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Editorial

EDITORIAL

Muitos textos têm surgido na mídia, sobretudo em jornais e revistas, discutindo temas educacionais, fato esse já apontado em editoriais anteriores. Em relação ao ensino público fundamental e médio, lê-se, diariamente, algo a respeito de debates em torno de políticas públicas, de avaliações de alunos e também de professores; das dificuldades em atingir as metas pedagógicas, além de muitas outras questões do quotidiano escolar, tais como a violência, o mau estado de conservação dos prédios, os problemas com a merenda, os uniformes e tantos outros. Os dados apresentados e/ ou as opiniões defendidas expõem um quadro geralmente negativo da situação do ensino em nosso país. Entre os assuntos tratados, um tema recorrente tem sido o da formação do professor, suas lacunas e os desacertos dos responsáveis por tal formação, questão essa que nos atinge diretamente, uma vez que esta revista é ligada à Faculdade de Educação de uma universidade estadual paulista.

Em um texto no qual a ex-secretária da Cultura do Estado de S. Paulo, Claudia Costin, "despede-se"1 1 O texto é de 5 de janeiro de 2009, publicado no jornal O Estado de S. Paulo, no qual a autora apresentou uma série de artigos sobre políticas públicas. para assumir o cargo de secretária da Educação do município do Rio de Janeiro, ela começa por assinalar a comprovada importância da educação como "caminho de combate à pobreza", de acordo com dados de relatórios do Banco Mundial, bem como a necessidade de oferecer um ensino de qualidade. Entre os problemas a serem enfrentados, aponta "a formação inadequada do professor" e, baseando-se em estudo realizado pela Fundação Carlos Chagas em parceria com a Fundação Victor Civita, afirma que "a formação para o ensino infantil e fundamental é deficiente e não prepara [os professores] para a sala de aula". E salienta aspectos dessa formação caracterizada por uma carga horária excessiva de "fundamentos teóricos da educação que preparam o futuro docente do ponto de vista humanístico - disciplinas como Sociologia, Filosofia ou História da Educação"; e continua: "alguém que domina a diferença entre Vygotski e Piaget e conhece a fundo a Lei de Diretrizes e Bases da Educação não é necessariamente habilitado para ser um bom professor". Poderíamos até, parcialmente, concordar com essa afirmação, mas não sem, antes, avançarmos algumas questões: os professores, de fato, "dominam" os fundamentos teóricos mencionados? E seria a "carga horária excessiva" de estudos das disciplinas básicas a causa ou uma das razões pelas quais os professores não saem preparados para enfrentar a sala de aula? É dessa falta de preparo que adviriam os problemas ligados ao fato de que a "escola não está levando ao aprendizado"2 2 "Quando um aluno é reprovado, é sinal que o professor falhou", declarou a atual secretária da Educação do município do Rio de Janeiro, em entrevista ao jornal O Globo, em 08-11-2008. , o que, por sua vez, acarretaria o desinteresse do aluno pelas instituições de ensino?

Na tentativa de examinar pontos da formação docente, vale mencionar os resultados de uma pesquisa publicada na revista Nova Escola, em dezembro de 2008. Ali, tomam-se expressões usadas corrente e freqüentemente pelos professores, oriundas de trabalhos de grandes educadores ou pesquisadores que contribuíram para refletir sobre problemas educacionais e analisam-se as transformações dessas expressões em jargões sem nenhum significado claro para o próprio educador; ou, o que é pior, em formas resultantes de uma deturpação tal do significado original que as tornou muito distante das idéias propostas pelos pensadores. A pesquisa, denominada "Discurso Vazio" ou, segundo a capa, "O blablablá da Educação", reproduz alguns desses jargões, tais como: "aprender brincando"; "levantar o conhecimento prévio"; "formar cidadãos"; "aumentar a auto-estima"; "fazer avaliação formativa"; "trabalhar a interdisciplinaridade"; "partir do interesse dos alunos"; "desenvolver a criatividade"; "focar a realidade do aluno". Descreve o que é compreendido pelos professores que procuram seguir o que consideram ser diretrizes para seu trabalho em sala de aula; discute com alguns especialistas ou menciona trabalhos de educadores bem conhecidos, como Paulo Freire, para esclarecer o que, de fato, significam tais expressões.

Em decorrência dessa análise, sobressai uma grande defasagem entre, de um lado, os sentidos possíveis das grandes idéias derivadas do campo filosófico e das ciências da educação e, de outro, as interpretações comuns, freqüentemente transpostas como normas ou fórmulas mágicas a serem seguidas pelo professor para obter um "ensino de qualidade". Parece-me que essa investigação não corrobora em nada a afirmação da atual secretária da Educação do município do Rio de que há uma excessiva ênfase nos fundamentos da educação; pelo contrário, leva a pensar que, se, de fato, houvesse uma prioridade nos conteúdos de disciplinas básicas, o professor perceberia, por exemplo, que a prática de seu ofício não se reduz à transposição de idéias de pensadores para a sala de aula, nem tampouco a uma mera aplicação de métodos preestabelecidos; ele estaria mais capacitado a compreender as múltiplas dificuldades inerentes ao complexo processo de ensino-aprendizagem e, por conseguinte, a melhor conduzir suas atividades práticas.

Se não nos cabe aprofundar, neste momento, um debate sobre os problemas dessa formação, vale, entretanto, apontar alguns dados a respeito dos professores em exercício no Estado de São Paulo e as condições de sua contratação.

Após a promulgação de resultados de uma prova de 25 itens, realizada para seleção de professores no Estado - prova essa na qual 1.500 candidatos que já atuavam na rede de ensino tiraram nota zero, outros 2.000 também zeraram e outros muitos acertaram apenas um ou dois itens -, uma série de notícias e troca de acusações entre a secretária da Educação e a direção da Apeoesp espalhou-se pela mídia, nas últimas semanas, e o problema foi parar na Justiça. O que nos interessa não é a prova em si mesma que, segundo variadas fontes, foi mal elaborada e apresentou-se eivada de erros de português, mas a divulgação de dados alarmantes a respeito da contratação dos professores. Em um Estado que necessita de 230 mil professores, apenas 130 mil são concursados; portanto, os demais 100 mil, ou seja, 43% do total, são contratados em caráter temporário. O próprio TRT (Tribunal Regional do Trabalho) considerou esse percentual "acima do limite técnico apropriado". Colabora para essa situação o fato de que desde 2006 não se realizam concursos para professores. O governo estadual deve abrir concurso para 75 mil professores, o que não ocorrerá imediatamente, em razão dos gastos implicados, da necessidade de aprovação pela Assembléia, etc.

Em síntese, esse quadro do Estado mais rico e desenvolvido da nação, que é o terceiro que mais emprega na categoria de temporários3 3 O Estado de S. Paulo tem um terço de um total de cerca de 300 mil docentes temporários que atuam em escolas estaduais do país, perdendo apenas para Minas Gerais e Mato Grosso. ( O Estado de S. Paulo, 20-02-2009). , indica claramente a situação precária na qual trabalham esses professores, questão essa que afeta, sim, diretamente, o trabalho em sala de aula com os alunos. Contratados temporariamente, sujeitos a instabilidade de todo tipo, sem condições de organizar seus projetos com um mínimo de continuidade, esses professores ainda são responsabilizados pelos insucessos do processo pedagógico.

Retomando o que escreve Claudia Costin, é lamentável que suas críticas à capacitação dos professores se limitem a reproduzir lugares-comuns e se acompanhem de um total silêncio - e sabemos o quanto o silêncio é "matéria significante por excelência"4 4 Cf. As formas do silêncio - no movimento dos sentidos, de Eni Orlandi, S.Paulo: Cortez; Campinas: Editora da Unicamp. - a respeito das condições reais de trabalho desses profissionais, incluindo a situação precária de contratação de grande parte do professorado.

O dossiê deste número tem por tema Ensino superior e circulação de estudantes: os Palop no Brasil e em Portugal. É coordenado pela Professora Dra. Neusa Gusmão, que tem realizado estudos a respeito de imigrantes africanos de língua portuguesa e no momento, mais especificamente, sobre a migração temporária de estudantes africanos que buscam sua formação em nosso país. De fato, a constituição, nas últimas décadas do século XX, de novos estados nacionais africanos de língua portuguesa leva muitos estudantes dos países africanos de língua oficial portuguesa - Palop - a procurarem formar-se no Brasil e em Portugal. A organizadora lembra que, também colonizado por Portugal, com as vantagens de possuir com ele, por exemplo, uma língua em comum, o Brasil integra o grupo de "países emergentes" e tem estabelecido acordos com países da África, o que facilita a vinda dos estudantes para o nosso país. O dossiê reúne textos de dois portugueses, três brasileiros e um moçambicano e tem a finalidade de elaborar um mapeamento das formas de vida e de múltiplas representações desses estudantes no "contexto nacional do Brasil, de Portugal e no próprio mundo africano, a partir do mundo acadêmico". Ao tratar de uma questão específica - as conseqüências das relações entretecidas entre um país europeu, Portugal, e um país emergente, Brasil, e os estudantes provenientes dos Palop -, estes textos propiciam uma importante reflexão sobre um problema mais amplo, qual seja, o da multiplicidade de formas de circulação de pessoas e suas conseqüências, questão primordial de nossa época e do processo de globalização que vivemos nestes últimos tempos.

Os cinco artigos tratam de questões envolvendo temas como: história e filosofia da educação em Hegel; práticas disciplinares no período inicial da República no Estado do Paraná; políticas de atendimento de crianças de 0 a 3 anos; avaliação diagnóstica do Programa Nacional de Biblioteca da Escola (PNBE); e o encontro entre pesquisadora e professora em sala de aula, que traz interessante contribuição para se pensar a relação entre pesquisa e ensino-formação docente.

Uma resenha completa este número, comentando o belo livro organizado pela Professora Dra. Carmen Lucia Soares - Pesquisas sobre o corpo: ciências humanas e educação -, tema de importância e interesse para a área educacional, sobretudo na visão defendida pela Professora Carmen.

A seção Diverso e Prosa publica um texto histórico: uma carta de Bakunin (1814-1876) ao seu amigo e geógrafo Elisée Reclus, enviada no período em que aquele vivia na Suíça, já no final de sua vida.

Impossível terminar sem mencionar, com profundo pesar, o falecimento, em janeiro último, do Dr. Hilário Fracalanza, professor que, mesmo após sua aposentadoria, permaneceu em nosso meio como colaborador, dirigindo e participando ativamente de pesquisas, até momentos antes de seu desaparecimento. Especialista na área de ensino de Ciências, dedicou grande parte de suas pesquisas dos últimos anos à Educação Ambiental, tema sobre o qual desenvolveu projetos dos quais participaram renomados pesquisadores e orientandos do Grupo de Estudos e Pesquisas em Formação de Professores da Área de Ciências (Formar) da Faculdade de Educação da Unicamp. Seu exemplo de dedicação e coragem e sua luta incansável pela formação de professores e pelo compromisso social da universidade pública serão sempre, para nós, fonte de grande inspiração.

E, por fim, lembramos que, em 2009, a Pro-Posições completa 20 anos de publicação ininterrupta. Desde 2000 até o final de 2008, esteve sob a competente direção da Profa. Dra. Agueda Bernardete Bittencourt, que envidou esforços para alçar a revista ao alto nível ora atingido. Contando com claro apoio da direção da Faculdade de Educação da Unicamp e do CNPq/Capes, este periódico foi classificado pelo último Qualis na categoria A1 e vem sendo publicado desde 2008, pelo SciELO. A Comissão Editorial continuará a contar com a participação da Professora Agueda e manter-se-á fiel a uma política abrangente, favorecendo a publicação de textos que, independentemente da área de conhecimento, contribuam para uma reflexão crítica sobre as várias dimensões da Educação.

Luci Banks-Leite

  • 1
    O texto é de 5 de janeiro de 2009, publicado no jornal
    O Estado de S. Paulo, no qual a autora apresentou uma série de artigos sobre políticas públicas.
  • 2
    "Quando um aluno é reprovado, é sinal que o professor falhou", declarou a atual secretária da Educação do município do Rio de Janeiro, em entrevista ao jornal
    O Globo, em 08-11-2008.
  • 3
    O Estado de S. Paulo tem um terço de um total de cerca de 300 mil docentes temporários que atuam em escolas estaduais do país, perdendo apenas para Minas Gerais e Mato Grosso. (
    O Estado de S. Paulo, 20-02-2009).
  • 4
    Cf.
    As formas do silêncio - no movimento dos sentidos, de Eni Orlandi, S.Paulo: Cortez; Campinas: Editora da Unicamp.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      17 Set 2010
    • Data do Fascículo
      Abr 2009
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