudar na escolarização, de modo a assegurar, a cada leitor, a compreensão dos limites e dos poderes da palavra escrita na expressão de pensamentos e desejos em sociedade.

  • Apresentação

    Roseli A. Cação Fontana
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      13 Maio 2011
    • Data do Fascículo
      Abr 2011
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