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Amar sem aulas práticas: apresentação

DIVERSO E PROSA

Amar sem aulas práticas - apresentação

Miriam V. Gárate

Professora do Departamento de Teoria Literária do Instituto de Estudos da Linguagem da Unicamp, Campinas, SP, Brasil. miriam_garate@yahoo.com.br. Luiz Dantas foi seu orientador no mestrado e no doutorado

Os que tiveram o privilégio de conhecer Luiz Dantas não terão dificuldade em identificar no ensaio aqui republicado algumas de suas qualidades essenciais, espelhadas na escrita: resgate de detalhes à primeira vista pouco significativos (sensibilidade apurada para com esses "pequeninos nadas" invocados por Bandeira em "Itinerário de Pasárgada" e retomados por Dantas num artigo acerca deste1 1 . "Pequeninos nadas, graças aéreas e certas coisas". In: Lopez, Telê Porto Ancona (Org.). Manuel Bandeira: verso e reverso. São Paulo: T. Queiroz, Editor, 1987. p. 48-58. ); análise rigorosa e sofisticada, conduzida, no entanto, em tom "menor", despretensioso; estabelecimento de relações entre o texto examinado e outros textos (do mesmo autor, da mesma cultura, de outras esferas culturais) ou entre o texto examinado e outras manifestações artísticas (música, artes plásticas, cinema). Essas qualidades estão presentes tanto em "As armadilhas do paraíso"2 2 . In: Novaes, Adauto (Org). O desejo. São Paulo: Companhia das Letras, 1990. p. 457-470. e "O alienista de Machado de Assis: a loucura e a hipérbole"3 3 . In: Ribeiro, Renato Janini (Org.). Recordar Foucault. São Paulo: Brasiliente, 1985. p. 144-152. , quanto neste "Amar sem aulas práticas", primorosa leitura do conto de Mário de Andrade, "Atrás da catedral de Ruão". (o título deste ensaio acena para outra qualidade essencial de Dantas: uma discreta malícia).

À redação de textos críticos deve acrescentar-se a preparação de obras inéditas (caso exemplar, a edição e o estudo preliminar de O Japão, de Aluízio Azevedo4 4 . São Paulo: Roswitha Kempf Editores, 1984. ) e a tradução, ora para o francês (L'Athénée, de Raul Pompéia5 5 . Aix-en-Provence: Pandora, 1980. Tradução e Prefácio. ), ora para o português (Pierre-Auguste Renoir, meu pai, de Jean Renoir6 6 . São Paulo: Paz e Terra, 1988. ; O gabinete negro, de Max Jacob7 7 . Ainda inédito. ).

Todavia, provavelmente o maior legado de Luiz Dantas seja a imensa generosidade e o desprendimento com que partilhou ao longo dos anos, com alunos, orientandos e amigos, seus interesses e suas descobertas. Graduado em Letras Modernas, Mestrado e Doutorado pela Université d'Aix Marseille I (França), Luiz Dantas foi docente do Departamento de Teoria Literária do Instituto de Estudos da Linguagem (Unicamp), desde 1986 até seu falecimento, em 13 de abril de 2008. Os que não tiveram o privilégio de conhecê-lo, têm a oportunidade de vislumbrar algumas de suas qualidades essenciais, graças à republicação de "Amar sem aulas práticas", convite à leitura de outros textos de sua autoria.

Amar sem aulas práticas8 8 . Este texto foi originalmente publicado no Caderno de Cultura do jornal O Estado de S.Paulo, em 16 de setembro de 1984 (p.6-7). Agradecemos aos familiares do Prof. Luiz Dantas, e também ao jornal, a autorização para a reprodução (N.E.).

Luiz Dantas

A décima edição de Amar, verbo intransitivo não é apenas uma edição a mais de um texto de Mário de Andrade ainda pouco conhecido, mas vem marcada por uma renovação na maneira de ler o escritor paulistano. Diga-se já, a nova edição é acompanhada por um estudo de Telê Porto Ancona Lopez, "A difícil conjugação", que agita singularmente nossas idéias sobre Mário de Andrade.

O mito da originalidade absoluta do escritor, da criação isolada numa espécie de autocombustão, sem empréstimos nem apelos ao mundo exterior, é uma visão que termina por provincianizar, em vez de engrandecer. Muito mais rica é a compreensão da formação, os caminhos emaranhados pelos quais chegam as contribuições, e depois essa química sutil que as funde, que aproveita, que adapta, ciência, essa, sim, individual, na qual o gênio se mede. E a receptividade de Mário de Andrade à estética expressionista alemã, mas, sobretudo, sua assimilação, à primeira vista paradoxal, dentro de um projeto de literatura nacional, é fascinante.

Amar, verbo intransitivo, cujas harmonias insolentes poderiam ser recebidas por um ouvido superficial como espontâneas ? surpresas e descobertas da língua falada, desalinho de um "original" empenhado em desempoeirar modelos ?, esconde, afinal, uma assombrosa tarefa de pesquisa. De pesquisa e de fecundação. E são esses delicados problemas de genética no processo de criação literária, entre outros, que "A difícil conjugação" revela. As reflexões que aqui vão, todavia, não são uma notícia do texto crítico, propriamente, mas seu prolongamento até outra obra de Mário de Andrade. E o que precedeu, o esclarecimento de uma filiação.

Mário de Andrade, nos Contos Novos, criou um curioso personagem, comparável a Fräulein de Amar, verbo intransitivo. Uma quase irmã mais velha, se considerarmos as idades das heroínas, mais nova, se tivermos em espírito a cronologia das obras: a Mademoiselle de "Atrás da catedral de Ruão". A professorinha de francês "solteirona", "quarentona", e suas duas pupilas, Lúcia e Alba, "quase moças, 16 e 15 anos desenvoltos", consagram-se ao aprendizado de uma matéria incerta, um terreno brumoso, onde a fabulação tateia através de reticências e muitos pontos de interrogação. Uma lição de amor sem aulas práticas, um verbo amar cheio de mistérios. E o conto pode ser lido à luz do idílio de Fräulein.

Nos dois textos, uma mesma geografia, São Paulo, é claro, mas, mais precisamente, o sólido Higienópolis das boas famílias. Fräulein chega à Vila Laura, o casarão dos Sousa Costa, de táxi; Mademoiselle sobe, concreta e figuradamente, de bonde, o bonde Angélica, para suas lições cotidianas, e ao cair da tarde desce até a pensãozinha, nas imediações do gótico duvidoso da igreja de Santa Cecília.

O narrador conhece o nome de Fräulein: Elza. Fräulein serve para encobrir uma impostura, é a fachada respeitável que esconde por detrás da governanta e professora de alemão, a iniciadora profissional do rapazola. Mas Fräulein tem suas horas de Elza, 35 anos ainda atraentes, sonhando com o retorno à Alemanha, depois de feita a América, e o casamento, o vago amado distante à espera de proteção, espécie de redenção wagneriana pelo amor. Mademoiselle é me-nos complexa, é só Mademoiselle. A idade, o desgaste físico dos anos, a solidão a empurraram para além do umbral, deixando do lado de cá toda esperança... E se a verdadeira velhice ainda não está tão perto, ou amarga, ou dignamente apaziguada, o presente do conto é um momento de crise. Caem as máscaras, as conveniências pesam, a sexualidade revela-se brutalmente. E uma sexualidade que não sabe claramente articular os seus desejos.

"Atrás da catedral de Ruão" reúne quatro personagens: Mademoiselle, as alunas Alba e Lúcia, e a mãe, dona Lúcia. Quatro mulheres que a solidão assemelha e que a idade e a condição social diferenciam. E os homens ausentes, concretamente, povoam o imaginário como uma obsessão. Mademoiselle confessará: "Il y a des jours où je sens à tout moment qu'un ... 'personage' me frôle!!" Sim, em francês. E Mário de Andrade saberá utilizar esse bilingüismo como partido expressivo. Não que ele sistematize a transposição dos diálogos em francês, recurso de um realismo fácil. Não, o mecanismo é mais sutil. Em primeiro lugar, passa-se de uma língua à outra diretamente, sem a transição das aspas; esse sinal sendo reservado para sublinhar as palavras-chave, como o "personnage" de há pouco. Também entre aspas aparecerão as referências a certas anedotas, por exemplo a que dá origem ao título do conto ou então a da canção de Lisette no bosque, ou a do homem do cavanhaque pontudo, etc. Essas historietas, espécie de mitologia pessoal, quase inocentes, quase torpes, fornecem às três senhoritas um léxico, que embora permanecendo recatado, se situa na exata fronteira entre o obscuro e o explícito. Mademoiselle, Alba e Lúcia falam do sexo por metáfora, elas o exploram por aproximação, verbalmente. E tudo isso pede uma conivência segredista, um pouco como as crianças, que, ao brincar de médico, preferem, instintivamente, fazê-lo às escondidas. E as anedotas pontuam o texto num sistema complexo de recorrências, ou, musicalmente, de temas, variações e desenvolvimentos. Fica mais claro agora o papel do francês, enquanto linguagem da cumplicidade. Não a língua "leal" (expressão do próprio narrador), mas código repleto de chaves secretas, para o uso exclusivo do pequeno trio. E que boa farsa esse desvio do francês, veículo consagrado das boas maneiras, em terreno experimental, onde donzelas dos 15 aos quarenta e tantos realizam sua educação sexual!

Nada a ver com o alemão que Fräulein ensinava aos jovens Sousa Costa, eficaz, pontual, e que uma só vez a governanta e o aluno tentaram utilizar como código secreto. O encontro no caramanchão, bem inocente na verdade, termina com a chegada em enxame das demais crianças, que também interceptaram a mensagem. Do léxico dos amantes, uma só palavra, propriedade de Fräulein e de Carlos, permanecerá indecifrável: geheimnis (segredo).

É com economia que Mário de Andrade descreve o físico de Mademoiselle, só destacando seu envelhecimento, maldisfarçado pelo pó-de-arroz espesso. Mais importante é o vestuário, ou melhor, um de seus elementos, conciso e significativo, incessantemente lembrado, emblemático: "a blusa professoral, alvíssima, cheia de rendas crespas". Também Fräulein não negligenciava o aspecto exterior. Seu primeiro gesto, ao chegar à Vila Laura, é parar um instante, e dar "à gola da blusa, às pregas do casaco, uma rijeza militar". Mas Fräulein, um pouco como seus cabelos, de um louro em contínua mutação, esconde inúmeras possibilidades, que se vestem, todas elas, no momento conveniente, a sua maneira. Nesse assunto, nenhum olhar foi tão arguto quanto o de Balzac. O vestuário, como fio precioso de análise humana, interessava a Balzac não da mesma maneira que ao ingênuo, que acredita em hábitos e monges, mas ao avesso. É como projeto de representação (o que não quer dizer impostura, necessariamente) que a roupa é reveladora implacável do indivíduo. Vestir-se é dar de si uma imagem, a imagem que propomos aos outros como verdade sobre nós mesmos. Dize-me qual disfarce escolheste e dir-te-ei quem és... E as blusas de Mademoiselle ostentam, para o mundo, imaculada, austera e higiênica virgindade. O cuidado repetido com que ela engoma e encrespa suas rendinhas faz parte da estratégia contra o "personagem" que a roça... Ironia da situação, o espinhal eriçado e intransponível que protege Mademoiselle dos "esbarrões" temidos termina por tornar-se obstáculo também, aos "esbarrões" desejados, e, esses, com que virulência!

Mundo ambivalente. O que se diz é quase sempre o contrário do que se pensa; e o que se pensa, por vezes, é uma mentira sobre os próprios desejos. Freud, é claro, está fortemente presente no conto, é premissa e conclusão. E os elementos para a análise não são parcos. Um verdadeiro cortejo de associações de idéias, de atos falhos, de sentidos duplos escapa aos personagens, que se deixam perscrutar pelos olhares indiscretos do narrador e do leitor.

É através de recursos que provêm da linguagem que Mário de Andrade recria essa atmosfera propícia à análise freudiana. Enumeremos alguns exemplos. Logo no início do conto, Alba, uma das alunas, vendo a professora estremecer, pergunta à queima-roupa: "Est-ce que vous avez froid par cette chaleur?..." O artifício de estilo, que consiste em reunir palavras normalmente opostas e contraditórias, "frio" e "calor", não aparece aí como um mero acidente, nem desprovido de intenções. Ao contrário, o paradoxo ou a antítese serão o meio natural dos sentimentos de Mademoiselle se expressarem, sempre presa de comportamentos opostos e em luta. E o recurso, organicamente necessário, é constante. Para reforçar a afirmação, enumeremos, ainda nas primeiras páginas do conto, outros exemplos da mesma figura de estilo: "uma daquelas reticências que punham sempre as três tão fogosamente na proximidade do perigo"; "corando com volúpia nas faces pálidas"; "era o jeito que tinha de não dar nenhuma importância ao que as três pressentiam ser importantíssimo", etc. E a lista poderia ser longa, se fôssemos em busca de todos os casos. Também os gestos de Mademoiselle, nunca naturais, aliás, mas sempre excessivos, ou grandiloqüentes, ou preciosos, terão uma expressão estilística particular, próxima da representação dos sentimentos descrita. Notemos, por exemplo, como Mário de Andrade alinha adjetivos, superlativos e diminutivos, com uma intenção claramente antitética: "e Mademoiselle, sempre na sua blusinha alvíssima, de rendinhas crespas"; "Mademoiselle estava soberba, muito esguiazinha, magistral"; "Mademoiselle soltava 'petits cris', excitadíssima"; "Mademoiselle deu um galeio pra frente com o pescocinho, mais uma corridinha e conseguiu se distanciar do monstro", etc. O comportamento da professora resulta de um jogo de contrastes, sejam eles morais ou gestuais, como se um mecanismo, outrora voluntariamente contido, se tivesse subitamente desregulado. E passase de um movimento do pêndulo ao outro, sem as transições que corrigiriam a trajetória. A máquina perdeu o seu controle. E toda essa desordem, a crise de Mademoiselle, não é descrita de um modo clínico, propriamente, mas encontra um sistema de representação, verbal. Está aí o interesse maior do conto, a maneira pela qual Mário de Andrade, através de uma elaboração formal extrema, obtém uma espécie de histeria estilística.

As historietas de que é formado o imaginário das três aprendizes do verbo amar, que já referimos, se reduzem a um esquema, proposto desde as primeiras páginas do conto. Musicalmente, seria a frase simples do tema, gerador de todas as variações subseqüentes. Três são as combinatórias a partir das quais esse imaginário se organiza. Mário de Andrade cria habilmente um verdadeiro qüiprocó fonético, três palavras francesas quase homófonas, que a professora confunde na corrente da conversa: "le Mal", "lê male" e "faire mal". O trocadilho duvidoso, pretexto à lição de pronúncia, é uma verdadeira associação de idéias, no sentido freudiano. "O Mal", "o macho" e "machucar" é o trinômio sucinto ao qual se podem reduzir todos os fantasmas de Mademoiselle. As próprias anedotas maliciosas, em torno das quais terminam sempre por voejar as imaginações aliadas das senhoritas, só fazem retomar e ampliar essa associação de idéias primordial.

Já dissemos há pouco que o desejo sexual de Mademoiselle era expresso por uma metáfora. Ao estremecer, sem razão aparente, a professora confessava às alunas que, em certos dias, tinha a sensação que um personagem a "roçava". Não se trata, exatamente, de um eufemismo, que permite à mestra fazer suas confidências num tom dentro dos limites da conveniência, mas de uma real incapacidade de dar nome aos bois. Até um certo ponto, "roçar", para Mademoiselle, não é tomado no sentido figurado. É o sentido próprio de um ato que ela só conhece aproximadamente, metaforicamente. E no decorrer do conto, em que se assiste a uma exacerbação do desejo, Mademoiselle tornando a sua busca do "personagem" cada vez mais ousada, reencontraremos, pontuando o texto, essa imagem. Entretanto, a idéia primeira será submetida a transformações progressivas, a sinonímia completa de "roçar" será percorrida, desenvolvendo todas as possibilidades da variação, num movimento sempre crescente. Vejamos, alguns parágrafos além, o exemplo seguinte, que é a etapa subseqüente do processo. O episódio em si não tem importância, lembrança banal de travessia em navio, uma das historietas das alunas, cuja malícia seria absurda se esquecêssemos o valor secreto do léxico empregado. Um grumete vem diariamente "esfregar" o chão da cabina de Mme. de Lavellais, uma das vizinhas de camarote e de viagem pelo Mediterrâneo: "Alors ... il fallait voir ça, Mademoiselle, ce qu'il frrrottait consciencieusement!" O que provoca na professora uma explosão de riso nervoso, seguida por uma reação contrária, de reprovação. Lembremos rápido o partido expressivo que tira Mário de Andrade de um aspecto puramente auditivo da frase, esse "r" de "frotter", acentuado, "raspado" como num certo tipo de pronúncia do francês, de um chique parisiense um pouco afetado. Eis-nos então, em pleno processo de expansão da metáfora-arquétipo, continuamente reforçada no texto.

Mademoiselle, a quem a especulação verbal a propósito do "personagem que roça", em companhia das alunas, não mais satisfaz, tenta explorar a cidade: "Ela sentia masculinos 'ces personnages' que a frolavam no escuro do quarto, na fala das meninas, na desvirginação escandalosa das ruas. Agora Mademoiselle anda de a-pé e procura nos jornais onde é o lugar de encontro das multidões". Tal é a situação absurda desse desejo que não chega nunca a descobrir claramente o seu objeto. No universo das três senhoritas, a materialização do sexo só é possível através da linguagem, mas de uma linguagem figurada, sem reenvio explícito ao real. E no momento em que não for mais possível dispensar o contato com a realidade, e contando unicamente com o auxílio precário dessa meia dúzia de metáforas suspeitas, a solução resulta num desajeitamento extremo, como nessa comédia dos "esbarrões". Sob esse aspecto, pode-se lembrar ainda uma vez as pesquisas formais de Amar, verbo intransitivo, em que o problema da relação entre sexualidade e linguagem também se coloca. Como lembra a autora de "Uma difícil conjugação", a cada vez que a boa moral é transgredida pelos seus personagens, o narrador interfere, censurando voluntariamente o texto. O meio empregado será a mutilação da frase por uma pontuação incisiva, deixando bem clara a intervenção: "Porém, passar uma hora juntinhos depois de!... que horror!" A palavra nua e crua é extirpada, porque o ato cru e nu, e real, choca o sistema de valores dos personagens, e do narrador, que finge completamente a pudicícia, para melhor acusar a hipocrisia generalizada. O ponto final, ou o ponto de exclamação, lá estão para esconder a cena, como as tiras de papel censurando as imagens pornográficas. Já em "Atrás da catedral de Ruão", as palavras nada encobrem, elas são, ao contrário, a única realidade; as reticências transformam-se em pontuação preferida, e desaguam irremediavelmente num mar ignoto e cheios de brumas. Mademoiselle, que tenta aventurar-se nesse terreno, retornará com as mãos vazias, ficando como antegosto do prazer, só um certo arrepio, que ela acaba por gratificar no final do conto.

As aulas de francês de Mademoiselle têm uma longa história; a professora tendo acabado por se tornar, aliás, dama de companhia das meninas, sem funções muito delimitadas. Desse passado e dessa convivência restam algumas referências, bem sumárias, com exceção de um episódio, narrado em seus pormenores. Uma história quase policial. O cenário é Paris. Mademoiselle, que acompanha a família à Europa, torna-se testemunha de um crime em seu hotel: um homem entra e mata alguém com cinco tiros de revólver. É o homem do cavanhaque pontudo, e, ao reviver a cena, Mademoiselle repete com probidade a onomatopéia dos disparos, os cinco "pum" ouvidos no hall. Como as demais historietas que encorpam a conversação das senhoritas, a aventura do homem de cavanhaque pontudo não deixa de arrastar seus subentendidos. Primeiramente, é a retomada da associação de idéias inicial, quando a professora relacionava de modo imediato e intrínseco o homem ao mal e à violência. E, em seguida, a aventura ou alguns dos seus elementos serão objeto de um desenvolvimento, pelo menos surpreendente. Mário de Andrade, que já tinha fixado o aspecto exterior da professora pela blusa simbólica, insiste num outro traço de comportamento: Mademoiselle "vivia resfriada (...) chegava afrosa, nariz vermelho, pingando". O mal crônico tratado à homeopatia é atribuído maldosamente às noites frias do setembro paulistano, em que Mademoiselle passa a espreitar a gataria sobre os telhados de Santa Cecília. É a explicação prosaica. Mas o resfriado de Mademoiselle, dentro ainda da dominante freudiana do conto, é também apresentado como psicossomático; "je suis enrhumée", ela se pensa, heroicamente na presciência de que as "constipações" protegem contra os assaltos à virgindade. A gripe perpétua, os espirros intermináveis estorvam o aconchego como a blusa professoral, tão pouco adaptada à carícia: são as armas de que é feito o arsenal dissuasivo e preventivo de Mademoiselle, contra qualquer aproximação excessiva do "personagem". E, num paralelo inconsciente, os espirros repetidos, que vêm socorrer Mademoiselle durante as esbaforidas e imaginárias perseguições toda vez que ela se aventura atrás da igreja de Santa Cecília, fazem eco às onomatopéias dos disparos parisienses: "atchim! que ela explodiu..."; "atchim, ela espirrou estremecendo (...), resumida a uma girândola em surdina"; "e atchim" ela repetiu mais uma vez, (...) ameaçadora"; e por último, ao chegar enfim à pensãozinha que a abriga: primeiro ela teve de atender ao tiroteio dos espirros. E foram atchim, atchim, atchim e atchim. "J'ai manque un atchim, n'est-ce pas?" Que completa os cinco tiros do homem de cavanhaque pontudo.

Era preciso advertir. O conto termina em cenas de combate, escaramuças de rua ao cair da noite. É a prova de que a dicotomia amor e guerra é absurda, verdade já bem sabida dos antigos que inventaram para o amor um deus armado... Assim como na guerra, a aversão fez-se hostilidade, das palavras passou-se aos atos. Mas Mademoiselle, declarando a guerra, sonha com a capitulação.

Outra advertência, menos imperativa, essa: nada acontece, propriamente, em "Atrás da catedral de Ruão". Acaso subsista ainda alguma dúvida, tudo se passa, é claro, no figurado. O que o conto faz é iniciar o leitor, etapa por etapa, num léxico misterioso, cujo efeito, como na magia, é gerar um mundo a partir de combinações de palavras. E a perseguição final é a retomada, em atropelo, de todos os fantasmas, de todas as imagens, de todos os subentendidos, já antes enunciados, numa sarabanda infernal, Mademoiselle confundida com eles, confrontada a eles. É a prova final da qual sairá vencedora, e ai dos vencidos, a realidade. "Atrás da catedral de Ruão", musicalmente, termina uma fuga.

De modo significativo, é através de uma anomalia de sintaxe que transpomos a barreira da realidade, para entrar no delírio de Mademoiselle. A professora, que se demorou na casa das alunas, em dia de reunião mundana, decide enfrentar todos os desafios reunidos, a multidão, os transportes em comum apinhados, o "atrás" da igreja de Santa Cecília mergulhado na obscuridade. E todos esses perigos (Mademoiselle põe-se fogosamente na proximidade do perigo) tornam-se bruscamente palpáveis, quando se passa, sem dizer água-vai, do subjuntivo ao indicativo: "Teve medo, era muito tarde. Ainda imaginou esperar que a festa acabasse, estava no fim, e pedir a dona Lúcia que a fizesse acompanhar por qualquer um dos criados de ocasião. Mas ficou logo horrorizada com as audácias dele, quis kidnapá-la, mas os outros passageiros do bonde intervieram e"... E pior que esses "personagens" inquietantes, livres das peias do subjuntivo, há a cidade, animalizada, numa deformação obscena: "As árvores, as árvores é que a machucam, saem sombras kidnapantes delas, os lampiões fazem 'trous, trous', doloridíssimos no ar desmaiado". "Ela avistava, era um fragor de catedrais desmoronando, ela enxergava muito bem os coruchéus despencando em linha reta sobre ela, arcobotantes agitados se enrijando, a flecha zuninte da abside, o crime seria hediondo..."

Fräulein, num passeio à mata da Tijuca, em tarde esbraseada, era pouco a pouco seduzida pela luz, pela vastidão da paisagem, invadida por sensações fortes, como que secretadas pela natureza. A cena, literalmente explicitada, é um ato de amor, primitivo e panteísta, com os elementos. Vertigem expressionista, em que se vêm repercutir os alaranjados violentos do quadro mítico de Edvard Munch, O Grito, como bem lembra Telê Porto Ancona Lopez. A perseguição de Mademoiselle é também delírio expressionista, nesse cenário de ruelas obscuras, arquiteturas monstruosas, lampiões e árvores retorcidos, debruçados sobre a heroína aterrada. Todavia, o ato de amor é frustrado. Mademoiselle é irremediavelmente salva pela realidade pacata da pensãozinha. E, numa última ambivalência, a respiração ainda alterada pelo terror, Mademoiselle paga os "personagens" que a seguiam: "Merci pour votre bonne compagnie!"

  • 1 "Pequeninos nadas, graças aéreas e certas coisas". In: Lopez, Telê Porto Ancona (Org.). Manuel Bandeira: verso e reverso. São Paulo: T. Queiroz, Editor, 1987. p. 48-58.
  • 2. In: Novaes, Adauto (Org). O desejo. São Paulo: Companhia das Letras, 1990. p. 457-470.
  • 3. In: Ribeiro, Renato Janini (Org.). Recordar Foucault. São Paulo: Brasiliente, 1985. p. 144-152.
  • 1
    . "Pequeninos nadas, graças aéreas e certas coisas". In: Lopez, Telê Porto Ancona (Org.).
    Manuel Bandeira: verso e reverso. São Paulo: T. Queiroz, Editor, 1987. p. 48-58.
  • 2
    . In: Novaes, Adauto (Org).
    O desejo. São Paulo: Companhia das Letras, 1990. p. 457-470.
  • 3
    . In: Ribeiro, Renato Janini (Org.).
    Recordar Foucault. São Paulo: Brasiliente, 1985. p. 144-152.
  • 4
    . São Paulo: Roswitha Kempf Editores, 1984.
  • 5
    . Aix-en-Provence: Pandora, 1980. Tradução e Prefácio.
  • 6
    . São Paulo: Paz e Terra, 1988.
  • 7
    . Ainda inédito.
  • 8
    . Este texto foi originalmente publicado no
    Caderno de Cultura do jornal
    O Estado de S.Paulo, em 16 de setembro de 1984 (p.6-7). Agradecemos aos familiares do Prof. Luiz Dantas, e também ao jornal, a autorização para a reprodução (N.E.).
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      17 Set 2010
    • Data do Fascículo
      Ago 2009
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