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Com a cabeça nas nuvens

Head in the clouds

DOSSIÊ

ENTRELUGARES DO CORPO E DA ARTE

Com a cabeça nas nuvens

Head in the clouds

Roberto Gambini

Analista formado pelo Instituto C.G.Jung, de Zurique. Autor, entre outros, de A voz e o tempo - reflexões para jovens terapeutas, publicado pela Ateliê Editorial, pelo qual recebeu, em 2009 o prêmio Jabuti, 1º lugar na categoria Educação, Psicologia e Psicanálise

RESUMO

O título deste artigo propõe uma reflexão: para sermos criativos é preciso sair de nosso estado habitual de consciência para entrar em outro, que chamei de nuvem. Nesse estado, nossa maneira de perceber o mundo, a vida, a alma e a nós mesmos, nos chega através de um canal sutil, de maneira não condicionada pelos clichês culturais e nos impele a expressar essa captação subversiva do real, que é o atestado de qualidade da arte.

Palavras-chave: Arte; processos de criação; Educação; psicologia junguiana.

ABSTRACT

The title of this article invites us to a reflection: in order to be creative, we must leave our common state of consciousness to get into another state, herein called "cloud". In this condition, our perception of the world, our lives, our souls and our own subjectivities come to us through a subtle channel, in a way that is not conditioned by the cultural clichés and, as such, impels us to express this subversive caption of reality, which certificates the quality of art.

Key words: art; creational processes; education; Jungian psychology.

O título desta palestra1 1 . Palestra proferida em 18 de outubro de 2008, no Encontro dos ex-alunos de Prática de Ensino da Arte da Faculdade de Educação da Unicamp. foi inspirado pela foto de um trabalho do artista Marcelo Moscheta: uma caixa de acrílico com um chumaço de algodão em seu interior, vagamente lembrando uma nuvem. Eu olhei para a foto e imediatamente surgiu o título que procurava - "Com a cabeça nas nuvens."

Está chegando a hora do pôr do sol e vamos passá-la juntos, embora não lá fora, mas dentro desta sala, vocês sentados nessas cadeiras de auditório e eu aqui, nesta mesa de palestrante. Não faz mal. Tudo o que espero é fazer brilhar a centelha de nossa imaginação. Fiquei contente de ver algumas das apresentações dos trabalhos que vocês desenvolvem com crianças, porque, mesmo que soe piegas, é bom e verdadeiro lembrar que a esperança de ocorrerem mudanças na mentalidade e nos valores coletivos vigentes está depositada nas crianças. Ora, elas precisam de educadores, e no trabalho que vocês estão fazendo percebi talento, inovação, vontade de educar - como, por exemplo, na apresentação do Tomás Vega, essa proposta importantíssima de deixar uma criança tornar real e tangível sua fantasia, porque aí pode estar brotando, por ter sido acolhida e incentivada a revelar-se, a semente da individuação dessas crianças, da árvore única que poderão vir a ser quando chegar a hora. Educar, para mim, é dar terra para a criança plantar sua própria semente e poder cuidar dela. Essas crianças, que vi e com quem empatizei nos filmes que vocês mostraram, estão com a cabeça nas nuvens - e minha tarefa aqui é explicar o que entendo por isso.

Não vou aqui falar de tinta, pincel, têmpera, guache, atelier, cavalete, espaço, museu, teoria, e muito menos de estética - meu assunto é outro. Quero falar daquele momento raro e fundamental em que nossa mente se abre para o sublime. É esse estado mental que chamei de estar com a cabeça nas nuvens que em geral, como se sabe, é um termo pejorativo. Ainda ouço os ecos das vozes professorais: "Onde você anda com a cabeça? Por que não presta atenção? Você está com a cabeça nas nuvens? Anotou a lição de casa?" Pois é recomendável, como nos pedem, determinam e recomendam, que a cabeça esteja na terra, na assim chamada realidade, naquilo a que se referem os jornais e os noticiários de televisão, e não fora daqui, no mundo da lua, flutuando nas nuvens.

Mas a coisa é séria. Para algumas ovelhas negras, é precisamente nas nuvens que sua mente encontra morada e referência, é lá e somente lá que ela se reconhece, e já nem se trata mais de estar: a mente dessas flores fora do catálogo que são os artistas tem que ser como nuvem.

A mente é um sistema de andaimes interligados, uma amarração de milhares de fios que facilmente se embaraçam, um arquivo cheio de pastas, uma Biblioteca de Alexandria, uma estrutura de nomeação de matéria tanto classificada e organizada quanto disforme e cambiante. Uma construção completa, com fundações, pilares, andares, encanamentos, portas de segurança, saídas de emergência, sistemas de alarme: se alguma coisa escapar da adequada programação de circuitos neuronais, assim como preconiza o manual de sanidade e equilíbrio mental e a classificação internacional de doenças da mente, o alarme dispara e a vizinhança - a família aí incluída -, os órgãos responsáveis pela ordem pública e pelo decoro entram em alerta. Cadê o louco?

A mente contemporânea, para cuja formação e titulação se pagam fortunas e se gastam anos em carteiras escolares, vai aos poucos se estabelecendo, se impondo, se enrijecendo, calcificando, cristalizando, engessando, oficializando, se doutorando, e você faz o quê? Orgulha-se de ter construído uma mente estável, bem formada e informada e, acima de tudo, saudável e com o pé no chão. Aí então se pode proclamar: Minha mente é doutora, é sólida como uma rocha, nada a abala, e não me venham com novas teorias iconoclastas, não me venham com novas experiências, não me façam tomar substâncias, porque sei pensar direito, sei raciocinar, venci a batalha sobre a ignorância, as trevas e o caos.

É evidente, apesar da caricatura que acabo de fazer, que mentes educadas são fundamentais para o funcionamento e a evolução da cultura racional e da sociedade, aplicando-se ao desempenho satisfatório de toda uma gama enorme de papéis e funções. Certamente, essa mente é necessária para certos fins. Mas não é a que faz de alguém um artista, um poeta, um visionário, um inovador, um educador de vanguarda. Qual é o contrário da mente doutora, sólida e inabalável como um edifício de concreto armado? É aquela feita de nuvem, desprovida de materialidade, sem dureza nem forma fixa. Ela se deixa levar pelo vento, vai mudando de cor e de espessura, e é impossível prendê-la a uma âncora. Ela plaina, paira, sobrevoa, desce ao chão e novamente se eleva até as alturas. Não dá para prendê-la numa caixa - e por isso o instigante trabalho do Marcelo me levou para esse estado de divagação reflexiva. Uma nuvem dentro de uma caixa? Paradoxo. Alusão crítica para se pensar no absurdo. O que se pode pôr dentro de uma caixa, em contenção, sob domínio, conservado e arquivado? Luz do sol, chuva, orvalho? Não. Ferro velho, minerais, um animal em decomposição? Sim. Mas nuvem não dá. Como a alma, ela é inaprisionável.

Pensando nos artistas, o que me interessa é acompanhar o processo que transforma mentes em nuvens. Por quê? Porque a arte é uma antiga e preciosa via de obtenção de novos conhecimentos: realidades não nomeadas, terrenos não mapeados, valores ainda sem contorno e definição, sensações não catalogadas, estados de espírito incomuns, maneiras novas de estar no mundo e de ser humano. A arte leva a essas dimensões, as descobre, as inventa. Não se trata, portanto, de buscar o lúdico, o entretenimento, o decorativo ou apenas o belo porque belo. A arte é uma via antiquíssima de conhecer nosso mundo interno tanto quanto de registrar o externo e, por estar apoiada na imaginação e na fantasia, na verdade constitui uma dimensão da realidade. Ela não é mero espelho desta, não é cópia da vida, nem seu reflexo, nem comentário inteligente: a arte cria realidades. Há, portanto, artistas e artistas. Há pessoas que se autodenominam artistas, mas sua cabeça está nas teorias, discutindo estética ou ocupada com os detalhes da construção de uma persona social para facilitar as coisas. Muitos querem ser artistas. Mas o artista mesmo não quer nada, quer apenas poder ser e fazer, porque não consegue ser outra coisa ou fazer algo que não seja arte. Quem tem cabeça de nuvem não pode ser gerente de banco, não pode ser médico, não pode ser administrador de empresa. O artista não tem escolha. Nossa vocação, sejamos o que formos, é nos tornarmos aquilo que estamos fadados a ser. Sem atalhos nem imitações.

Neste momento em que lhes falo, estou interessado em refletir sobre a vocação do artista. Tive, portanto, que desenvolver algumas idéias para meu próprio uso: quem, segundo penso, é um artista? A primeira teoria que desenvolvi é que o verdadeiro artista - não aquele que vai bater na porta das galerias para conseguir espaço e patrocínio para uma exposição; não aquele precipuamente preocupado com seu marketing pessoal ou ansioso para ser apresentado a possíveis clientes com bom poder aquisitivo - é alguém que abriga em sua psique um poço artesiano fundo o bastante para tocar aquele lençol freático que Jung chamou de inconsciente coletivo e para com ele fazer uma conexão criativa.

O inconsciente coletivo é uma camada - para usar uma imagem geológica - onde estão depositadas incontáveis formas-pensamentos, milhares de matrizes de comportamentos, um repositório imenso de imagens arquetípicas e pulsões instintivas comuns à espécie Homo Sapiens, transculturais e trans-históricas. Esses conteúdos acham-se como que depositados nesse lençol freático subterrâneo, podendo vir à tona de maneira criativa ou disruptiva, individual ou coletivamente. Uma pessoa acometida por um surto psicótico sofre uma invasão tão avassaladora de conteúdos desse tipo que seu ego literalmente naufraga, incapaz de carregar, e muito menos absorver, essa massa confusa de matéria mental humana não organizada. Nessa condição, com o ego inundado e destituído de suas funções, a pessoa em surto psicótico começa a falar uma linguagem mítica, desconectada da realidade e regida por uma lógica difícil de acompanhar. Aparecem com força em sua mente imagens que indicam a oposição entre o bem e o mal, figuras de regência, como o rei e a rainha, mandalas, que são estruturas organizadoras do caos, aparecem a luz e as trevas, serpentes, seres monstruosos, peixes, trovoadas, águas torrenciais. O inconsciente coletivo pode ser uma ameaça fatal à consciência organizada. Quem se atrever a expandir a própria consciência além dos limites que lhe correspondem (o ácido lisérgico, a mescalina, o peiote, o chá de cipó e outras substâncias alucinógenas podem facilmente provocar tal estado) poderá viver uma experiência análoga à de uma lâmpada que queima ao receber uma corrente forte demais. A consciência sobrecarregada explode em mil formas desconectadas. Cada época histórica suporta absorver certa porção de conteúdos do inconsciente coletivo, mas não tudo o que lá está contido e represado, não chegando nem a ser conhecido. Mas na dose certa, essa erupção de material inconsciente não integrado e não conhecido tem um papel renovador fundamental, seja para a consciência individual, seja para a coletiva.

Nossa consciência é, de tempos em tempos, abordada por algo vivo que com ela quer conversar, porque seu movimento é em direção a ela, sua intenção é penetrá-la. Como há um século descobriram Freud e Jung, o inconsciente quer tornar-se consciente. Em linguagem coloquial, é como se essa outra dimensão, a que quer entrar em cena, estivesse a provocar a consciência organizada e habitual com acusações do tipo: consciência, como você é limitada, como você é ingênua, como você é unilateral! Escuta um pouco, vou te mostrar que há mais coisas nisso que você chama de realidade do que você se dá conta, ouse abalar-se um pouco para reconstruir-se em outro patamar. Mas a consciência é por natureza arrogante e autossuficiente, ela se acha dona e controladora de tudo, rejeitando qualquer tipo de interferência proveniente de outras esferas de psique que ela encara como irracionais, caóticas ou simplesmente patológicas. Ora, essa outra dimensão da mente que com ela quer interagir não é nenhum espírito, nenhuma entidade metafísica, mas uma parte nossa, que chamamos de desconhecido ou de inconsciente, e que, por querer participar do jogo da percepção e do conhecimento, faz das suas todas as noites, maquinando sonhos; ou durante a vigília, tecendo sincronicidades, provocando inspirações, fantasias, atos inesperados. Há sempre um Outro querendo fazer parte daquilo que somos.

Em qualquer época histórica, o inconsciente coletivo de uma sociedade percebe que a consciência se exauriu, envelheceu, perdeu o prazo de validade, ficou anacrônica. Sua atuação consiste em fazer emergirem valores novos, como uma bolha de água subindo à superfície de um lago profundo. O inconsciente coletivo envia algo, evidentemente através de mentes pessoais que terão um papel renovador, que é aquilo que precisa e pode ser assimilado naquele momento da história pessoal ou coletiva. Por exemplo: dois mil anos atrás, uma vida humana valia muito pouco. No vasto Império Romano, matava-se e morria-se por nada. O inconsciente coletivo fez surgir um valor novo chamado amor ao próximo e o difundiu através das palavras inovadoras de um revolucionário pregador. E desses tempos para cá, o inconsciente coletivo fez vir à tona coisas tanto terríveis como maravilhosas, que atingiram a sociedade através dos místicos, dos profetas, dos loucos, dos visionários, dos poetas, dos alquimistas e dos artistas. Desse modo, começam a aparecer imagens, ideias, propostas, cuja função é renovar a consciência coletiva para que esta se mantenha viva, porque a consciência somos nós, e uma vez que a lei da evolução e da preservação das espécies faz com que as formas vivas se mantenham, é sempre preciso haver renovação. Quem renova a vida é o inconsciente, que nada mais é do que vida em estado bruto.

De tempos em tempos, um artista que tenha essa conexão artesiana com o inconsciente coletivo pesca algo novo, nunca visto, e o apresenta para a coletividade: por exemplo, Giotto, em 1300, pintando no alto das paredes de uma pequena capela em Pádua cenas do Evangelho em que, pela primeira vez, aparecia a perspectiva. Um pouco mais tarde, no Renascimento, aparece na pintura, novamente, algo que não era conhecido nos retábulos medievais: a profundidade, produto de uma descoberta técnica, mas, antes de tudo, mental ("La pittura è cosa mentale") de Leonardo da Vinci: se, na tela, você quer dar a impressão de que uma montanha está longe, pinte-a azul-claro, e não marrom ou verde-escuro. É o azul-claro, a cor do ar, que vai dar a impressão de que aquela montanha atrás da Monalisa está recuada no espaço longínquo. Tratase, sem dúvida, de uma descoberta técnica, mas que resulta de uma ideia que se manifestou na genial mente de Leonardo. Se eu fosse ensinar história da arte, eu não descreveria a produção cronológica das várias escolas, mas analisaria a emergência de percepções novas. O novo apareceu como, através de quem, de que forma relacionado com o espírito da época? Basta reparar como o rosto, ou o corpo humano, foi sendo representado de maneiras diferentes, não por razões estilísticas ou estéticas, mas primordialmente como fruto de uma mudança da consciência inserida no tempo. Como é que surgiram novas métricas e novos sentimentos na poesia, novas sonoridades na música, formas e volumes nunca antes vistos na escultura ou na arquitetura, novas maneiras de representar o eterno drama humano no teatro e os movimentos do corpo na dança?

O que estou dizendo é: algumas pessoas, que neste contexto chamo de artistas, trarão para a tona algo novo, ignorado e inacessível aos demais. Uma vez representado, configurado e apresentado à sociedade, o conteúdo emergente acaba afetando a cultura e nela se inserindo; aos poucos, as pessoas vão entendendo do que se trata, e, em decorrência, tem lugar uma fertilização e uma expansão da consciência coletiva. Posso, então, solenemente afirmar: toda sociedade precisa de artistas, porque periodicamente ela precisa ser renovada. E o artista, desde aquele que pintava imagens de sua imaginação no fundo rochoso das cavernas há trinta mil anos, sempre existiu.

Em nossos atuais tempos de crise, é mais do que urgente que todo aquele capaz de acessar esse reservatório humano de renovação, seja pela via da arte, da reflexão, da palavra, traga para a tona um olhar novo sobre as mazelas do mundo em que vivemos. Nossa época precisa de declarações, de ideias novas, de reversão de valores. Ela precisa virar o mundo pelo avesso, e essas ousadias irão aparecer inicialmente sob a forma de símbolos. O que é um símbolo? É a melhor representação de algo inconsciente que neste momento não pode ser representado de melhor maneira. Daqui a um tempo o símbolo mudará, concomitantemente com uma maior conscientização de seu conteúdo. É conveniente, portanto, estudar mitologia e símbolos comparados em várias culturas. Tenho dito a muitos terapeutas jovens que só munidos desses recursos é que se pode pesquisar e compreender sonhos e desenhos de crianças, porque sustento a hipótese de que as crianças sonharão com os símbolos que representam as inovações de que o planeta precisa. Nós sabemos que a criança tem um canal aberto, e a educação cumpre o nefasto papel de fechar com entulho esse canal de percepção sutil e a intuição. A ideologia pedagógica vigente é que esse fechamento é necessário para que a criança não fique com a cabeça no mundo das nuvens e seja devidamente condicionada para desempenhar os papéis que se esperam desses futuros cidadãos, responsáveis pela manutenção dos valores vigentes no sistema capitalista.

A ideia do poço artesiano foi a primeira em que me apoiei para conceber o que é um artista. Consideremos agora, em segundo lugar, que a arte é intrinsecamente subversiva, porque busca sempre o contrário do que é dado, o dentro do fora e o fora do dentro, a frente do atrás, o embaixo do em cima, o depois do antes. Isso é arte, e por que ela é assim? Porque ela é livre. Ela não está presa às leis que regem a máquina do sistema. Daí ela ser perigosa. Tudo depende do que é escolhido. Arte decorativa não é perigosa; ela deleita, acalma, aconchega e não subverte nada, pois essa não é sua intenção. Mas há outra que nos estremece, nos faz chorar, nos dá vertigens. Você sai na rua com ela na cabeça, remexendo as entranhas. Ela fascina. Encanta. Fui, certa vez, ver de perto um afresco de Piero della Francesca, em Monterchi, um vilarejo toscano nas cercanias de Arezzo. Durante a Segunda Guerra, para protegê-la, a população local a removeu da capela de um cemitério nos arredores e colocou o pedaço de parede que lhe servia de suporte no interior de uma pequena edificação construída para esse fim. Entra-se no escuro, uma luz se acende e, de repente, bem à nossa frente, lá está a Virgem Maria grávida no interior de um espaço redondo demarcado por uma pesada cortina, que dois anjos mantêm momentaneamente aberta, como se fosse para você poder vê-la por alguns segundos. Maria é retratada por Piero della Francesca como uma dama florentina. Na frente de seu vestido corre uma fileira de botões. Ela desabotoa os que fecham o tecido que recobre seu ventre, para onde aponta a mão, como a dizer: "Contemple, o sagrado está sendo gestado bem aqui dentro de mim." Seu olhar volta-se para o infinito. Quando a luz acendeu e eu vi aquela pintura, meus joelhos dobraram. Não sou religioso no sentido eclesiástico, não pretendia rezar, mas meus joelhos dobraram naquele preciso instante. Algo análogo ocorreu quando vi, em Paris, as duas salas elípticas, especialmente construídas para que Monet recobrisse sua parede sem ângulos de ninfeias flutuantes, de reflexos das nuvens na água e, num terceiro plano, a vegetação subaquática. Essa obra única e magnífica tem o poder de nos transportar para um estado de consciência distinto daquele que nos regia ao entrar no ambiente, mais sutil e refinado, mais perceptivo e sonhador. Para outros, essa experiência é provocada pela visão dos girassóis de Van Gogh, ou pela tela que representa o Nascimento de Vênus, de Sandro Boticelli. Pode ser uma peça de música. Um poema. Um livro. Um espaço planejado. Essa arte acelera o coração, nos faz suar, nos faz chorar, nos fascina, subverte nosso estado mental. Parece que essa arte sublime quer nos transformar, quer que sejamos outro. Sua subversão é fruto de impacto.

E o terceiro pensamento: a arte percorre um caminho que leva ao conhecimento, porque o artista que o trilha acredita tanto em sua própria percepção, naquilo que é real para ele, naquilo que sua imaginação lhe diz, que essa atitude ousada acaba por levá-lo ao encontro daquilo que era intuído antes de ter forma. É assim que ele cria, mas o resultado não é nem uma fantasia nem uma reprodução, mas uma descoberta. Como se só isso pudesse finalmente convencer a opinião pública, processos desse tipo estão atualmente sendo comprovados por estudos científicos. Eu trouxe aqui um livro maravilhoso, que se chama Proust era um neurocientista. A capa traz no centro uma madeleine, da qual emanam uns raios dourados de energia. Foi escrito por um jovem neurocientista de 25 anos, Jonas Lehrer. Na época em que escreveu seu livro, ele trabalhava em Harvard como assistente de um professor laureado em um laboratório de neurociência e conta, no prefácio, que era muito aborrecido ficar inativo por longos períodos de tempo enquanto esperava que terminasse o processo reativo dos elementos em experimentação. Enquanto esperava ocioso, resolveu ler, e perguntou-se: "O que vou ler? Boa literatura, coisas que nunca li". Começou então a ler Em busca do tempo perdido, enquanto esperava pelas tais reações no laboratório de neurociência.

Ao terminar a leitura da densa, longa e difícil obra de Marcel Proust, teve a clara intuição de que este, cem anos antes da neurociência, descreveu sem um único erro qual é o circuito neuronal da memória. A neurociência não tem nada a discordar ou acrescentar ao que Proust disse, ou seja, que a memória é involuntária e associativa. Quem nesta sala leu o primeiro volume da série, No caminho de Swann? Só uma pessoa. Nesse primeiro volume dos sete que compõem a série, como nos demais, o narrador é o próprio Proust, alguém que vivia com a cabeça nas nuvens e que em sua obra, rememorando, reconstrói passo a passo o mundo da infância, com seus rios adornados por ninfeias, com seus caminhos ladeados por macieiras em flor que ele especialmente apreciava, com suas torres de igrejas, os almoços preparados pela cozinheira da tia-avó, as visitas que falavam coisas que não lhe interessavam, os aromas, as luzes e as cores... Esse mundo perdido subitamente volta-lhe à memória quando adulto, quando, certo dia, sentindo o aroma da infusão de tília que por acaso tomava, o narrador lembra-se de uma tarde em que tomava esse mesmo chá com sua tia-avó Léonie, usualmente servido com uma madeleine (um biscoito típico francês) no pires. O menino costumava erguer a xícara, sentir o perfume da tília e pôr na boca com a colherinha um pedaço da madeleine embebida de chá. A recordação daquele instante preciso, motivada pelo odor do mesmo chá que bebia no presente, traz-lhe de volta a infância inteira, diz ele, como essas pastilhas japonesas de papel de seda compactado que, mergulhadas num líquido, abrem-se como uma flor de lótus. O olfato e o paladar, e não um esforço intelectual de reconstrução do passado, trouxeram de volta todo um mundo povoado de sensibilidades, vivências e impressões - não um fragmento, tudo. Proust é o mestre genial dos desdobramentos da memória. E esse jovem neurocientista, Jonas Lehrer, escreve em seu livro um capítulo em que demonstra como Proust foi capaz de descrever mecanismos da mente que a neurociência só veio a descobrir cem anos depois.

Nosso jovem autor aplicou o mesmo método para revelar descobertas feitas por artistas em outras áreas também, igualmente antecipando-se à observação científica. Um inusitado exemplo, dentre muitos outros, é sua análise da descoberta de uma capacidade gustativa até então não nomeada. Desde Aristóteles, aceitava-se sem contestação que a língua era capaz de sentir quatro sabores, o doce, o salgado, o amargo e o adstringente. Ora, Auguste Escoffier, chefe de cozinha francês que escreveu um livro clássico sobre o assunto em 1903, contendo cinco mil receitas, descobriu um quinto sabor, a partir da preparação de um caldo que servia de base para a elaboração de molhos. Ora, a neurociência, de sua parte, descobriu a papila gustativa responsável pelo reconhecimento desse sabor e ainda muitas outras.

Na mesma linha de pesquisa, lemos nesse livro que venho citando que a desconstrução que Igor Stravinsky operou na música corresponde à maneira como o cérebro ouve qualquer música antes de organizá-la esteticamente. Analogamente, Gertrude Stein, ao inventar uma escrita desprovida de vírgulas, parágrafos e maiúsculas, com abundantes repetições de palavras, com isso pretendendo sugerir que a linguagem escrita ou falada estava perdendo o sentido, estava na verdade antecipando-se à descoberta de que é dessa forma que a linguagem é ouvida antes do córtex cerebral organizá-la e decifrar a mensagem. Outro capítulo extremamente revelador diz respeito à descoberta do pintor Paul Cézanne de que a experiência estética ligada à contemplação visual do que quer que seja ocorre quando nossas sensações são interpretadas subjetivamente pelo cérebro. Nós interpretamos a sensação provocada pelo olhar. Eu olho para essa flor aqui à minha frente e em meu cérebro ocorre um circuito rapidíssimo de sinapses neuronais que me informa ser esta uma flor, uma rosa, que me lembra outra rosa, levando-me à fruição, ao devaneio e às nuvens ao mesmo tempo em que faço esta palestra. Não é no olho que o fenômeno ocorre, é no cérebro, que organiza nossas percepções sensoriais de maneira única para cada pessoa. Não percebemos de modo igual, não sentimos de modo igual. Cada um de nós imagina e organiza a realidade de um modo peculiar, único, individual. Referindo-se a uma tela sua cujo tema era um prato de maçãs, Cézanne declarou que desistia de copiar a natureza e, portanto, pintava com pinceladas que, vistas de perto, em nada reproduziam o objeto da pintura, nem o destacavam do fundo por meio de um contorno. Segundo Lehrer, Cézanne nos mostra o mundo assim como este aparece ao cérebro pela primeira vez. O jovem cientista também nos informa que a neurociência descobriu que a visão não decorre da luz, mas da organização de linhas e de pontos, e que nossas sensações são elementares e plenas de contradições e confusões. O que captamos através dos sentidos é organizado por nossa interioridade e, a partir dessa organização de dados confusos, fazemos interpretações subjetivas.

A arte leva ao conhecimento, porém vivemos num mundo dividido, que separa ciência e arte em compartimentos incomunicáveis. A ciência diz o que uma coisa é, a arte diz o que essa coisa poderia ser. Com arte não se constroem certezas. Arte é ficção, é fantasia, é poesia, é mundo da lua, é cabeça nas nuvens. No extremo, arte é loucura.

O que conclui esse autor? Que a arte e a ciência devem dar-se as mãos, e cada uma aproveitar o que a outra conhece. E, ao invés de desprezo mútuo, poderia ocorrer uma fertilização cruzada. Hoje sabemos, cientificamente, que nunca saberemos tudo. É por isso que precisamos de arte, pois é ela que nos ensina a conviver com o mistério. A arte e a ciência podem ser reintegradas numa esfera crítica cada vez mais ampla. Ambas podem ser úteis e ambas podem ser verdadeiras. No nosso tempo, a arte é um contrapeso necessário para as glórias e os excessos do reducionismo científico, especialmente quando aplicados à experiência humana. Esse é o alvo do artista: manter a nossa realidade, com todas as suas fragilidades e com todos os seus questionamentos.

* * *

Bem, passamos por três dimensões para compreender a arte: poço artesiano, subversão, caminho para o conhecimento. Agora, um quarto elemento. A arte que subverte, que leva ao conhecimento, que traz do inconsciente profundo elementos necessários para renovar o atual estado da consciência; qualquer que seja a modalidade, ela só poderá ser produzida por uma pessoa que esteja vivendo um estado psicológico específico. Não é assim: "Agora vou me inspirar. Vou divagar. Pego esta caixa, enrolo ao seu redor uma corda, ponho fogo, pinto de preto, depois forro de espelhos quebrados, faço um furo do qual sai uma cobra vermelha." Esse procedimento criativo provém de um planejamento do ego, do intelecto. Há uma intenção consciente: "Vou fazer um negócio para chocar", "vou derramar sangue de boi, vou...". Mas não é o ego que interessa aqui, e sim um estado em que o ego se recolhe, abstém-se de controlar o desenrolar do processo e sua lógica ou não lógica, sua contradição ou não contradição, sua utilidade ou não utilidade, seu valor monetário ou sua gratuidade.

Sabemos que totalmente inativo o ego não fica jamais, no estado de vigília, mas é possível removê-lo do centro da atenção e deixar tomar corpo certo silêncio interior. Lentamente, ainda que parcialmente, a consciência deixa de operar na faixa cerebral Beta e passa a ser regida pelas ondas da faixa Alfa. É nessa faixa, nesse estado psicológico e mental (a cabeça nas nuvens) que surgem imagens espontaneamente, é nela que ocorrem os sonhos durante o sono e é ainda nela, mesmo na vigília, que se podem experimentar os indícios da transcendência, isto é, uma condição existente além dos limites conhecidos do ego. É nessa faixa, é nesse estado peculiar e pouco experimentado que se sente o genuíno amor e se percebe o significado das coisas. Nessa faixa pode surgir de tudo, do belo ao grotesco, do conhecido ao sem nome nem forma. Chegandose a esse lugar, tenta-se apanhar a nuvem com a mão, e não perdê-la.

É preciso estar com a cabeça nas nuvens para entender a cabeça de uma criança. Se assim não for, o que se fará será dirigi-la e imediatamente rotular o que ela faz; vai-se prematuramente implantar vaidade em seu espírito, ao elogiar o que cria, dizendo que é bonito. Ensinar uma criança a fazer arte é um grande desafio. Um pequeno exemplo, baseado num relato que ouvi: a avó observa, sempre que pode, os movimentos e as iniciativas da netinha de mais ou menos dois anos, fornecendo-lhe materiais dos mais variados tipos. Certa vez ela comprou um rolo de papel kraft, desenrolou no chão um pedaço bastante grande, ofereceu giz e canetas coloridas para a menina desenhar, o que ela prontamente fez. Quando o papel estava já desenhado, a avó desenrolou mais um pedaço, mas a menina, que não estava sendo dirigida, interessou-se não mais por desenhar sobre a superfície plana, mas sobre a parte curva do rolo, passando depois a explorar o buraco do tubo de papelão onde o papel estava enrolado. E ficou, durante um longo período de tempo, explorando aquele buraco, tentando, talvez, descobrir que segredos se escondiam ali. Se a avó a tivesse impedido de seguir seu próprio interesse e dito para continuar a desenhar, ela teria perdido a nuvem que apareceu e estaria aprisionada na velha pedagogia do século XIX.

Artistas, pensadores, poetas: mãos à obra, que esta é longa, e a vida, curta.

  • 1
    . Palestra proferida em 18 de outubro de 2008, no Encontro dos ex-alunos de Prática de Ensino da Arte da Faculdade de Educação da Unicamp.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      17 Set 2010
    • Data do Fascículo
      Ago 2010
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