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A faca, a trança, a solidão: uma herança

DOSSIÊ: ENTRE IMAGENS E TEXTOS

A faca, a trança, a solidão – uma herança

Claudia Ortiz

Mãe de Francisco e André. Produtora do Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo (MAC USP). claortiz@usp.br

Olhe, por favor, a foto. Segure-a. Sente-se da melhor

maneira possível.

Vou ler um texto.

O amigo calado sentou-se. Segurou a imagem. Sabia não

gostar.

A faca, de tão gasta, era um toco. Foi jogada.

Já a trança, permanece no baú. Intacta.

A foto solitária é olhada de tempos em tempos.

Isso fora tudo o que herdara da avó paterna.

É um caboclo? Talvez não. Está calçado. Um certo sinal de prosperidade?

A estrada é de terra batida. As árvores miúdas mal podadas são desleixo. Mourões possuem arame farpado. Gastos. Fios quebrados.

Seria um amanhecer? Seria um entardecer? Não se sabe ao certo.

Poeira não é. Faz frio. As mãos, nos bolsos da calça larga. Paletó e chapéu.

Seria um nevoeiro de amanhecer de inverno? É um nevoeiro de um amanhecer frio. Não se sabe bem onde.

Olhando bem, dá pena das árvores mal podadas. Ficaram ali, porque ficaram. Um mourão a menos. Não estivessem na divisa, seriam madeira de lenha.

Alguém passou. Uma carroça passou. A marca das rodas está aqui. No chão. Grudada, sem nenhum tempo.

A cabeça tomba. Frio? Tristeza? Coisa nenhuma? Só andança. Só solidão.

Onde estaria o fotógrafo? Passara a noite em claro esperando? Esperando um viandante? O clique de Bresson? O momento exato? O instante único?

Tudo pode ser uma farsa. Tudo é farsa.

Dias antes, o local, a escolha da hora solitária tinham sido marcados. Vai daí, o passante estar calçado? Nunca se saberá.

Por que uma faca, uma trança longa e essa foto vieram até aqui? A faca, a bem da verdade, anda longe.

Antigamente, a trança era mostrada com orgulho, como prova da parecença dos cabelos. Ainda ninguém duvidava dos parentescos. Bastava uma trança grossa, um olhar ruivo e uma certeza.

O orgulho pela trança só foi sabido muito mais tarde. Significou. Um gesto de audácia naqueles fundões do Vale. Corte com o passado. Corte com desejos não realizados. Emancipação? Mulheres de cabelos curtos. E não eram putas. Sinhazinhas que podiam só um gesto de rebeldia.

A foto chegou até ela, sabe-se lá como. Nunca fora exposta em álbum. Na gaveta, bem no fundo, dormia à espera.

Hoje está mais bonita. Os cinzas amarelecem. Os brancos se foram.

A pobreza sobe fria. Funde-se à névoa.

Seria um poeirão levantado pela carroça? Não. Definitivamente, não!

Essa tristeza, essa solidão esfumada, sentira a avó? Talvez.

Pela trança, se vê que era mulher forte. Inteligente.

Francês, aprendeu com os trapistas. Suas mesas eram delicadeza, elegância. Onde teria aprendido? Também com os trapistas?

Baixava o tom, até quase não ser ouvida, quando dizia que os monges se perderam com caboclas e o sal da terra. A Ordem debandou. Fora fechada.

Coisa mais triste!

Mas antes, aprendera a fazer licores, ler Balzac e saber Paris melhor do que ninguém.

Não foi até lá. Foi. Tal qual Beatriz e o poeta – fora a Paris pelas mãos de Balzac.

Isso ela não contava. Não se dava por vencida. Omitia? Mentir não mentia. Descrevia ruas, cheiros, luzes com tal perfeição, que o ouvinte, sem jeito, não perguntava quando estivera lá.

Literatura, literaturas...

Mas e a foto? Fora presente? Presente de um admirador? Um amante proibido?

Com capricho, de próprio punho, escreveu no verso – «Sem Destino» – Ângelo F. Nuti.

A caligrafia é dela. O efe um pouco tremido? Teria se emocionado ao escrever? As aspas estão usadas com propriedade. Indicam o nome da obra. Abaixo o nome do autor.

Efe seria Francesco, Firmino, Felice, Figlio, Federico, Fratello?

Nunca se saberá.

Naquela manhã fria, acordara de um pesadelo. Assim como estava, deixou a casa grande pra ver a bruma na estrada.

Pés descalços.

Talvez tenha encontrado «Ângelo». Talvez, a paixão impossível. Um olhar ruivo, relâmpago foi visto, e voltou.

Pés descalços.

Para o quarto? Dormir?

«Ângelo», nome sugestivo – anunciara o porvir. Dias difíceis, mau agouro. Ela só fez chorar.

Isso no início.

Depois, aos poucos, retomou a fortaleza de ser. Ela era forte – já disse.

«Ângelo» viu a bruma – revelação. O nevoeiro foi para sempre.

A foto pronta fora gravada em papel 10 X 17cm.

Um presente raro, custoso.

Será que cortou as tranças antes ou depois do presente?

Será que deixou para um dia destes?

O certo, certeiro mesmo – é que a faca acabou. Nunca se soube se fora presente de casamento.

Um faqueiro velho, com peças que azinhavram. Nem de prata fora.

Prata mesmo, só a da foto.

De prata mesmo, só a água-névoa daquela manhã.

No mais – canseira canseiras...

O amigo não se mexeu.

O dia claro – esfumou-se em amarelos...

Como era mesmo aquele olhar ruivo?

O vivido amolece água, imagem, sentidos.

Foi regar violetas e ausências!

Recebido em 20 de agosto de 2007 e aprovado em 23 de novembro de 2007.

Foto: Sem Destino, de Ângelo F. Nuti.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    17 Set 2010
  • Data do Fascículo
    Abr 2008
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