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Da militância ao estudo do militantismo: a trajetória de um politólogo. Entrevista com Bernard Pudal

DOSSIÊ

EDUCAÇÃO E POLÍTICA: NOVAS CONFIGURAÇÕES NAS PRÁTICAS DE MILITÂNCIA

Da militância ao estudo do militantismo: a trajetória de um politólogo. Entrevista com Bernard Pudal1 1 . Tradução: Daniela Ferreira. Revisão Técnica: Kimi Tomizaki

Por Kimi Tomizaki

Introdução

Bernard Pudal é professor de ciências políticas na Université de Paris X - Nanterre - e autor do livro Prendre parti - pour une sociologie historique du PCF (resultado da tese de doutorado que foi premiada pela Chancellerie des Universités de Paris em 1987), a partir do qual esse pesquisador iniciou uma extensa e rica produção intelectual que, entre outras coisas, primou pela preocupação em não assumir uma postura analítica restritiva diante das múltiplas dimensões dos processos de politização. Sem dúvida alguma, é justamente essa maneira de conceber a análise das práticas de militância que dá sentido à inclusão de sua entrevista neste dossiê.

A identificação com os trabalhos de um autor pode criar uma considerável barreira no momento de saltarmos da proximidade com seus textos para a aproximação "com sua pessoa". No entanto, esse realmente não foi o caso do meu encontro com Bernard Pudal, cuja presença é marcante e calorosa. Seu bom humor e sagacidade são capazes de aquecer até mesmo um dia chuvoso e cinzento em pleno inverno parisiense. Tal encontro ocorreu em dezembro de 2008, em uma das sessões do não menos caloroso Séminaire Territoires et militants communistes: approches plurielles et comparées, no Centre d'Histoire Sociale du XXe siècle (CNRS-PARIS I). Esse seminário, organizado por Pudal, Claude Pennetier e Bruno Groppo, existe há onze anos e reúne um grupo bastante heterogêneo: de alunos de pós-graduação a ex-militantes comunistas. Eu arriscaria dizer que as características desse seminário e dos seus participantes são reveladoras da configuração assumida pelos trabalhos de Pudal - alguns deles escritos em colaboração com os outros dois organizadores do seminário. Trata-se de um seminário de pesquisa amplamente aberto, cujo objetivo central é discutir as experiências comunistas na pluralidade de seus aspectos, o que tem possibilitado, ao longo de sua existência, a participação de numerosos pesquisadores franceses e não franceses, pertencentes a diferentes níveis da carreira universitária, cujas análises cobrem um largo espectro de abordagens teóricas e metodológicas.

O trabalho de Pudal, como poderemos observar em sua entrevista, poderia ser identificado como uma sociologia do militantismo comunista na França, pautado pelo esforço de compreender a experiência do engajamento político em sua complexidade: das condições objetivas, concretas, às disposições subjetivas, com destaque para elementos pouco comuns em análises desse tipo, tal como o papel desempenhado pelo sistema de ensino em determinado período histórico. Em Prendre parti, livro considerado como um "exemplo de método", Pudal inova na análise do Partido Comunista Francês, desconstruindo o mito do partido como um suposto "ser coletivo", por meio da reconstituição dos processos históricos, sociais e individuais pelos quais os atores, na sua diversidade, agregam-se e institucionalizam-se em torno de um projeto político comum.

O que apresentamos (eu e ele) em seguida, ou seja, essa "conversa" em forma de entrevista que versou sobre sua trajetória pessoal, a "opção" pelos objetos de estudo e pelos métodos, assim como a própria problematização dessas opções, pode ser tomado como uma breve introdução aos trabalhos de Bernard Pudal. E espero que se torne também um instigante convite para que os pesquisadores brasileiros se apropriem de suas pesquisas.

São Paulo, maio de 2009.

Kimi Tomizaki - A maioria dos estudos que procuram explicar o engajamento político e as práticas de militância lançam mão da abordagem biográfica. Em suas pesquisas, nós encontramos também biografias, histórias de vida, autobiografias e romances. Além de fazer uso desse tipo de material, você também faz uma importante problematização, em diferentes textos, sobre o uso dessas fontes nas pesquisas em ciências sociais. Assim, como procuramos, por meio das trajetórias dos militantes, a compreensão de certos espaços políticos, talvez (e penso que você concordará) fosse também importante conhecer as trajetórias daqueles que se interessam pelos estudos sobre o militantismo, para melhor compreender suas produções e análises. Sendo assim, eu gostaria de começar esta entrevista perguntando sobre sua trajetória pessoal - sua origem social, familiar, seu percurso escolar, até a entrada nas ciências políticas.

Bernard Pudal - Eu sou, sem dúvida, um dos raros professores de ciência política oriundos de um meio popular. De uma linhagem profissional ferroviária do lado paterno e de sapateiros dos Países Baixos (Holanda) do lado materno (minha mãe era costureira e depois foi dona de casa). Entretanto, com uma trajetória de ascendência bem marcada na linhagem paterna: meu pai fez estudos técnicos até os 18 anos, o que lhe assegurou uma justa promoção no corpo dos "roulants" (condutores de trem) na SNCF (Societé Nationale de Chemin de fer Français). Dentro de tal contexto, o investimento familiar no sucesso escolar era sem dúvida mais importante que nos outros segmentos de minha família. Mas é preciso destacar que minha escolaridade secundária aconteceu em um momento muito particular, na virada dos anos 1960, isto é, no momento em que as crianças das classes médias e das frações superiores das classes populares não se direcionavam mais apenas para a formação técnico-profissional e para postos de trabalho desse nível, embora isso acontecesse em condições relativamente privilegiadas (como foi o caso de meu irmão, cinco anos mais velho do que eu). Os jovens da minha geração puderam dirigir-se ao ensino secundário-superior geral (logo, tendo a Universidade no campo dos possíveis). Dentro de uma ordem própria, aquela da transgressão que representava a passagem do "primário-superior" ao "secundário-superior", no meu itinerário é possível encontrar uma analogia com as trajetórias dos militantes que se confrontam com o desafio de efetivar a legitimação de uma ilegitimidade...

Kimi Tomizaki - Como surge o interesse pela política em sua trajetória ? O interesse tanto pela política como um objeto de estudo quanto pela atuação política. Quer dizer, você foi engajado em algum tipo de militância política?

Bernard Pudal - Minha politização não provém de meu meio familiar. Eu a devo a dois jovens padres que eu conheci, ainda pré-adolescente, no momento em que "fiz meu catecismo", como a gente diz na França (até a comunhão solene, aos 11 anos). Eles desejavam ser padres-operários e pertenciam àquela geração de padres jovens bastante politizados dos anos 1950-1960, que tinham decidido que o mundo operário seria sua "terra de missão". No entanto, a condenação da experiência dos padres operários, feita por Roma em 1954, conduziu esses dois padres a trabalharem em uma paróquia de subúrbio, onde eu os encontrei. Se, por um lado, eu perdi a fé muito rápido, por outro, guardei um interesse pela política que faria de mim um militante, primeiramente no liceu.

Eu me filiei ao Partido Comunista Francês (PCF) em junho de 1968, aos 19 anos, ao mesmo tempo que eu fazia meus estudos em ciências sociais. Eu militei ativamente até 1975, para deixar o PCF progressivamente e depois, definitivamente, em torno de 1977. Minha sorte? Sem dúvida, de não ter sido nem um intelectual do partido nem um dirigente comunista. Eu, então, tornei-me professor na formação dos trabalhadores sociais e transformei pouco a pouco meu interesse pela política em interesse pela história do comunismo. Processo bem clássico de reconversão de um capital político em capital científico que finalizei com minha tese sobre o PCF, defendida em 1986. Então, passei a integrar o mundo universitário das ciências políticas. Desse ponto de vista, minha trajetória é uma declinação das trajetórias dos anos de 1968.

Kimi Tomizaki - E de onde surgiu seu interesse em realizar uma sociologia histórica do PCF?

Bernard Pudal - Meu interesse pela história e pela sociologia do PCF é inicialmente ligado ao enigma do "stalinismo". Desde o começo da minha militância no PCF, a questão do "stalinismo" colocava-se para os militantes comunistas franceses de maneira particularmente forte, não apenas por conta das publicações sobre a URSS, o que não se pode mais ignorar ou censurar simbolicamente, mas também porque, na época, a estratégia de aliança com a esquerda do PCF chocava-se com essa questão (do stalinismo). De fato, a estratégia política do PCF era uma estratégia de união da esquerda sobre a base de um programa comum de governo com o Partido Socialista e os radicais de esquerda (1972-1977). Ora, se esse programa era benéfico para os socialistas, o PCF sofria um processo de estagnação eleitoral e imputava essa estagnação aos efeitos repulsivos do mundo comunista. Logo, era um jogo interno e externo, político e científico, sobretudo para um jovem militante, que acreditava estar estudando a história do movimento operário. Esse era o meu caso. Mas era também um jogo "pessoal": meu conhecimento do PCF como militante me colocava em contato ao mesmo tempo com os militantes operários dedicados, "desinteressados", com espírito crítico, mas também com os dirigentes do PCF, cuja formação, imaginário e práticas remetem ao passado "stalinista" do PCF. Como compreender ao mesmo tempo essas dimensões contraditórias? Meu objeto de pesquisa era indireta e implicitamente autobiográfico.

Kimi Tomizaki - No livro Prendre Parti. Pour une sociologie historique du PCF2 2 . PUDAL, Bernard. Prendre Parti - Pour une sociologie historique du PCF. Paris: Presses de la Fondation Nationale des Sciences Politiques, 1989. , você fez uma análise inovadora sobre a formação do PCF, na qual o partido não é pensado como uma coisa, mas como "um conjunto de operações por meio das quais os agentes sociais comungam em seu nome". Então, você toma como objeto de estudo as estratégias do núcleo dos dirigentes do PCF que, se assim podemos dizer, possuía uma especificidade sociológica em sua trajetória: era composto por militantes de origem operária que tiveram uma escolarização que ultrapassou a escola fundamental, autodidatas, e que, finalmente, vivenciaram um movimento de mobilidade social ascendente, porém incompleto, em direção às classes médias, nas quais esses trabalhadores não encontram seu lugar, pois lhes faltavam certos capitais culturais e sociais. Assim, eles ficaram numa situação "entre duas classes" (a classe operária e a fração inferior das classes médias) e sem condição (sobretudo subjetiva) nem de continuar a ascensão social, nem de continuar a viver como operários comuns. Nesse sentido, você discute o engajamento comunista como uma espécie de "reconciliação consigo mesmo". Você pode falar um pouco sobre esse processo no interior do grupo comunista? E, indo mais longe, você pensa que, em geral, o militantismo tem origem em questões mais subjetivas do que objetivas?

Bernard Pudal - Teu resumo me parece muito pertinente. "Reconciliação consigo mesmo", certamente. Toda a temática militante, da felicidade militante, do militantismo comunista como "segundo nascimento", testemunha isso. Mas uma reconciliação que não é isenta de contradição (eu falo também de "fiel infidelidade"); contradições que são, elas mesmas, ligadas à questão de todo tipo de "delegação", de todo "porta-voz": representar o outro já é se diferenciar, se beneficiar de uma promoção intelectual e social, etc. E, no caso do PCF, reconciliação sob determinadas condições: a instituição comunista "stalinizada" submete seus militantes e dirigentes a uma minuciosa vigilância da ortodoxia e da ortopraxia. A história do PCF é, portanto, a história de todos aqueles que não puderam se adaptar a essa oferta institucional. Nós dizemos, na França, que o maior partido político é o partido dos ex-comunistas...

Eu não diria que o militantismo começa, sobretudo, por razões subjetivas. É um processo extremamente complexo, no qual se combinam diferentes histórias: a história das origens sociais e das socializações específicas daqueles que militam; do sistema escolar e de seu lugar na sociedade; dos próprios recursos físicos, intelectuais e psicológicos desses sujeitos; também dos contextos de investimentos militantes; e, finalmente, a história dos riscos e das etapas de uma carreira militante. Desse ponto de vista, as análises "biográficas" tornamse cada vez mais complexas: elas devem - do meu ponto de vista - associar a prosopografia (biografia coletiva, ou melhor, biografias coletivas, "famílias de trajetórias") com o "singular", no qual podemos considerar tipos de investimentos sociais e psicológicos variáveis segundo os indivíduos. A dificuldade é assegurar as duas extremidades dessa "linha explicativa" (o coletivo e o singular), sobretudo, quando as fontes que permitem o acesso ao mais "singular" são raras e delicadas para se analisar. Além disso, é preciso estudar as carreiras militantes. A sociologia das carreiras (Becker, Hugues, Anselm Strauss) aplicada às histórias de militantes é um campo de pesquisa em pleno desenvolvimento, que permite acompanhar as diferentes fases das carreiras militantes, com o seu conjunto de bifurcações ou modos de investimentos - até o desinvestimento, isto é, o desengajamento.

Kimi Tomizaki - Ainda sobre o Prendre Parti, a conversão partidária do grupo comunista, que constituiu os sujeitos da sua pesquisa, permitiu a esses militantes - como você havia dito antes, quando comparou essas trajetórias com a sua própria - transformar características que são socialmente ilegítimas em legitimidade política. Eu acredito que nós assistimos a uma situação parecida no Brasil, durante o processo que levou o Partido dos Trabalhadores (PT) ao poder, sobretudo no caso dos sindicalistas operários que foram eleitos para cargos públicos. Você pode falar sobre o processo de constituição da legitimidade dos comunistas diante dos "homens políticos" já estabelecidos?

Bernard Pudal - No caso do PCF (mas não apenas, evidentemente. Isto é verdade também para o PT, mas também, por exemplo, para os militantes aborígines da Austrália...), a questão da legitimação do ilegítimo - aos próprios olhos desses sujeitos e no centro dos espaços sindicais, associativos, estatais ou políticos - é cardinal. O "stalinismo" foi uma das "formas" desta longa história, e é isso o que eu tentei mostrar ao longo de toda a minha análise do PCF. Para compreender - no caso francês - a especificidade e os limites temporais desse processo, era preciso fazer uma história social do sistema escolar francês. Digamos, para simplificar, que o sistema escolar francês está dividido, dos anos 1880 aos anos 1950, em duas redes diferenciadas: o "primário" (destinado à grande maioria) e o secundário-superior. Algumas instituições ofereciam "promoções sociais" aos melhores alunos do primário: no Estado, esses alunos serão os instrutores republicanos; na Igreja, serão os padres de paróquia oriundos do mundo camponês; e, no movimento operário - no PCF e na CGT (Confédération Générale du Travail) -, eles serão os permanentes e os edis comunistas e sindicalistas.

Nos três casos, o saber é dispensado "sob condições" simbólicas: essas instituições ensinam o respeito ao saber, difundindo formas vulgarizadas (a vulgata marxista das escolas de partido), porém, com um fundo de uma espécie de interdição simbólica: a auto-evicção não consciente das instâncias produtoras e detentoras do saber. O que simboliza Stalin é, no caso francês, muito mais uma "autoridade teórica" incriticável, ao mesmo tempo "legitimante", que uma ditadura que faz uso da violência física. Os militantes comunistas que se beneficiaram disso e que souberam respeitar os limites simbólicos que lhes foram impostos viveram em uma espécie de felicidade militante nesse período. Por inúmeras razões (entre as quais se destacam a generalização do ensino secundário-superior e a denúncia do stalinismo no centro do Movimento Comunista Internacional em 1956), esse tipo de instituição entra em crise nos anos 1960. Esta crise não diz respeito apenas ao PCF: assiste-se aí, também, a uma crise de "vocações" de instrutores (professores primários) e de vocações religiosas.

Kimi Tomizaki - Você é um dos autores do livro Le siècle des communismes3 3 . DREYFUS, M. et al. Le siècle des communismes Paris: Seiul, 2003. , publicado em 2003. Você poderia falar um pouco sobre o nascimento desse projeto coletivo e seus principais objetivos?

Bernard Pudal - Le siècle des communismes é analisado a partir do campo dos especialistas do comunismo. Nós estávamos confrontados com o sucesso de duas obras - Le passé d'une illusion, de François Furet, e Le livre noir du communisme, de Stéphane Courtois. Esses dois livros reivindicavam não somente uma interpretação "totalitária" do comunismo, mas também repudiavam todas as aquisições da história social. A redução da história do comunismo a uma "essência" (as representações qualificadas como ilusórias no trabalho de Furet e a criminalidade, em Courtois) não nos convinha. O "plural" do título do nosso livro tem como objetivo colocar em dúvida essas "simplificações", sem subestimar as empreitadas de homogeneização do "mundo" comunista sob a férula soviética e as organizações específicas (Escola Leninista Internacional, a Internacional Comunista logo após o Kominform, as comissões de gerentes, as pesquisas biográficas internas ao mundo comunista, etc.).

Nós, então, reunimos pesquisadores (franceses e estrangeiros) bastante diferentes, mas que tinham em comum o fato de não se reconhecerem nas interpretações de Furet e de Courtois. Por outro lado, é preciso notar diferenças no interior mesmo da equipe de autores do Livre Noir. Nicolas Werth, por exemplo, não partilha das mesmas posições do mestre da obra, Stéphane Courtois. As pesquisas posteriores deram-nos razão sobre o essencial: confinados estritamente a uma visão histórica dos acontecimentos e da história política dos fenômenos e em busca de uma pesquisa do sensacional e do "sangrento", a produção dos autores desta tendência é anedótica. Não resta dúvida de que uma das dimensões essenciais da história dos países comunistas é a questão dos usos da violência física sob todas as suas formas na gestão da economia, da política e do social. Toda a primeira parte do Siècle des communismes, uma das duas partes que eu dirigi, trata da historiografia do comunismo no sentido amplo. Ela tende a mostrar não somente a complexidade das pesquisas sobre o comunismo, mas também o interesse dos estudos originários de disciplinas e de paradigmas diferentes (antropologia, sociologia, história social, etc.).

Kimi Tomizaki - No Siècle des communismes, você escreveu sobre a politização dos operários e como a "militância comunista" constituiu uma espécie de "trampolim" que permitiu a esses trabalhadores a entrada no campo político, apesar do espaço limitado que esses puderam ocupar nele. Você pode falar um pouco sobre a especificidade do recrutamento e da formação dos quadros do Partido Comunista? E também como a noção de vocação se constitui no PCF?

Bernard Pudal - De fato, eu consagrei um artigo conclusivo à questão das relações entre politizações operárias e comunismo. Esse capítulo visa, sobretudo, interrogar dois pressupostos ainda pouco discutidos nas pesquisas sobre o movimento operário e o comunismo. Há, portanto, nesse artigo, uma função programática. Por um lado, a relação entre a classe operária e o comunismo, a meu ver, deve ser inteiramente reinvestigada. A história do comunismo do século XX só trata dos operários marginalmente (o caso chinês é aqui exemplar). Nesse sentido, a França pode ser considerada como "a árvore que esconde a floresta", o que remete ao problema de uma suposta filiação que acabou se tornando evidência, qual seja, a filiação entre a história operária do século XIX e o comunismo (entre a Segunda Internacional e Internacional Comunista).

Por outro lado, a relação entre classes operárias e o movimento operário deve, ela também, ser repensada. Isso porque, na medida em que analisamos as práticas e os modos de pensamento operários como formas, em si mesmas, de adaptações submetidas ou subversivas, mais fortemente as modalidades da expressão operária no campo político legítimo tendem a ser analisadas, também, como formas de repulsão das próprias "culturas populares".

O pensamento conservador tem uma teoria dos "menores" ou dos "agitadores", até de "intelectuais desclassificados", para designar essa questão. A função normativa e depreciativa, desse ponto de vista, não apresenta interesse algum. Mas a especificidade dos grupos militantes continua uma questão bastante relevante, e seria um erro varrê-la do cenário das pesquisas. Na realidade, isso é todo o problema da democracia, que é o pano de fundo dessas questões; dito de outra forma, todo o problema da participação, na vida política da cidade, daqueles que dela são excluídos, sob a dupla forma de suas evicções ou de sua "pseudo-participação".

Kimi Tomizaki - Para retomar o início da entrevista, você se propõe a realizar não apenas uma sócio-história do comunismo, mas também uma história social das análises e dos analistas do comunismo. O que você poderia me dizer, em termos biográficos, sobre as pessoas que se interessam pelo comunismo na França?

Bernard Pudal - Essa questão diz respeito à história e à sociologia das ciências sociais. Toda a dificuldade é fazer, simultaneamente, uma história suscetível de pensar as formas de imbricação científica, institucional e política. Eu tento extrair configurações situadas no tempo, nas quais há problemáticas partilhadas e tratadas, até mesmo por autores que se opõem do ponto de vista teórico. Por exemplo, a história do comunismo é, em princípio, instrumentalizada pelos historiadores do comunismo que são comunistas, mas ela é, também, instrumentalizada pelos historiadores anticomunistas (em particular, de 1945 aos anos 1960). Dessas oposições, nascem verdades parciais sujeitas aos projetos políticos dos autores. Progressivamente, vamos assistir, por etapas, a um tipo de autonomização dos campos científicos do comunismo (sociologia, antropologia, história social, etc.) e que continua, por outro lado, sempre imbricada aos jogos das instituições (poder de influência nas revistas científicas concorrentes, em editoras, em instituições universitárias) e aos jogos políticos externos a ele. No caso francês, levando em conta o peso específico dos intelectuais comunistas no campo intelectual, é bastante curioso que uma historiadora de direita (Annie Kriegel) - mas antiga comunista - consiga, de uma única vez, invalidar a história oficial do comunismo e impor regras de avaliação universitária. Nos anos 1970-80, a equipe de jovens pesquisadores que ela reuniu (presentes na revista que ela mesma criou: Communisme) se opôs, principalmente, aos defensores da história oficial, que tentaram integrar modos de análises que lhes permitiram colocar-se fora do período da Guerra Fria. Assim, tanto estes quanto aqueles tentam, no fundo, conciliar os efeitos da cientificidade e das lógicas externas ao trabalho científico. Em seguida, por inúmeras razões, esse mesmo grupo (de Annie Kriegel) vai se deslocar e jogar novamente oposições científicas, institucionais e políticas após 1989-91. Alguns historiadores, às vezes, restringem-se à história dos acontecimentos políticos e inscrevem-se em um dos paradigmas totalitários, (S. Courtois, por exemplo), enquanto outros continuam fiéis às contribuições da sociologia e da história social (é meu caso). É essa oposição que vai ser encontrada nas querelas dos "arquivos". Determinados historiadores investem, após 1989-91, no arquivo de um "poder" de "verdade", o que é para eles também uma maneira de rejeitar a sociologia ou a história social, geralmente praticada por pesquisadores de esquerda. Isso foi o que nos conduziu a investir no terreno dos arquivos (em particular, aqueles ditos de Moscou), conservando, porém, as nossas problemáticas sociológicas. Creio que podemos apostar que a história do comunismo será como a história da revolução francesa: uma história, ao mesmo tempo, cada vez mais científica e atravessada de jogos externos.

Kimi Tomizaki - E, finalmente, tentando sempre fazer relações entre as condições objetivas e as disposições subjetivas, você já escreveu sobre o papel da psicanálise na vida social, cultural e científica, especialmente nas ciências sociais. Do seu ponto de vista, quais são as contribuições que ela traz para a compreensão do militantismo?

Bernard Pudal - Mesmo que a psicanálise esteja, eminentemente, presente nas ciências sociais, isso se dá apenas metaforicamente ou por analogia, como bem testemunha o emprego recorrente de alguns de seus conceitos (repulsão, luto, pulsão, censura, denegação, racionalização, libido, etc.). Entretanto, seu estatuto epistemológico apresenta, no mínimo, controvérsias para as ciências sociais. Se é bem verdade que os mecanismos psíquicos que designam os conceitos citados anteriormente devam, sim, pertencer à ferramenta intelectual dos pesquisadores (prestando-lhes eminentes serviços metodológicos, em particular para as entrevistas não diretas), é justo dizer também que a psicanálise do mundo social ou dos processos de engajamento se revela rapidamente decepcionante, pois mostra-se muito menos como analogia científica do que como metáfora. Assim, a psicanálise freqüentemente tende a assumir o formato de uma roupagem dos prejulgamentos do pesquisador. Mesmo que o princípio da não-transparência funde epistemologicamente as ciências sociais, ele não pode, em nenhum caso, autorizar a "redução" das ações humanas a uma manifestação de algum inconsciente, individual ou coletivo. Se concordarmos que na "produção social de sua existência, os homens estabelecem relações determinadas, necessárias e independentes de sua vontade" (Marx), não se pode inferir, entretanto, que sua ação só possa ser compreendida pela produção, supostamente profunda, de uma experiência interior que apenas a psicanálise, por si só, fornece. Feitas tais reservas - que têm relação com o eclipse provocado pelo uso que as ciências sociais fazem da psicanálise há muito tempo - seria, portanto, o caso de dizer que a psicanálise deve ser proscrita? Eu penso que não, mas sob condição de respeitar esses princípios. Diferentes pesquisas biográficas caracterizadas por uma atenção clínica (Jacques Maître, Francine Muel-Dreyfus) já o mostraram.

Do ponto de vista da própria pesquisa, tal projeto (que faça convergir a psicanálise e as ciências sociais) implica assumir a aposta da monografia clínica que supõe, pelo menos, documentos susceptíveis de justificar a tentativa (documentos autobiográficos diversos, avaliações psiquiátricas, produções textuais do sujeito, etc.) de não dissociar a monografia clínica da análise ao mesmo tempo sociológica e histórica das formas institucionais que são o objeto de estudo: a igreja, o partido, a associação, a ação coletiva. Tal dispositivo de pesquisa constitui uma oportunidade para melhor apreender a "totalidade concreta que engloba e o sentido subjetivo das condutas organizadas segundo regularidades mensuráveis e as relações singulares que os sujeitos travam com as condições objetivas de sua existência e com o sentido objetivo de sua conduta." (Pierre Bourdieu).

  • 2. PUDAL, Bernard. Prendre Parti - Pour une sociologie historique du PCF. Paris: Presses de la Fondation Nationale des Sciences Politiques, 1989.
  • 3. DREYFUS, M. et al. Le siècle des communismes Paris: Seiul, 2003.
  • 1
    . Tradução: Daniela Ferreira. Revisão Técnica: Kimi Tomizaki
  • 2
    . PUDAL, Bernard.
    Prendre Parti - Pour une sociologie historique du PCF. Paris: Presses de la Fondation Nationale des Sciences Politiques, 1989.
  • 3
    . DREYFUS, M. et al.
    Le siècle des communismes Paris: Seiul, 2003.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      17 Set 2010
    • Data do Fascículo
      Ago 2009
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