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Editorial

EDITORIAL

Transcorria o ano de 1968 e alguns jovens, recém-formados em diferentes áreas de conhecimento na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP, iniciavam suas atividades docentes no então Colégio Estadual "Domingos Faustino Sarmiento", localizado no Belenzinho, bairro da cidade de São Paulo. Constituíam um pequeno grupo de professores entusiastas, com a perspectiva de educar as novas gerações. Os alunos do ginásio (atual 6ª a 9ª séries) e do ensino colegial (atual Ensino Médio) - em sua grande maioria residentes nos bairros adjacentes, Brás, Mooca e Belém, e provenientes de famílias de origem italiana, razão pela qual as avós eram carinhosamente denominadas de nonna - apreciavam as aulas desses jovens que procuravam inovar, inventar formas de transmitir um saber recém-adquirido nos bancos universitários.

Durante esse ano, algumas vezes, as aulas eram abruptamente suspensas, por decisão da diretoria da escola, para impedir que as manifestações de grupos de esquerda, iniciadas no centro da cidade, caso chegassem ao bairro, atingissem o "Sarmiento". Após a promulgação do AI-5, já no ano seguinte, uma nova professora foi contratada - a de Geografia -, mas, poucos meses depois, desapareceu de um dia para outro da sala dos professores, onde todos se encontravam para o tradicional café. Soube-se logo que fora presa, sem maiores informações sobre o local onde estaria e, muito menos, sobre as razões pelas quais sua prisão havia sido decretada.

Desnecessário dizer o quanto esse fato desencadeou medos e apreensões em todos, mas, principalmente, nos jovens que se identificavam com as idéias da colega. Teria sido considerada "subversiva" por alguém da própria escola? Teria pronunciado algo, em suas aulas, que a comprometeria ou identificaria sua atuação em algum grupo de militantes? Enfim, por quais motivos tinha sido incriminada? Muitos acontecimentos semelhantes ocorreram nas escolas públicas de todo o país naquele conturbado período da história.

Entretanto, outros momentos importantes marcaram a passagem desse grupo de professores por aquele Colégio: ao lá chegarem, pouco se conhecia sobre o patrono - Sarmiento; sabia-se que era um educador argentino, do "século passado". Mas, no decorrer do ano de 1968, em uma ocasião comemorativa, o senhor Cônsul da Argentina visitaria essa instituição; armou-se uma pequena tribuna no pátio do colégio e uma das jovens professoras - Maria Helena Lucas (mais tarde, Gimeno), que logo partiria para Toulouse com bolsa do governo francês e se tornaria, anos depois, docente da Unicamp - recebeu-o com um belo discurso na língua de Cervantes. Nessa cerimônia e em outros momentos da vida no colégio, foi possível aprender algo a respeito desse notável educador do país vizinho. Soube-se que, além de consagrado escritor, como bem atesta seu livro Facundo (Civilización y barbarie: vida de Juan Facundo Quiroga), um clássico da literatura argentina, foi eminente político e, depois de ocupar o Senado, tornou-se presidente da República; nesse cargo, exercido durante seis anos (1868-1874), abriu escolas, mas também bibliotecas públicas e museus. Em meio a uma obra prolífica, escreveu, no campo educacional, La educación popular, livro no qual apresenta um programa completo de "civilização através da educação". Inspirou-se em idéias de filósofos iluministas, esse pensamento que valoriza o homem, a liberdade e a igualdade1 1 Para uma análise crítica do pensamento iluminista e da pertinência de seu "espírito" no mundo atual, torna-se essencial a leitura do livro de Tzvetan Todorov, O espírito das Luzes. São Paulo: Barcarolla, 2008 (Original de 2006). , mas também refletiu sobre o que observou durante as visitas realizadas a centros educacionais de muitos países - França, Prússia, Suíça, Itália, Espanha, Inglaterra e Estados Unidos.

Foi a partir da leitura dos textos produzidos para este número de nossa revista que essas lembranças me vieram à mente, uma vez que eu mesma integrava esse grupo de jovens professores do Colégio "Sarmiento".

Vejamos, então, como Sarmiento - colégio e Sarmiento educador se relacionam com os temas aqui tratados:

A seção "Diverso e Prosa" traz dois textos relacionados a 1968, marcando os quarenta anos que se passaram. O primeiro, do jornalista Alípio Freire, elaborado especialmente para esta revista, lembra os principais fatos e propõe uma nova leitura, em uma versão crítica, que possibilita um entendimento mais claro dos principais protagonistas - estudantes, políticos e a própria sociedade - e da dinâmica subjacente aos acontecimentos já amplamente divulgados; o quadro exposto, no final, sintetiza de maneira nítida os grandes momentos desse ano inesquecível. O segundo texto consiste na republicação de uma carta-relatório dirigida, na década de 1960, à Inspetora de Ensino Secundário e Normal, pela diretora de uma escola pública, informando a respeito da atuação do professor de História Geral e do Brasil - Maurício Tragtenberg - na escola em que trabalhava. Tal carta está comentada pelo professor Dermeval Saviani que, em suas apreciações, assinala o fato que incrimina o professor: "o de, em suas aulas, abusar da liberdade doutrinária de cátedra, desenvolvendo doutrinação aos jovens" e analisa, cuidadosamente, o texto da senhora diretora, zelosa cumpridora de seus deveres, que redigiu esse documento, obedecendo às ordens de seus superiores. Pode-se mesmo pensar que um fato semelhante tivesse talvez ocorrido em relação à jovem colega, professora de Geografia do Colégio "Sarmiento". Afinal, o professor Tragtenberg teve acesso a essa carta-denúncia, vinte anos após o acontecimento.

O dossiê - "Regulação e coesão social, passado e presente na Escola Pública" - foi elaborado a partir de trabalhos desenvolvidos no quadro de uma cooperação internacional entre Unicamp e Flacso/Argentina. Coordenado pela Professora Nora Krawczyk, este dossiê é composto por uma série de textos de estudiosos que, a partir de diferentes perspectivas, interessam-se em compreender "as mutações que a sociedade e a instituição escolar atravessam na atualidade, em diferentes contextos latino-americanos". Em sua apresentação, a Professora Nora assinala a estreita relação entre a educação formal e a constituição do Estado nacional, típica dos países ocidentais. Sobre esse vínculo histórico, vale lembrar o projeto do então deputado francês Condorcet2 2 É bastante oportuna a publicação do livro desse autor: Cinco memórias sobre a instrução pública, com tradução e apresentação da Profa. Dra. Maria das Graças de Souza. São Paulo: UNESP, 2008. , levado à Assembléia Nacional, em 1792, ou seja, em pleno período revolucionário, meses antes da Proclamação da República francesa; nele se estabelece que a instrução pública é tarefa e dever do Estado, devendo ser governada por três princípios: o acesso universal, a gratuidade e a independência, este último significando o caráter laico do ensino. Claro que muitas décadas se passaram até que fossem realizadas as mudanças preconizadas então; apenas no final do século XIX, Jules Ferry, ministro da Educação da França, em defesa da escola laica, tornou o ensino primário gratuito e obrigatório (leis de 1881- 1882) naquele país. E foram também estas as idéias defendidas por Sarmiento na Argentina: advogou em favor de uma educação aberta para todos, sem discriminação de raça, sexo, posição social ou política ou de crenças religiosas - princípios revolucionários para a época. Inspirada nestes, foi promulgada, em 1884, a Ley de la Educación Común, conhecida como Lei 1.420, assentada nos fundamentos caros aos republicanos: a educação geral é um direito do povo, uma responsabilidade do Estado e deve ser independente do poder político e da influência religiosa; tal lei enfatiza a importância do Ensino Fundamental, destinado às crianças dos 6 aos 14 anos, tema tratado com grande paixão por Sarmiento, que privilegiava o ensino-aprendizado da leitura e da escrita e sobre as quais escreveu Análisis de las cartillas, silabarios y otros métodos de lectura, publicado no Chile em 1842. Não por acaso, dez anos após a aprovação dessa lei na Argentina, com a multiplicação de escolas e do número de professores, o índice de analfabetos havia diminuído em 53,5%.3 3 Luna, Félix. História integral de la Argentina. Buenos Aires: Planeta, 1995. V. 3.

Aliás, a respeito da leitura-escrita, por ocasião da comemoração do Dia Mundial da Alfabetização, em 8 de setembro, debruçamo-nos sobre alguns dados referentes ao letramento em nosso país e os resultados revelam-se alarmantes: o analfabetismo cai em ritmo lento - de 2006 a 2007 a taxa diminuiu apenas em 0,4% -, estimando-se em 14,1 milhões o número de analfabetos no país; e o pior: aponta-se que 2,1 milhões de crianças brasileiras de 7 a 14 anos, matriculadas em escolas, são analfabetas, o que coloca 7,4% dos jovens dessa faixa etária na condição de "iletrados escolarizados", segundo o IBGE4 4 Dados publicados no jornal O Estado de São Paulo, em 19 e 25 de setembro de 2008. . De outro lado, aumentou em 6,8 %, neste último ano, o contingente de universitários, expansão essa em grande parte ligada ao aumento de vagas nas instituições particulares. Esses dados indicam que, no afã em abrir vagas no ensino superior, o que deveria ser prioritário - a educação básica - é relegado a um segundo plano.

Como mostram os artigos do dossiê, muitos desafios devem ser enfrentados pelos educadores e pelos pesquisadores em educação, no momento atual, uma vez que as transformações gerais das instituições sociais afetam a escola. Alguns dirão que "os tempos mudaram" e as idéias do século XIX soam ultrapassadas, razão pela qual não podem mais servir de referência para as práticas atuais.

De fato, no imaginário da época em que a Lei 1.420 foi promulgada, a escolarização das novas gerações era entendida como condição para a existência da sociedade e da cultura moderna5 5 Carli, Sandra. Niñez, pedagogia y política. Buenos Aires: Miño y Davila, 2002. (Em particular, cap. I: La invención de la infancia moderna. Domingo Faustino Sarmiento y la escuela pública). . Mas, em que pesem as mudanças ocorridas nestes tempos de pós-modernidade ou de modernidade líquida, como prefere Bauman, é ainda a escolarização básica o que possibilita, aos indivíduos de uma sociedade, sua inserção e sua atuação como cidadãos plenos, interesse de todo Estado de direito. A ênfase de Sarmiento na "civilização", opondo-se ao seu antônimo - barbárie - deve também ser entendida em um dos sentidos assinalados por Houaiss, ou seja, como "o que torna os indivíduos mais sociáveis", mais aptos a usufruir de direitos de uma sociedade civil à qual pertencem e aí exercer seus deveres.

A revista traz, ainda, na seção "Artigos", cinco textos de autores brasileiros, ligados a diferentes instituições, que tratam de diversos temas da atualidade: linguagens do corpo e possibilidades educativas da ginástica e da dança; questões de gênero a partir da análise de pesquisa realizada na Brinquedoteca da FEUSP, com crianças de 2 a 10 anos; uma reflexão sobre o ensino da Filosofia, inspirada em análise de textos de Deleuze e Guattari; Multiculturalismo e Educação Inclusiva, com dados interessantes de pesquisa-ação na rede estadual de educação no estado do Rio de Janeiro; e uma abordagem do processo de socialização da criança em diferentes espaços de seu quotidiano e sua relação com a mídia.

Apresenta-se ainda uma resenha sobre o livro Para a compreensão histórica da infância, uma coletânea de trabalhos que procura entender a infância e sua história, pensando as questões do presente, mas buscando também laços com o futuro.

Terminamos este editorial, lembrando que se completam, no próximo mês de novembro, dez anos do desaparecimento do Professor Maurício Tragtenberg. Entre os eventos dedicados à sua memória, destacamos o lançamento de A falência da política, 6º volume da sua Obra Completa, organizada por Evaldo Amaro Vieira, livro inédito que reúne artigos contundentes escritos pelo autor a partir de 1954. Maurício tratou, nessa época, da falência dos partidos políticos; de instituições tradicionais, como as universidades, por exemplo; e do próprio estado.

A Faculdade de Educação da Unicamp teve o privilégio de ter Tragtenberg como seu docente durante quinze anos, período em que ajudou a formar o pensamento crítico sobre a educação e a política brasileira. Em sua homenagem, publicamos, na seção "Diverso e Prosa", a carta-denúncia comentada pelo Professor Saviani.

Luci Banks-Leite

  • 1
    Para uma análise crítica do pensamento iluminista e da pertinência de seu "espírito" no mundo atual, torna-se essencial a leitura do livro de Tzvetan Todorov,
    O espírito das Luzes. São Paulo: Barcarolla, 2008 (Original de 2006).
  • 2
    É bastante oportuna a publicação do livro desse autor:
    Cinco memórias sobre a instrução pública, com tradução e apresentação da Profa. Dra. Maria das Graças de Souza. São Paulo: UNESP, 2008.
  • 3
    Luna, Félix.
    História integral de la Argentina. Buenos Aires: Planeta, 1995. V. 3.
  • 4
    Dados publicados no jornal
    O Estado de São Paulo, em 19 e 25 de setembro de 2008.
  • 5
    Carli, Sandra.
    Niñez, pedagogia y política. Buenos Aires: Miño y Davila, 2002. (Em particular, cap. I: La invención de la infancia moderna. Domingo Faustino Sarmiento y la escuela pública).
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      17 Set 2010
    • Data do Fascículo
      Dez 2008
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