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“Meus hormônios me enlouquecem”: investigação psicanalítica com mommy blogs brasileiros

“Mis hormonas me enloquecen”: investigación psicoanalítica con mommy blogs brasileños

«Mes hormones me rendent folle»: recherche psychanalytique auprès de mommy blogs brésiliens

Resumo

Esta pesquisa objetiva investigar psicanaliticamente imaginários coletivos de mães sobre sofrimentos maternos, na perspectiva da psicologia psicanalítica concreta. Justifica-se como busca de conhecimento compreensivo que pode trazer subsídios para a clínica psicológica contemporânea e para debates de movimentos sociais e sociedade civil que tenham por foco a melhoria das condições de cuidados a mães e filhos. Organiza-se ao redor do método psicanalítico, utilizando como material postagens provenientes de mommy blogs brasileiros. A leitura do conjunto de postagens, em estado de atenção flutuante e associação livre de ideias, permite a produção interpretativa do campo de sentido afetivo-emocional “Meus hormônios me enlouquecem”. Este campo se organiza ao redor da fantasia segundo a qual afetos ansiosos e depressivos, vivenciados por mães durante o puerpério, seriam determinados por hormônios e/ou neurotransmissores. O quadro geral indica uma tendência imaginativa a priorizar o valor da esfera biológica em detrimento da dramática da vida relacional-vincular.

Palavras-chave:
maternidade; sofrimento; imaginário coletivo

Resumen

Este estudio tiene como objetivo investigar psicoanalíticamente imaginarios colectivos de madres sobre sufrimientos maternos desde la perspectiva de la psicología psicoanalítica concreta. Se justifica como una búsqueda de conocimiento comprensivo que puede aportar subsidios para la clínica psicológica contemporánea y para debates de movimientos sociales y sociedad civil con el fin de mejorar las condiciones de cuidados a madres e hijos. Se organiza alrededor del método psicoanalítico, utilizando como material publicaciones provenientes de mommy blogs brasileños. La lectura del conjunto de publicaciones, en estado de atención fluctuante y libre asociación de ideas, permite la producción interpretativa del campo de sentido afectivo-emocional “Mis hormonas me enloquecen”. Ese campo se organiza en torno a la fantasía, de que los afectos ansiosos y depresivos vividos por las madres durante el puerperio serían determinados por hormonas y/o neurotransmisores. El cuadro general indica una tendencia significativa de priorizar el valor de la esfera biológica en detrimento del drama de la vida relacional-vincular.

Palabras clave:
maternidad; sufrimiento; imaginario colectivo

Résumé

Cette recherche examine, de manière psychanalytique, les imaginaires collectifs des mères sur la souffrance maternelle, selon la perspective de la psychologie psychanalitique concrète, se justifiant en tant que recherche des connaissances qui peuvent apporter des subsides à la clinique psychologique contemporaine et aux débats qui se concentre sur l’amélioration des conditions sociales. Cette investigation s’ articule autour de la méthode psychanalytique, en utilisant comme source des messages de mommy blogs brésiliens. La lecture des messages, en attention flottante et libre association d’idées, permet la production interprétative du champ de sens affectif-émotionnel “Mes hormones mes rendent folle”, qui s’organise autour du fantasme selon lequel les emotions seraient déterminées par des hormones et/ou des neurotransmetteurs. Le tableau général indique une tendance imaginative à privilégier la valeur de la biologie au détriment du drame de la vie relationnelle.

Mots-clés:
maternité; souffrance; imaginaire collectif

Abstract

Our article seeks to investigate the collective imaginaries of mothers about maternal suffering in the perspective of the concrete psychoanalytical psychology. This investigation may ground contemporary psychological clinical practices and offer a comprehensive knowledge to debates of social movements and civil society that focus on improving the conditions of emotional and mental care for mothers and children. Our study applies the psychoanalytic method, using posts from Brazilian mommy blogs as material. The psychoanalytical consideration of the posts, based on hovering attention and free association of ideas, allowed the interpretive production of one affective-emotional field “My hormones drive me crazy”. This field is organized around the phantasy that anxious and depressive feelings experienced by mothers during the post-partum (postpartum period) would be determined by hormones and/or neurotransmitters. The results indicate an imaginative tendency to prioritize biological dimensions of human behaviors rather than the drama of relational contexts.

Keywords:
motherhood; suffering; collective imaginary

Introdução

O objetivo de estudar imaginários coletivos de mães sobre sofrimentos maternos, na perspectiva da psicologia psicanalítica concreta, insere-se numa visão segundo a qual a experiência de maternidade é afetada, na sociedade contemporânea, por sofrimentos emocionais, aqui entendidos como socialmente determinados. Produzir conhecimento sobre essa questão parece-nos uma iniciativa importante, tanto porque pode gerar subsídios para práticas clínico-sociais, entre as quais se inclui a psicologia, como porque pode enriquecer e fundamentar debates que se travam em movimentos sociais e na sociedade civil no âmbito da busca de transformações que fundamentem convivências mais solidárias e respeitosas entre indivíduos e grupos.

Deste modo, o conceito de sofrimento social merece ser focalizado. Evidentemente, pode ser usado numa acepção ampla, consoante, por exemplo, com a perspectiva de Bleger (1963/1977Bleger, J. (1977). Psicologia de la conducta. Buenos Aires: Paidós. (Trabalho original publicado em 1963)), para quem a natureza humana seria social. Entretanto vem sendo utilizado, desde as últimas décadas do século passado, quando condições sociais adversas afetam mais clara e diretamente o bem-estar, a segurança e mesmo os direitos fundamentais de indivíduos e coletivos humanos. Exemplos de sofrimentos sociais são aqueles que surgem em certas situações, tais como tortura, guerra, racismo, antissemitismo. Podemos aqui lembrar, como estudos seminais, os trabalhos de Carreteiro (2003Carreteiro, T. C. (2003). Sofrimentos sociais em debate. Psicologia USP, 14(3), 57-72.), Werlang e Mendes (2013Werlang, R., & Mendes, J. M. R. (2013). Sofrimento social. Serviço Social e Sociedade, (116), 743-768.) e Fonseca (2017Fonseca, C. (2011). The de-kinning of birthmothers: reflections on maternity and being human. Vibrant: Virtual Brazilian Anthropology, 8(2), 307-339. doi: 10.1590/S1809-43412011000200014
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), sem nos esquecermos de Renault (2010Renault, E. (2010). A critical theory of social suffering. Critical Horizons, 11(2), 221-241.) que destaca que sentimentos de desamparo, humilhação e injustiça parecem se configurar nessas situações.

Não há dúvida, contudo, de que mulheres podem ser consideradas como grupo socialmente atingido, de modo que não nos surpreende encontrar um capítulo específico sobre sua condição na obra organizada por Kleinman, Das e Lock (1997Kleinman, A., Das, V. & Lock, M. (1997). Social suffering. Los Angeles: University of California Press.). De certo modo, toda a literatura feminista pode ser tomada como evidência de que as mulheres lutam pela superação de condições de desigualdade que geram sofrimentos emocionais importantes. Nesse sentido, o trabalho de Das (1996Das, V. (1996). Critical events: an anthropological perspective on contemporary India. Oxford, MA: Oxford University Press.) é exemplar na medida em que focaliza aquilo que denomina de eventos críticos, ou seja, circunstâncias provocadoras de sofrimentos caracterizadas pela brutalidade que afetam a todos, mas, mais principalmente, às mulheres. A contribuição da autora fornece subsídios para não somente refletir sobre tais situações, como também para que profissionais possam realizar intervenções, seja no âmbito individual, com as próprias mulheres, seja em âmbito institucional, com instituições que acolhem esta população ou que estejam envolvidas na gênese desse sofrimento. Todavia não nos parece que a clara vinculação entre maternidade contemporânea e sofrimento social tenha sido suficientemente explorada, motivo pelo qual julgamos oportuna a realização de estudos sobre imaginários coletivos de mães sobre dificuldades e sofrimentos maternos.

Quando partirmos de posicionamentos teóricos que valorizam as condições concretas dentro das quais transcorre a vida humana, entendemos que este estudo se localiza num capítulo maior sobre preocupações clínicas referentes a sofrimentos emocionais, entendidos como socialmente determinados. A partir do reconhecimento daquilo que mães vivem concretamente, justificamos a realização desta pesquisa.

Esta investigação se insere na interface de duas grandes ordens. Por um lado, há exigências sociais de acordo com as quais a mulher-mãe deveria se devotar inteiramente à maternidade (Visintin & Aiello-Vaisberg, 2017Visintin, C. D. N., & Aiello-Vaisberg, T. M. J. (2017). Motherhood and social suffering in Brazilian mommy blogs. Revista Psicologia-Teoria e Prática, 19(2), 108-116.). Por outro, em diversos ambientes, há expectativas segundo as quais as mães deveriam se dedicar ao trabalho e a carreiras profissionais, engajando-se de modo comprometido com o mundo laboral sem abrir mão da maternidade como missão de vida, conforme encontrado, por exemplo, por Schulte, Gallo-Belluzzo e Aiello-Vaisberg (2019Schulte, A. D. A., Gallo-Belluzzo, S. R., & Aiello-Vaisberg, T. M. J. (2019). A experiência emocional de autoras de mommy blogs. Estudos Interdisciplinares em Psicologia, 7(1), 107-130.), em investigação psicanalítica, e Märtsin (2018Märtsin, M. (2018). Becoming an employed mother: conceptualising adult identity development through semiotic cultural lens. Women’s Studies International Forum, (68), 11-18.), em pesquisa baseada na semiótica cultural. Entendemos que a confluência destas duas ordens, a da exigência idealizada às mães de atenção devotada e integral ao filho e a das expectativas de que também se dediquem ao trabalho, configura uma situação geradora de tensão para as mulheres na medida em que enfrentam pesadas exigências ao conciliar o trabalho e a maternidade, conhecida como dupla jornada, e que, hoje em dia, a mulher que se dedica exclusivamente à maternidade não usufrui do mesmo conforto e realização que certas mulheres de outros tempos poderiam ter sentido como mães e donas de casa.

Há pesquisas que indicam que a mãe seria vista como um ser de incríveis capacidades de doação e de amor. Podemos nos lembrar do estudo de Greinert e Milani (2015Greinert, B. R. M., & Milani, R. G. (2015). Depressão pós-parto: uma compreensão psicossocial. Psicologia: Teoria e Prática, 17(1), 26-36.), que, valendo-se da análise de conteúdo, afirmam que a impossibilidade de alcançar um ideal de maternidade pode favorecer a emergência de sentimentos depressivos. Entre outros trabalhos recentes, podemos destacar o de Henderson, Harmon e Newman (2016Henderson, A., Harmon, S., & Newman, H. (2016). The price mothers pay, even when they are not buying it: mental health consequences of idealized motherhood. Sex Roles, 74(11-12), 512-526. doi: 10.1007/s11199-015-0534-5
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) que, ao delinearem sua pesquisa como survey, chegam a conclusões semelhantes ao perceberem que mães que não atendem às expectativas socialmente estabelecidas referentes ao cuidado infantil tendem a se sentir mais ansiosas e culpadas. Outros autores, tais como Alves e Poli (2016Alves, M. B., & Poli, M. C. (2016). When a woman is mother: feminine jouissance in motherhood. Ágora: Estudos em Teoria Psicanalítica, 19(2), 191-207. doi: 10.1590/S1516-14982016002003
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) e Schechter e Perelson (2017Schechter, L. M. S., & Perelson, S. (2017). Separar-se da mãe para tornar-se mãe: a criação do espaço de concepção. Psicologia Clínica, 29(3), 403-427.), apoiados em certas perspectivas psicanalíticas, também concordam com a ideia de que a maternidade seria o meio pelo qual a mulher viria a ser reconhecida socialmente. Consideramos que esses achados de pesquisas indicam posicionamentos que podem estar a serviço da manutenção da organização social vigente quanto à responsabilidade pelas crianças, o que pode dificultar que vínculos comunitários e sociais comprometidos com o cuidado infantil se estabeleçam mais firmemente.

Hollway (2016Hollway, W. (2016). Feminism, psychology and becoming a mother. Feminism & Psychology, 26(2), 137-152. doi: 10.1177/0959353515625662
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) postula que ocorrem cristalizações do modelo feminino e masculino em nossa sociedade, o que repercute nas organizações sociais e legais do trabalho. Aparentemente, acredita-se, ainda, que a mulher deveria permanecer no ambiente privado, cuidando dos filhos e da casa, de modo que, ao homem, restaria o dever de prover financeiramente à esposa e aos filhos. Esse tipo de organização se relaciona proximamente ao modo como a sociedade tem lidado com os direitos laborais e reprodutivos das mulheres. Entendemos que, mesmo que a gestação de um bebê dependa do corpo feminino, a disposição dos cuidados infantis pode ocorrer de inúmeras maneiras, considerando a dimensão cultural e histórica segundo a qual as pessoas se preparam para receber um novo membro (Gottlieb & DeLoache, 2016Gottlieb, A., & DeLoache, J. S. (2016). A world of babies: imagined childcare guides for eight societies. Cambridge, UK: Cambridge University Press.; Rogoff, 2005Rogoff, B. (2005). A natureza cultural do desenvolvimento humano. São Paulo, SP: Artmed.).

Com o avanço da tecnologia, conversas sobre muitos assuntos, entre eles a maternidade, deixaram de ocorrer apenas vis-à-vis para se desenrolarem em outros ambientes. De acordo com Abetz e Moore (2018Abetz, J., & Moore, J. (2018). “Welcome to the Mommy Wars, Ladies”: making Sense of the Ideology of Combative Mothering in Mommy Blogs. Communication, Culture and Critique, 11(2), 265-281. doi: 10.1093/ccc/tcy008
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), uma das formas no mundo on-line para comunicação são os blogues, que se conformam como um meio muito utilizado por mulheres-mães que tentam lidar com as dificuldades da maternidade. Desse modo, mommy blogs - nomenclatura específica para designar blogues escritos por mulheres-mães - tornam-se ambiente importante que oferecem material valioso para pesquisas psicanalíticas, uma vez que bloggers, de modo voluntário e espontâneo, falam sobre suas vivências emocionais relacionadas aos cuidados infantis (Schulte et al., 2016Schulte, A. A., Gallo-Belluzzo, S. R., & Aiello-Vaisberg, T. (2016). Postagens em blogs pessoais: aproximação do acontecer humano em pesquisas psicanalíticas. Psicologia Revista, 25(2), 227-241. Recuperado de https://bit.ly/3sRRR2X
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).

Reconhecemos, assim, a importância daquilo que as mães vivem concretamente, incluindo o modo como acolhem seus próprios medos e dúvidas relativas à maternidade. Justificamos, portanto, esta pesquisa que objetiva investigar psicanaliticamente os imaginários coletivos de mulheres-mães sobre o sofrimento materno por meio de postagens de mommy blogs brasileiros.

Fundamentos e procedimentos metodológicos

Este estudo se delineia como pesquisa qualitativa com uso do método psicanalítico. Desde sua criação, este método clínico se mantém invariante, sustentado pelos pilares da associação livre de ideias e da atenção flutuante, enquanto as teorias e procedimentos clínicos dele derivados têm sofrido importantes mudanças e desenvolvimentos ao longo do tempo. Esse fato não deve causar estranheza, uma vez que, do ponto de vista lógico, o método se antepõe à criação das doutrinas psicanalíticas e aos procedimentos clínicos, como bem demonstrou Herrmann (1979Herrmann, F. (1979). O método da psicanálise. São Paulo, SP: EPU.).

Tendo em mente que propomos compreender os fundamentos afetivos e emocionais de atos humanos, entendemos como indispensável que esclareçamos, inicialmente, nosso posicionamento teórico-epistemológico. A seguir, definimos os conceitos fundamentais utilizados nesta pesquisa para, então, descrever os procedimentos investigativos que correspondem ao modo como operacionalizamos o método psicanalítico.

Quando o método psicanalítico é colocado em marcha, acaba por gerar material clínico passível de ser teorizado de distintas maneiras. Abordando estes distintos modos, Greenberg e Mitchell (1983Greenberg, J. R., & Mitchell, S. A. (1983). Object relations in psychoanalytic theory. Cambridge, MA: Harvard University Press.) puderam reconhecer que se articulam como alinhados a dois modelos, o estrutural-pulsional e o estrutural-relacional, entre os quais se perfilam propostas teóricas que buscam acomodações entre esses dois polos. Esse quadro derivaria do fato, argutamente percebido por Politzer (1928/2004Politzer, G. (2004). Crítica dos fundamentos da Psicologia: psicologia e psicanálise. São Paulo, SP: Unimep. (Trabalho original publicado em 1928)), segundo o qual o discurso freudiano seria constituído por duas diferentes vertentes, uma energética e fisicalista e outra clínica e dramática, apontamento que foi amplamente reconhecido no campo da psicanálise, mas que gerou diferentes posicionamentos. Alguns autores, como Ricoeur (1977Ricoeur, P. (1977). Da interpretação: ensaio sobre Freud. Rio de Janeiro, RJ: Imago.), entendem que a mescla das duas vertentes seria altamente vantajosa, enquanto outros, como Bleger (1963/1977Bleger, J. (1977). Psicologia de la conducta. Buenos Aires: Paidós. (Trabalho original publicado em 1963)), criticam o abstracionismo do paradigma pulsional, entendendo que esse tipo de teorização deve ser abandonado.

Convencidos pelas colocações blegerianas, a partir de claras ressonâncias fenomenológicas que nos convidam a pensar num inconsciente intersubjetivo, temos colocado nosso trabalho sob a égide do modelo estrutural-relacional da psicanálise, partindo de um posicionamento teórico conhecido como psicologia psicanalítica concreta (Bleger, 1963/1977Bleger, J. (1977). Psicologia de la conducta. Buenos Aires: Paidós. (Trabalho original publicado em 1963)). Essa perspectiva adere ao método psicanalítico, porém se afasta de teorizações metapsicológicas, na medida em que as entende como tributárias de mitos positivistas inaceitáveis segundo os quais a pessoa seria vista de modo abstrato, natural e isolado das condições concretas de sua existência. Trata-se de uma teorização relacional que se distingue de outras do mesmo tipo exatamente por enfatizar que indivíduos e coletivos transitam em campos vinculares que estão sempre inseridos em contextos macrossociais que não podem ser desconsiderados (Sas, 2004Sas, S. A. (2004). L’interprétation dans le trans-subjectif: Réflexions sur l’ambiguïté et les espaces psychiques. Psychothérapies, 24(4), 207-213.).

Ao passo em que todos os fenômenos humanos devem ser entendidos como inerentemente sociais (Bleger, 1963/1977Bleger, J. (1977). Psicologia de la conducta. Buenos Aires: Paidós. (Trabalho original publicado em 1963)), Goldmann (1974Goldmann, L. (1974). Pensée dialectique et sujet transindividuel. In L. Goldmann, La création culturette dans la société moderne (pp. 121-154). Paris: Gonthier.), cujas contribuições decorrentes de suas investigações sobre criação cultural coincidem com a visão blegeriana, definiu pessoalidade coletiva transindividual com precisão. Esse aspecto se mostra muito significativo em pesquisas qualitativas com uso do método psicanalítico sobre imaginários coletivos, uma vez que focalizamos aquilo que é compartilhado por muitas pessoas, mesmo que não deixe de ser absolutamente pessoal. Tais sujeitos coletivos são, evidentemente, concretos, mas tal concretude se configura por meio de atos individuais, lembrando que os humanos são, simultânea e paradoxalmente, individuais e coletivos.

Para organizarmos a nossa pesquisa, utilizamos certos conceitos metodológicos. Valemo-nos, aqui, de três: conduta, imaginário coletivo e campo de sentido afetivo emocional.

Na perspectiva da psicologia concreta (Bleger, 1963/1977Bleger, J. (1977). Psicologia de la conducta. Buenos Aires: Paidós. (Trabalho original publicado em 1963)), as condutas correspondem a todo e qualquer tipo de manifestação do ser humano, expressas mentalmente, corporalmente e/ou como atuação no mundo externo. Tais manifestações humanas seriam objeto de estudo compartilhado por todas as ciências humanas. As condutas seriam, também, passíveis de serem consideradas em termos de níveis de causalidade infra-humanos, ou seja, químicos, físicos e biológicos. Entretanto a psicologia, com vistas a compreender as condutas no nível humano de integração, não necessita ser complementada com saberes provenientes das áreas biológicas e exatas para estudar a experiência vivida. Desse modo, as condutas são entendidas como atos sociais, sempre vinculares, que emergem de campos situados em contextos macrossociais. Portanto não estamos trabalhando com o resultado de um acordo entre forças intrapsíquicas contraditórias, mas com vínculos de pessoas concretas situadas em contextos sociais.

Neste âmbito teórico, sempre lidamos com condutas humanas, entendidas como emergentes de campos denominados “campos de sentido afetivo-emocional”, que podem ser definidos como substratos emocionais subjacentes às manifestações humanas, cujo caráter é não consciente. No âmbito da psicologia concreta, a dimensão inconsciente é concebida como campos intersubjetivamente plasmados, e não como interioridade psíquica individual cujo conteúdo coincidiria com o reprimido.

O conceito de imaginário coletivo corresponde a um tipo particular de conduta, sob a acepção que o termo assume sob a pena de Bleger (1963/1977Bleger, J. (1977). Psicologia de la conducta. Buenos Aires: Paidós. (Trabalho original publicado em 1963)). Deve ser definido como conjunto de atos humanos que não se limitam à atividade imaginativa propriamente dita. Como conduta, imaginários coletivos se expressam mentalmente, corporalmente e/ou como atuação no mundo externo (Aiello-Vaisberg & Machado, 2008Aiello-Vaisberg, T. M. J., & Machado, M. C. L. (2008). Pesquisa psicanalítica de imaginários coletivos à luz da teoria dos campos. In J. Monzani & L. R. Monzani (Orgs), Olhar: Fabio Herrmann - uma viagem psicanalítica (pp. 311-324). São Paulo, SP: Pedro & João Editores.). Ou seja, neste contexto, o conceito de imaginário coletivo pode ser definido como condutas que criam mundos vivenciais, de modo que não se confunde, de forma alguma, com o que é falso ou especular (Ambrosio, 2013).

A fim de facilitar a nossa comunicação com pesquisadores interessados na temática, mas eventualmente pouco familiarizados com esse referencial teórico-metodológico, apresentamos a seguir os procedimentos investigativos por meio dos quais operacionalizamos o método psicanalítico. Nesta pesquisa, que tomou postagens de mommy blogs como material, os procedimentos que utilizamos foram:

  1. procedimento investigativo de levantamento e seleção de postagens;

  2. procedimento investigativo de registro de postagens;

  3. procedimento investigativo de interpretação de postagens.

Finalizamos a pesquisa cumprindo as interlocuções reflexivas. Esse momento, que corresponde ao usualmente chamado de discussão em outros trabalhos empíricos, caracteriza-se pela suspensão da atenção flutuante e da associação de ideias. Desse modo, em prol do estabelecimento de um trabalho teórico de cunho reflexivo, discutimos os campos de sentido afetivo-emocional, que, rigorosamente falando, conformam-se como os resultados de pesquisa, à luz de diálogos com outros autores.

Para cumprirmos o procedimento investigativo de levantamento e seleção de postagens, realizamos um levantamento no Google a partir do termo “depressão pós-parto blogues”. Como resultado deste levantamento, obtivemos o total de 240 links. O conteúdo de todos os endereços eletrônicos foi examinado à luz dos critérios definidos a priori, resultando em 48 postagens, tomadas como corpus de material de pesquisa:

  1. postagens provenientes de blogues brasileiros;

  2. postagens escritas por internautas que se identificam como mães;

  3. postagens sobre depressão pós-parto.

Devemos esclarecer que o terceiro critério, relativo à seleção de postagens que tematizam a depressão pós-parto, corresponde a um artifício metodológico que se fundamenta na ideia de procedimentos encobertos de pesquisa (Aiello-Vaisberg, 1995Aiello-Vaisberg, T. M. J. (1995). O uso de procedimentos projetivos na pesquisa de representações sociais: projeção e transicionalidade. Psicologia USP, 6(2), 103-127. Recuperado de https://bit.ly/3mnzmkh
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). Os procedimentos encobertos se valem da enunciação de um interesse que não coincide exatamente com o objetivo. Ou seja, não tomamos a depressão pós-parto nem como objeto de estudo, nem como problema de pesquisa. Optamos por estudar postagens sobre depressão pós-parto na medida em que se configuram como locus privilegiado para compreender o sofrimento materno.

No que tange ao procedimento investigativo de registro do material, realizamos uma transcrição ipsis literis das postagens selecionadas a fim de salvá-las em um documento com finalidades de pesquisa. Isso se fez necessário, pois conteúdos disponíveis na rede podem, eventualmente, ser deletados e, assim, perder-se o acesso ao material selecionado. A seguir, excluímos quaisquer dados que, porventura, pudessem identificar suas autoras. Esse cuidado foi bem explicado por Townsend e Wallace (2017Townsend, L., & Wallace, C. (2017). The ethics of using social media data in research: a new framework. In K. Woodfield (Ed.), The ethics of online research: advances in research ethics and integrity (Vol. 2, pp. 189-207). Bingley, UK: Emerald Publishing.) no que tange a preocupações éticas em pesquisas com materiais on-line.

Em relação ao procedimento investigativo de interpretação do material, realizamos leituras sucessivas das postagens selecionadas em estado de atenção flutuante e de associação livre de ideias, conforme os passos do método psicanalítico, a fim de chegar interpretativamente aos campos de sentido afetivo-emocional. Nesse momento, inspiramo-nos nas palavras de ordem de Herrmann (1979Herrmann, F. (1979). O método da psicanálise. São Paulo, SP: EPU.), que podem ser consideradas como guias para criação da interpretação psicanalítica: “deixar que surja”, “tomar em consideração” e “completar a configuração do sentido emergente”. Portanto, se campos são entendidos como fundo não consciente, mas produtor das condutas, propor interpretativamente campos de sentido afetivo-emocional corresponde a enunciar um movimento plausível de criação, ou seja, buscar chegar aos determinantes emocionais das condutas. Com o intuito de garantirmos a legitimidade da proposição das interpretações, ou seja, da enunciação dos campos, discutimos as 48 postagens e os nossos impactos transferenciais no âmbito do grupo de pesquisa. Esclarecemos que, na pesquisa psicanalítica, nenhuma interpretação, entendida como resultado de investigação empírica visa esgotar todos os sentidos que surgem nas comunicações. Entretanto, como pesquisadores, privilegiamos determinada linha interpretativa em função do avanço do conhecimento científico que tal resultado pode suscitar, em discussão com outros autores, à luz das repercussões clínicas e sociais do achado de pesquisa.

Interpretações e interlocuções reflexivas

A leitura do material, em estado de atenção flutuante e associação livre de ideias, permitiria distinguir mais de um campo de sentido afetivo-emocional, ou seja, mais de um resultado interpretativo, como seria de se esperar numa pesquisa qualitativa com uso do método psicanalítico. Podemos abalizar, mesmo que rapidamente, que seria possível produzir, a partir do mesmo material, campos ligados a exigências sociais de que a mulher deveria assumir responsabilidades integrais pelo cuidado infantil. Nesse sentido, deparamo-nos com um imaginário em que a mãe figura como um ser dotado de notáveis capacidades de dedicação ao bebê, o que também foi encontrado em outras pesquisas, realizadas com materiais on-line semelhantes, tais como os estudos de Schulte et al. (2019Schulte, A. D. A., Gallo-Belluzzo, S. R., & Aiello-Vaisberg, T. M. J. (2019). A experiência emocional de autoras de mommy blogs. Estudos Interdisciplinares em Psicologia, 7(1), 107-130.) e Visintin e Aiello-Vaisberg (2017Visintin, C. D. N., & Aiello-Vaisberg, T. M. J. (2017). Motherhood and social suffering in Brazilian mommy blogs. Revista Psicologia-Teoria e Prática, 19(2), 108-116.).

Entretanto o exame do material desta pesquisa permitiu o destaque de outro campo que merece ser focalizado em separado, em função das reflexões que suscita. Assim, focalizamos o campo de sentido afetivo-emocional “Meus hormônios me enlouquecem”, que se organiza ao redor da fantasia segundo a qual afetos ansiosos e depressivos, vivenciados por mães durante o puerpério, seriam determinados por hormônios e/ou neurotransmissores.

A seguir, apresentamos três trechos ilustrativos de postagens diferentes. Tais vinhetas correspondem a exemplos de condutas emergentes deste campo:

Quando eu já estava com os sintomas de depressão, passei por um neurologista que prescreveu antidepressivos que me fizeram sentir pior do que antes. Lembrei, então, que durante a gravidez meu obstetra recomendou que eu procurasse um endócrino, pois tive alteração e comecei a tomar remédio para a tireoide... Talvez, se tivesse ouvido a recomendação do meu obstetra e procurado o endócrino antes, eu poderia não ter sofrido durante 8 meses após o nascimento do meu filho.

Eu tive depressão pós-parto. Ela foi diagnosticada há 3 meses, mais ou menos, e agora, me sentindo bem novamente, opto por compartilhar com vocês a minha história. História essa que deve se parecer com de muitas outras mães e que eu espero, através do meu relato, possam se identificar, encontrar forças para procurar ajuda, e se curar... eu quero que as pessoas entendam que depressão pós-parto não é algo para se envergonhar, não é falta de amor, não é sinal de fraqueza. Depressão pós-parto é uma realidade que muitas mães experimentam, devido às alterações hormonais (...) que a maternidade nos traz, e que, principalmente, ela tem cura. O quanto antes ela for identificada, diagnosticada e tratada, melhor.

Oi comadre! Tudo joia? A depressão pós-parto é um assunto delicado, muitas vezes negligenciado, e pouco comentado… As mamães se envergonham, se culpam e se escondem... O que acontece afinal? Por que isso acontece? Bom, fisiologicamente, a explicação é que a mulher, no período do pós-parto + amamentação, entra numa montanha russa hormonal, com queda brusca de alguns hormônios e aumento brusco de outros… E isso, por si só, já deixa a gente bem sensível, com os sentimentos “à flor da pele”.

Quando sob a vigência desse campo de sentido afetivo-emocional, a mãe-internauta, entendida como pessoalidade coletiva transindividual (Goldman, 1974), parece entender seu sofrimento como determinado pelo funcionamento cerebral e/ou hormonal. Assim, parece desconsiderar suas próprias vivências e relacionamentos como relevantes na gênese de seu mal-estar, tampouco a organização social de cuidados de bebês.

Podemos compreender este fenômeno como uma dissociação. Segundo Bleger (1963/1977Bleger, J. (1977). Psicologia de la conducta. Buenos Aires: Paidós. (Trabalho original publicado em 1963)), a estrutura de conduta dissociativa se refere a manifestações contraditórias entre áreas de expressão, a saber, mental, corporal e de atuação no mundo externo. No caso aqui retratado, observamos dissociações como afastamentos da mãe-internauta de sua própria experiência emocional, valendo-se, para tanto, de explicações relativas a elementos infra-humanos, no caso, hormônios e/ou neurotransmissores.

Tal configuração nos leva a ponderar sobre um aspecto a partir do qual a maternidade pode ser vivida na contemporaneidade, período em que o conhecimento científico positivista não é apenas muito prestigiado, como também encontra fácil divulgação pela internet. A associação do rigor científico com conhecimento do funcionamento cerebral parece favorecer uma visão antropológica segundo a qual a conduta deveria ser explicada a partir do nível de causalidade biológica, para o qual a experiência vivida surgiria como mero derivado de reações hormonais e/ou neuroquímicas.

Evidentemente, reconhecemos que todos os avanços das ciências biológicas são importantes na medida em que permitem que inúmeros problemas humanos possam ser solucionados, diminuindo o sofrimento das pessoas. Cabe lembrar que o desenvolvimento tecnológico contemporâneo permite que inúmeras doenças fetais possam ser detectadas in utero. Além disso, nem sempre a revelação diagnóstica de uma condição problemática é feita com a devida consideração da experiência emocional dos pais, de modo que acabam sendo ativados temores e fantasias que se concretizam numa situação permeada por culpa (Cunha, Pereira, Caldeira, & Carneiro, 2016Cunha, A. C. B., Pereira, J. P., Júnior, Caldeira, C. L. V., & Carneiro, V. M. S. P. (2016). Diagnóstico de malformações congênitas: impactos sobre a saúde mental de gestantes. Estudos de Psicologia (Campinas), 33(4), 601-611. doi: 10.1590/1982-02752016000400004
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).

Quando voltamos nossa atenção para o campo de sentido afetivo-emocional aqui interpretado, “Meus hormônios me enlouquecem”, aproximamo-nos de um vasto território acerca da relação entre corpo e mente, tema bem abordado por Bleger (1963/1977Bleger, J. (1977). Psicologia de la conducta. Buenos Aires: Paidós. (Trabalho original publicado em 1963)) quando teorizou sobre os chamados “níveis de integração da conduta”. Mesmo que a conduta possa ser considerada, por outras ciências, em termos de níveis de causalidade infra-humano, ou seja, físicos, químicos e biológicos, no que diz respeito à psicologia, os atos humanos devem ser abordados no nível humano, vale dizer, em seu nível maior de integração.

No nível humano, e na perspectiva psicológica, vale dizer, aquela que focaliza a experiência vivida, importaria entender a conduta como emergente de campos vinculares não conscientes que se inserem em contextos macrossociais. Entretanto a busca de conhecimento do que ocorre em níveis de causalidade infra-humanos, apesar de extremamente importante e necessária, não se confundiria com estudos sobre o que se passa no nível humano.

Um desentendimento no que se refere aos níveis de integração levaria a uma incompreensão do fenômeno humano em si, ou seja, de uma manifestação emergente de campos relacionais devidamente situados social e culturalmente. Um exemplo desse tipo de desentendimento seria compreender a tristeza que uma mulher sente no pós-natal como uma revolução hormonal e/ou neuroquímica, deixando de compreender tal afeto como fenômeno vivencial. Estaríamos, desse modo, caindo num reducionismo prejudicial em vez de nos posicionarmos de modo a aproveitar conhecimentos derivados de diferentes áreas do saber.

Se não houver clareza sobre os níveis de conduta, certas concepções altamente discutíveis, como a do “self neuroquímico”, podem ser usadas. Rose (2003Rose, N. (2003). The neurochemical self and its anomalies. In R. Ericson (Ed.), Risk and Morality (pp. 407-437). Toronto: University of Toronto Press.), a partir de um posicionamento foucaultiano, denominou de “self neuroquímico” um fenômeno que consiste na invocação do corpo e da neuroquímica pelas pessoas não somente para se caracterizarem e se identificarem, mas também para compreenderem a vida humana, no sentido biográfico que o termo deveria tomar.

Evidentemente, não negamos que os fenômenos emocionais incluem inevitavelmente a dimensão corporal, característica do modo humano de existência. Contudo criticamos, com Bleger (1963/1977Bleger, J. (1977). Psicologia de la conducta. Buenos Aires: Paidós. (Trabalho original publicado em 1963)), a ideia de que os níveis humanos de causalidade da conduta possam ser elucidados pelos níveis infra-humanos de causalidade. Convergindo com tal visão, ainda que de modo independente, Rose e Abi-Rached (2013Rose, N., & Abi-Rached, J. M. (2013). Neuro: the new brain sciences and the management of the mind. Princeton: Princeton University Press.) apontam para a incoerência de equalizar algumas terminologias, como cérebro, hormônios, neurotransmissores, self, experiência e personalidade. Além disso, não devemos esquecer que tal equacionamento, que, à primeira vista, parece significar mera incompreensão epistemológica e conceitual, provavelmente não corresponde a um erro inocente, uma vez que atende a interesses de certos setores econômicos, principalmente ligados à produção farmacológica e à venda de exames e tratamentos médicos, ao mesmo tempo em que conspira contra a percepção de que muitos sofrimentos humanos derivam diretamente do modo como organizamos nossas vidas e não de desordens de caráter exclusivamente orgânico, passíveis de serem resolvidas via medicação. Ganhando ampla divulgação nos espaços sociais, inclusive pela internet e mommy blogs (Hunter, 2015Hunter, A. (2015). Lesbian mommy blogging in Canada: documenting subtle homophobia in Canadian society and building community online. Journal of Lesbian Studies, 19(2), 212-229. doi: 10.1080/10894160.2015.969077
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), tal visão concorre para a legitimação do uso de fármacos com vistas a alterar ou modular as emoções.

Assim, a partir de estratégias de diversos grupos, como indústrias, profissionais da saúde e governos, toda a complexidade da vida humana se resumiria a um produto de combinações bioquímicas. Tais variações genética e fisiologicamente determinadas explicariam a experiência de modo que as pessoas poderiam, portanto, ser tratadas farmacologicamente (Rotondaro, 2013Rotondaro, T. (2013). Novos projetos de cidadania biológica: a (re)construção racial dos selves neuroquímicos. Sociedade e Estado, 28(1), 163-178. doi: 10.1590/S0102-69922013000100009
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). Esse tipo de posicionamento diminui consideravelmente a importância dos vínculos humanos e dos contextos macrossociais, o que dificulta mudanças de condições concretas da vida das pessoas, restringindo a oportunidade de um viver mais autêntico.

Ponderamos que, de acordo com o campo “Meus hormônios me enlouquecem”, relativo ao imaginário coletivo de mães-internautas sobre o sofrimento materno, experiências de mal-estar psicológico derivariam de fatores biológicos. Tememos as consequências do uso dessas explicações num momento em que a mãe se volta para o atendimento das necessidades do recém-nascido, considerando devidamente a organização de cuidados de bebês e crianças em cada contexto da nossa sociedade. Podemos compreender que, na linha de atender melhor à condição da pessoa como ser social, seria mais acertado sopesar a importância de que a puérpera vivesse experiências de acolhimento pela família nuclear e extensa, além de laços comunitários e serviços institucionais, de modo que pudessem sustentá-la nesse período. Desse modo, na base daquilo que o próprio amadurecimento pessoal permitiria (Winnicott, 1960/1995Winnicott, D. W. (1995). The theory of the parente-infant relationship. In D. W. Winnicott, The maturational processes and the facilitating environment. Studies in the theory of emotional development (pp. 37-55). London: Karnac Books. (Trabalho original publicado em 1960)), a integração pessoal da mulher-mãe não seria perturbada.

Pensamos, portanto, que o drama de mães se desenrola em contextos específicos, que podem ou não favorecer seu sofrimento. Estudos recentes, dentre os quais os de Aching e Granato (2018Aching, M. C., & Granato, T. M. M. (2018). Role of a support network for refugee mothers. Estudos de Psicologia (Campinas), 35(2), 137-147. doi: 10.1590/1982-02752018000200003
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), Schulte et al. (2019Schulte, A. D. A., Gallo-Belluzzo, S. R., & Aiello-Vaisberg, T. M. J. (2019). A experiência emocional de autoras de mommy blogs. Estudos Interdisciplinares em Psicologia, 7(1), 107-130.), Scobie (2017Scobie, O. (2017). Postpartum depression and intensive mothering: how western cultural expectations of motherhood shape maternal mental health in new parents. Canadian Social Work, 19(1), 39-50.) e Visintin e Aiello-Vaisberg (2017Visintin, C. D. N., & Aiello-Vaisberg, T. M. J. (2017). Motherhood and social suffering in Brazilian mommy blogs. Revista Psicologia-Teoria e Prática, 19(2), 108-116.), denunciam que há expectativas de acordo com as quais o cuidado infantil deveria ser de responsabilidade exclusiva de mães, o que favorece significativamente o mal-estar emocional materno. Assim, os autores alumiam como a maternidade deve ser entendida como fenômeno socialmente determinado. De nossa parte, compreendemos que, para uma compreensão mais rigorosa do sofrimento materno, é necessário se afastar de postulações de acordo com as quais o desconforto psicológico de mães seria resultado de substâncias orgânicas, como, por exemplo, hormônios.

Parece que, em relação a esse campo de sentido afetivo-emocional, a vida humana é invocada enquanto fenômeno biológico, de modo a suplantar a biografia e os sentidos dos atos humanos. Lembramos que Schneider (1951Schneider, K. (1951). Psicopatologia clínica. Madrid: Paz Motalvo.), aparentemente, não acredita na possibilidade de compreender que algumas condutas seriam carregadas de sentido. Ele comenta: “É possível conceber que ‘a alma’ se possa transformar por si mesma de um modo tão grotesco sem que isso seja causado por uma enfermidade do corpo?” (Schneider, 1951Schneider, K. (1951). Psicopatologia clínica. Madrid: Paz Motalvo., p. 23). Tal posicionamento se mostra absolutamente inaceitável àqueles que se apoiam na psicanálise, pois, enquanto método, como demonstrou Politzer (1928/2004Politzer, G. (2004). Crítica dos fundamentos da Psicologia: psicologia e psicanálise. São Paulo, SP: Unimep. (Trabalho original publicado em 1928)) contundentemente, assenta-se sobre o pressuposto revolucionário de que toda conduta humana é prenhe de sentido, independentemente de quão estranha ou cruel possa parecer, à primeira vista, a um observador externo ou à própria pessoa.

Entendemos, com o auxílio de Bleger (1963/1977Bleger, J. (1977). Psicologia de la conducta. Buenos Aires: Paidós. (Trabalho original publicado em 1963)), que é necessário abordar o fenômeno humano, em função de sua complexidade, em termos de perspectivas e de níveis. As perspectivas corresponderiam às ciências humanas, que compartilham o mesmo objeto de estudo, a saber, o ser humano, gerando conhecimento compreensivo. Por outro, conhecimentos objetivantes poderiam ser produzidos, pelas ciências naturais, por meio da consideração de determinações infra-humanas de caráter físico, químico e biológico. Conhecimentos gerados a partir de perspectivas humanas e a partir de níveis infra-humanos podem contribuir decisivamente para a solução dos mais diversos problemas, entre os quais se incluem os sofrimentos sociais associados à maternidade contemporânea. Contudo advertimos sobre a confusão, de caráter teórico e epistemológico, entre perspectivas e níveis, de modo a evitarmos reducionismos no estudo da conduta humana. Pontuamos, então, que entender o sofrimento materno como unicamente derivado da ação de hormônios e/ou neurotransmissores pode obturar transformação de situações concretas que oprimem a mãe e dificultam a superação de defesas que lhe custam um viver mais integrado e autêntico.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    18 Jun 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    13 Jun 2018
  • Revisado
    17 Ago 2020
  • Aceito
    08 Mar 2021
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