Acessibilidade / Reportar erro

Literatura infantil e produção de sentidos sobre as diferenças: práticas discursivas nas histórias infantis e nos espaços escolares

Children's literature and production of meanings about differences: discoursive practices in children's stories and in school environments

Resumos

Este artigo apresenta resultados de uma investigação que teve o objetivo de analisar como são produzidos jeitos de ver e jeitos de ser por meio das representações sobre o ''outro'' nos livros de literatura infantil e como essas representações vêm sendo re/produzidas nos espaços escolares por professores e alunos. A investigação desenvolveu-se em duas etapas distintas, articulando metodologias a partir de referencial teórico inscrito no campo dos Estudos Culturais em Educação, sendo elas a análise de discurso e o estudo de recepção. Percebe-se nos enredos uma demarcação da diferença como desvio, como alguém que se distingue/difere da maioria; descrevem-se situações de estranhamento que a presença do ''outro'' provoca; a esses personagens são atribuídos, em geral, o papel de vítima, herói ou vilão. Há a predominância da abordagem da boa e necessária convivência entre os diferentes e da aceitação e da tolerância, fazendo parte da lógica que perpassa as narrativas construídas por professoras e alunos.

diferença; discursos; literatura infantil; espaços escolares; estudos culturais


This article presents the results of an investigation aiming at analyzing how ways of seeing and ways of being are produced through representations of the ''other one'' in children's literature, as well as how those representations have been (re)produced by teachers and students at school. The investigation was developed in two distinct stages, combining methodologies based on theoretical grounds in Cultural Studies in Education: discourse analysis and reception study. In the stories, it is possible to notice the idea of difference as a deviation, as someone that is distinct/different from the majority of people. There are situations in which the presence of the ''other one'' is provocative; the characters of such situations are usually assigned the roles of victims, heroes or villains. The perspective of good, necessary living with different ones, as well as acceptation and tolerance, have prevailed in the logic that crosses narratives constructed by teachers and students.

difference; discourse; children's literature; school environments; cultural studies


ARTIGOS

Literatura infantil e produção de sentidos sobre as diferenças: práticas discursivas nas histórias infantis e nos espaços escolares

Children's literature and production of meanings about differences: discoursive practices in children's stories and in school environments

Madalena Klein

Professora Adjunta da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Pelotas (FaE/UFPEL), RS, Brasil. kleinmada@hotmail.com

RESUMO

Este artigo apresenta resultados de uma investigação que teve o objetivo de analisar como são produzidos jeitos de ver e jeitos de ser por meio das representações sobre o ''outro'' nos livros de literatura infantil e como essas representações vêm sendo re/produzidas nos espaços escolares por professores e alunos. A investigação desenvolveu-se em duas etapas distintas, articulando metodologias a partir de referencial teórico inscrito no campo dos Estudos Culturais em Educação, sendo elas a análise de discurso e o estudo de recepção. Percebe-se nos enredos uma demarcação da diferença como desvio, como alguém que se distingue/difere da maioria; descrevem-se situações de estranhamento que a presença do ''outro'' provoca; a esses personagens são atribuídos, em geral, o papel de vítima, herói ou vilão. Há a predominância da abordagem da boa e necessária convivência entre os diferentes e da aceitação e da tolerância, fazendo parte da lógica que perpassa as narrativas construídas por professoras e alunos.

Palavras-chave: diferença; discursos; literatura infantil; espaços escolares; estudos culturais.

ABSTRACT

This article presents the results of an investigation aiming at analyzing how ways of seeing and ways of being are produced through representations of the ''other one'' in children's literature, as well as how those representations have been (re)produced by teachers and students at school. The investigation was developed in two distinct stages, combining methodologies based on theoretical grounds in Cultural Studies in Education: discourse analysis and reception study. In the stories, it is possible to notice the idea of difference as a deviation, as someone that is distinct/different from the majority of people. There are situations in which the presence of the ''other one'' is provocative; the characters of such situations are usually assigned the roles of victims, heroes or villains. The perspective of good, necessary living with different ones, as well as acceptation and tolerance, have prevailed in the logic that crosses narratives constructed by teachers and students.

Key words: difference; discourse; children's literature; school environments; cultural studies.

A diferença como temática emergente no campo da Educação: aproximações iniciais

As políticas de identidade e diferença vêm adquirindo legalidade no cenário brasileiro a partir da promulgação de diferentes políticas públicas, fruto da mobilização de segmentos da sociedade que colocam como prioritário para a garantia de direitos sociais e cidadania o tema da inclusão social dos grupos considerados diferentes. Observamos que essas questões vêm mobilizando e incentivando segmentos da sociedade a promover a discussão sobre temáticas como o respeito/a aceitação das diferenças, a tolerância e a necessidade de implementação de políticas afirmativas, entre outras. Essas discussões não encontram uma unanimidade, promovendo diferentes movimentos de adesão ou repúdio às muitas medidas que se instalam no cenário social, cultural e econômico.

No campo da Educação, essa temática ganha diferentes contornos, tramados em jogos de saber/poder decorrentes das trajetórias de inúmeros grupos sociais e de um conjunto de expertises envolvidas em organizações governamentais ou não, que vêm interferindo diretamente nas diretrizes das políticas educacionais. Exemplos que podemos enumerar, sem darmos conta da diversidade de proposições nesse campo, são as ações afirmativas, as políticas de acessibilidade, as redefinições das políticas de educação especial, entre outras que, no seu conjunto, apontam para um momento de visibilidade e dizibilidade sobre o ''outro''. Em pesquisa de Zucchetti, Klein e Sabat (2007), as autoras analisam especificamente três documentos que compõem as políticas públicas nacionais: o Estatuto da Criança e do Adolescente - ECA, as Diretrizes Nacionais para a Educação Especial na Educação Básica e as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana. Nesses documentos, são analisadas as regularidades enunciativas que descrevem o ''outro'' para quem as políticas devem apontar ações afirmativas, de inclusão e de cidadania. As autoras argumentam que ''esses documentos, em conjunto, dão visibilidade a uma ordem do discurso sobre a inclusão social em nosso País na contemporaneidade'' (Zucchetti; Klein; Sabat, 2007, p. 78). Esses discursos constituem/produzem os saberes e as práticas dos docentes envolvidos na educação daqueles sujeitos nomeados nas políticas analisadas.

Variados artefatos culturais são produzidos no sentido de dar sustentação a essas políticas e a suas concepções, entre as quais encontramos peças publicitárias institucionais que narram as diferenças, a introdução de personagens e suas tramas dramáticas em novelas nas principais emissoras nacionais e a produção de peças teatrais e literárias. Ou seja, essa é uma discussão que está na emergência de nosso contexto cultural, produzindo regimes de verdade sobre sujeitos e comunidades específicos.

Estabelece-se como foco deste artigo a literatura infantil, artefato cultural presente em diferentes contextos sociais, sendo a escola um espaço privilegiado para a leitura desses materiais. Nos últimos anos, essa literatura tem sido foco de pesquisas na área da Educação justamente por sua disseminação nas escolas, entre professores e alunos, tanto como material de instrução quanto de lazer. Mais especificamente, pesquisadores como Vidigal (1996), Silveira (2000, 2002, 2003), Amaral (2001), Sefton e Martins (2004), entre outros, procuram analisar as formas como a alteridade - o diferente - vem sendo representada nesses artefatos. Concordamos com Silveira (2003, p. 2) quando argumenta que ''na última década uma preocupação mais programática com a formação da criança para 'conhecer' e aceitar o diferente vem ensejando uma proliferação de títulos dentro de várias vertentes da temática''.

Motivadas por esses debates, estabelecemos como problema de investigação a ser apresentado neste artigo: como vão sendo produzidos jeitos de ver e jeitos de ser, por meio das representações sobre o ''outro'' - diferença, alteridade -, nos livros de literatura infantil e como essas representações vêm sendo re/produzidas nos espaços escolares por professores e alunos. Consideramos oportuna a realização de estudos que problematizem os discursos sobre os sujeitos para quem as políticas de inclusão social vêm sendo dirigidas, pois entendemos que os discursos produzem e reproduzem representações que interferem diretamente nas práticas sociais e, assim, nas práticas docentes.

O desdobramento desse objetivo direcionou nossa trajetória investigativa, levando-nos a: identificar e catalogar, em editoras nacionais, livros de literatura infantil que tematizam a questão da diferença, a partir da promulgação das políticas públicas que discutem e almejam a inclusão social, preferencialmente a partir de 1990; analisar os discursos e problematizar as representações sobre ''o outro'' nos textos e nas imagens dos livros selecionados; realizar estudo de recepção entre professores e alunos nos espaços educacionais.

Cabe salientar que nossa intenção não se volta a um estudo na área das línguas ou da literatura. Nossa aproximação aos Estudos Culturais em Educação direciona nosso olhar aos textos e às imagens das histórias infantis como artefatos culturais que se inserem nos espaços escolares, somando-se a tantos outros, na atualidade, interferindo nas práticas docentes e servindo de normativas (exemplos) para as relações entre os diferentes sujeitos da educação. Assim, consideramos esse um tema emergente nas discussões sobre a formação docente e as práticas na escola.

A investigação previa, inicialmente, duas etapas distintas, com metodologias articuladas a partir de referencial teórico inscrito no campo dos Estudos Culturais em Educação, sendo elas a análise de discurso e o estudo de recepção. Primeiramente, realizamos o levantamento de títulos de livros de literatura infantil em catálogos das principais editoras nacionais que se dedicam à publicação nessa área. O objetivo foi selecionar os títulos que apontassem para enredos em que o/s personagem/ns fosse/m identificado/s como pertencentes a grupos nomeados, nas políticas públicas, a partir da diversidade/diferença, segundo recortes de raça/etnia, gênero/sexualidade, necessidades educacionais especiais/deficiências, entre outros.

Interessante para a nossa análise foi constatar que, nos catálogos ou nos sites de algumas editoras nacionais pesquisadas, o leitor é auxiliado a encontrar histórias a partir de temáticas ligadas aos temas transversais dos Parâmetros Curriculares Nacionais (meio ambiente, pluralidade cultural, ética e cidadania, saúde, orientação sexual, trabalho e consumo) ou, ainda, a temas diversos, dos quais ressaltamos os seguintes: deficiência física, diferenças (aceitação), diferenças sociais e raciais, diferentes maneiras de olhar o mundo/pensar, solidariedade, entre outros.

Nessa primeira aproximação ao material, foi possível, através dos títulos e das sinopses presentes nos catálogos, selecionar livros (aproximadamente 38 títulos) que atendiam à especificidade da pesquisa. Também procedemos a uma análise preliminar das formas como os sujeitos ditos diferentes vêm sendo nomeados/narrados. É interessante ressaltar que a maioria desses livros já teve várias reedições e reimpressões, o que sugere um alto índice de circulação.

Na continuidade da pesquisa, dirigimo-nos aos espaços escolares, com o objetivo de examinar quais os sentidos que essas histórias produzem entre professores e alunos. Para isso, utilizamos estratégias dos estudos de recepção em turmas de séries iniciais de escolas públicas, em que as proposições das professoras a partir de histórias por elas escolhidas, e as produções dos alunos dali resultantes constituíram o corpus para nossas análises. Foram selecionadas duas escolas públicas municipais que, segundo informações de equipe responsável pelas políticas de inclusão da secretaria municipal de educação, haviam desenvolvido programa de formação em serviço, por meio de encontros em que se discutiram e realizaram dinâmicas referentes à inclusão de diferentes sujeitos nos espaços escolares e ao papel do professor nesse processo. Dessa forma, essas escolas e seus educadores estariam mobilizados em relação à temática que se relaciona aos objetivos de nossa pesquisa.

Nessas escolas, apresentamos o projeto da pesquisa e solicitamos a participação voluntária de professores; contamos com o engajamento de duas professoras na escola A (cada uma desenvolvendo as atividades da pesquisa em duas turmas) e quatro professoras na escola B, cada uma com uma turma. Totalizam, assim, oito turmas a serem observadas em atividades propostas pelas professoras. O desafio apresentado a elas foi escolher, entre os títulos selecionados nos catálogos das editoras, um livro para o qual deveria ser planejada uma aula em que a temática fosse as diferenças. Os planos organizados pelas professoras, a dinâmica desenvolvida em aula e as atividades realizadas pelos alunos constituem-se, assim, no corpus da segunda etapa da pesquisa, que, no decorrer da investigação, foi cruzado com as análises realizadas durante a primeira etapa.

Representações do outro nos artefatos culturais

Nossa discussão aproxima-se de autores como Hall (1997a, 1997b) e Silva (1999, 2000), que problematizam a representação como ''um sistema de significação'', ou seja, nela estão envolvidos processos de produção de significados sobre as coisas, as pessoas, os grupos. Por meio das representações - do que dizemos, pensamos, sentimos ou fazemos -, construímos e transmitimos sentido sobre o mundo. Contudo, isso não se dá simplesmente a partir de significados já existentes ou previamente aceitos. As representações não são naturais ou definitivas, nem tampouco fixas, estáveis ou determinadas. Elas constituem campos de lutas nos quais os significados são negociados, construídos, impostos; elas estão envolvidas em jogos de poder e seus efeitos estão implicados na produção de identidades e diferenças.

Seguindo uma perspectiva foucaultiana, Silva (1999) ressalta que os discursos se tornam importantes para as análises das representações, uma vez que criam sentidos, produzindo efeitos de verdade. Podemos dizer que os discursos sobre a alteridade, o outro/diferente, que perpassam os espaços sociais, vêm constituindo ''realidades'' sobre o seu jeito de viver e de conduzir-se. Assim, também vêm conformando as práticas educacionais em relação a esses sujeitos. Por meio da análise das formas como os outros vêm sendo narrados na literatura infantil, pretendemos problematizar as naturalizações - os efeitos de verdade - produzidas nesses discursos. Na perspectiva em que se inscreve esta análise, entendemos que essas ''verdades'' não são inventadas propositalmente pelos autores das histórias e que a questão não se detém em procurar desvendar as intenções dos editores ou das instituições envolvidas na proliferação de saberes sobre os outros/diferentes. Como argumenta Foucault (1996, p. 17),

essa vontade de verdade [...] apóia-se sobre um suporte institucional; é ao mesmo tempo reforçada e reconduzida por todo um compacto conjunto de práticas como a pedagogia, é claro, como o sistema dos livros, da educação, das bibliotecas, como as sociedades de sábios de outrora, os laboratórios hoje. Mas ele é também reconduzido, mais profundamente sem dúvida, pelo modo como o saber é aplicado em uma sociedade, como é valorizado, distribuído, repartido e de certo modo atribuído.

Gostaríamos, ainda, de salientar aquilo que Silva (2000) caracteriza como a ''política de identidade'', na qual a representação é entendida como uma forma de conhecimento em que estão em jogo as possibilidades de delegação - ''quem tem o direito de representar quem'' - e de descrição - ''como os diferentes grupos culturais e sociais são apresentados''. Não será objetivo deste artigo caracterizar a qual grupo pertencem os autores das histórias analisadas, porém, seria interessante, para futuras investigações, estabelecer uma cartografia dessas narrativas, não para identificar discursos mais verdadeiros, mas para analisar as condições de possibilidade de suas produções.

Os significados sobre o outro/diferente são produzidos em diferentes espaços e circulam em diversos processos ou práticas que se inscrevem no ''circuito da cultura''1 1 . ''[...] para se obter uma plena compreensão de um texto ou artefato cultural, é necessário analisar os processos de representação, identidade, produção, consumo e regulação. Como se trata de um circuito, é possível começar em qualquer ponto; não se trata de um processo linear, sequencial'' (Woodward, 2000, p. 68). (Du Gay, 1997; Hall, 1997a; Hall 1997b; Johnson, 1999; Woodward, 2000). A literatura infantil inscreve-se nesse circuito, onde representações sobre o outro/diferente produzem identidades e diferenças em um complexo jogo de produção, consumo e regulação de significados. Assim, entendemos que as histórias que contam sobre personagens nomeados e narrados como diferentes produzem múltiplos significados, não estando presos à intencionalidade de autores, editores, educadores, alunos. Esses significados produzem-se, proliferam, conjugam-se a outros tantos significados. O texto escapa, possibilitando múltiplas leituras: ''[...] não existe um significado fixo único e, consequentemente, nunca poderá existir uma leitura fixa, baseada na noção de um conjunto de posições ideais-típicas'' (Hall, 2003, p. 370).

Procurando capturar os múltiplos sentidos passíveis de serem produzidos no circuito da cultura, consideramos os estudos de recepção como possibilidade metodológica que nos abre caminhos para a análise de teias de significados que não se esgotam, mas proliferam nos espaços escolares. Cabe salientar que, ao aproximarmo-nos de autores que se utilizam desse modelo investigativo, pretendemos realizar o movimento que Ewald (1993, p. 26) bem descreveu, ao referir-se aos usos que fazia de Foucault: a comparação com ''chaves de uma caixa de ferramentas'' possibilita-nos a apropriação, sem a imposição de filiação. Remete-nos ao uso daquilo que é produtivo para a investigação, sem, contudo, perder de vista o rigor nas articulações realizadas.

Durante o processo investigativo, procuramos estar atentas ao que Hall (2003, p. 354) nos aponta:

A mensagem é uma estrutura complexa de significados que não é tão simples como se pensa. A recepção não é algo aberto e perfeitamente transparente, que acontece na outra ponta da cadeia de comunicação. E a cadeia comunicativa não opera de forma unilinear.

Dessa forma, ao aproximarmo-nos dos espaços escolares, das práticas que envolvem professoras e alunos, não pretendíamos acolher os sentidos ''mais verdadeiros'' sobre o outro/diferente. O que nos mobiliza é acolher, nessa ''cadeia comunicativa'', a emergência de múltiplos discursos, múltiplas possibilidades de narrar ''jeitos de ser'' e ''jeitos de ver''. Ou seja, procuramos entender que representações são potencializadas, cruzadas, excluídas na emergência de uma trama discursiva que coloca a diferença como foco nas atuais políticas sociais.

Trilhas da pesquisa: alguns achados

Apresentaremos, a seguir, os caminhos percorridos na pesquisa, detalhando cada etapa e seus achados. Não temos a pretensão de dar conta das múltiplas possibilidades de análises, mas de trazer alguns bocados que nos permitam perguntar sobre as condições de produção de sentidos na contemporaneidade, principalmente no campo da Educação.

Iniciamos a investigação com o levantamento de títulos de livros de literatura infantil em catálogos de algumas das principais editoras nacionais2 2 . Principalmente os catálogos das seguintes editoras: Ática, Companhia Editora Nacional, Cortez, Moderna, Salamandra, FTD, Paulinas, Companhia das Letrinhas, Nova Fronteira, W. V. A, entre outras (catálogos impressos e divulgados na Internet no período - 2005/2006). que se dedicam à publicação nessa área. Esses catálogos vêm sendo organizados pelas editoras, direcionando a atenção ao público infantil, como também aos pais e aos educadores. Como argumentam Sefton e Martins (2004, p. 279),

[...] houve um notável crescimento do mercado consumidor infanto-juvenil, uma vez que as histórias literárias passaram a ser vistas em seu potencial pedagógico. Com um status maior, as editoras de livros infanto-juvenis criaram estratégias ousadas para vender, investindo em catálogos caprichados, jogos agressivos de marketing junto aos professores e, mesmo, campanhas de lançamento de livros. Tais estratégias atraem olhares de todos os envolvidos no processo educativo, principalmente das instituições escolares, já que as mesmas revelam-se como grandes consumidoras [grifo das autoras].

Importante ainda salientar que, desde 1997, o Ministério da Educação tem investido no Programa Nacional Biblioteca na Escola (PNBE), por meio da aquisição e da distribuição de obras de literatura às escolas públicas brasileiras. Em 2005, a Secretaria de Educação Básica SEB/MEC assumiu a responsabilidade de ampliar os acervos das bibliotecas escolares e vem, ano a ano, investindo no programa; a partir de 2006, também começaram a ser beneficiadas as escolas de Ensino Médio.

A partir do exposto acima, consideramos oportuno esse olhar sobre os catálogos das editoras nacionais, uma vez que eles se constituem em um elo com professores, pais e também, institucionalmente, com a instância responsável pela ampliação das bibliotecas nas escolas públicas, direcionando interesses no sentido das escolhas a serem efetivadas. Nessa primeira aproximação do material, foi possível selecionar os livros que atendiam à especificidade da pesquisa, bem como proceder a uma análise preliminar das formas como os sujeitos são nomeados/narrados.

Algumas das questões que emergiram nessa primeira etapa da pesquisa foram as seguintes: quem são os personagens? Quais as marcas da diferença que são apontadas? Qual é o protagonismo conferido ao ''outro''/diferente? Qual a sua responsabilidade para que seja aceito (aceitação de si e dos outros)? Há a necessidade de um ''terceiro'' - mediador - na relação, ou seja, há necessidade de reconhecimento por parte de um sujeito próximo?

Em relação a quem são os personagens, eles podem ser humanos ou animais. Quando humanos, o gênero fica bem definido, havendo mais meninas do que meninos3 3 . Em pesquisa realizada por Silveira (2003), o resultado foi distinto deste: das dez obras analisadas, uma tinha um personagem identificado de forma genérica; em outra, um personagem de importância na narrativa, mas não o principal, era feminino. Nas demais histórias, os personagens eram masculinos. , porém sem uma predominância que caracterize preferência de um gênero sobre outro. São marcadas as diferenças físicas, sensoriais e comportamentais. Em duas das histórias, a diferença marcada refere-se à raça/ etnia4 4 . Obra analisada a partir dos catálogos: Menina bonita do laço de fita e O irmão que veio de longe. . Já quando os personagens são animais, as diferenças são tratadas de forma genérica, não marcadas especificidades5 5 . Obras analisadas a partir dos catálogos: Um peixinho especial, A zebrinha preocupada, Draguinho: diferente de todos, parecido com ninguém. .

O protagonismo do personagem que carrega a diferença é variado. Em algumas histórias, o personagem principal também aparece como coadjuvante da narrativa, principalmente quando fica marcada a necessidade de um ''terceiro'' para mediar a aceitação do ''outro'' no meio social.

Nas sinopses analisadas6 6 . Livros de histórias infantis e infantojuvenis analisados no artigo a partir dos catálogos das editoras: A chata daquela gorda, Regina Drummond, Editora Cortez; A zebrinha preocupada, Lúcia Reis, Editora FTD; Alguém muito especial, Miriam Portela, Editora Moderna; Belinha a bailarina, Amy Young, Editora Ática; Draguinho diferente de todos, parecido com ninguém, Cláudio Galperin, Editora Ática; Jubonaldo, o leão, Patrícia Gwinner, Editora Paulinas; Longe dos olhos, Ivan Jaf, Editora Ática; Menina bonita do laço de fita, Ana Maria Machado, Editora Ática; Minha irmã é diferente, Betty Ren Wright, Editora Ática; Na minha escola todo mundo é igual, Rossana Ramos, Priscila Sanson, Editora Cortez; Não me chama de gorducha, Barbara Phillips, Editora Ática; O irmão que veio de longe, Moacir Scliar, Editora Companhia das Letrinhas; O louco do meu bairro, Anna Flora, Editora Ática; O peixinho de asas, Maria Alice do Nascimento e Silva Leuzinger, Editora Nova Fronteira; Patinho feio, recontado por Ruth Rocha , Editora FTD; Pê, o pato diferente, Regina Coeli Rennó, Editora FTD; Pelota bolota, Santuza Abras Pinto Coelho, Editora Nacional; Um peixinho especial, Márcio Morato Pereira, Editores Associados; Uma joaninha diferente, Regina Célia Melo, Editora Paulinas; Urubu queria ser passarinho, Antonieta Dias de Moraes, Editora FTD. , foi interessante perceber que a questão da aceitação da diferença é um dos elementos trabalhados nos enredos da maioria das histórias - aceitação de si e aceitação pelos outros. As estratégias e os responsáveis por essa aceitação mudam conforme a construção narrativa de cada autor. Em algumas histórias, é necessário que o personagem marcado pela diferença surpreenda: apesar da deficiência, é capaz de realizar alguma coisa! Isso é evidenciado nas seguintes histórias:

- O irmão que veio de longe - necessidade de um ato heróico por parte do personagem: ''[...] Durante uma excursão, Jaci e o irmão de Renato se perdem na mata e ninguém consegue encontrá-los. É o indiozinho quem vai salvá-los, conquistando a admiração de todos'' (Catálogo Editora Companhia das Letrinhas, 2005);

- Belinha a bailarina -apesar da sua deficiência, ela é maravilhosa: ''Mas quem precisa ser perfeito quando pode ser simplesmente maravilhoso?'' (Catálogo Editora Ática, 2005);

- Uma joaninha diferente - ser inteligente e criativo: ''Uma joaninha sem bolinhas descobre uma forma inteligente e criativa de lutar contra o preconceito e a discriminação'' (Catálogo Editora Paulinas, 2006);

- Não me chama de gorducha -apesar da obesidade, a menina tem força de vontade para reverter a sua situação: ''Rita sofre de um problema sério: excesso de peso. E detesta o apelido que os meninos da classe lhe deram. Mas ela tem força de vontade...'' (Catálogo Editora Ática, 2005).

Em histórias como Urubu queria ser passarinho e O peixinho de asas, os personagens dependem de alguém para ajudá-los, tanto para aceitarem a si, quanto para obterem a aceitação de outras pessoas. Contudo, nem sempre as soluções para a aceitação têm a concordância da maioria: -Urubu queria ser passarinho: ''[...] Foi procurar ajuda, queria entender a razão de tanto desprezo e acabou encontrando o urubu-rei. Com ele, Urubuzinho aprendeu que é possível vencer o preconceito'' (Catálogo Editora FTD, s.d.);

- O peixinho de asas: ''[...] o peixinho encontra dificuldades para brincar e viver. Quando um bagre encantado aparece para ajudar, todos ficam muito preocupados com a solução'' (Catálogo Editora Nova Fronteira, 2002).

A necessidade de um terceiro, de um personagem mediador na relação do diferente - ''o outro'' - com os demais personagens faz parte do enredo de outras histórias, em que um irmão, um parente ou um amigo próximo aparece como o responsável por essa aceitação:

- Alguém muito especial: ''China era diferente das outras crianças porque era portador da Síndrome de Down. Neste livro, Tico, seu irmão mais velho, conta como conseguiu estabelecer uma comunicação e uma forte ligação com ele'' (Catálogo Editora Moderna, 2006);

- Minha irmã é diferente: ''O que significa para uma criança ter um irmão deficiente mental? Esse era o problema de Carlo, que aprendeu a amar sua irmã Terry do jeito que ela era'' (Catálogo Editora Ática, 2005);

- O louco do meu bairro: ''A menina percebe que é possível conviver e gostar do garoto chamado de 'louco' pela turma do bairro'' (Catálogo Editora Ática, 2005);

- Jubonaldo, o leão: ''Jubonaldo é um leão atípico: educado, com hábitos refinados e muito organizado, morre de medo que os outros saibam disso. [...] Mas o primo também parece diferente dos outros gatos. Os dois acabam confessando que não são exatamente aquilo que os outros esperam deles. [...] Juntos, decidem enfrentá-los'' (Catálogo Editora Paulinas, 2006);

- Pê, o pato diferente: ''Pê trabalhava na marcenaria com seu pai e seus irmãos, mas não dava certo. Pê queria ser músico. Realmente este patinho era mesmo diferente. Ele tinha outros sonhos. Vamos torcer para os pais do Pê darem uma força pra ele?'' (Catálogo Editora FTD, s.d.).

Nas obras mencionadas a seguir, a questão da diferença é colocada como culpa do próprio diferente, sendo que, em ambas, a diferença é a obesidade, que é tratada como problema a ser superado:

- Pelota Bolota: ''Diz que faz regime, mas chupa picolé no lugar do café e come doce escondida'' (Catálogo Companhia Editora Nacional, 2005);

- A chata daquela gorda: A protagonista - Simone - era ''... uma menina que não era chata porque era gorda - ela era chata de qualquer jeito!'' (Catálogo Editora Cortez, 2005).

Sem aprofundar a discussão, pois não é o objetivo deste artigo, consideramos interessante, contudo, comentar brevemente que a obesidade infantil vem sendo discutida principalmente no âmbito da saúde pública e da infância, havendo investimentos em propaganda institucional no sentido de alerta ao desencadeamento de outros problemas dali resultantes. Nessas histórias, há uma lógica construída no sentido de aceitação do sujeito, mas não de sua diferença: esta, sim, deve ser curada/superada.

Em algumas histórias, o diferente foge como forma de solucionar seus problemas, aprendendo com suas experiências:

- Draguinho - diferente de todos, parecido com ninguém: ''Quando o pequeno dragão percebe que solta água pelo nariz ao invés de fogo, fica inconsolável. Então resolve fugir em busca de um lugar onde haja dragões iguais a ele. Na floresta, porém, ele vai tomando contato com as vantagens de ser diferente'' (Catálogo Editora Ática, 2005);

- Patinho Feio7 7 . Patinho feio não é uma obra da literatura nacional, nem foi escrita na emergência das políticas de inclusão de nosso país. Mas a história apresentada pela Editora FTD é uma recontagem feita por Ruth Rocha, autora nacional reconhecida por suas obras infantis e infantojuvenis. : Ele era visto entre os outros patinhos como o mais feio de todos. ''Até que um dia, cansado daquela situação, o patinho fugiu para bem longe. Passou por muitos apuros: tiroteio de caçadores, ataque de animais, brincadeiras de crianças malvadas. No verão, encontrou belos cisnes num lago e aí descobriu sua verdadeira origem'' (Catálogo Editora FTD, s.d.).

Nas obras até então analisadas, a responsabilidade para com o diferente fica a cargo de alguns personagens, porém, em outros livros, esse compromisso é da coletividade:

- Benedito: Este livro foi ''escrito sob o desejo de entender e explicar a importância da tolerância para a paz e a felicidade das pessoas que sofrem qualquer tipo de preconceito. Representa, assim, um grito silencioso de quem abraça a luta contra a exclusão e a discriminação'' (Catálogo Editora Paulinas, 2006);

- Aventura no escuro: ''Aborda de maneira sensível a questão do deficiente visual, proporcionando às crianças um maior contato e compreensão do problema'' (Catálogo Editora Paulinas, 2006);

- Na minha escola todo mundo é igual: ''Uma escola em que todos os alunos convivem em harmonia, procurando superar as diferenças e dificuldades, inclusive físicas, para que todos sejam, realmente, iguais'' (Catálogo Editora Cortez, 2005);

- De onde você veio? Discutindo preconceitos: O livro trata das origens de um povo, dando subsídio, assim, à discussão sobre o preconceito. ''Você vai sentir uma alegria muito grande em ser brasileiro e descobrir como é importante valorizar e respeitar as diferenças'' (Catálogo Editora Ática, 2005);

- A zebrinha preocupada: Este livro é indicado para ''explorar as diferenças entre os seres da mesma espécie ressaltando o respeito que devem merecer todos aqueles que, por alguma razão, diferem do grupo em que convivem'' (Catálogo Editora FTD, s.d.).

Dessas diversas histórias até aqui mencionadas, duas delas foram escolhidas pelas professoras que foram acompanhadas no seguimento da pesquisa. São elas:

- Menina bonita do laço de fita (Machado, 2004), escolhida pela professora que trabalhou com uma turma de 4ª série. A história infantil é recomendada para 1ª e 2ª séries (conforme catálogo virtual), porém não houve rejeição por parte da turma pesquisada. O enredo trata de explicar os motivos pelos quais a menina possui determinada diferença - étnico/racial -, por meio de dados passíveis de serem compreendidos, experimentados ou até mesmo comprovados a partir de registros históricos. A sinopse no catálogo virtual da editora diz: ''O coelhinho branco quer ter uma filha pretinha como aquela menina do laço de fita. Mas ele não sabe como a menina herdou aquela cor'' (Catálogo Virtual Editora Ática, 2007).

- Draguinho - diferente de todos, parecido com ninguém (Galperin, 2005) foi a história escolhida pela professora de Educação Infantil, turma de pré-escola. Estava recomendada para 1ª e 2º séries no catálogo virtual. A sinopse do catálogo impresso explica: ''Está na hora de Draguinho e seus amigos começarem a aprender a soltar fogo pelo nariz. Mas o pequeno dragão fica inconsolável quando descobre que só consegue soltar água. Então resolve fugir em busca de um lugar onde haja dragões iguais a ele''. A história procura abordar a trajetória empreendida pelo personagem no sentido de aceitar-se a si mesmo e de ser aceito pelo grupo (Catálogo Editora Ática, 2005).

Cada uma das professoras, após realizar a escolha do livro, planejou e executou atividades relativas à história. Nossa única orientação foi de que a temática da diferença fosse abordada a partir das estratégias que elas julgassem adequadas.

As professoras utilizaram a estratégia de contagem da história, porém com algumas distinções. Menina bonita do laço de fita foi lida por uma das alunas, que atendeu ao pedido da professora. Durante a leitura, a professora mostrava as imagens do livro e interrompia com perguntas aos alunos. Já a história do Draguinho foi contada pela professora, amparada no texto e nas imagens, que eram mostradas na sequência da narrativa. As atividades realizadas pelos alunos foram, em ambos os casos, a elaboração de cartaz coletivo a partir da colagem de material produzido individualmente (na turma de 4ª série, utilizou-se a escrita; na turma de pré-escola, o desenho).

A turma de 4ª série foi motivada a escrever, em pequenos papéis, alguma situação em que perceberam o preconceito (em relação a si ou em relação a outras pessoas). O título do cartaz, sugerido pela professora, foi ''Com a boca no trombone'', fazendo uma analogia à denúncia de preconceitos.

Para a história do Draguinho, a professora sugeriu aos alunos o desenho de um ''autorretrato'' - como cada um se vê. O título do cartaz foi ''Nossa turminha: amigo que é amigo...'', procurando desenvolver a ideia de que, mesmo cada um sendo diferente do outro, devemos ser amigos uns dos outros e de que amigo ''brinca junto'', ''respeita'', ''sabe dividir'', ''ajuda'', ''cuida'' - palavras escolhidas pelos alunos a partir de discussão orientada pela professora.

Alguns aspectos que consideramos interessantes de serem analisados: ambas as professoras, mesmo com histórias distintas, enfocaram a questão da convivência entre as pessoas, ressaltando ser necessário respeito, aceitação e tolerância. Isso ficou evidenciado com o comentário do aluno da pré-escola: ''Ser diferente não importa. O importante é ter amigos''. Também nas duas intervenções, a argumentação de ''é bom que sejamos diferentes'' ficou bem marcada. Essas narrativas encontram-se bem articuladas aos discursos produzidos e colocados em movimento pelos textos das políticas públicas e pelas publicações que fazem referência a elas.

Mesmo havendo uma permanente afirmação da positividade da diferença, em alguns momentos as falas de uma das professoras remeteram para o ''ser normal'', como, por exemplo: ''ser diferente não é tão ruim assim'', ''ele juntou a sua diferença com o outro normal'' ou, ainda, ''o coelho banguela não comia cenoura, tomava suco de cenoura, coitado''. Percebe-se aqui a diferença sendo narrada como o desvio de algo que já está normatizado, que é a referência. Como argumentam alguns autores (Duschatzky; Skliar, 2001; Veiga Neto, 2001; Silva, 2000, entre outros), os discursos sobre a aceitação da diferença pregam uma lógica da tolerância, mas permanentemente remetem a uma ''norma transparente'', da qual a diferença diverge.

É interessante também analisar o diálogo reiterado entre aluno e professora, quando esta dizia: ''menina pretinha''. A cada referência feita, o aluno interferia: ''morena''. A professora insistiu, argumentando que era a forma utilizada na história, mas o menino manteve sua indignação: ''morena''. Até que a professora perguntou: mas por que não posso dizer ''pretinha'', ao que outro aluno respondeu: ''é preconceito, professora''. Nesse breve diálogo, percebemos o quanto a discussão sobre as melhores formas de nomeação das diferenças é uma estratégia presente nos movimentos sociais e nos espaços escolares, regularizada nos textos oficiais e evidenciada nesse diálogo informal entre professora e alunos. Segundo Veiga Neto (2001, p. 108), trata-se de uma ''proteção linguística dada por algumas figuras de retórica'' no sentido de protegermonos dos ''incômodos que palavras como normal e anormal podem nos causar''.

Algumas considerações, na possibilidade de novas articulações

No decorrer de nossa investigação, foi possível estabelecer algumas considerações em relação à forma como o ''outro''/a diferença vem sendo narrado na literatura infantil. Foi possível comprovar que existe uma intensa produção literária sendo estimulada e distribuída entre crianças e que os espaços escolares se constituem em espaço privilegiado de consumo dessas obras, comprovado pelos altos investimentos das instâncias gestoras das políticas educacionais na qualificação das bibliotecas das escolas públicas. Os temas da inclusão e da aceitação das diferenças ganham visibilidade e são demarcados pelas editoras nacionais como itens que atendem aos temas transversais, privilegiando assuntos como diferenças raciais/étnicas, deficiências e comportamentos, principalmente.

O que se pode perceber nos enredos é uma demarcação da diferença como desvio, como algo que se distingue/difere da maioria. Descrevem-se situações de estranhamento que a presença do ''outro'' provoca. Como argumenta Lacerda (2004, p. 4), ''a normalidade só passa a ser uma questão quando algo não se encaixa''. Assim, há uma repetição de enredos em que a diferença é identificada/ nomeada, e a partir daí desenvolve-se uma trama no sentido de superação e/ou aceitação por parte do próprio sujeito e do grupo à sua volta.

Aproximando-nos de Amaral (2001, p. 137), percebemos o que a autora chama de ''emergência de estereótipos genéricos referidos à diferença significativa'' (grifo de autora), em que ao diferente é atribuído, em geral, o papel de vítima, herói ou vilão. Dependendo do papel a ele conferido, a história desenrola-se no sentido da superação, do reconhecimento ou do arrependimento. Mas, nessas diferentes situações, a aceitação e a tolerância são enunciadas como atitudes almejadas em relação ao ''outro''. Porém, ele próprio deve aceitar-se e, de certa forma, proceder a algum movimento no sentido de aproximar-se da normalidade. Se não está em condições disso, é a vítima; se supera, é o herói. Mas também ''outros'' são culpabilizados pela diferença e pela não superação: são os vilões.

Quando essas histórias chegam ao seu público de destino, os sentidos são reafirmados, mas também podem criar novas configurações. Nos momentos de sala de aula observados, percebeu-se a predominância da abordagem da boa e necessária convivência entre os diferentes. A aceitação e a tolerância, mesmo não sendo nomeadas diretamente, fazem parte da lógica que perpassa as narrativas construídas por professoras e alunos.

Sabemos que nossas análises não contemplam a infinidade de sentidos possíveis de constituírem-se a partir das leituras das histórias infantis. Nem seria esse o nosso objetivo. Procuramos aproximar-nos dos processos de produção, consumo, regulação, representação cultural das diferenças em espaços escolares, na tentativa de capturar algumas das possibilidades que ali se inscrevem. Sabemos das limitações/reduções que nossos olhares podem ter produzido. Porém, em nenhum momento almejamos a totalidade. Sabemos que também nós, pesquisadores, estamos engendrados nas tramas das múltiplas significações.

Recebido em 10 de março de 2009 e aprovado em 02 de dezembro de 2009.

  • AMARAL, Lígia Assumpção. A diferença corporal na literatura: um convite a ''segundas leituras''. In: SILVA, Shirley e VIZIM, Marli (Org.). Educação especial: múltiplas leituras e diferentes significados. Campinas/SP: Mercado de Letras; Associação de Leitura do Brasil - ALB, 2001. p. 131-161.
  • COMPANHIA EDITORA NACIONAL. Companhia Editora Nacional: catálogo. São Paulo: Nacional, 2005.
  • DU GAY, P. (Org). Production of culture/cultures of production. Londres: Sage/The Open University, 1997.
  • DUSCHATZKY, Silvia; SKLIAR, Carlos. O nome dos outros. Narrando a alteridade na cultura e na educação. In: LARROSA, Jorge; SKLIAR, Carlos. Habitantes de Babel. Políticas e poéticas da diferença. Belo Horizonte: Autêntica, 2001. p. 119 - 138.
  • EDITORA ÁTICA. Literatura infantil: catálogo. São Paulo: Ática, 2005.
  • EDITORA ÁTICA. Catálogo virtual, São Paulo. Disponível em: <http://www.atica.com.br/catalogo>. Acesso em: 22 jun. 2007.
  • EDITORA COMPANHIA DAS LETRINHAS. Companhia das Letrinhas: catálogo. São Paulo: Companhia das Letrinhas, 2005.
  • EDITORA CORTEZ. Literatura infantil e juvenil: catálogo. São Paulo: Cortez, 2005.
  • EDITORA FTD. Literatura infantil: Educação Infantil - 1º ciclo - 2º ciclo. Catálogo. São Paulo: FTD, [s.d.
  • EDITORA MODERNA. Literatura: Educação Infantil - 1ª a 4ª séries. Catálogo. São Paulo: Moderna, 2006.
  • EDITORA NOVA FRONTEIRA. Infantil: catálogo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2002.
  • EDITORA PAULINAS. Catálogo virtual Disponível em: <www.paulinas.org.br>. Acesso em: 17 nov. 2006.
  • EWALD, François. Foucault e a norma. In: EWALD, François. Foucault a norma e o direito. Lisboa: Veja, 1993. p. 77-125.
  • FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. São Paulo: Loyola, 1996.
  • FOUCAULT, Michel.. A arqueologia do saber. 5. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1997.
  • GALPERIN, Cláudio. Draguinho: diferente de todos, parecido com ninguém. Ilustrações de Jairo Rodrigues e Luciano Lagares. 1. ed./5. impr. São Paulo: Ática, 2005. 48p.
  • HALL, Stuart. Identidades culturais na pós-modernidade Rio de Janeiro: DP&A, 1997a.
  • HALL, Stuart. (Ed.) Representation: cultural representations and signifying practices. London: Sage/The Open University, 1997b.
  • HALL, Stuart. Reflexões sobre o modelo de codificação/decodificação: uma entrevista com Stuart Hall. In: HALL, Stuart. Da diáspora: identidades e mediações culturais. Belo Horizonte: Editora UFMG; Brasília: Unesco, 2003, p. 353-386
  • JOHNSON, Richard. O que é, afinal, Estudos Culturais. In: SILVA, Tomas Tadeu da (Org.) O que é, afinal, Estudos Culturais? Belo Horizonte: Autêntica, 1999. p. 7 - 131
  • LACERDA, Patrícia Monteiro. O olho invisível que nos vê: a narração da sociedade a partir da experiência da deficiência. In: SEMINÁRIO BRASILEIRO DE ESTUDOS CULTURAIS EM EDUCAÇÃO - SBECE, 1., 2004, Canoas. Anais.. Canoas: Ulbra, 2004. CD-ROM.
  • MACHADO, Ana Maria. Menina bonita do laço de fita 7. ed./11. impr. São Paulo: Ática, 2004.
  • SEFTON, Ana Paula; MARTINS, Jaqueline. Representações de corpo na literatura infantojuvenil. In: CARVALHO, Marie Jane Soares; ROCHA, Cristianne Maria Famer (Org.). Produzindo gênero. In: ENCONTRO NACIONAL DA REDE BRASILEIRA DE ESTUDOS E PESQUISAS FEMINISTAS. Porto Alegre: Sulina, 2004. p. 279-291.
  • SILVA, Tomaz Tadeu da. O currículo como fetiche: a poética e a política do texto curricular. Belo Horizonte: Autêntica, 1999.
  • SILVA, Tomaz Tadeu da. A produção social da identidade e da diferença. In: SILVA, Tomaz Tadeu da. Identidade e diferença. A perspectiva dos Estudos Culturais. Petrópolis: Vozes, 2000. p. 73-102.
  • SILVEIRA, Rosa Hessel. Contando histórias sobre surdos (as) e a surdez. In: COSTA, Marisa Vorraber (Org.) Estudos culturais em Educação. Porto Alegre: Editora Universidade/UFRGS, 2000. p. 175-204
  • SILVEIRA, Rosa Hessel. Professoras que as histórias nos contam. Rio de Janeiro: DP&A, 2002.
  • SILVEIRA, Rosa Hessel. Nas tramas da literatura infantil: olhares sobre personagens ''diferentes''. In: SEMINÁRIO INTERNACIONAL ''EDUCAÇÃO INTERCULTURAL, GÊNERO E MOVIMENTOS SOCIAIS'', 2., abril de 2003, Florianópolis. Promoção do Projeto Rizoma e UFSC. Disponível em: <http://www.ufrgs.br/neccso/downloadtextos.html>. Acesso em: 21 out. 2007.
  • VEIGA NETO, Alfredo. Incluir para excluir. In: LARROSA, Jorge; SKLIAR, Carlos. Habitantes de Babel Políticas e poéticas da diferença. Belo Horizonte: Autêntica, 2001, p. 105-118.
  • VIDIGAL, Luís. Entre o exótico e o colonizado: imagens do outro em manuais escolares e livros para crianças no Portugal Imperial (1890-1945). In: NÓVOA, Antônio; DEPAEPE, Marc; JOHANNINGMEIER, Erwin V.; ARANGO, Diana Soto (Ed.). Para uma História da Educação Colonial Porto, Lisboa: Sociedade Portuguesa de Ciências da Educação; EDUCA, 1996. p. 379-419.
  • WOODWARD, Kathryn. Identidade e diferença: uma introdução teórica e conceitual. In: SILVA, Tomaz Tadeu da (Org.). Identidade e diferença. A perspectiva dos Estudos Culturais. Petrópolis: Vozes, 2000. p. 7-72.
  • ZUCCHETTI, Dinorá Tereza; KLEIN, Madalena; SABAT, Ruth. Marcas das diferenças nas políticas de inclusão social. Educação e Realidade - FACED, UFRGS, Porto Alegre, v. 32, n. 1, p. 75-89, jan./jun., 2007.
  • 1
    . ''[...] para se obter uma plena compreensão de um texto ou artefato cultural, é necessário analisar os processos de representação, identidade, produção, consumo e regulação. Como se trata de um circuito, é possível começar em qualquer ponto; não se trata de um processo linear, sequencial'' (Woodward, 2000, p. 68).
  • 2
    . Principalmente os catálogos das seguintes editoras: Ática, Companhia Editora Nacional, Cortez, Moderna, Salamandra, FTD, Paulinas, Companhia das Letrinhas, Nova Fronteira, W. V. A, entre outras (catálogos impressos e divulgados na Internet no período - 2005/2006).
  • 3
    . Em pesquisa realizada por Silveira (2003), o resultado foi distinto deste: das dez obras analisadas, uma tinha um personagem identificado de forma genérica; em outra, um personagem de importância na narrativa, mas não o principal, era feminino. Nas demais histórias, os personagens eram masculinos.
  • 4
    . Obra analisada a partir dos catálogos: Menina bonita do laço de fita e O irmão que veio de longe.
  • 5
    . Obras analisadas a partir dos catálogos: Um peixinho especial, A zebrinha preocupada, Draguinho: diferente de todos, parecido com ninguém.
  • 6
    . Livros de histórias infantis e infantojuvenis analisados no artigo a partir dos catálogos das editoras: A chata daquela gorda, Regina Drummond, Editora Cortez; A zebrinha preocupada, Lúcia Reis, Editora FTD; Alguém muito especial, Miriam Portela, Editora Moderna; Belinha a bailarina, Amy Young, Editora Ática; Draguinho diferente de todos, parecido com ninguém, Cláudio Galperin, Editora Ática;
    Jubonaldo, o leão, Patrícia Gwinner, Editora Paulinas;
    Longe dos olhos, Ivan Jaf, Editora Ática;
    Menina bonita do laço de fita, Ana Maria Machado, Editora Ática;
    Minha irmã é diferente, Betty Ren Wright, Editora Ática;
    Na minha escola todo mundo é igual, Rossana Ramos, Priscila Sanson, Editora Cortez;
    Não me chama de gorducha, Barbara Phillips, Editora Ática;
    O irmão que veio de longe, Moacir Scliar, Editora Companhia das Letrinhas;
    O louco do meu bairro, Anna Flora, Editora Ática;
    O peixinho de asas, Maria Alice do Nascimento e Silva Leuzinger, Editora Nova Fronteira;
    Patinho feio, recontado por Ruth Rocha , Editora FTD;
    Pê, o pato diferente, Regina Coeli Rennó, Editora FTD;
    Pelota bolota, Santuza Abras Pinto Coelho, Editora Nacional;
    Um peixinho especial, Márcio Morato Pereira, Editores Associados;
    Uma joaninha diferente, Regina Célia Melo, Editora Paulinas;
    Urubu queria ser passarinho, Antonieta Dias de Moraes, Editora FTD.
  • 7
    . Patinho feio não é uma obra da literatura nacional, nem foi escrita na emergência das políticas de inclusão de nosso país. Mas a história apresentada pela Editora FTD é uma recontagem feita por Ruth Rocha, autora nacional reconhecida por suas obras infantis e infantojuvenis.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      17 Set 2010
    • Data do Fascículo
      Abr 2010

    Histórico

    • Recebido
      10 Mar 2009
    • Aceito
      02 Dez 2009
    UNICAMP - Faculdade de Educação Av Bertrand Russel, 801, 13083-865 - Campinas SP/ Brasil, Tel.: (55 19) 3521-6707 - Campinas - SP - Brazil
    E-mail: proposic@unicamp.br