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Vozes roubadas: diários de guerra

LEITURAS E RESENHAS

Vozes roubadas: diários de guerra

Zeila de Brito Fabri Demartini

Professora do Mestrado em Educação da Universidade Metodista de São Paulo (Umesp), Pesquisadora do Centro de Estudos Rurais e Urbanos (CERU) da Universidade de São Paulo (USP) e do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), Brasil. zeila@usp.br

CHALLENGER, Melanie; FILIPOVIC, Zlata. São Paulo: Cia. das Letras, 2008. 376p.

Não é fácil falar ou escrever sobre este livro, que é como um "soco no estômago", que conduz ao silêncio e à reflexão: Vozes roubadas: diários de guerra, organizado por Zlata Filipovic e Melanie Challenger. Publicado em 2006 com o título de Stolen voices: young peoples's war diaries, from World War I to Iraq, foi recentemente traduzido para o português e, assim, disponibilizado para um público mais amplo, no qual incluo, necessariamente, educadores.

Vozes roubadas lembrou-nos o já clássico livro coordenado por José de Souza Martins: O massacre dos inocentes: a criança sem infância no Brasil (1991), no qual os autores abordam os problemas vivenciados por crianças em diferentes situações e regiões do país, tratando-as não apenas como objetos de investigação, mas como atores importantes no próprio processo de investigação, ao incorporar nos estudos as visões das próprias crianças, e não apenas as daqueles que as observam.

Ao tratarmos dessa temática e do processo de escolarização de crianças e jovens, já chamamos a atenção, em muitas ocasiões, para a importância dos relatos sobre a infância (Demartini, 2006; 2009). Em nossas pesquisas focalizamos, principalmente, os relatos orais obtidos durante o próprio processo de pesquisa, em que entrevistamos jovens e adultos; suas memórias foram importantes para colocar novos questionamentos e contribuir com fatos novos para o conhecimento e a problematização do campo educacional. Mas são narrativas produzidas a posteriori, em outro tempo que não mais o da infância e da juventude. No caso de Vozes roubadas, as narrativas foram produzidas enquanto seus autores eram crianças ou jovens.

A escrita autobiográfica, nesse caso, ganha especificidades que a diferenciam daquela que é escrita pelo autor após toda uma trajetória de vida, na idade adulta: ela nos aproxima da criança/jovem e de seus pensamentos e sentimentos no momento vivenciado, abrangendo guerras ocorridas entre 1914 e 2004. No livro em resenha, além dos textos que prefaciam e introduzem o conteúdo, a reflexão sobre as narrativas de crianças e jovens é apresentada em estado bruto aos leitores: são os diários escritos por 14 crianças/jovens no período em que vivenciavam as situações de guerra que alteraram suas vidas.

Além das narrativas dos próprios diaristas, o leitor pode contar com a prévia apresentação que as autoras fizeram de cada um deles e do período que vivenciaram, o que facilita o entendimento dos textos, especialmente para os leitores que não conhecem em profundidade o desenrolar de todas as guerras referidas. Nesse sentido, também nos auxilia o glossário anexado no final do livro.

As narrativas dos diaristas estão acompanhadas por fotos deles, o que leva o leitor à aproximação e a certa percepção da fragilidade dos corpos dessas crianças e jovens que foram expostos a situações de conflito tão terríveis.

A leitura dos diários suscita várias indagações, ao serem abordadas tanto situações mais habituais da vida de crianças e jovens em seu cotidiano nas escolas, nas casas, nas ruas - em atividades escolares, culturais e de lazer -, assim como em outras que vão sendo a elas incorporadas pelo contexto de guerra: acompanhar os trens que passavam com os soldados para o front ou com feridos que dele voltavam; confeccionar peças para os soldados, preparar comidas, cuidar de novos cemitérios, esconder-se em bunkers, deslocar-se para outros lugares, passar fome, etc.

Poder-se-ia pensar que são situações atípicas, que já findaram para a maior parte dos povos, que continuam acontecendo somente em algumas poucas regiões, mas não é o que os dados apontam; como observou a representante especial do Secretariado-Geral para Crianças e Conflitos Armados das Nações Unidas no início do prefácio escrito em 2005, na "última década dois milhões de crianças foram mortas em situações de conflito armado, enquanto outros seis milhões foram mutiladas ou feridas" (p. 7), além das que ficaram desabrigadas, das que são obrigadas a se refugiar fora de sua terra, das que são usadas como soldados nos conflitos.

A leitura dos diários escritos ao longo de um século (de 1914 a 2004) leva certamente a refletir sobre como as várias formas de violência (praticadas pelas políticas de Estado, pelos grupos sociais que se diferenciam, pelos próprios familiares, etc.) são objeto de reflexão das próprias crianças e jovens. Para exemplificar, tomamos nesta resenha alguns diários dos mais jovens que escreveram sobre "suas" guerras: Piete Kuhr (12-15 anos), Nina Kosterina (15-20 anos), Inge Pollak (12-15 anos) e Sheila Allan (17-21 anos).

Inge, por exemplo, uma diarista que foi da Áustria (Viena) para a Inglaterra, em 1939, morar com sua irmã na casa de uma família inglesa (os Robins), fugindo da perseguição aos judeus e deixando a mãe e a avó em Viena e o pai em Paris, escreveu várias vezes em seu diário:

[...] Primeiros dias de guerra. [...] Não sei o que aconteceu com meus pais em Viena e Paris. Se fico muito tempo ociosa, os pensamentos mais turbulentos começam a me oprimir e fico com dores de cabeça e de barriga. Fico remoendo os mesmos pensamentos, mas muita filosofia faz mal às pessoas". 6 de setembro de 1939 (p. 132).

As situações tensas, ao contrário do que se possa supor, são percebidas pelas crianças/jovens, que procuram explicações - sem geralmente encontrá-las - para os conflitos que são deflagrados entre as nações e as pessoas. A grande questão que está presente nos diários é: Por que a guerra? E, geralmente, a constatação dos vários diaristas: tínhamos uma vida tranqüila, com nossos pais e nossa família, como tudo mudou? Por que as pessoas precisam matar? E morrer?

Em contexto muito diferente, Sheila Allan (nascida na Malásia em 1925, vivenciou a conquista de Cingapura pelos japoneses, período em que ficou presa com sua família e mais dois mil cidadãos da Comunidade Britânica na prisão de Changi) horrorizava-se com a situação de guerra: [...] "Então, isto é a guerra! É isto que a guerra faz! Meu Deus! Que desperdício de vidas! Que devastação! Uma destruidora de jovens e velhos! Quem pode glorificar a guerra? Por que temos que lutar e ferir um ao outro?" (p. 158-159).

A guerra permeava as relações familiares das crianças e dos jovens, provocando afastamentos e incertezas anotados nos diários. Em Moscou, a jovem Nina Kosterina, filha de um jornalista comunista, escrevia também, em setembro de 1938: [...] "Que sinistra escuridão envolveu-me a vida toda. A prisão de papai é um golpe tão grande que quase me dobra a espinha. [...] O pesadelo desse pensamento me oprime dia e noite: será também meu pai um inimigo?" (p. 93).

Na Alemanha, durante a Primeira Guerra Mundial, a pequena Piete Kuhr criticava duramente o conselho da mãe para que visse o lado heróico da guerra, o "combate aos inimigos que queriam roubar o país e a honra" e chorava porque as pessoas morriam.

Por meio das narrativas escritas no dia-a-dia pelas crianças e jovens, é possível acompanhar o desenrolar dos vários conflitos e a forma como eles foram afetando a vida de suas famílias, dos amigos, dos vizinhos, das escolas da cidade e do país. É possível também compreender como o processo de escolarização das crianças e dos jovens foi sendo influenciado tanto pelas dificuldades enfrentadas como pelas políticas de Estado. Nos diários, percebe-se claramente como eram envolvidos nas escolas em atividades que pudessem cooperar com os "esforços de guerra". Assim, por exemplo, Piete anotava no seu diário como as meninas das escolas de Schneidemühl se reuniam à tarde, cada qual na sua turma, para tricotar meias, cachecóis, gorros, joelheiras, luvas, e protetores de orelha para os soldados (p. 47). Também Nina descreveu inúmeras comemorações oficiais em Moscou, promovidas pelo governo de Stálin, como festividades do Primeiro de Maio e os comícios na Praça Vermelha, em que podiam ver todos os líderes.

O detalhamento dos acontecimentos políticos é aspecto que chama a atenção nas narrativas, pelo conhecimento demonstrado pelos jovens diaristas. Seriam crianças/jovens, de alguma forma, já diferenciados? O pertencimento a famílias com alguma atuação política teria desenvolvido sua atenção para esse campo geralmente pouco considerado para os jovens de hoje? Ou o contexto impõe reflexões? O fato é que é possível acompanhar o desenrolar dos conflitos por meio dos escritos. Alguns trechos dos vários diários exemplificam bem o cuidado e a clareza nos registros: sobre a Primeira Guerra Mundial, como anotou Piete (p.42); sobre a Rússia, como escreveu Nina em junho de 1936/1937 (p.76-80 e 81). Ao mesmo tempo, pode-se perceber nas narrativas como iam sendo veiculadas as ideologias, justificadoras das medidas políticas, frutos dos confrontos entre grupos e nações, muitas vezes não compreendidas pelas crianças e pelos jovens. O convencimento de crianças e jovens e a imposição ideológica permeavam todos os espaços de suas vivências, principalmente os educacionais.

Aspecto importante é poder constatar como os preconceitos e as discriminações que foram sendo construídos ao longo das situações de conflito são apontados e questionados por vários diaristas, que não conseguiam entender como, de repente, seus pais, seus familiares, seus vizinhos tornavam-se "inimigos" políticos, pessoas que deveriam ser denunciadas, presas e até mortas. As discriminações aos judeus apareceram com freqüência, tanto entre os diaristas de origem judaica como entre os não judeus. Também os preconceitos entre grupos com convicções religiosas distintas, em disputa nos mesmos territórios.

Muitos outros aspectos poderiam ser ressaltados a partir da leitura desses escritos, como as experiências juvenis no tocante às amizades, aos namoros e às relações entre gerações. As apropriações que cada leitor poderá fazer dos diários são várias.

Para os próprios diaristas, a forma como foram se apropriando do ato de escrever e dos diários, nos quais anotavam os sentimentos e os fatos que não poderiam relatar nem mesmo aos familiares, evidencia que, de certo modo, a escrita era como uma válvula de escape no quotidiano sofrido.

De certa forma, a publicação desse livro corresponde às expectativas de alguns diaristas: de que fossem lidos tempos depois. Mesmo como crianças/jovens, observa-se que têm a percepção de que os diários seriam documentos importantes de uma época. Remi Hess (2006, p. 94), em instigante artigo sobre diários, observou que, com o tempo, o diário adquire uma dimensão histórica: "Quando um diário é descoberto ou lido, com o distanciamento temporal, ele torna-se um banco de dados interessante para o historiador".

E podemos acrescentar que assim também é para os educadores brasileiros. Será que podemos supor que no Brasil as situações de guerra não atingem a população, de modo geral, e os alunos, de modo especial? Não vivenciariam nossas crianças e nossos jovens conflitos armados ou situações de enfrentamento que são as "nossas guerras"? Zlata Filipovic, ela própria uma diarista, já nos alerta na introdução: "Como forma natural de nos protegermos, procurando nos certificar de que jamais tenhamos de vivenciá-las, preferimos não pensar a respeito das guerras e as transferimos para outras pessoas, distantes de nós" (p. 13). Mas e as guerras entre os morros; entre os grupos que dominam os bairros, as favelas, as prisões; as balas "perdidas" que todo dia atingem crianças e jovens; a prostituição infantil na guerra contra a fome; a violência nas escolas; os "aviõezinhos do tráfico", usados pelos traficantes? E a violência no campo? Não seriam as nossas guerras? Não devemos refletir sobre elas, como educadores, preocupados com a formação dos sujeitos segundo valores humanitários? Também a esse respeito as editoras nos auxiliam: "[...] decidimos interpretar o conceito de guerra de maneira mais ampla, para incluir não apenas situações que ficaram conhecidas e foram designadas como guerras, mas também vários conflitos mundiais e instâncias de violência coletiva" (p. 14). O que pensam nossas crianças e nossos jovens sobre a violência coletiva que os atinge, de uma forma ou de outra? Como a estariam registrando? Em cadernos, em blogs, em fotologs, em programas de rádio, em muros, em música? Ou apenas permanecem em silêncio?

Talvez coubesse aos educadores estimular a prática do registro autobiográfico pelas crianças e jovens, assim como também discutir os recursos tecnológicos mais usuais para tanto. O que pensamos nós, educadores e pesquisadores, sobre tais questões?

  • DEMARTINI, Zeila de Brito Fabri. Infância e imigração: questões para a pesquisa. In: FREITAS, Marcos Cezar (Org.). Desigualdade social e diversidade cultural na infância e na juventude. São Paulo: Cortez, 2006. p. 113-153.
  • DEMARTINI, Zeila de B. F.; FARIA, A.; PRADO, P. (Org.). Por uma cultura da infância: metodologias de pesquisa com crianças. 3. ed. Campinas: Autores Associados, 2009. (Coleção Educação contemporânea). No prelo.
  • HESS, Remi. Momento do diário e diário dos momentos. In: SOUZA, E. C. de; ABRAHÃO, M. H. M. B. (Org.). Tempos, narrativas e ficções: a invenção de si. Prefácio de Marie-Christine Josso. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2006. (p. 89-103).
  • MARTINS, José de Souza (Org.). O massacre dos inocentes: a criança sem infância no Brasil. São Paulo: Hucitec, 1991.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    17 Set 2010
  • Data do Fascículo
    Ago 2009
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