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Práticas de socialização entre adultos e crianças, e estas entre si, no interior da creche

Resumos

Este estudo diz respeito a uma pesquisa na área da Educação Infantil, cujo objetivo principal foi descrever, analisar e interpretar as dinâmicas das relações que adultos e crianças estabelecem entre si nos espaços/tempos em que convivem no interior de uma creche. A fim de captar as dinâmicas das relações sociais dessa creche, foi utilizada uma metodologia de orientação etnográfica e recursos de registros escritos e fotográficos. Com a finalidade de ampliar o olhar sobre aquela realidade social, efetuou-se um estudo socioespacial da creche e dos atores nela envolvidos. Buscando o apoio da Sociologia da Infância, dirigiu-se o foco da análise para as relações travadas no interior da creche entre adultos e crianças, e estas entre si, como atores sociais ativos nos processos de socialização. Pelas categorias de análise elaboradas para tal fim, pôde-se perceber que, tanto nas relações de conflito e tensão como nas de maior harmonia, adultos e crianças produzem representações simbólicas a respeito do mundo com o qual interagem e, no caso das crianças, a elaboração das culturas infantis.

Educação Infantil; socialização; culturas infantis


This study is about a research on children's education. Its main objective was to describe, analyze and interpret the dynamics of the relationships established between adults and children in the space where they stay together, a day care center. In order to capture the dynamics of the social relationships of this day care center, an ethnographic-oriented methodology was used, as well as written and photographic records. With the purpose of having a more comprehensive analysis of that social scenario, a sociospatial study of the day care center and the actors involved was carried out. With the help of children's sociology, the study focused on the analysis of relationships developed in the day care center, between adults and children, and also among children themselves, as active social actors and actresses involved in the socialization processes. By observing the analysis categories elaborated for such, it could be noticed that, both in stressful and conflicting relationships and in peaceful ones, adults and children produce symbolic representations of the world with which they interact and, in the children's case, the elaboration of infantile cultures.

education of children; socialization; infantile cultures


ARTIGOS

Práticas de socialização entre adultos e crianças, e estas entre si, no interior da creche

Altino José Martins Filho

Mestre em Educação e Infância pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Especialista em História Social pela UDESC. Membro do Núcleo de Estudos e Pesquisas da Educação da Pequena Infância – NUPEI/UFSC e do Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Infância, Educação e Escola – GEPIEE/UFSC. altinojm@ig.com.br

RESUMO

Este estudo diz respeito a uma pesquisa na área da Educação Infantil, cujo objetivo principal foi descrever, analisar e interpretar as dinâmicas das relações que adultos e crianças estabelecem entre si nos espaços/tempos em que convivem no interior de uma creche. A fim de captar as dinâmicas das relações sociais dessa creche, foi utilizada uma metodologia de orientação etnográfica e recursos de registros escritos e fotográficos. Com a finalidade de ampliar o olhar sobre aquela realidade social, efetuou-se um estudo socioespacial da creche e dos atores nela envolvidos. Buscando o apoio da Sociologia da Infância, dirigiu-se o foco da análise para as relações travadas no interior da creche entre adultos e crianças, e estas entre si, como atores sociais ativos nos processos de socialização. Pelas categorias de análise elaboradas para tal fim, pôde-se perceber que, tanto nas relações de conflito e tensão como nas de maior harmonia, adultos e crianças produzem representações simbólicas a respeito do mundo com o qual interagem e, no caso das crianças, a elaboração das culturas infantis.

Palavras-chave: Educação Infantil; socialização; culturas infantis.

ABSTRACT

This study is about a research on children's education. Its main objective was to describe, analyze and interpret the dynamics of the relationships established between adults and children in the space where they stay together, a day care center. In order to capture the dynamics of the social relationships of this day care center, an ethnographic-oriented methodology was used, as well as written and photographic records. With the purpose of having a more comprehensive analysis of that social scenario, a sociospatial study of the day care center and the actors involved was carried out. With the help of children's sociology, the study focused on the analysis of relationships developed in the day care center, between adults and children, and also among children themselves, as active social actors and actresses involved in the socialization processes. By observing the analysis categories elaborated for such, it could be noticed that, both in stressful and conflicting relationships and in peaceful ones, adults and children produce symbolic representations of the world with which they interact and, in the children's case, the elaboration of infantile cultures.

Key words: education of children; socialization; infantile cultures.

Premissas iniciais

Pretendemos, neste artigo, socializar os resultados de uma pesquisa realizada, durante o curso de mestrado, numa instituição de atendimento à infância de 0 a 6 anos da rede pública de ensino de uma cidade litorânea da região sul do Brasil1 1 . Esta análise é parte integrante de minha pesquisa de mestrado em Educação e Infância, defendida em 2005 na Universidade Federal de Santa Catarina/UFSC e está vinculada ao convênio com o Instituto de Estudo das Crianças da Universidade do Minho/Braga/Portugal. . Analisamos as dinâmicas das relações sociais estabelecidas entre adultos e crianças e entre as próprias crianças. A discussão está centrada no referencial teórico evidenciado pela Sociologia da Infância e pela Pedagogia da Infância e apresenta reflexões em torno do conceito de socialização e culturas infantis Com base nestes dois recentes campos de conhecimento, apontamos críticas a "verdades" produzidas pela ciência, quando elaboradas de modo a determinar padrões de comportamento e desenvolvimento em que se podem medir as crianças e assim procurar ajustá-las a modelos universalizantes e determinantes. Entretanto, olhando com "outros óculos", seguimos o pressuposto de que adultos e crianças atuam cotidianamente como atores sociais ativos que se humanizam, inclusive por meio de experiências que estabelecem nos espaços e tempos do contexto educacional.

A busca do diálogo com os sociólogos da infância refere-se ao desafio que nos foi posto de modificar e romper com o quadro de compreensão sobre as crianças, alargando os estudos sobre a infância para além do paradigma psicopedagógico e biopsicológico, perspectiva esta "que as compreende como objetos passivos de socialização, numa ordem social adulta" (Ferreira, 2002).

A investigação caracterizou-se como um estudo de caso de caráter interpretativo e qualitativo, com o uso de observação participante e de registros com orientação etnográfica. A opção por um método mais aproximado dos processos qualitativos e participativos deu-se pelo fato de que neles se encontram os elementos básicos para a apreensão da multiplicidade de fenômenos presentes no cotidiano institucional.

Assim, com base nas observações e nos registros escritos, elaboramos um quadro que mostrasse a regularidade dos diversos relacionamentos estabelecidos entre adultos e crianças. Deste quadro geral, procuramos destacar algumas categorias analíticas que permitissem interpretar e contextualizar os processos de socialização em ação, com intuito de "apreender a situação e descrever a complexidade" (Goldenberg, 2003, p.34).

Portanto, o material coletado em campo foi analisado tendo em vista as seguintes expectativas:

1 – Conhecer as relações sociais que as crianças estabelecem umas com as outras, tomando como referência uma lógica peculiar às produções/reproduções das culturas infantis, conforme elaborada por Sarmento (2002; 2004) e Ferreira (2002). A tentativa foi focar essas relações como forma de perceber, nas crianças, os seus estilos de vida, as suas regras e estratégias, os seus referentes simbólicos e os seus modos de apreensão do mundo, em busca de compreender a complexidade da infância em suas características mais intrínsecas e peculiares.

2 – Desvelar os papéis, as interferências e as relações dos adultos nos processos de socialização com o grupo de crianças. As relações dos adultos frente ao grupo de crianças foram se evidenciando e se destacando como algo que deveria ser apreendido e analisado para melhor compreensão das relações que as crianças estabelecem com seus pares, já que de posse do material empírico foi possível percebermos que a produção das culturas infantis está associada ao universo cultural mais amplo, dos condicionamentos e das "múltiplas determinações", sendo, assim, expressões de uma totalidade maior.

Traçamos, a partir destes pontos de análise, dois questionamentos centrais que serviram de fio condutor ao processo investigativo: – Quais as marcas sociais que se destacam no relacionamento entre os adultos e as crianças e entre as próprias crianças no interior da creche? As formas de socialização que os adultos desenvolvem e experienciam com os meninos e as meninas podem facilitar e/ou dificultar os processos sociais e culturais das crianças com seus pares?

Fundamentos teóricos

Nos espaços/tempos das relações sociais na creche em tela, os temas da infância, da educação das pequenas crianças, dos processos de socialização e da produção das culturas infantis colocam-se intercruzados. Durante todo processo investigativo buscamos elucidar as discussões tecidas em torno da constituição, da difusão e da consolidação da especificidade do professor da Educação Infantil. Para definir esta especificidade, traçamos caminhos que nos levassem ao encontro da perspectiva de uma Pedagogia da Infância e da Educação Infantil2 2 . Reconhecemos o esforço e a dedicação das pesquisadoras Ana Lúcia G. de Faria/Unicamp e Eloísa Acires C. Rocha/UFSC que, em suas diversas produções teóricas, vêm apresentando, em caráter de urgência, mecanismos de consolidação de uma Pedagogia para a Educação Infantil. . É importante alertar que, ao preconizarmos uma especificidade para a Educação Infantil, não pretendemos produzir uma "pedagogia antiescolar", na qual "a escolarização, o ensino e a transmissão do conhecimento" são considerados "prejudiciais ao desenvolvimento da criança", como descreve Arce (2004, p. 61) ao criticar nossos posicionamentos. Aliás, – e é necessário atentarmos para isso – ao visualizarmos as especificidades da educação para as crianças de 0 a 6 anos, estamos indo contra o papel ideológico de manutenção da hegemonia burguesa no campo educacional, muito bem desempenhado pelos modelos de educação escolar tradicional. Para tanto, buscamos os debates em defesa da categoria geracional infância3 3 . Sarmento e Pinto (1997) consideram a infância como uma categoria social do tipo geracional, por entenderem que ela também ocupa uma posição estrutural em relação a outras categorias geracionais (maturidade , adolescência, juventude, velhice). , como tempo de direitos, no esforço de conceber as meninas e meninos como "seres concretos e contextualizados" (Sarmento; Pinto, 1997, p.137).

Atualmente, tratar a categoria infância como um grupo geracional - social e produtor de culturas - tem nos ajudado a esclarecer que as crianças possuem um nível de protagonismo muito mais incidente do que historicamente vinha sendo admitido. Isso significa que os/as pequenos/as meninos e meninas não são meros reprodutores e consumidores da cultura do mundo adulto. Pesquisadores (Corsaro, 2002; 2004; Sarmento; Pinto, 1997; Ferreira, 2002; James; Prout, 2004; Faria, 1999; Rocha, 1999) têm buscado compreender a infância a partir dela mesma ou do ponto de vista das próprias crianças, analisando o interior dos ambientes educacionais. Tais interesses corroboram para conhecermos as ações e manifestações das crianças, frente ao que é proposto pelos adultos.

De outro lado, podemos inferir que as concepções educacionais que predominam nas propostas pedagógicas que servem para orientar a prática educativa com crianças pequenas ainda não observaram a importância de levar em conta este alto grau de protagonismo infantil. Vale dizer que o que predomina nas propostas curriculares, como, por exemplo, Parâmetros em Ação/Educação Infantil (PA/EI) e Referencial Curricular Nacional da Educação Infantil (RCNEI) é a preocupação com a definição de um currículo para o combate à pobreza e à prevenção ao fracasso escolar no Ensino Fundamental. Tais documentos não contemplam as especificidades das instituições de Educação Infantil, pautando-se por um processo de regulação da infância num movimento de mão única: do adulto para a criança, não obstante as evidências empíricas e teóricas de que as crianças não são passivas diante das exigências de tal regulação. Temos, na realidade, um referencial curricular nacional para a Educação Infantil, no qual subjaz a concepção de uma infância idealizada, numa perspectiva de sujeito universal.

A partir de uma ótica interdisciplinar, buscamos dialogar com a perspectiva socioantropológica no sentido apontado por Sirota (2001), que tem demarcado e problematizado os vários mitos construídos sobre a infância, que tiveram (e por que não dizer que ainda continuam tendo) grandes impactos sobre o trabalho pedagógico nas instituições de Educação Infantil. Manuela Ferreira (2002, p.11), a partir de um ponto de vista sociológico, em sua pesquisa de doutoramento realizada em Portugal na Universidade do Porto, reúne de maneira crítica alguns desses mitos, apontando que é preciso desconstruí-los, a partir dos referenciais teóricos tradicionais do conceito de socialização. Citam-se alguns:

1.das crianças como seres em déficit, simples objetos passivos e meros receptáculos de uma ação de socialização;

2.da socialização como um processo vertical e unívoco, conduzido exclusivamente pelos adultos, que o encaminham de acordo com objetivos claramente definidos e em prol da reprodução social;

3.do brincar como ação natural e espontânea das crianças, credo único e emblema das atividades da infância;

4.do grupo de pares como forma de organização heterônima e genuína e, como tal, um dado imediato, adquirido, de cuja suposta homogeneidade estão isentas relações sociais e desiguais.

Os mitos traçados por Ferreira (2002) podem ser analisados a partir dos processos de socialização e das práticas pedagógicas realizadas no interior das instituições. Historicamente, esta visão de educação vem considerando as crianças segundo aquilo que lhes falta, de maneira a reproduzir o esquema social que lhes é apresentado. O rompimento com esse modo de ver e considerar as crianças exige uma mudança na forma de educá-las e inseri-las no contexto social e cultural. Para muitos intelectuais da infância (Faria, 1999; 2005; Sarmento, 1997; 2003; Sirota, 2001; Rocha, 1999; Ferreira, 2002; Montovani, 1999; Qvortrup, 1999), trata-se do reconhecimento do nosso "não saber" sobre as pequenas crianças e a produção das culturas infantis, partindo da compreensão de que não há uma infância ou uma criança, mas sim, infâncias e crianças4 4 . Para Qvortrup (1999), a palavra "crianças" não corresponde ao plural da palavra "criança", mas qualifica um grupo pertencente à categoria "infância". que vivem em certas condições diferenciadas, condições estas que precisam ser contextualizadas, considerando-se as diversas categorias: gênero, classe, etnia, religião, espaço geográfico...

Desta forma, parece-nos necessário explicar que as especificidades da infância, e conseqüentemente de sua educação, vão muito além de uma simples demarcação etária, que determina o desenvolvimento infantil a partir de normas pré-estabelecidas, cuja única finalidade é ver a criança tornar-se o futuro adulto bem adaptado à sociedade. Assim, é importante lembrar que as definições de infância podem tomar diferentes formas, de acordo com as referências que buscamos para concebê-las.

Neste sentido, evidenciamos mais uma vez as contribuições de Ferreira (2002), que vêm criticamente fortalecer o entendimento das crianças como atores sociais, produtores/reprodutores de culturas, referência considerada por nós como fundamental para a construção de uma Pedagogia da Infância. Ao colocar as crianças com eqüidade conceptual em relação a outros grupos ou categorias sociais, a autora posiciona-se de maneira contrária ao paradigma tradicional que deduzia o papel da criança como passivo na construção de seus conhecimentos e nos processos de socialização5 5 . A autora, em sua tese de doutorado, mostra detalhadamente o processo de criação/recriação que as crianças realizam do mundo no qual estão inseridas. .

Em consonância com esta perspectiva, as palavras de Faria (1999) elucidam que a incompletude, a precariedade e a ausência que foram atribuídas às crianças pequenas são, exatamente, o que diferencia e caracteriza a infância de outras categorias geracionais. Os modos de expressar-se são diferentes dos modos próprios dos adultos e, porque não sabem fazer coisas que os adultos fazem, tornam-se portadoras de uma cultura infantil. Nestes termos, Kramer (1999) também apregoa que aceitar as crianças em suas formas próprias de expressão, de socialização, com especificidades e diversidades é requisito fundamental da concepção de criança como produtora e reprodutora de culturas. Ainda segundo a autora, o processo pelo qual as pessoas se tornam individuais e singulares se dá, exatamente, neste reconhecimento do Outro e de suas diferenças, numa experiência crítica de formação humana. Portanto, considerar as crianças como atores sociais e culturais implica compreender que a singularidade da infância reside no movimento entre os contextos dos mundos adulto e infantil. Nossa abordagem caminha em direção à crítica ao dualismo criança/adulto – entendendo que as crianças e os adultos devem ser vistos como uma multiplicidade de seres em formação, incompletos e dependentes, e que é preciso superar o mito da pessoa autônoma e independente, como se fosse possível não pertencermos a uma complexa teia de interdependências (Delgado; Muller, 2005).

A socialização em ação: uma breve exposição dos dados e de sua análise

Uma creche, quatro profissionais, dez meninos e treze meninas com idade entre 4 e 5 anos. A creche dispõe de um terreno para horta, dois parques e um pequeno pátio, junto ao portão de entrada.

Identificamos o universo da creche como um espaço sociocultural estruturante e estruturado pelas relações sociais. É um espaço com diferentes posições sociais, em muitas das quais está implícita a divisão hierárquica entre os atores que convivem no seu interior. Essa hierarquia, por sua vez, determina diferentes relações de poder subjacentes aos processos de socialização e posições que vão sendo reconhecidas à medida que os atores vão manifestando certas percussões rituais em seus relacionamentos. As próprias crianças, por exemplo, expressam reações diversas e mostram comportamentos distintos nos relacionamentos com cada um dos adultos. Nesse contexto de relações, percebemos que nos momentos de tensão é visível que, junto aos seus pares, muitas crianças procuram resistir, subverter ou transgredir as determinações definidas pelos adultos, principalmente aqueles que apresentam posturas que desconsideram as expectativas das crianças. Observei que, nessas situações, as crianças demonstram manifestações que lhes permitem olhar para a realidade circundante com olhos transformadores, capazes de estabelecer suas próprias relevâncias nos processos sociais. Entendemos que a transgressão das crianças representa uma busca de identidade e uma forma de contornar os ditames do poder instituído. Vejamos em um dos excertos:

Chego no parque e vejo que tem um balanço diferente, um brinquedo que ainda não havia observado neste local. Era um balanço na forma de avião, no qual as crianças podem sentar dentro e colocar os pés nos dois furos que ficam na parte inferior. Esse balanço foi trazido por uma professora de um outro grupo, que não se disponibilizou a colocar as crianças maiores no mesmo. Porém, com os inúmeros pedidos das crianças do grupo V, ela disse para pedirem ao adulto C pegar outro balanço igual a esse, que tem no berçário. As crianças saem correndo e vão em direção ao adulto A (sentado em uma cadeira no parque), pois o adulto C estava fazendo seu lanche. Elas pedem para ele pegar o balanço. O adulto A diz para as crianças que ele é pequeno e somente os bebês podem usar; em seguida, sem mais conversa, pede que as crianças brinquem com outra coisa. As crianças se entreolham e dizem em coro: Queremos brincar! O adulto A não atende ao pedido e manda-as saírem dali, caso contrário irão ficar sentadas. Quatro crianças (três meninas e um menino) sentam na área coberta do parque tagarelando muito. Uma das meninas, em tom de voz alta comenta com a outra: Deixa, quando a (adulto C) voltar do café ela vai pegar o balanço para a gente, tenho certeza, e aí a gente pode brincar muito. Após algum tempo o adulto C chega ao parque. Fico de olho e vejo que as quatro crianças vão correndo em sua direção e pedem para ela pegar o balanço. Sem saber qual é o balanço, pergunta para as crianças, e elas explicam que é um balanço de avião que está no berçário. Ela vai até o berçário, pede emprestado o balanço e brinca com as crianças durante um longo período naquela manhã. (Diário de Campo, 08/03/2004).

Nessa situação, percebemos ações de socialização ligadas ao que era permitido, ou não, ser realizado na creche, ou ainda, verificamos que não só os adultos, as crianças também criam estratégias de poder (Ferreira, 2002) para concretizar o que desejam para si, como mostram estas passagens: [...] com os inúmeros pedidos das crianças; As crianças se entreolham e dizem em coro: – Queremos brincar; Deixa, quando a (adulto C) voltar do café vai pegar o balanço para a gente, tenho certeza, aí a gente pode brincar muito. Fica evidente a capacidade de alguns profissionais (adulto C) em compreender e considerar as manifestações das crianças como solicitações que revelam autonomia em relação às decisões tomadas por outros profissionais que não consideram o ponto de vista dos pequenos, conduzindo, em minha opinião, as relações sociais com as crianças por uma lógica disciplinar de forma excessivamente padronizada. Portanto, fica visível que os adultos buscam enquadrar as crianças em rituais cristalizados por um jeito de ser no qual prevalece a rigidez, a uniformidade e a homogeneização, o que ocasiona certa tensão nas relações entre adultos e crianças, repercutindo nas relações entre as próprias crianças.

Partindo da máxima que considera "as relações sociais estabelecidas entre os diferentes atores a matriz do desenvolvimento do ser humano" (James; Prout, 2004), o estudo defrontou-se com uma polissemia de relações sociais que se entrelaçavam no cotidiano da creche. Tais relações revelaram que as expressões infantis assumem dimensões contextuais e não "reduzem a socialização a uma qualquer forma de integração social e cultural unificada, enraizada num condicionamento inconsciente" (Dubar, 1997, p.79). Neste caso, observamos que a socialização não se limitava a um efeito das relações adultos-crianças, mas era também um efeito das relações entre as próprias crianças.

Manuela Ferreira (2004, p.59) entende que o exame das relações sociais das crianças no grupo de pares, "implica, desde logo, reafirmar o pressuposto interacionista de que os objetos, pessoas, situações e acontecimentos não têm qualquer significado só por si senão quando este é partilhado socialmente na interação que os indivíduos estabelecem". A referida autora proclama que as crianças, ao se relacionarem e interagirem com os outros sujeitos, vão, aos poucos, descobrindo que os seres humanos são distintos; que cada um tem um modo próprio de ser, de pensar, de sentir e de estar no mundo. É socializando-se com os Outros que as crianças vão descobrindo as próprias especificidades, como também as especificidades dos que com ela convivem. Assim, a construção da visão de mundo efetuada pela criança é feita com o auxílio dos elementos produzidos por sua contínua relação social com os pares e com os adultos, em contextos sociais que vão se interpondo. No entanto, "o processo de socialização não consiste só em uma constante adaptação das crianças ao universo social, mas também elas exercem um papel atuante na dinâmica da constituição deste universo" (Martins Filho, 2005, p.16).

Nesse sentido, enfrentar a questão das tensões presentes nas relações entre adultos e crianças é fundamental para avançarmos em direção a uma concepção de socialização que integre esses dois atores sociais na creche, a tal ponto que as manifestações das crianças não sejam despercebidas e reduzidas, ou ainda, como define Plaisance (2004), que não sejam levadas a processos de socialização invisíveis.

Sônia Kramer (2003, p.105) afirma que, ao deixarmos de olhar para as crianças e de compartilhar com elas suas experiências, incorremos no erro do "adultocentrismo", olhando de cima para as crianças e não na altura de seus olhos, ou seja, evitamos olhá-las nos olhos e deixamos de ver o mundo que se apresenta à sua altura. Na continuidade de suas reflexões, a autora assinala que aprender com as crianças pode ajudar a compreender o valor da imaginação, da arte, da dimensão lúdica, da poesia, de pensar adiante.

Em uma outra situação ocorrida entre o adulto A e um menino, foi possível observar que este, ao ser impedido de comer suas bolachas que trouxe de casa na mochila, conseguiu criar um mecanismo de transgressão que lhe possibilitou continuar comendo-as, situação que acabou sensibilizando o adulto A, convencendo-o a rever sua posição. E mais, mostrou que o menino, mesmo tendo poucas bolachas, conseguiu criar uma estratégia que lhe permitiu dividi-las com as outras crianças. Podemos dizer que o referido adulto teve uma oportunidade de aprendizagem em relação à solidariedade e ao espírito de coletividade. Portanto, a transgressão e a subversão do menino sintetizam a possibilidade de mudança por elas provocada e de crítica à ordem instituída. Ficamos pensando que outro final o menino poderia dar a essa história caso não transgredisse. Ou ainda, que final ela teria se o adulto não se rendesse à transgressão.

Neste caso apresentamos alguns questionamentos: Até que ponto isto é positivo para o desenvolvimento das crianças como sujeitos/atores ativos nos processos de socialização? Estariam nossas crianças sendo postas, desde muito pequenas, a um ambiente institucional de educação no qual precisam transgredir para não se alienar e apenas adaptar-se à sociedade vigente? Seria possível transformar as transgressões em algo positivo que levasse os adultos a repensar o que estão desenvolvendo com as crianças, sem se afastar ou sem se excluir das produções das culturas infantis dos pequenos meninos e meninas?

Chamamos atenção no sentido de que não estamos aqui para defender um "espontaneísmo6 6 . Tal qual Faria (1999, p.70) apresenta, acreditamos que as instituições de Educação Infantil deverão ser espaços que garantam o imprevisto e não a improvisação. " talvez cômodo para os adultos (profissionais), no qual as crianças ficariam livres para fazer tudo o que desejassem. Trata-se de afirmar que as crianças sejam respeitadas pelos adultos nas suas produções e necessidades individuais. Trata-se de superar o que, em alguns momentos, revelou-se como reprodução da violência que vivemos em nossa sociedade, de evitar uma lógica na qual quem é improdutivo não merece cuidados e atenção e, acima de tudo, é diariamente levado a emudecer diante da tentativa de resistência, prevalecendo assim, nas palavras de Faria (1999, p. 67), "uma formação para o operário do futuro e não a criança como criança, de hoje".

A realidade da creche é, portanto, múltipla e contraditória. Se por um lado muitas instituições educacionais que recebem crianças de 0 a 6 anos têm passado por intensas transformações quanto ao seu projeto político-pedagógico, por outro percebemos que o "modelo escolar hegemônico e tradicional de educação" é o que ainda vigora. Com isto, nosso trabalho referencia que as crianças e as relações educativas são verdadeiramente transformadas quando os sujeitos delas participam, com oportunidade de atuar como seres históricos e produtores de culturas.

Por intermédio das análises dos processos de socialização em ação, é possível afirmar que não pretendemos evidenciar as culturas infantis em detrimento do universo cultural mais amplo. Isto causaria uma interpretação errônea, na qual a criança tomaria o centro dos processos sociais e culturais, e o adulto ficaria como mero figurante ou coadjuvante nas relações; ao contrário, o que pretendemos ressaltar é que, em um processo social e cultural em que ambos são atores ativos, não poderemos dissociar a produção cultural produzida para a criança, daquela produzida pela criança, ou entre as próprias crianças. O que deve haver é uma interdependência entre elas. Edmir Perrotti (1990) caracteriza a dinâmica própria da infância pela sua relação com a cultura adulta. Para o autor, "pensamos na criança recebendo (ou não recebendo) cultura, e nunca na criança fazendo cultura ou, ainda, na criança recebendo e fazendo cultura ao mesmo tempo" (p. 18). Neste trabalho, a posição é que adultos e crianças estejam no centro do processo educacional, travando relações que valorizem a humanidade que habita em todos nós.

Na creche tela da pesquisa, constatamos que a capacidade das crianças em reconduzir alguns dos processos de socialização leva-as a superar relações que algumas vezes são travadas com muita rigidez, opacidade, distanciamento e dureza. Percebemos que nesses momentos o que predomina é a persistência de algumas meninas e meninos; elas/es utilizam muitos argumentos explícitos (e implícitos) para convencer os adultos a reverem suas posturas. Senão vejamos:

O adulto B aproxima-se de algumas crianças que estão na mesa e pede para elas não levantarem pois irá organizar a sala para a hora do sono. Karyne olha para ele e diz: Eu não quero dormir, não estou com sono. Esse adulto no meio da arrumação da sala, tirando os brinquedos dos lugares e desmontando os cantos responde para a menina: Pois é, querida, aqui na creche todo mundo dorme. Percebo que as crianças começam a levantar-se das mesas e ficam muito agitadas. O adulto B em tom de voz alterado fala: Olha, vocês precisam colaborar, pois estou limpando a sala para vocês dormirem em um ambiente limpo, tá. O menino Matheus responde: Eu não quero dormir, não estou com sono, vamos fazer diferente hoje! Em seguida Matheus senta em um canto e começa a chorar dizendo que não quer dormir. Ele é acalentado por Analu que diz: Não precisa chorar, é só você não dormir, fica igual a mim deitado no colchão de olhos abertos até a (adulto C) chegar. (Diário de Campo, 14/06/2004).

No excerto citado, Analu revela a criação de uma estratégia que lhe permite ficar acordada na hora do sono coletivo, atribuindo um outro significado e uma ruptura frente àquele momento da rotina institucional. Tal expressão é partilhada com Matheus, que, ao manifestar sua insatisfação para o adulto B por ter que dormir mesmo não estando com sono, é abordado por Analu no repasse de sua estratégia para driblar a ordem determinada, de que todos precisam deitar e ficar em silêncio durante duas horas após o almoço. Vimos mais uma vez que as meninas e os meninos socializam suas descobertas e trocam entre si estratégias de resistência.

Assim como Analu, que apresenta uma estratégia de resistência para o inconformismo de Matheus frente à obrigação de ter que deitar para dormir, muitas crianças ficam durante a "hora do sono" remexendo-se de um lado para o outro sem conseguir dormir. Olham para o teto, comunicam-se por meio de gestos e olhares, ficam "escavacando" os colchões, ou disfarçando, tocam com o pé o colega do lado ou ainda escondem livros e brinquedos embaixo da almofada e do colchão para poder brincar enquanto os adultos não vêem.

Frente às expressões das crianças, verificamos que o adulto B, envolto nas atividades de arrumação do espaço da sala, não estabelece um diálogo mais profícuo com as crianças; ele até responde aos questionamentos delas, porém, de maneira determinada, esclarece que as coisas já estão definidas e não podem ser mudadas ou pensadas sob outras lógicas. No dia-a-dia da creche percebemos que, para alguns adultos, é impossível ousar fazer a rotina diferente. Os relacionamentos referentes ao cuidado com a higiene, o sono, a alimentação, são muitas vezes automatizados pelos adultos, que não dão a devida atenção às necessidades de cada criança, como ser único. A instrumentalização de tais momentos significa tornar o sujeito mais adaptável à sociedade, desconsiderando a multiplicidade concreta da experiência infantil. Sendo assim, "o potencial de segregação e de autoritarismo presente nas relações pedagógicas não permite à criança construir o seu próprio universo, desrespeitando, inclusive, a complexidade que tal construção exige". (Quinteiro, 2002, p.37).

Nesse caso, ficamos a pensar: o que faz os adultos não viverem mais as múltiplas linguagens com que foram presenteados na infância? Por que será que elas ficam esquecidas/adormecidas, se proporcionam às crianças tanta felicidade, movimento, expressão, liberdade, fantasia, imaginação...? Será possível algum dia ver os adultos buscarem nas crianças subsídios para viver de forma plena a vida, ou ainda, algum dia olharão para as crianças de maneira a admirar e respeitar seus jeitos de ser, sem espanto, assombro, mas com satisfação e contentamento pela forma que vivem essa fase da vida? Como se desvincular do autoritarismo, da prepotência e do atraso de uma educação castradora do prazer? Parece-nos que o caminho é pensar em uma educação que procure outras trilhas, no intuito de construir e viver a liberdade, a democracia e a autonomia, instituídas no paradigma do prazer, da diferença, da diversidade e da criatividade.

Talvez, então, superaríamos discursos como estes, de que profissionais fazem uso e pelos quais instem em controlar e repreender as crianças em suas manifestações: Isto não pode; Vamos parar; Agora chega; É para ficar quietinho no tapete; Quem não obedecer, fica sem brincar; Vá sentar naquela cadeira e não levanta mais; Vamos ficar bonitinho; Todos sentados agora; Só ganha quem estiver sentado no lugar (Registro em Diário de Campo, 2004). Constatamos que o processo de socialização, para alguns profissionais, assumia uma relação pedagógica por meio de uma ação educativa que submetia a conduta das crianças às normas preestabelecidas; estas, porém, serviam como instrumento de alienação dos sujeitos, pois, de forma autoritária e arbitrária, negavam a construção de significados e de conceitos pelas crianças e substituíam aqueles conceitos advindos da própria observação direta, da apreciação e do questionamento das normas, dos efeitos e das condutas.

No nosso caso, verificamos que os adultos, ao exigirem das crianças o "bom comportamento", acabam impondo sobre elas um controle excessivo. Fato este que os leva a manipular aspectos da própria cultura infantil para submeter as crianças a padrões sociais em prol de uma "boa educação"; padrões estes que, como já mencionamos, geralmente estão ligados à adaptação e à conformação às regras e às estratégias definidas pelos próprios adultos:

Fala do adulto A: – Senta aí e não levanta, já falei que não quero você passeando pela sala.Você precisa aprender a ficar bonitinha e bem comportadinha igual à Michele. Se continuar fora do seu lugar, não irá participar da história da Pequena Sereia que irei contar. (Diário de Campo, 14/06/2004).

O que pretendemos acionar é a concretização de processos de socialização mais atentos às necessidades infantis de movimento, de ludicidade e de aprendizagem, valorizando todas as linguagens humanas. Olhar principalmente para os relacionamentos das crianças, considerando o que elas representam de alteridade. Em outros termos, entender que "eu só posso respeitar a alteridade do outro se eu reconheço essa alteridade como uma outra modalidade possível do humano. Mas ainda é necessário, reciprocamente, que eu reconheça a alteridade como sendo uma dimensão constitutiva de mim mesmo" (Forquin, 1993, p.141).

Sirota (2001) expressa, com perspicácia, aquilo por nós considerado como um novo olhar sobre a infância, seus processos de socialização, suas marcas e suas particularidades. Ela nos diz que os estudos sobre a socialização da criança não necessariamente implicam autodeterminação, tampouco pensar que somos nós adultos que fazemos o processo para a criança, ou que ela o faça por uma condição natural.

Nesse sentido, seria impossível compreendermos as culturas infantis desligadas das relações dos adultos e das interações entre pares. Portanto, podemos dizer que as crianças possuem características distintas das de outros grupos geracionais, como é o caso dos adultos, mas que elas nunca deixam de manter e desenvolver relações particulares, tendo-as como referencial para a elaboração de suas manifestações culturais.

Nessa direção, concordamos com Sarmento e Pinto (1997), quando expõem que a consideração das crianças como atores sociais, e não como sujeitos incompletos, como componentes acessórios, ou como meios da sociedade dos adultos, implica o reconhecimento da capacidade de produção simbólica por parte das crianças e a constituição das suas manifestações, das suas representações e das suas crenças em sistemas organizados, isto é, em culturas. Os autores completam suas explicações dizendo que essas culturas assentam-se nos mundos de vida das crianças e esses mundos caracterizam-se pela heterogeneidade, pois é preciso ter em conta que há uma pluralidade de sistemas de valores, de crenças e de representações sociais das crianças. E é por isto que, em vez de falar de uma cultura da infância, defendemos que existe uma pluralidade de sistemas simbólicos, sendo preferível falar em culturas das crianças, ou culturas infantis. Assim, podemos inferir que as culturas infantis são formas de ação social próprias desse grupo, ou seja, maneiras específicas do ser criança. Elas são tão antigas quanto a própria infância, e ainda transportam as marcas dos tempos, exprimem a sociedade nas suas contradições, nos seus estratos e na sua complexidade. Portanto, um estudo que pretenda focalizar as culturas infantis não pode ocorrer alheio ao contexto social; pelo contrário, necessita sustentar, na análise, as condições em que as crianças vivem, interagem e pelas quais dão sentido ao que fazem.

As culturas produzidas na infância, como afirma Sarmento (1997; 2002; 2004), não nascem no universo simbólico exclusivo da infância, universo este que não é fechado, nem alheio à reflexividade social global; pelo contrário, é, mais do que qualquer outro, extremamente permeável.

Assim, a consideração das relações que as crianças estabelecem com seus pares e/ou com os adultos, construídas e constitutivas da e na dinâmica social, pode nos indicar grandes possibilidades para pensar a organização institucional de forma mais aproximada do jeito de ser das crianças pequenas, garantindo que elas possam construir "os conhecimentos e as culturas infantis na relação com outras culturas" (Faria, 1999, p.196). As observações que realizamos na creche mostram que as crianças sinalizam ou manifestam os desprazeres que sentem em relação às situações vividas na creche pesquisada. O que significa que levar as produções infantis em conta pode constituir-se em um excelente indicador para melhorar a condução do trabalho pedagógico na creche. Construir tal compreensão requer que os/as professores/as "desenvolvam habilidades para escutar, não só falar; para aprender, não só ensinar; para prestar atenção ao que os sujeitos produzem, aprendem, como interagem, não só no que desejam os adultos, mas no desejo e na ação das crianças". (Tomazzeti, 2004, p.107).

É importante percebermos que a tentativa de impor características passivas aos seres humanos, sejam de que idade forem, não corresponde à história e à cultura construída e vivida pelos grupos sociais (Perroti, 1990, p.20-21). Seguindo este pensamento e tomando como referência o nosso estudo sobre as dimensões dos processos de socialização na creche estudada, é possível compreendermos que os meninos e as meninas não se deixam ser objetos de "inculcação" pura e simples dos valores sociais transmitidos pelos adultos, pois constatamos que a transgressão e a subversão são características presentes nos mundos sociais e culturais da infância.

Assim, reconhecemos cada vez mais a ocorrência, na interação/relação criança-criança, de processos constitutivos da identidade, da capacidade simbólica e da comunicação. Portanto, interagindo e relacionando-se, as crianças criam e negociam regras, assumem e atribuem a si e a seus pares papéis sociais e culturais nos processos de socialização. Consideramos que tal ação em conjunto é um processo de constante recriação da cultura e é o fundamento da própria dinâmica dos processos de socialização das crianças com seus pares. Neste caso, a socialização não se limita somente a um efeito das relações adulto-criança, mas é também um efeito das relações entre as próprias crianças.

Dentre um sem-número de questões que emergem com base em nossas reflexões, algumas se destacam: – Como exercer o papel de adulto, assumir o tempo de adulto, sem infringir ou prejudicar as crianças nas suas expressões, nas suas manifestações, nas suas vivências e experiências? Como considerar a diversidade das crianças, o que fazem de diferente, seus diversos gostos, vontades e necessidades em um ambiente coletivo? Como pensar em processos de socialização abertos para o confronto e não para o conflito? O que é de fato próprio dos mundos e das formas de ser das crianças? Qual o lugar do divertimento, do enriquecimento do adulto, no contato com as crianças? Ou ainda, tal e qual Silva Filho (2004, p. 129) pergunta: "Até onde os adultos podem levar em conta os desejos das próprias crianças, as manifestações sobre o que querem/gostariam de fazer? Qual o grau de imposição, de "assujeitamento" que consideramos aceitável nas relações adulto/criança?"

Diante disso, buscamos pontuar que as relações sociais na creche precisam contemplar os diferentes pontos de vista, sejam da criança, sejam dos profissionais ou sejam ainda das famílias que estão inseridas no entorno da creche. Assim, construir mecanismos que respeitem os diversos interesses numa estratégia de confronto (por meio do diálogo e da negociação) entre os diferentes atores parece-nos o grande desafio posto ao tratar dos processos de socialização e de produção das culturas infantis.

Do nosso ponto de vista, as relações sociais que os adultos estabelecem com as crianças caracterizam uma visão linear, funcional, finalista e contraditória no que se refere aos processos de socialização, pois colocam as meninas e os meninos como dependentes quase exclusivamente de estímulos externos, com a finalidade de adaptar e adequar as crianças às situações ali vividas. Pudemos verificar que as relações sociais, neste caso, pendem mais para os mecanismos de tensão entre ser assujeitado do que ser sujeito. Silva Filho (2004, p.116) corrobora novamente nossas análises ao afirmar que "a tensão está diretamente ligada ao grau de imposição dos adultos sobre as crianças, ou, em outras palavras, mostra o quanto a atividade das crianças é dirigida [somente] pelos interesses dos adultos".

Assim, caminhar à procura de trilhas por uma inteligibilidade da infância a partir do conhecimento das relações sociais que são travadas no contexto institucional é perceber a creche como espaço de trocas, lugar de garantia e compromisso com a educação e as culturas da infância, respeitando todas as crianças de zero a seis anos, meninos e meninas, de todas as raças, credos e situações econômicas. Crianças que precisam desfrutar de uma infância alegre, lúdica, digna, com muitas oportunidades, expressões, cantos, movimentos, criatividade, crítica, ou seja, uma infância de diversas crianças que estão em pleno convívio coletivo na creche.

Recebido em 25 de abril de 2006 e aprovado em 10 de agosto de 2007.

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  • 1
    . Esta análise é parte integrante de minha pesquisa de mestrado em Educação e Infância, defendida em 2005 na Universidade Federal de Santa Catarina/UFSC e está vinculada ao convênio com o Instituto de Estudo das Crianças da Universidade do Minho/Braga/Portugal.
  • 2
    . Reconhecemos o esforço e a dedicação das pesquisadoras Ana Lúcia G. de Faria/Unicamp e Eloísa Acires C. Rocha/UFSC que, em suas diversas produções teóricas, vêm apresentando, em caráter de urgência, mecanismos de consolidação de uma Pedagogia para a Educação Infantil.
  • 3
    . Sarmento e Pinto (1997) consideram a infância como uma categoria social do tipo geracional, por entenderem que ela também ocupa uma posição estrutural em relação a outras categorias geracionais (maturidade , adolescência, juventude, velhice).
  • 4
    . Para Qvortrup (1999), a palavra "crianças" não corresponde ao plural da palavra "criança", mas qualifica um grupo pertencente à categoria "infância".
  • 5
    . A autora, em sua tese de doutorado, mostra detalhadamente o processo de criação/recriação que as crianças realizam do mundo no qual estão inseridas.
  • 6
    . Tal qual Faria (1999, p.70) apresenta, acreditamos que as instituições de Educação Infantil deverão ser espaços que garantam o imprevisto e não a improvisação.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      17 Set 2010
    • Data do Fascículo
      Abr 2008

    Histórico

    • Aceito
      10 Ago 2007
    • Recebido
      25 Abr 2006
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