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Editorial

EDITORIAL

Ano novo, início de uma nova década - a segunda do século XXI - período no qual os meios de comunicação divulgam balanços relativos aos acontecimentos do ano e da década finalizada. Os dados, geralmente apresentados por pesquisadores das ciências políticas, econômicas e sociais, trazem estatísticas e comparações de números atuais com os anteriores, assinalam diferenças e apontam tendências para o porvir.

''O número de miseráveis cairá pela metade até 2015'', segundo estimativa de Marcelo Neri, diretor do Centro de Políticas Sociais da Fundação Getúlio Vargas (FGV), divulgada recentemente (O Estado de S. Paulo, 03-01-2010); isso significa, mais precisamente, que, em pouco mais de duas décadas, desde que se mantenham as políticas aplicadas nos últimos anos, haverá uma diminuição considerável do número de pobres, uma vez que estes totalizavam 35% da população em 1993 e serão 15% naquela data - claro indício de que o Brasil está a caminho de tornar-se um país de classe média. Outros dados otimistas anunciam ganhos em várias áreas: há expansão da telefonia, quase 400 mil crianças deixaram de trabalhar, cresce a conexão com a internet. Enfim, parece haver indícios indubitáveis de alguns avanços dignos de serem realçados, sem que se negligencie, no entanto, que esta quase quinta potência mundial - próxima de desbancar a França - ocupa, no Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), o 75º lugar; e, no que tange à expectativa de vida, o 81º.

Quanto à educação, o mesmo estudo da FGV assinala que, em 1990, 15% das crianças brasileiras em idade de Ensino Fundamental estavam fora da escola, número esse que caiu para 2,5% recentemente. Em relação ao ensino superior, dobrou o número de jovens que tiveram acesso à universidade, entre 1998 e 2008. Interessante, porém, notar que vários outros pesquisadores dessas áreas mostram-se menos otimistas e ''atrelam a possibilidade de mudanças positivas na economia e no nível geral de vida da população não apenas a avanços de ordem quantitativa, mas também aos relativos à qualidade da educação''. Entre os 133 países estudados, cujos dados foram apresentados pelo Relatório de Competitividade Global 2009-2010 (World Economic Forum)1 1 . Segundo o artigo ''Competitividade e Educação'', de 2009, do Professor Dr. José Pastore, acessado no site < www.josepastore.com.br>, em 13.02.2010. , o Brasil, mesmo tendo melhorado sua posição, aparece em 119º lugar no que diz respeito à qualidade da educação fundamental. Tal precariedade acarreta problemas evidentes, em uma época em que as exigências para o adequado exercício profissional aumentam significativamente: a utilização crescente e quotidiana de novas tecnologias - que requerem, além de maior destreza, amplos conhecimentos da profissão exercida e de profissões de áreas afins - e a necessidade de atualização rápida e frequente desses conhecimentos exigem profissionais mais bem preparados e mão de obra qualificada. É preciso, pois, uma maior habilitação para ter acesso a profissões especializadas e mais bem remuneradas, neste país pós-crise de 2008-2009. ''Toda a vez que o Brasil cresce 4,5% ou mais, falta mão de obra qualificada'', observa o sociólogo José Pastore (O Estado de S. Paulo, 30-01-2010).

A qualidade da educação deveria, portanto, ser uma questão prioritária, tratada com seriedade, uma vez que intrinsecamente relacionada ao desenvolvimento social e econômico de todo e qualquer país; no Brasil, representa um problema político crucial, devido à grande defasagem existente entre a educação dos pobres e dos ricos, levando em conta que as escolas públicas são, geralmente, piores do que as particulares. A necessidade de melhorar a qualidade da educação - e também, é claro, de exigir medidas para incluir os que ainda permanecem fora do sistema escolar - é urgente e premente.

Tratar da qualidade da educação e da inclusão escolar remete a inúmeras questões; entre elas, ao tema do dossiê temático ora apresentado: Filosofia e Ensino Médio, coordenado pelo Professor Dr. Renê José Trantin Silveira, especialista em ensino de Filosofia. Vale lembrar que essa disciplina foi retirada do currículo, em meio a uma radical reforma educacional, com a promulgação da lei 5692/1971, em pleno regime militar. Por essa mesma reforma, excluíramse outras disciplinas, como línguas estrangeiras, francês e inglês - o latim já desaparecera, do curso ginasial, alguns anos antes -, provavelmente para dar ''especial relêvo (sic) ao estudo da língua nacional, como instrumento de comunicação e como expressão da cultura brasileira'', como reza essa lei.

Foram inúmeras as tentativas conduzidas, desde então, pelos educadores da área, para reverter esse quadro; finalmente, em junho de 2008, uma lei sancionada pelo Presidente da República tornou a Filosofia novamente obrigatória no currículo do Ensino Médio. As inúmeras questões a respeito desse ensino acompanham-se de problemas e desafios a serem discutidos e contornados para tentar superá-los. Por que ensinar Filosofia aos jovens brasileiros? O que ensinar, ou seja, quais conteúdos privilegiar? Como ensinar? Um dos grandes problemas é o da própria escolha de professores com formação adequada para ministrar essa disciplina. Pensar em ensinar conteúdos de Filosofia, ''necessários ao exercício da cidadania'', como sugere a lei, é uma questão a ser problematizada, dada a polissemia do termo ''cidadania'', fato ressaltado por alguns textos deste dossiê. Esse e outros temas candentes são aqui abordados por prestigiosos professores de diferentes instituições brasileiras e por um renomado professor italiano, Giorgio Baratta, falecido em janeiro último, grande especialista na obra de Gramsci. Em suma, ao tratar do ensino da Filosofia, vale também ressaltar a resposta da Professora Dra. Olgaria Mattos, da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP,2 2 . A entrevista, publicada no caderno Cultura do jornal O Estado de S. Paulo, em 17-12- 2006, com o título ''Educar, a última chance do Brasil'', indica que essa discussão permeia as preocupações dos professores da área há algum tempo. ao ser indagada a respeito da reintrodução dessa disciplina no Ensino Médio: ''Isoladamente, a Filosofia não pode prosperar muito, porque faz parte de uma conjuntura intelectual que diz respeito às línguas clássicas, grego e latim, e línguas estrangeiras [...] em particular o francês.'' Tal afirmação obriga-nos a considerar que os problemas do ensino devem ser pensados levando-se em conta não apenas as disciplinas isoladas, mas seu conjunto e as inter-relações entre os diferentes conteúdos, questão geralmente esquecida ou relegada a um plano secundário tanto pelas leis, como pelas práticas pedagógicas. E lembra-nos também o quanto, no período de governo autoritário, uma lei que enfatizava aspectos tecnicistas e pragmáticos esvaziou a educação de conteúdos de natureza humanística, quadro esse de difícil reversão a curto prazo.

É interessante salientar que a mesma lei de 1971, encarregada de excluir o ensino de Filosofia e línguas estrangeiras, eliminou outras matérias, como Desenho, Trabalhos Manuais, Artes Aplicadas, Música e Canto Orfeônico, esta última introduzida graças ao esforço pioneiro de ninguém menos do que nosso maior compositor e maestro, Heitor Villa-Lobos; na realidade, essas disciplinas converteram-se em uma disciplina geral denominada Educação Artística, o que obrigou os professores que possuíam formação especializada e atuavam no quadro de conhecimentos específicos a adaptar-se a essas novas exigências, aprendendo a desenvolver, em suas aulas, de tudo um pouco. Agora, outra lei, também sancionada em 2008, reintroduziu o ensino de Música, tornando-o obrigatório nas escolas do país; tal fato leva-nos, novamente, às mesmas questões fundamentais: o que ensinar e como ensinar? E, sobretudo, quem deve ensinar essa disciplina? Onde e como formar pessoas habilitadas ao exercício do ensino de conteúdos de um campo tão específico?3 3 . Lembremos que, logo após a introdução do ensino obrigatório de Música nas escolas, criou-se, em 1942, o Conservatório Nacional de Canto Orfeônico, visando à formação de professores, tendo sido essa instituição dirigida por Villa-Lobos até sua morte em 1959. Para contribuir para a reflexão sobre essas questões, a seção Diverso e prosa publica, neste número da Pro-Posições, um texto de um autor ainda pouco conhecido no Brasil - Emile Jaques-Dalcroze -, compositor e professor suíço, que viveu de 1865 a 1950 e desenvolveu a maior parte de sua obra em Genebra, cidade na qual fundou, em 1915, um Instituto que leva seu nome e que lá permanece até hoje. Esse breve texto, ''Os estudos musicais e a educação do ouvido'', foi publicado, pela primeira vez, em francês, em 1898, período no qual Jaques-Dalcroze ainda elaborava sua ''Rítmica'', uma proposta de educação musical inteiramente fundamentada em exercícios corporais. Esse ''método integral de rítmica'' nasceu ''da convicção íntima de Jaques-Dalcroze de que nosso intelecto, nossa sensibilidade e nosso corpo, que Montaigne considerava como intimamente 'costurados', estão, muito frequentemente, em desacordo, ('desafinados')''4 4 . ''... de la conviction intime de Jaques-Dalcroze que notre intelect, notre sensibilité et notre corps, que Montaigne voyait étroitement cousus ensemble, sont trop souvent, désaccordés''. BERCHTOLD, Alfred. Emile Jaques-Dalcroze et son temps. Lausanne: L´Âge d´Homme, 2000. p. 85. . É um grande prazer e constitui um verdadeiro privilégio para a revista Pro-Posições apresentar a primeira tradução em português de um texto de um autor de renome internacional, divulgando, assim, a um amplo público o trabalho de um dos grandes mestres do século XX, no campo da educação musical. A introdução de José Rafael Madureira e de Luci Banks-Leite, responsáveis também pela tradução que contou com a primorosa revisão de Leda Farah, procura contextualizar os primórdios do trabalho de Dalcroze, em uma época em que ele teve grandes dificuldades para inovar e trazer uma contribuição original ao ensino de Música, proposta hoje bem estabelecida nos cinco continentes. A autorização para essa publicação foi possível graças à gentileza dos herdeiros de Emile Jaques-Dalcroze, em particular de Martine Jaques-Dalcroze, e da Hug Musikverlage (Zurich), detendora dos direitos do autor.

A revista publica, ainda, cinco artigos de professores inseridos em universidades brasileiras, sobre os seguintes temas: Espinosa e o Ensino, Educação Inclusiva, Fotografia e Quotidiano escolar, Literatura Infantil, Freire e Vygotski no ensino de Ciências. Temas que contemplam, portanto, múltiplos campos de investigação, tendo em vista um público com interesses diversificados.

E, para finalizar, resta um pequeno comentário sobre a resenha que trata de uma coletânea de textos de autoria do Professor Dr. Julio Groppa Aquino (FE-USP), intitulada Instantâneos da escola contemporânea. Quem apresenta esse livro é Heloisa B. A. Rubman, orientadora educacional do Colégio de Aplicação da UFRJ, cuja vasta experiência relativa às práticas do quotidiano escolar no contexto da realidade brasileira a torna muito bem credenciada para comentar esses estimulantes textos do Professor Aquino.

Luci Banks-Leite

  • 1
    . Segundo o artigo ''Competitividade e Educação'', de 2009, do Professor Dr. José Pastore, acessado no
    site <
    www.josepastore.com.br>, em 13.02.2010.
  • 2
    . A entrevista, publicada no caderno Cultura do jornal
    O Estado de S. Paulo, em 17-12- 2006, com o título ''Educar, a última chance do Brasil'', indica que essa discussão permeia as preocupações dos professores da área há algum tempo.
  • 3
    . Lembremos que, logo após a introdução do ensino obrigatório de Música nas escolas, criou-se, em 1942, o Conservatório Nacional de Canto Orfeônico, visando à formação de professores, tendo sido essa instituição dirigida por Villa-Lobos até sua morte em 1959.
  • 4
    . ''...
    de la conviction intime de Jaques-Dalcroze que notre intelect, notre sensibilité et notre corps, que Montaigne voyait étroitement cousus
    ensemble, sont trop souvent, désaccordés''. BERCHTOLD, Alfred.
    Emile Jaques-Dalcroze et son temps. Lausanne: L´Âge d´Homme, 2000. p. 85.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      17 Set 2010
    • Data do Fascículo
      Abr 2010
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